#1 A Estrela Que Eu Desejo

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Copyright © 2020 Sara Fidélis A ESTRELA QUE EU DESEJO 1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Letti Oliver Revisão: Larissa Honório Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor(a). Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA.

Notas Iniciais Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12

Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Epílogo Agradecimentos Notas Finais Outras Obras

E aqui estamos nós, prontos para mais uma aventura juntos! Aqui temos Levi, Clara e outros personagens que pretendem contar suas histórias. Preciso dizer que a linguagem pode ser informal em alguns momentos, respeitando sempre a liberdade nos diálogos, porém com coesão e coerência para trazer a narrativa para mais perto de vocês. Os casos clínicos, foram estudados com uma médica e apesar de usar de licença poética para fazer com que seja tudo mais emocionante, são situações plausíveis e que inclusive podemos encontrar os precedentes com facilidade. Então é isso! Espero que estejam preparados para apaixonarem-se por Vale do Recomeço. Um forte abraço, Sara Fidélis

“A vida é como uma caixa de chocolates, você nunca sabe o que vai encontrar.” Forrest Gump

2020

A imagem que me encara no reflexo do espelho não sou eu. Bom, não exatamente. A maquiagem pesada, os olhos destacados com um delineado grosso, os lábios pintados com batom vermelho sangue, nada disso foi escolha

minha. As lâmpadas que circundam o espelho destacam ainda mais as diferenças entre a mulher empoderada, perfeita e sexy e a Clara de verdade, aquela que ninguém vê. É mais um papel, vivo uma personagem criada por eles, por todos e nunca reclamei, afinal aceitei atuar. Olho o relógio e percebo que faltam cinco minutos para minha entrada, vou receber um prêmio pela atuação em meu último filme e só consigo pensar em quanta gente deve estar na plateia, em todos aqueles olhos me encarando e em cada frase ensaiada que precisarei dizer. Abro a gaveta sob a penteadeira e retiro de lá uma caixinha de analgésicos, mas dentro dela guardo o calmante forte que sempre tomo antes de enfrentar a multidão. Há um pacotinho em um canto, mas nunca toquei nele. São drogas. Meu agente as conseguiu para mim e disse que podiam ajudar, assim os enjoos cessariam, eu não vomitaria sempre e seria mais solta, mas já vi o que isso fez com outros vários na mesma profissão que eu. Então resisto à tentação, mesmo que a cada dia o pacote me chame mais e mais alto. Pego meu comprimido, torcendo para que ainda dê tempo de fazer efeito, destampo a garrafa de água e estou prestes a tomar, quando ouço as

batidas na porta, seguidas pela voz de Leonardo. — E então, Clara? Está pronta? Ele entra no camarim e sorri daquele jeito forçado. Leonardo não é um crápula, mas só pensa em negócios e no meu sucesso, o que seria bom se eu gostasse mesmo do que faço. — Vou só tomar o remédio... — Enfio o comprimido na boca e jogo água em cima. Quando me levanto, percebo a expressão dele mais séria. — Tomou agora? Não vai adiantar nada. Por que não tomou esse calmante antes? — Meu pai me ligou, cinquenta minutos de instruções e falatório. Perdi a noção do tempo. Tem muita gente lá? — Está lotado — responde e sinto o embrulho na boca do estômago subir. — Tem uma coisa que preciso te falar... O Túlio está na primeira fila e programamos para que ele suba ao palco e faça uma declaração de amor pra você, mas sei que odeia surpresas, então achei melhor avisar. Ele ainda está no meio da frase e eu já estou a caminho do banheiro. Vomito o pouco que como na privada, graças a dieta maluca que estou fazendo para o próximo papel não foi muita coisa. Quando saio, ele coloca uma toalha na minha mão e estende o batom

para que eu o retoque. — Precisamos ir. Sigo-o para fora e paramos na lateral do palco, aguardando. — Você está bem? — pergunta preocupado. — Leo, vomitei o remédio. Tem muita gente... — Você precisa perder esse pânico, essa vergonha. Devia usar os outros comprimidos. — Eu aguento. — Respiro fundo. — Vou subir, dizer o que decorei e comer uma caixa de chocolates quando pousar em casa. Ele sorri me incentivando, mas parece me esconder alguma coisa. — E agora, ela — começa a apresentadora —, que nos emocionou, nos confundiu e nos fez repensar convicções no longa Um Voo Singular. Recebendo o prêmio de melhor atuação, Clara Coutinho! Leo me dá um toque nas costas. — Sorria. Caminho o mais confiante que consigo, coloco um sorriso no rosto e sigo firme até onde a apresentadora me aguarda. Ela me oferece o troféu e eu o aceito, inclinando-me para cumprimentála.

A loira se move para o lado, cedendo-me o microfone e sinto minhas mãos suando. Me posiciono em frente a ele e me recordo das palavras que ensaiei. — Boa noite! Estou feliz de uma maneira que nem posso descrever e emocionada por ter tocado tantas pessoas ao ponto de me acharem merecedora dessa honra. Só tenho a agradecer por acompanharem meu trabalho...

Finalmente acabou. Foi horrível, Túlio subiu ao palco, me entregou flores e me pediu em casamento diante de toda aquela gente. Agora, chega! Vou precisar dar um basta nisso ou me verei casada e com cinco filhos quando resolver me impor. Finalmente depois de voar de São Paulo de volta para Belo Horizonte — como faço todas as vezes que preciso estar em algum programa ou premiação —, chego em casa e saio retirando os sapatos pelo caminho, sentindo-me aliviada por estar longe das câmeras. Uma dorzinha de cabeça chata me incomoda e só consigo pensar nos

chocolates que vou comer e que vão aplacar minha ansiedade. Acendo a luz da cozinha e abro o armário, apenas para encontrar um grande nada. Quem foi que mexeu... Leonardo! Pego o celular e disco o número da Rita, a moça que cuida da limpeza para mim. — Oi, dona Clara — ela atende. — Rita, o Leonardo veio aqui? Ela fica em silêncio e sinto a culpa no vazio que se segue. — Desculpe, dona Clara. Foi ontem, ele disse que era para o seu bem, que precisava emagrecer pra um filme e que podia dizer que foi ele, se a senhora ficasse brava. — O Leo comeu todos os meus chocolates? — pergunto, soando mais ameaçadora do que é educado. — Jogou fora. Mas se quiser, posso ir até aí e fazer uma sobremesa. Que ideia! Rita mora do outro lado da cidade, na verdade Leonardo e meu pai insistiram para que ela morasse aqui, mas isso seria demais. Minha casa é o único lugar em que posso ser eu mesma e ficar sozinha, meu refúgio. Ainda que Leonardo também more na cidade e me fiscalize o tempo todo.

— Não precisa. Mas quando ele aparecer aqui, esconda meus doces na próxima vez. — Pode deixar, prometo que escondo — ela concorda de pronto. — Então boa noite, Rita. Até amanhã. Suspirando cansada, me rendo ao fato de que Leo consegue me manter na dieta mesmo sem estar por perto. O celular vibra ainda na minha mão. — Oi, pai... — Clara, preciso que volte para cá. Temos que conversar e isso não pode esperar. Talvez ele tenha bebido, não está fazendo muito sentido. Olho para o relógio e percebo que já passa das dez da noite. — Pai, já está tarde e vou levar umas oito horas para chegar em São Paulo se for de carro e já dispensei o jatinho. Eu estava aí até agora a pouco... — Não tem problema. Se sair agora, poderemos conversar de manhã sobre o contrato na Iluminar. Sinto uma pontada no peito. Não, ele não pode cogitar me impedir de assinar esse contrato. — Eu quero assinar — falo, decidida. Talvez a conversa que planejava

ter com ele aconteça mais rápido que eu esperava. — Já conversamos sobre isso, é uma plataforma de streaming, eles querem todos os meus filmes no catálogo e, se isso acontecer, porque estou intermediando as negociações na produtora, vai me dar visibilidade e renda, além da possibilidade de parar de aceitar papéis por um tempo. Eu preciso disso, pai. Não estou aguentando mais... Preciso descansar, ir pra um canto que ninguém me ache, que não fiquem divulgando minha vida. — Essa bobagem de novo? Venha até aqui e vamos conversar, decidir juntos. Abro a boca para contestar, mas ele já desligou. Droga. Vou fazer trinta e dois anos logo, sou adulta e deveria tomar minhas próprias decisões, mas ele e Leonardo acabam minando minhas escolhas e aceitei isso por tanto tempo, que pareço ter perdido a capacidade de lutar pelo que quero. Mas não dessa vez. Estou saturada e mesmo que eu o obedeça, indo até São Paulo, vai ser do meu jeito e apenas para dizer que não vou desistir de ter meu espaço. Preciso enfrentá-lo de uma vez por todas, papai já tomou decisões por mim que me trazem tristeza até hoje. Minha vida poderia ser completamente diferente se não fosse isso.

Indo até meu quarto, troco o vestido longo por uma blusa de tricô e uma calça escura e confortável, calço meus sapatos, coloco em minha bolsa apenas meus pertences pessoais, já que na casa dele tem muita coisa minha por causa de todas as vezes em que preciso estar lá e pego as chaves do carro. Seria bem mais fácil morar em São Paulo do que esse ir e vir. Quando papai se mudou por causa do trabalho, insistiu muito para que eu fosse também, mas eu havia comprado minha casa pouco antes e isso, somado a minha insistência, acabou convencendo-o. Além de Leonardo, que sempre reporta a ele tudo que acontece e com isso ele consegue manter o domínio mesmo distante. Ao menos dessa vez, sem um voo agendado, vou aproveitar a viagem, colocar o pé na estrada e fazer o que quero, sem que ninguém me perturbe por umas oito horas. Sento no banco da frente do meu Audi A7, tentando chegar o banco para frente, está longe demais para mim. Não costumo dirigir tanto quanto gostaria, algo que também vai ter que mudar. Ligo o som, colocando uma seleção de músicas que ouço geralmente quando estou malhando e finalmente deixo a garagem. Tão logo pego a estrada, saindo de Belo Horizonte, me arrependo de não ter parado em algum lugar e comprado meus chocolates, eles seriam uma

ótima companhia nas próximas horas. Aos poucos as casas na beira da rodovia vão diminuindo, até que reste apenas mato nas laterais, meu carro e vários outros que, por algum motivo, também estão indo ou vindo. Aumento o som e começo minha cantoria particular, tiro os sapatos e canto, animada com minha solidão, mas principalmente com a decisão que tomei. Vou balançando a cabeça, sorrindo de verdade pela primeira vez em um bom tempo, mas ainda atenta ao trânsito. Sigo assim por muito tempo, alternando para uma versão de músicas tristes que me trazem lembranças dolorosas e voltando para as alegres. Já estou no interior de Minas quando me dou conta de que não comi nada, meu estômago já reclama e minhas costas doem. Preciso esticar as pernas. Paro o carro ao avistar uma lojinha de conveniência. Por sorte o lugar está vazio e depois de comprar um sanduíche, uma lata de refrigerante — me sentindo rebelde — e uns dez bombons, apenas para me vingar de Leonardo, volto para o carro. Como o sanduíche ainda no estacionamento com minha bebida carregada de açúcar e saio para a rodovia outra vez.

Volto para as músicas animadas e celebro minha liberdade, enfiando um chocolate quase inteiro na boca. Pouco mais de meia hora depois, me dou conta de onde estou. Abaixo o volume do som, enquanto observo atenta, à procura da estradinha de terra que leva a Vale do Recomeço. Quando avisto a placa indicando a entrada, não penso duas vezes antes de jogar o carro para o acostamento e descer dele. Desliguei o carro. Agora está escuro, mas acendo a lanterna do celular, atravesso a estrada de terra e desço a encosta na lateral dela, me escorando em uma árvore para observar melhor. O caminho que leva a Vale desce íngreme acima de onde estou, meio pendurada para ver a pequena cidade em que passei os melhores dias da minha vida. As luzes das ruelas estão acesas e mesmo ao longe consigo sentir aquela paz que a cidadezinha tem. Em algum lugar lá embaixo tem uma saída, que conduz a um sítio e lá está ele. Nós tínhamos dezessete anos na época e mesmo quase quinze anos depois, nunca consegui deixar de pensar em como minha vida teria sido se eu tivesse feito outra escolha, se tivesse dito a ele meus motivos e procurado uma forma de lutar.

Com certeza seria mais feliz que sou hoje. A vontade de descer a encosta esmaga meu peito, queria poder vê-lo uma vez mais, saber como as coisas ficaram, se meu sacrifício valeu a pena. Mas sei que jamais terei coragem para isso. Estou tão distraída que não percebo o outro carro se aproximando, nem mesmo os passos, não até ouvir a voz do homem, atrás de mim, no escuro. — Precisa de ajuda com o carro, moça? Me viro assustada e dou um pulo no lugar, a terra e o cascalho embaixo dos meus pés se deslocam enquanto caio, rolando barranco abaixo.

"Carpe diem. Aproveitem o dia, garotos. Façam suas vidas serem extraordinárias." Sociedade dos Poetas Mortos

03 DE NOVEMBRO, DE 2005 - 15 ANOS ANTES

Os solavancos são pura responsabilidade da estrada. Não importa muito o fato de que a nova caminhonete S-10 do meu pai seja macia, confortável e maravilhosa. De nada isso adianta, porque a estrada é completamente esburacada e cheia de cascalho.

As rodas grandes amortecem o impacto, óbvio, mas ainda assim, dependendo do tamanho dos buracos, sinto meu corpo sacolejar de leve, o que inviabiliza que tire um cochilo, então aproveito para observar a paisagem noturna. Depois de morar por minha vida toda em Belo Horizonte e ter saído de lá apenas para conhecer outras cidades ainda mais agitadas, como São Paulo, por exemplo, cada curva na estrada de terra que leva a uma cidadezinha no interior de Minas Gerais é novidade. Os animais no caminho, a mata verde iluminada pelos faróis do carro e as florezinhas laranjas que se acumulam na beira da estrada, as árvores cheias, o silêncio e ao mesmo tempo o barulho da noite, o céu escuro e bonito demais, cheio de estrelas que não podia ver na cidade e o cheiro... Um cheiro de ar puro. De vez em quando avisto alguma plantação de café. De acordo com o que sempre ouvi, o café domina a região e faz girar a economia do sul de Minas. — Pai, vou ligar o som... Já estamos chegando? Ele me fita de lado, um olhar meio enviesado e balança a cabeça, afirmando. — De acordo com o GPS, sim. Não sei se estamos no caminho certo,

esse fim de mundo está mais para um lugar abandonado por Deus, que uma cidade... —responde irritado. — E não ligue o som — completa ao ver minha mão se mover na direção do CD-player. Acabo fazendo uma careta de desgosto, mas não desobedeço. Meu pai sabe ser categórico. — Por quê? Disse que não o desobedeço, mas isso não quer dizer que não o questione. — Sabe que não gosto de música. Sim, é uma das piores respostas que se pode dar. — E o senhor sabe que é esquisito não gostar de música, não sabe? Ele apenas dá de ombros. — Você tem dezessete anos, Clara. Não entende de muita coisa. Solto uma risada mal humorada. — Sei de algumas... — Decido mudar o rumo da conversa, não me sinto disposta a entrar em uma discussão sem sentido agora. — Olha só o que decidi, por exemplo: — conto, enquanto abro a mochila perto dos meus pés... — Está vendo? Trouxe algumas apostilas, meus cadernos e muito material de estudo. Vou aproveitar essas férias e me preparar para o vestibular. Legal,

né? Vejo-o assentir e isso me traz alívio, ao menos até agora estamos de acordo. Seu rosto está concentrado na estrada e os ouvidos na voz robótica do GPS, mas o fato de ter acenado me dá a certeza de que me escutou. — Pelo menos vou ter o que fazer enquanto o senhor trabalha... — Acho uma excelente ideia. Bom que fica preparada para quando retornarmos e não fico preocupado em estar te deixando muito entediada. Assinto com um gesto e cruzo as duas pernas, apoiando meus pés no painel da caminhonete. Adoro o perigo de provocar meu pai vez ou outra, mesmo que minha rebeldia não vá muito longe. Por exemplo: eu deveria ter teimado em ficar em casa, mas ao invés disso estou sendo arrastada para uma cidadezinha que está mais para uma vila, onde vou passar os próximos dois meses, que é todo o período das minhas férias. — O banco fica longe da pousada em que vamos nos hospedar? — Não que faça muita diferença, não é como se eu fosse visitá-lo no trabalho. — Não sei, mas imagino que não — ele responde. — Pelo tamanho do lugar, nada deve ser muito longe. Vale do Recomeço. É um nome bonitinho e pelas fotos que vi na

internet o lugar também é assim. Bem rural, pacato e sossegado. Isso não me incomoda, na verdade é o que faz com que a mudança temporária não seja tão horrível. Não sou uma pessoa das festas e baladas. Em meus dezessete anos de existência aprendi que minha cama, alguns filmes e comida de qualidade são itens essenciais para a vida. Barulho, música alta e aglomerações são dispensáveis. — Olha, Clara... Você sabe que é importante que eu fiscalize a filial do banco. Poderia mandar outra pessoa e, inclusive, o gerente que foi enviado para cá é alguém em quem confio bastante, mas não posso simplesmente deixar tudo nas mãos dos outros. É assim que os funcionários se tranquilizam, ficam relapsos com seus trabalhos e começam a se sentir donos de tudo. Precisam saber quem manda para depois obedecerem como se deve. Aceno concordando. Não que realmente esteja de acordo, mas outra vez evito uma discussão que não vai me levar a lugar algum. É assim que meu pai conduz os negócios, com punho de ferro, aparições nas filiais do banco para tocar o terror e ocasionais demissões. É mais ou menos como ele me dirige também, com regras e ordens, decisões que não pedem minha opinião e distância, mas de vez em quando aparece e aterroriza, mostra quem manda e, bom, no meu caso não tenho a opção de ser demitida.

— Acredito que a pousada seja simples, nada muito luxuoso pelo porte da cidade. Mas você vai ficar bem... Não vai? Meu rosto se vira na direção da voz dele, que inesperadamente parece preocupada. — Vou ficar bem. Eles devem ter uma locadora... Talvez uma livraria. O sorriso dele é cético. — Locadora, pode até ser. Livraria, acho bem difícil. Mas você vai dar um jeito e, estudando, nem vai ter muito tempo livre. — É... Sobre isso... Estive trabalhando em um roteiro novo, sabe? Acho que daria um filme excelente — falo, sondando o assunto que sempre tento introduzir. — Já conversamos sobre isso e não apenas uma vez, Clara. Por que alguém se sujeitaria a fazer roteiros de filmes, criar as oportunidades para que outros brilhem? Se quer mesmo trabalhar com filmes, vá ser atriz. Tenho alguns contatos e estou certo de que antes mesmo de se formar vai estar nos palcos. A fala dele faz meu coração acelerar. Sempre o mesmo assunto, a mesma determinação e nunca, nunca chegamos a lugar algum. — Pai, eu não quero isso — explico pela décima vez. — Não gosto de palcos, de chamar atenção, das pessoas me olhando, concentradas em todos

os meus movimentos. Antes mesmo que eu termine, sua cabeça já está se movendo de um lado para o outro. — Mas você sabe atuar. Lembra aquele teatro que fez na escola? Foi excelente. Suspiro. Maldito teatro. — Eu vomitei antes de subir ao palco. Quero escrever os roteiros, gosto de criar as histórias, eu poderia até mesmo dirigir um set, mas atuar não é pra mim. — Clara — seus olhos saem da estrada por um momento e focam em mim. Dura um segundo, mas é o bastante para transmitir a firmeza e determinação no gesto. — Você é minha filha, nasceu para ser reconhecida. Não para ter o nome nos créditos de um filme, sem que ninguém faça ideia de quem é. Nasceu para brilhar e não conferir brilho aos outros. Penso em oferecer meus argumentos mais uma vez, mas uma terceira voz na cabine me interrompe: Você chegou ao seu destino. Realmente, após a última curva na estrada de terra, entramos em uma rua de paralelepípedo, com algumas casas nas duas laterais. Não se parece mesmo com uma cidade, mas pelo visto é.

Virando à esquerda na primeira esquina, finalmente vemos mais casas; noto também alguns pontos comerciais, fechados em sua maioria. Passamos por uma pizzaria e minha boca se enche de água com a expectativa da comida, mas as portas já estão seladas, apesar de dar para ver uma luz acesa. Olho no celular apenas para ter certeza de que é mesmo tarde assim e, para meu espanto, são apenas nove e meia da noite, mas o lugar parece completamente deserto. — Deve ter algo de comer na pousada — meu pai fala, adivinhando o rumo dos meus pensamentos. — A farmácia também está fechada... — ele diz, rindo ao notar o prédio completamente escuro. — E se alguém ficar doente? — pergunto, curiosa. — Provavelmente o hospital fica aberto vinte e quatro horas por dia. Provavelmente? Enquanto conversamos, avançamos pelas pedras que calçam a rua. Os prédios e as casas são em sua maioria históricos e não posso deixar de observar tudo extasiada. Por menor e mais antiquado que possa parecer, é lindo. É como estar dentro de um quadro com uma pintura de outros tempos. As casas brancas, as janelas de madeira coloridas em azul, verde, amarelo... Os postes nas ruas se parecem com aqueles que eram acendidos

por lampiões antigamente. A cidadezinha é linda e dá uma sensação de nostalgia — pelo passado que nunca vivi. No final da rua, depois de passarmos pelo que acho ser o centro, já que tinha uma igreja e uma sorveteria, chegamos à pousada Recanto do Recomeço. Quando desço do carro e minhas botas de cano baixo atingem o chão, inalo o aroma da noite, o cheiro de mato, das flores, das árvores. Passo as mãos pelos meus cabelos que agora se tornaram um emaranhado castanho e disforme. Eu não deveria ter deixado a janela aberta durante a viagem. — Vem, Clara... Vai ficar aí a noite toda? Apresso o passo para acompanhá-lo e juntos entramos pelo arco de pedras que faz com que o lugar se pareça com um castelo. O cheiro das flores fica mais forte e anuncia o jardim bonito antes mesmo que eu o veja. Logo que entramos na recepção somos recebidos por um outro aroma, um que indica que há algo muito gostoso no fogo. Agradeço em silêncio a Deus. Meu pai toca a sineta e um pouco depois uma senhora sorridente aparece na porta, secando as mãos em um avental azul. — Boa noite! Vocês demoraram a chegar — ela diz com

informalidade. — Preparei o jantar para os dois e os quartos já estão prontos para recebê-los. Imagino que seja o senhor Alessandro. Vejo uma pilha de panfletos sobre o balcão e pego um deles enquanto ouço a resposta do meu pai. — Alessandro Alves Coutinho — ele confirma e vejo a mulher abrir um caderno simples de espiral e marcar um x na frente do nome. — E essa menina bonita é sua filha? Ela me olha, ainda sorrindo e enfio o papel no bolso, liberando a mão para cumprimentá-la. — Sou Clara. — Bem-vinda, Clara. Meu nome é Ilda, meu marido Genaro está lá em cima conferindo se está tudo perfeito nos quartos de vocês. Querem subir agora ou preferem jantar antes? — Vamos jantar, Ilda. Essa mocinha está faminta. Você pode levar as malas para cima. Com essas palavras ele sai andando na mesma direção de onde dona Ilda havia vindo. Ela olha desolada para as malas no chão e acompanho seu olhar. Meu pai não é uma pessoa ruim, mas as vezes é tão sem noção!

Uma senhora da idade dela jamais conseguiria levar as malas sozinha e sair dessa aventura com a coluna ilesa. — Vamos nós duas, Dona Ilda. A senhora leva essa... — Estendo minha bolsa de mão, pequena e compacta, mas principalmente leve, para que ela carregue, e acabo eu mesma pegando a mala do meu pai e colocando sobre o ombro e erguendo a alça da minha, que para minha salvação é de rodinhas — apesar de bem grande e pesada. A mulher segue calada ao meu lado e pela sua expressão transparente me sinto na obrigação de defender meu pai. — Olha, peço que o perdoe. Ele está acostumado a ficar em grandes hotéis, sabe aqueles com carrinhos? Ela assente e abre um sorriso meio tenso. — Então... Os atendentes apenas colocam as malas no carrinho e levam para os quartos. Acho que acabou não se tocando de que não seria tão fácil assim aqui. O sorriso dela fica mais natural e parece entender o ponto. — Verdade, menina — responde. — Acho que eu devia providenciar um carrinho desses. Mas é que geralmente as pessoas vem pra cá apenas por um fim de semana e a bagagem é pouca. Na verdade, vocês não trouxeram muito levando em conta que vão ficar tanto tempo por aqui...

Realmente, mas considerando o peso disso tudo para subir cada degrau de pedra e o fato de que quando olho para baixo me passa a tragédia pela mente — eu caindo com as malas e esbarrando na Dona Ilda, levando-a comigo na diversão, fico feliz por meu pai ter sido chato e me proibido de levar muita coisa. — Ah, vamos lavando as roupas e podemos comprar algumas coisas por aqui também. Devagar acabamos chegando ao topo da escada e entramos em um corredor. A mulher caminha na frente e se dirige ao último quarto, arrastando os chinelos, que ela usa com meias. — Esse é o seu. Seu pai pediu o maior e ele fica lá em cima... Vamos ter que subir um pouco mais. Observo o cômodo amplo quando a porta se abre. As paredes são brancas e parecem ter sido pintadas há pouco tempo. A cama de madeira no centro é de casal e no canto há um guarda-roupa marrom com as portas abertas, completamente vazio. — Vou deixar a mala aqui em cima da cama. Depois guardo minhas coisas. Estou morrendo de fome! — Ah, então vamos logo, menina. Depois você vê direitinho. A roupa

de cama está nas gavetas, tá bom? Concordo e faço o que ela disse, deixando minhas coisas sobre a cama e saindo do quarto, seguindo a mulher escada acima. Quando chegamos no corredor do último andar, vejo apenas uma porta. Claro que meu pai iria exigir algo mais privativo. Ela a abre e noto que o cômodo é bem maior que o em que entramos antes. Há uma sala adjacente, mobiliada e até um espaço pequeno que serve de cozinha, a julgar pelo frigobar antigo e um fogão de duas bocas, além do banheiro. — Vou deixar as coisas dele no sofá. Com isso saímos do quarto, enquanto dona Ilda vai descrevendo as delícias que preparou para o jantar. Ouço meu estômago roncar ao ouvir os detalhes, e a risada da senhora segue o primeiro barulho. — Vamos logo — ela diz. — Quem tem fome tem pressa...

Levi

— Vem logo, mãe! Vou começar sem a senhora — ameaço para ver se isso a acelera. Ouço os passinhos leves atrás do sofá em que estou sentado e me viro, antes mesmo que ela suba pelas minhas costas. — A mãe disse que já tá vindo. Mas ela também falou que se soltar o filme antes, vai jogar um quilo de sal na sua pipoca. Lalá me encara com os olhinhos azuis muito sérios. — Ô, Lalá, fica na sua e vai lá lembrar a mãe de trazer nosso suco. Bagunço os cabelos loiros dela e a vejo fazer uma careta de desdém. Lavínia se acha muito esperta do alto dos seus sete anos, mas geralmente não discute comigo. Eu a observo se afastar na direção da cozinha, por isso estou bem atento quando a vejo dar um encontrão com nossa mãe no caminho, fazendoa derrubar algumas pipocas pelo tapete. — Menina! Já não disse que não pode ficar nessa correria? — Mas mãe, o Levi falou que quer suco... — Lavínia resmunga se justificando. — Ele que pegue! Virei empregada dele agora? Abro um sorriso ao ouvir o tom nervoso dela e me levanto.

— Tá bom, mãe. Senta aí que eu busco o suco, mas não é pra começar o filme. Passo por ela, que me dirige um olhar de afronta, como se planejasse mesmo aquilo. — Nunca vi! Olha só... Tirou o lençol todo do sofá... — Ouço sua reclamação. Abro o armário velho de madeira e pego três copos de plástico, empilhando-os. Em seguida abro a geladeira marrom e tiro de lá a jarra de suco de laranja. — Eu que nunca vi. Pra que pôr um lençol aí? — respondo. Volto para a sala e vejo que minha mãe já se acomodou em sua poltrona preferida. Uma dessas que chamam de poltrona do papai, aqui em casa o velho Joaquim não teve chance, virou poltrona da mamãe mesmo. — Não viu que tem um rasgo aí? Chega visita e fica essa coisa horrorosa... — ela justifica. Entrego um copo de suco a ela e outro pra Lalá, antes de tomar meu lugar outra vez — agora com o lençol no devido lugar. — Mãe, cadê o pai? — pergunto mais por curiosidade. Ele não liga muito pra filmes e televisão. — Cuidando do bezerrinho... — Ouço a resposta meio abafada já pelo

monte de pipoca que enfiou na boca. — Já viu como ele fica com qualquer animal novo por aqui. Nem a Lavínia foi tão paparicada quando nasceu. Dou risada do comentário, mas sei que é uma meia verdade. Apesar de ele ter dado muita atenção a Lavínia, os animais tem mesmo um lugar especial no coração do velho, assim como nosso sítio. — Sei. Quando o bezerro dormir ele vem... — brinco. Lalá se senta do meu lado, já com sua coberta sobre as pernas. — Qual filme você pegou hoje? — Hoje vamos ver E.T, produção do Steven Spielberg — respondo a pergunta feita por minha mãe, antes de apertar o botão para iniciar. — Um filme de E.T? Mas não estamos seguindo a tal lista dos filmes pra ver antes de morrer? Esse não parece muito clássico... — ela contesta com uma cara feia. — Vamos ver os cem filmes da lista e esse está entre eles. Não tem só filme preto e branco não, dona Maria. Vamos modernizar isso aí... Nem só de Mazzaropi vive a TV brasileira. — Deixa de ser bobo, Levi! É que não gosto de E.T. Você sabe... Abro um sorriso ao ver a expressão dela, um tanto quanto amedrontada. Minha mãe foi criada aqui na roça, assim como eu, mas ela é cheia de crenças em coisas sobrenaturais e vive contando umas histórias aterrorizantes da sua

infância. — Esse E.T é bonzinho. Mas agora chega de papo, vai começar... Realmente, no decorrer do filme ela esquece a apreensão e se concentra na história. Talvez nossa TV pequena de tubo dificulte que ela tenha receio, ou quem sabe seja apenas a carinha bonitinha do tal alienígena. Lalá, por outro lado, não deu a mínima para a história e adormeceu engalfinhada no meu braço. Um pouco depois ouvimos a porta da frente se abrir e meu pai entrar, batendo as botas pesadas no chão. — Boa noite, família — ele saúda, enquanto segura a porta para que Al, um dos nossos cachorros, entre também. — Vou tomar um banho antes de sentar aí com vocês. Tô fedendo mais que o curral... Minha mãe encara as roupas sujas dele e assente. — Vai, Joaquim... O filme já vai acabar e aí eu esquento a janta... Ele balança a cabeça, concordando e Al se joga no tapete diante da porta com alguns resmungos e logo fecha os olhos, cansado. — Ah, Levi — meu pai para no caminho para o quarto. — O padre Fernando veio aqui hoje, disse que te conseguiu uma vaga no curso de verão na cidade.

Apenas aceno concordando, sem desviar o olhar da televisão. A cidade a que ele se refere, fica a poucos minutos da nossa casa. Costumo ir a cavalo até lá todos os dias ou na velha C10 do meu pai. Para a escola, quando ainda estava tendo aulas ou para comprar o que precisamos e vender os queijos que minha mãe faz, além de duas vezes na semana ir na locadora pegar filmes para nossas noites, logo, a questão não é a distância. O problema é que meus pais incentivaram que eu me inscrevesse no curso, mas ainda assim não o fiz. Quando descobriram, eu disse que havia perdido o prazo, me esquecido, mas a verdade é que não faz o menor sentido fazer um curso preparatório para o vestibular, se não posso cursar uma faculdade. Meu pai está ficando velho, os dois estão. Minha mãe já não era nova quando engravidou da Lalá e sua saúde apenas piorou de lá para cá e meu pai tem quase sessenta anos, logo vai precisar se aposentar. Eu o ajudo no sítio, a tocar as coisas e sei que logo vou acabar por substituir boa parte dos afazeres dele e isso me impossibilita de me afastar daqui, não tenho outra pessoa a quem passar a responsabilidade. Ela é minha. Mas eles parecem preferir ignorar todas as circunstâncias e ter fé de que alguma coisa possa ser feita. Prefiro não os entristecer, então acabo

concordando com as ideias que os dois têm. Ouço os passos dele se distanciando e foco minha atenção no desenrolar do filme. — Lê... Vamos dar um jeitinho, tá bom? Você vai ser diferente de nós, vai ter uma profissão e dar conforto pra sua mãe velha — ela diz e solta uma gargalhada. Mas não consigo achar engraçado. Era tudo que eu queria, poder dar uma vida melhor para os dois do que já tiveram até aqui. Aquiesço outra vez. Quem sabe um dia...

"Mantenha os seus amigos perto, e os inimigos ainda mais perto." O Poderoso Chefão 2

06 DE NOVEMBRO DE 2005

Demoro um pouquinho para me orientar nas ruelas de Vale do Recomeço. Apesar do tamanho diminuto da cidade, acabo me perdendo e indo na direção oposta a que Dona Ilda havia me indicado para que eu encontrasse a locadora. Mesmo que tenhamos chegado à cidade na quinta à noite, passei o fim

de semana todo enfurnada no quarto, saindo apenas para as refeições, exceto pela sexta à tarde. Na noite em que chegamos, após o jantar me recolhi para dormir e lembrei-me do panfleto que havia guardado no bolso. Nele, encontrei informações sobre um curso preparatório para o vestibular, um curso de férias. Então, na sexta dirigi-me à prefeitura e me inscrevi para participar. As aulas vão começar amanhã de manhã, mas mesmo com a perspectiva de ter finalmente algo a fazer, não podia mais ficar contando os buracos do teto e, com certeza, já conheço todas as flores do jardim da pousada. Quando a gentil dona da pousada me explicou o caminho para a locadora — siga reto e vire na rua da igreja, depois ande por mais duas quadras —, esqueceu de mencionar que se referia ao prédio novo ainda em construção, mas aparenta estar abandonado e, com isso, acabo seguindo pela rua da igreja que vi quando chegamos à cidade; isso me leva para o outro canto do vilarejo. Um pouco envergonhada, principalmente porque aqui todos parecem saber que vim de fora, acabo pedindo informação e, por fim, retomando o caminho pelo rumo certo. Quando chego diante da locadora suspiro aliviada por não encontrá-la

fechada, considerando que é um domingo e as coisas aqui parecem seguir outro ritmo. Além da atendente, não há uma alma viva dentro do cômodo. — Boa tarde, vou dar uma olhada nos filmes... A moça ergue o rosto e me fita aparentando curiosidade. — Fique à vontade. Precisa de ajuda? — questiona. — Não, vou escolher e, se tiver alguma dúvida, te chamo Ela me oferece um sorriso e volta a encarar a tela do computador branco, provavelmente entretida no orkut. Entro na loja e vou direto para os fundos. A minha parte favorita em alugar filmes sempre foi esse momento, perder alguns bons minutos — já aconteceu de ser mais de uma hora — para me decidir, lendo sinopses, pensando nas possibilidades e observando as escolhas de outras pessoas. Me dirijo às prateleiras que guardam os romances e dou uma analisada nas opções. Não encontro nada muito novo. Sem lançamentos e os que estão dispostos, já vi quase todos. O jeito é focar nos clássicos. Ainda existem vários que não vi e que podem até mesmo me ser úteis a longo prazo, pensando nessa coisa toda de faculdade.

— Você é a menina nova? Da pousada da Ilda? Ouço a voz da mocinha atrás do balcão e me viro para respondê-la. — Acho que sou... — Filha do dono do banco? Assinto. — Ah, legal. Estão falando muito de vocês, sabe como é... Não acontece muita coisa por aqui. Abro um sorriso daqueles de quem não sabe como responder. Nem sei bem o que poderiam dizer de mim, já que nem saí da pousada direito. — Vão procurar uma casa? — ela insiste. — Não. É temporário... Vamos ficar só durante o verão — explico. A garota é tão amigável, que não consigo ser evasiva e acabo respondendo suas perguntas da maneira mais simpática que posso. — Qual seu nome? — ela prossegue. — Clara... E o seu? — Paula. Entretida na nossa conversa e em tentar parecer alguém legal, continuo meu trajeto andando sem rumo e com os olhos no balcão, ouvindo atentamente minha nova colega.

— Verdade que se inscreveu no curso de verão? Ergo a sobrancelha assustada. — Devo começar a me preocupar? Como você sabe disso? Caminho na direção dela. As pontas dos meus dedos passeando por sobre as lombadas dos DVD’S. — Ah, foi o padre Fernando. Ele cuida das inscrições e sempre dá uma passada por aqui, ou o encontro no bar, daí acabou mencionando. Um padre. Em um bar. — Hum... Entendi... Baixo os olhos para a prateleira, um pouco constrangida. Não há pior pessoa para receber toda essa atenção, sinto que começo a ficar nervosa e isso é muito chato, porque sempre acabo me enrolando nas palavras nessas horas. O Poderoso Chefão. Fito a capa do filme na estante e me decido. É um clássico, todos falam super bem da trama e eu, cinéfila que sou, nunca assisti. É quase um pecado mortal. Me estico para alcançá-lo, mas alguém tem a mesma ideia. Minha mão acaba por cima de outra e sinto como se um choque me percorresse, grito assustada e solto o filme, ao mesmo tempo em que a outra

pessoa também o larga. O barulho da caixinha batendo no chão soa alto como um estrondo em meio ao silêncio que se segue. — Desculpe... — Ouço a voz do rapaz atrás de mim. — Não vi que ia pegar. Meu olhar continua fixo no chão, no local em que o filme caiu, mas mesmo sem encarar o dono da voz, sinto que minhas bochechas queimam, um forte indicativo de que estou ruborizada, se pelo escândalo que fiz ou pela situação como um todo, não sei dizer. Fito as botinas surradas e um pouco sujas de terra e a beirada de uma calça jeans, mas ainda assim, mesmo aparentemente estando sujo, o rapaz tem um cheiro delicioso. Um perfume forte e suave ao mesmo tempo que chega até mim. — Tudo bem, também não notei você aí... — respondo, tentando infligir firmeza em cada palavra. Ele dá dois passos à frente e se abaixa diante de mim, entrando então no meu campo de visão. A camisa xadrez abraça os ombros e a calça tem um rasgo na coxa; os cabelos são castanhos e não muito curtos. Sua mão alcança a caixinha e então ele se levanta, sorrindo para mim

e... Minha nossa senhora das mocinhas virgens e coradas! O rosto dele é completamente o oposto do que eu esperava. Os olhos são muito azuis e me encaram divertidos. No canto da bochecha aparece uma covinha muito charmosa à medida que o sorriso dele se alarga nos lábios bonitos. Ele deve ter a minha idade, talvez seja um pouco mais velho. — Pode levar — diz. Agora que a voz arrasadora tem um rosto ainda mais impactante, minha situação se complicou. Então noto que ele me estende a caixinha com o filme. — Esse está na minha lista, sabe? Os cem que vou assistir antes de morrer, mas tem vários outros que ainda não vi, então pode levar e eu pego na próxima semana. Você me avisa, Paulinha? Quando ela devolver? Desvio os olhos dele e fixo na moça que nos encara parecendo achar graça do meu óbvio fascínio. — Aviso, claro. Ele se volta para mim outra vez, ainda com um sorrisinho na boca e sinto meu estômago se contrair. Droga! Ele sempre faz isso quando fico nervosa. — Espero que goste, vou pegar outra coisa... — O desconhecido

continua falando, como se eu estivesse participando da conversa. Depois disso, me deixa parada com o filme nas mãos e sai andando até o balcão. — Chegou alguma coisa daquela lista? Noto, olhando disfarçadamente que Paula pega um papel e começa a ler. — Bom, já riscamos Titanic, E.T, Dançando na Chuva, Um Estranho no Ninho... Dos que você ainda não viu e, tirando O Poderoso Chefão, tenho O Clube dos Cinco, Dirty Dancing e Scarface. Mas depois peço os que estão faltando. Ele acena, os dedos batucando sobre o tampo de madeira. Me obrigo a baixar os olhos para a sinopse do filme. Eu fazia questão de ver O Poderoso Chefão? Evidente que não. Mas não tive coragem nem mesmo de abrir a boca para dizer alguma coisa e agora que já roubei o filme, não posso deixá-lo aqui e me decidir por outra coisa. Será que os dois tem alguma coisa? Parecem tão íntimos. E eu, claro, não tenho nada com isso e nem porque refletir a esse respeito. Huuum, Don Corleone e a máfia, eu já devia mesmo ter visto esse.

— Acha que ela vai gostar de O Clube dos Cinco? Tive algumas reclamações quanto ao do E.T. Uma namorada... Que não é a Paula, pelo visto. — Acho que é bem o estilo dela... — Vou levar ele e Scarface. Que dia ela vai devolver aquele ali? Os dois voltam os rostos pra onde estou e sinto os olhares antes de encará-los. — Eu? — questiono. — Pode ser na quarta... — Paula fala, dando de ombros. Como os dois ficam me olhando, ela com aquele sorriso bonzinho e ele com os olhos intensos, me obrigo a parecer humana e responder direito. — Não precisa tanto tempo. Terça de manhã eu deixo aqui. — De manhã tem o curso... — Paula me lembra e vejo o rapaz fazer uma expressão que não consigo identificar de imediato, mas que logo some. — À tarde então... — declaro por fim. — Então tá certo, Paula. Vou levar esses dois e na terça eu pego aquele, combinado? Ela dá as costas para ele e alcança os filmes em uma prateleira atrás de onde está sentada, depois os coloca em uma sacola e entrega ao rapaz.

Aproveito a distância para observá-lo melhor. A pele é clara e ele parece ser bem mais alto que eu, o chapéu nas mãos, as botinas e as roupas me fazem crer que more em um sítio ou algo assim. — Combinado. Não, não... — Paula nega ao vê-lo arrancar o dinheiro do bolso. — Me traz um branquinho depois que fica tudo certo. Ele assente. — Então vou indo. Tchau, Paulinha... — E então me olha uma última vez, eu que ainda pareço uma estátua no mesmo lugar. — Até amanhã, moça. Retribuo o aceno dele, parecendo uma paspalha e só bem depois de vêlo sair, porque sim, acompanhei o trajeto todo até a porta, percebo o que ele disse e também algo ainda pior. Acabei de presenciar alguém trocar um aluguel de filme por cocaína? As aparências realmente enganam.

07 DE NOVEMBRO DE 2005

É o primeiro dia do curso de verão. A situação por si só já me deixaria um tanto quanto aturdida, mas o fato de também ser nova no lugar e saber por fonte segura que as pessoas já estão falando de mim, me faz ficar apavorada. Desço as escadas e passo pela recepção, antes de deixar a pousada. Dona Ilda está atrás do balcão cuidando de alguma coisa, os cabelos grisalhos soltos dando a ela um aspecto bem diferente. — Bom dia! Estou de saída. Se meu pai chegar antes de mim, pode falar pra ele que não precisa me esperar para o almoço? Ela assente enquanto pega um pacote pardo e coloca com um baque sobre o tampo de madeira. — Aqui está, preparei seu lanche... Talvez minha expressão me entregue, mas estou completamente chocada. A última vez que tive um lanche preparado por alguém tem muito tempo. — Obrigada! Nossa... Muito obrigada, dona Ilda. Não estava esperando por isso — falo, realmente surpresa. — Precisa agir como se eu tivesse te dando um carro novo? É só um sanduíche e uma maçã. Agora pode ir e deixa que aviso seu pai. Pego o saco e coloco na mochila, depois finalmente saio para a rua. Vale do Recomeço durante o dia e em uma segunda-feira, é bem

diferente do que é a noite e no fim de semana. É movimentado dentro das suas limitações e os comércios abertos estão cheios de pessoas, que não disfarçam muito a curiosidade ao me verem passar. Ando, quase corro, apenas não o faço para evitar atrair ainda mais atenção. Mas, no passo rápido que caminho, chego rapidamente à escola em que as aulas serão ministradas. Várias outras pessoas estão do lado de fora, alguns garotos conversam empoleirados na carroceria de uma picape velha e duas meninas estão sentadas na calçada. Apesar do assunto cessar quando chego, finjo que não noto e foco no meu objetivo: a porta. Dentro do colégio e com o pedaço de papel que informa o número da sala nas mãos, sigo pelo corredor ainda deserto até encontrar o 28 e então entro e me sento do lado direito da sala, no fundo, tentando me camuflar com as paredes. Abro o livro que trouxe na bolsa e fixo meus olhos nas páginas dele, fingindo estar imersa na leitura enquanto os outros alunos entram. Aos poucos, percebo a sala enchendo, as cadeiras sendo ocupadas. Ouço-as sendo arrastadas e o barulho da conversa. Sinto alguns olhares sobre mim, mas continuo a me fazer de desentendida. — Bom dia...

Ouço uma voz muito perto. — Ei, garota nova, estou falando com você — ela insiste. Ergo os olhos e me deparo com uma ruiva que me olha de cima, as mãos com as unhas pintadas em vermelho apoiadas na minha mesa. — Oi — respondo em um tom de voz baixo. Ela abre um sorriso todo cheio de dentes brancos e perfeitos e se senta na cadeira à minha frente, mas mesmo assim mantém o corpo virado para trás. — Eu sou a Lena, deve ter ouvido falar de mim... Abro um meio sorriso, não posso simplesmente dizer que não faço ideia de quem seja. — É verdade que você veio da capital? Aceno, afirmando. — Sim, vim com meu pai de Belo Horizonte. Meu nome é Clara. — Eu sei. — Ela faz um gesto com a mão, mostrando que o que estou falando é óbvio. — Vamos ser amigas — ela declara. Automaticamente ergo a sobrancelha, meio descrente. Nunca vi alguém chegar e dizer algo assim. — É sério — ela continua. — Você é interessante, todo mundo só fala

na sua mudança pra cá, e eu sou geralmente o assunto mais comentado daqui. Então vamos nos unir e vou te mostrar tudinho, te apresentar as pessoas com quem deve ter amizade, os rapazes... Uma autoestima elevadíssima, mas como ela está sendo legal, oferecendo-se para me ajudar a me enturmar e tudo mais, não rejeito a oferta. — Obrigada — respondo. Ela sorri, o batom vermelho destacando ainda mais os lábios cheios. A professora entra na sala e isso encerra nossa conversa. Acham que sou interessante, de acordo com o que ela disse, preciso me esforçar para fazer ao menos algumas amizades e não parecer uma idiota. — Bom dia, pessoal! Meu nome é Carmen, sou a professora do curso de verão. Vou me sentar e explicar o que vão fazer hoje... Como sabem, não estou ficando mais jovem e minhas pernas também não. É um exagero, ela deve ter uns cinquenta anos, mas realmente se senta atrás da mesa antes de voltar a falar. — Sala lotada é uma coisa muito boa, fico feliz em saber que a maioria pensa em fazer um curso superior. Aproveito que estão todos concentrados nela e dou uma olhada discreta ao redor, notando meus colegas pela primeira vez. Algumas garotas se sentaram nas primeiras filas, mas a maioria das

pessoas está no meio da sala, incluindo a Paula, da locadora. Quase não tem cadeiras vazias e imagino que, para uma cidade desse tamanho, deve ser mesmo muita gente. Mais ao fundo, noto um grupinho de rapazes, acho que os mesmos que estavam lá fora antes. Estão conversando baixinho, rindo de alguma coisa, mas quando um deles se vira pra frente na cadeira, desobstrui a minha visão e me deparo com ele. O rapaz da locadora, o traficante disfarçado de fazendeiro. Seus olhos estão fixos em mim e quando percebe que o vi, abre um sorriso e faz um gesto com a cabeça, me cumprimentando. Sinto um arrepio me percorrer desde a base da coluna até a nuca. Droga! Agora vou virar essas mocinhas que caem de quatro por um bad-boy e matam o pai do coração? Sorrio de volta e me viro outra vez para ouvir a professora, mas o estrago está feito. Sinto o olhar dele sobre mim durante toda a aula e preciso controlar a vontade de me virar e confirmar que ele esteja mesmo me encarando. Tento me lembrar do que ele está vestindo, mas percebo que só me concentrei nos olhos azuis intensos e penetrantes. A professora nos pede uma redação sobre as expectativas futuras, a fim de analisar nosso desempenho na escrita e nossas habilidades.

Escrevo sobre meus planos e me empolgo tanto que quase me esqueço do garoto no outro canto da sala. Quase. Preciso disso, ocupação. Lena também está concentrada na tarefa e apenas volta a falar comigo quando ouvimos a sirene anunciando o intervalo. — Vem — ela diz. — Vamos comer algo no refeitório e vou te apresentar meus amigos. Por mais que meu cérebro grite que devo me manter longe desse tipo de rapaz, no íntimo torço para que ele esteja entre os amigos dela, mesmo que provavelmente eu vá ficar quietinha apenas o observando. Ela caminha à minha frente para fora da sala e percebo o quanto é bonita, não apenas de rosto, mas de corpo também e é daí que deve vir tanta segurança. Quando saímos pela porta da sala, Lena passa a andar ao meu lado. Enlaça o braço no meu para ficarmos mais próximas e recomeça seu monólogo. — Vou te apresentar os rapazes e minha amiga. Vai conhecer meu namorado, ele é uma graça e sei que vão se dar bem, mas escuta... — Ela para no meio do corredor e me vira de frente para ela. — Somos amigas agora, certo? Afirmo com um gesto.

— Precisa saber então que eu sou apaixonada pelo Levi. Eu e ele vamos ficar juntos e nos casar um dia, então ele é território proibido, tá bom? — Claro — respondo. Como se eu, com todos os meus encantos, fosse roubar o namorado dela. Satisfeita, Lena toma meu braço outra vez e continuamos andando. Entramos pelas portas duplas que dão para o refeitório e vejo a maioria das mesas vazia, mas até que o lugar é bem amplo, provavelmente em período escolar deve ficar lotado. Lena continua andando como se fosse a dona do mundo e preciso rir baixinho da quantidade de gente que a cumprimenta e que ela ignora, como se fosse alguma rainha do vale ou algo assim. Ela escolhe uma mesa no meio do refeitório e me sento ao seu lado. Vejo Paula vindo na nossa direção, exalando animação. — Ei, ei meninas... — cumprimenta. — Como vai, Clara? Se adaptando? — Oi! Sim, me acostumando a tudo por aqui. Lena olha dela para mim, com o cenho franzido. — Já se conheceram? Você não me contou isso, Paula.

Vejo a outra garota revirar os olhos. — A Clara pegou um filme na locadora ontem — responde. — Ah, entendi... Você gosta de filmes — Lena comenta com uma careta. — Mas ninguém é perfeito. Solto uma risada estrangulada. Quem é que não gosta? Paula me dirige um olhar e abafa a risada. — Os meninos estão vindo... — ela fala e aponta com um gesto de cabeça. Um trio de rapazes se aproxima da mesa e então eu o vejo entre eles. Minto para mim mesma que quero muito que ele seja o namorado da Lena, assim não terei que me preocupar comigo e meus pensamentos idiotas, vou colocá-lo na zona proibida e ponto final. — Bom dia, amor! — Todos ouvimos o estalo do beijo quando um dos outros garotos se aproxima e agarra Lena. Ai, Deus. — Pessoal, essa é a Clara, nossa nova amiga — Lena apresenta. — Clara, esse é meu namorado, Felipe... Felipe? Mas não era Levi? — E esses são o Levi e o João Pedro.

Ah, droga. Ela namora um e diz que vai casar com o outro? — É um prazer te conhecer oficialmente, Clara. A menina da cidade com um ótimo gosto pra filmes — Levi estende a mão para que eu o cumprimente. Demoro alguns segundos para responder ao gesto. A mão dele envolve a minha e sinto os calos ásperos roçarem minha palma que nunca viu uma vassoura na vida. A sensação é... Inquietante. Ele mantém minha mão presa na sua por um instante longo demais e seu olhar encontra o meu enquanto a curva de um sorriso move seus lábios, fazendo a maldita covinha aparecer outra vez. — Larga a menina, Levi... Todo mundo quer conhecer a Clara, seu sem noção — Lena fala um tanto indignada e retiro minha mão bastante envergonhada. Ele apenas ri alto e Paula também solta uma risada. Felipe me cumprimenta com um gesto e João Pedro diz alguma coisa, mas não consigo prestar atenção porque agora sim, estou oficialmente morta de vergonha. — Clara, já que agora entrou pra nossa turma, isso é seu — Paula atrai minha atenção. Ela retira da bolsa um papel e apenas quando me entrega noto que se

trata de um convite. — É sobre o que? — pergunto notando os arabescos e o papel branco. — Meu casamento. A cerimônia já aconteceu e você perdeu, sinto muito. Mas vamos comemorar sábado com uma festa bem animada. Você vem? Casamento? Quantos anos essa garota tem? Todos ficam em silêncio aguardando minha resposta. Olho de um para outro e Levi é o único que não me encara, mas mantém os olhos fixos em algum ponto da mesa e as mãos no bolso. Afirmo com a cabeça. — Vai ser ótimo.

“Odeio não conseguir te odiar por mais que eu tente ou por menos que você faça...” Dez Coisas Que Eu Odeio Em Você

12 DE NOVEMBRO DE 2005

Ligo o som em uma rádio qualquer e em seguida dou partida na velha picape do meu pai, pegando a estrada para a cidade. De carro, em menos de dez minutos deixo a poeira do chão de terra para entrar nas ruas calçadas em pedra de Vale do Recomeço.

Passo por uma lombada, desatento e olho para o lado, confirmando que o presente que minha mãe pediu que trouxesse ainda está intacto. São oito horas da noite e as ruas estão se esvaziando, a maioria das pessoas indo para suas casas e muitas outras para o bar, festejar o casamento. Mário é dono do lugar tem uns três anos, desde que os pais se mudaram para a cidade grande e deixaram que ele cuidasse das coisas por aqui. É alguns anos mais velho que a Paula, mas os dois formam um casal e tanto e isso não parece ser um problema. Por sorte minha mãe se lembrou de comprar alguma coisa, porque se dependesse da minha memória estaria chegando de mãos vazias. Estaciono em frente ao bar e noto um ou dois carros além do meu. A maioria dos convidados mora perto o bastante para vir a pé. As luzes estão todas acesas e a placa pisca em verde, anunciando que o Porta Sem Trinca já está aberto. Lotado, na verdade, música alta toma conta do ambiente e a maioria das pessoas já está bebendo e conversando. No balcão, um banquete está servido e o próprio Mário ajuda os convidados a se orientarem, oferecendo pratos e talheres. Ele acena quando me vê e sigo até lá, com o embrulho embaixo do braço. — E aí? Como vai a corda no pescoço? — brinco.

Mário nunca me pareceu mais feliz. — O aperto é suave... — responde. — Eu ando gostando dessa coisa de casamento, sabe? Daqui uns anos você experimenta e me diz. Afirmo com um gesto, contente pelos dois. Paulinha surge de algum canto atrás dele e o abraça pela cintura. — E aí, Lê? Que bom que chegou. Maria não veio? — Sabe como ela é, não arreda o pé do sítio a menos que seja velório, mas mandou um presente. Entrego o pacote e a vejo colocá-lo sobre a pilha enorme que já está ali. — Agradeça a ela por nós. Mas escuta, sua nova paixão já está aqui. Mário olha para a esposa, com certeza querendo saber do que ela está falando. Já eu tento aparentar indiferença e me forço a não virar a cabeça e sair procurando por Clara. — Do que você tá falando? Do que ela tá falando, Levi? — Mário parece chateado por ter sido excluído do assunto. — Não faço ideia — respondo, acho que enfático demais. — Ah, não? Paula, ela já trouxe o filme? Ainda não, Levi. Tá bom, vou ficar aqui esperando... — Eu queria o filme, Paula. Sai dessa — retruco. Palhaçada, agora vai

ficar dizendo que fiquei na locadora esperando para ver a garota. — Alguém pode me explicar isso? — Mário questiona, levantando as mãos em um gesto de súplica. — O Levi está encantado pela minha nova amiga, a Clara — Paula inventa. Bom, mais ou menos. — A filha do babaca do banco? — A própria, mas ela não tem culpa do pai dela ser assim, amor — a voz dela sai baixa, mas a verdade é que em menos de uma semana a fama de Alessandro Alves Coutinho já se instaurou. — Não, claro que não. E então? Já chamou a garota pra sair? — Me dá uma cerveja — mudo de assunto. — Você ainda não fez dezoito anos e não foge do que perguntei. — Se me der a cerveja eu conto, Mário. Ele me olha feio, mas pega uma garrafa e coloca sobre o balcão. Tomo um gole enquanto os dois me encaram com expectativa. — O quê? Não é nada demais. Eu a acho bonita e parece ser inteligente, mas nunca nem conversei com a garota direito. Paula faz um gesto, como se criticasse o que eu disse.

— Eu tentei puxar assunto, tá? Mas eu sou o roceiro e ela que parece um bichinho do mato, sempre... Os dois desviam os olhos para o lado, um tanto constrangidos e, por suas expressões, sei que ela está atrás de mim. Me viro para encontrar Clara parada olhando para mim, mas ela rapidamente desvia os olhos dos meus. — Pode pegar um refrigerante pra mim, Paula? — pede, como se não tivesse escutado nada. Perco alguns segundos admirando a visão que ela é, assim como fiz a semana toda, todas as manhãs. Mas hoje... Hoje, Clara trocou a calça jeans por um vestido rosa, justo no corpo. Os tênis por sandálias de salto e os cabelos castanhos estão soltos, caindo em ondas pelos ombros dela. Está linda. — Com licença, Levi — ela pede ao se virar e só então me dou conta de que movi meu corpo para impedi-la de sair sem que antes eu me explique. — Não — me recuso. — Eu preciso me desculpar, não devia ter dito isso... Clara dá de ombros. — Não falou uma mentira, mas escuta... Prefiro ser uma menina da cidade que parece um bichinho do mato, como você disse, que ser um garoto do campo que vende drogas para se sustentar.

Ela passa por mim e seu ombro roça em meu peito; seu perfume doce quase me faz esquecer do absurdo que acabo de ouvir. A observo se afastar e então me viro para encarar Paula e Mário, que estão me olhando, tão confusos quanto eu. — Ela disse que você vende drogas? — Mário pergunta. — Porque assim, o som está alto, posso ter entendido errado. — Também ouvi isso — Paula afirma com o rosto revelando a descrença. — Que bom, pelo menos não fiquei louco — digo para os dois. — De onde ela tirou uma coisa dessas? Eu pareço um traficante? Eles balançam a cabeça, negando. Mas nem precisavam, porque sei bem que mesmo agora, usando uma camiseta de mangas preta e calça jeans e mesmo trocando as botinas por tênis, eu jamais me pareceria com um vendedor de drogas. Não que tenham um estilo próprio ou algo assim, quer dizer, eu poderia ser um, mas não sei porque ela teria essa ideia. — Me deem licença, pombinhos. Vou tirar isso a limpo... Abro caminho entre os convidados que já estão dançando animados e a encontro em uma mesa ao fundo, acompanhada de Lena e Felipe. — Oi, Levi! — Lena me cumprimenta, sorridente. — Não vi que tinha chegado, você não me disse que ele tinha chegado, Felipe!

Clara sorve sua bebida por um canudo, me ignorando. — Senta aí, cara. Também não tinha te visto... — ele diz, mais pra namorada que para mim. — Cheguei agora há pouco, estava falando com o Mário. Clara, será que a gente pode conversar rapidinho? Ela continua bebendo seu refrigerante, mas ao menos me encara. — Não vai demorar — insisto. — Sobre o que quer falar com ela? — Lena é quem pergunta. — Por que? Não podemos conversar? — devolvo o questionamento, achando graça. — Arrasta ela para dançar — Felipe sugere. — Clara não dançou nenhuma vez desde que chegamos. Isso atrai a atenção dela. — Não. Eu não sei dançar, não... — responde se vendo encurralada. Seguro a mão pequena sobre a mesa em um impulso e vejo seus olhos amendoados me fitarem com surpresa. — Eu te ensino, vem. Puxo-a pela mão e ela se levanta meio contrariada, sigo fingindo não ouvir seus protestos e só paro de andar quando chegamos no meio da pista.

— Não pode me obrigar a dançar — sua voz soa diferente, mais alta. — Não pode sair por aí me chamando de traficante, sem explicar nada. Clara abaixa a cabeça e aproveito sua distração. Passo a mão por sua cintura. Ela é magra e quase uma cabeça mais baixa que eu e, mesmo com os saltos, seu rosto fica na altura do meu pescoço. Seguro sua mão na minha e tento guiá-la sem precisar instruir, mas quando ela nos faz trombar no casal ao lado, mudo de ideia. — Dois pra lá e dois pra cá... É forró, me deixa conduzir. Ela faz uma careta, mas não retruca. — Então... Traficante? — questiono, ainda tentando acertar nosso ritmo. — Ouvi você e a Paula na locadora. — A Paula? Então eu trafico e ela é uma usuária? Não percebe que é ridículo? Clara olha para os lados e percebo que seus olhos encontram Paula, que dança com Mário, toda feliz. — Bom, parece ridículo... Falando assim — admite. — E o que exatamente você ouviu? A música é animada e aproximo o corpo dela do meu, facilitando os

giros e trazendo o cheiro gostoso que vem dela para mais perto. — Ela disse que você não precisava pagar o filme, que era só levar um branquinho... Pensei que fosse pó, sabe? Cocaína — sussurra a última palavra. É incontrolável. Paro de dançar na mesma hora e trombamos outra vez no casal do lado; a gargalhada destrói a expressão séria que tento manter desde que a repreendi pela suposição e perco totalmente o ritmo. Clara me encara bastante constrangida, principalmente porque agora todos estão nos olhando. — Desculpe, é que... — Outra onda de risadas chega e vejo Clara me deixar plantado no meio do bar. Ela não volta para onde estão os outros, simplesmente sai para a rua e só então percebo como deve ter sido a situação diante dos olhos dela. A confusão perde a graça bem rápido e a sigo para fora, deixando a música. Fecho a entrada do Porta Sem Trinca e o silêncio da rua me alcança. Meus ouvidos estão um pouco surdos, talvez, mas não há mesmo muito barulho do lado de fora. — Clara... Espera aí. Ela continua andando sem olhar para trás. Os passos firmes no chão demonstram que está irritada.

— Ei! — Corro um pouco e a alcanço. Seguro seu braço para que espere, mas ela me afasta. — O que foi? — Se vira com os olhos faiscando, nem parece a menina passiva que vi durante toda a semana. — Acha que vai ficar rindo de mim na frente de todo mundo e eu ainda preciso ficar lá parada, esperando sua educação ressurgir? Coloco as mãos nos bolsos da calça e fito seu rosto, o mais sério que consigo devido ao que acabou de acontecer. — Desculpe. É que o que você pensou... Ela cruza os braços e estreita os olhos. — Queijo, Clara. — O quê? — Minha mãe faz queijos na roça e eu trago pra vender na cidade. A Paula queria um queijo como pagamento pelo filme. Os olhos dela se abrem um pouco e vejo seus lábios se separarem enquanto tenta encontrar uma resposta. — Peço desculpas por ter rido tanto, mas é que o que disse foi algo tão fora da minha realidade, a ideia do tráfico e tal, que acabei me descontrolando.

As mãos dela agora estão sobre o rosto, cobrindo os olhos e depois descem para a boca. — Nossa — sua voz abafada me alcança. — Tem razão de ter rido tanto, nem eu acredito que fui tão idiota assim. Avanço um passo e coloco minhas mãos sobre as dela, retirando-as do seu rosto. — Não foi idiota, a culpa é da Paula. Não é muito convencional chamar um queijo de branquinho. Ela está com vergonha. Não preciso de mais luz para notar isso e pelo que já vi da sua timidez, posso imaginar que isso a tenha deixado mortificada. — Não é mesmo... — concorda. — Mas precisa se acostumar. Os nomes por aqui são no mínimo diferentes, por exemplo, já percebeu que aqui não é um vale? Ela ergue a sobrancelha, sem compreender e continuo: — Vale do Recomeço não devia ficar entre montanhas ou algo do tipo? Como um vale? Só tem campo aberto por onde quer que olhe e uma ou outra cachoeira. Clara olha ao redor, como se confirmasse a inexistência das montanhas. — E o bar se chama Porta Sem Trinca, mas obviamente tem uma

trinca. E o branquinho, bom, realmente é branco, mas entendeu... E eu não devia ter falado aquilo para o Mário e a Paula. É a minha vez de ficar constrangido, realmente não foi meu melhor momento. — Tudo bem. Eu sou mesmo uma boba... — Não é. Você é tímida, não gosta de chamar atenção e eu não tenho ajudado, te encarando a semana toda. Nem dizendo isso agora, por exemplo. Ela sorri. Respiro mais aliviado ao ver o sorriso lindo tomar conta do seu rosto. — É, eu sou exatamente assim e é difícil pra mim essa coisa de interação social, mas estou tentando. — Certo. Então vamos tentar um pouco mais e voltar lá pra dentro? Agora que já esclareci que não vendo drogas, nem nada assim. E quando ofereço minha mão, inesperadamente ela a aceita.

Clara É inquietante. Toda vez que ele encosta em mim, seja por acidente ou como enquanto dançávamos ou como agora com minha mão tocando a sua,

sinto um amontoado de sensações que nunca experimentei. Convivi a vida toda com garotos que são o completo oposto de Levi. Meninos ricos, sérios e chatos, alguns inclusive que meu pai adoraria fazer com que me interessassem. Nunca quis nenhum deles, e nunca me fizeram sentir dessa forma, nem de longe. Ainda assim, quando me lembro dele rindo no bar e as pessoas nos olhando, um frio invade minha barriga, trava minhas pernas. Não posso voltar lá. — Eu... Acho que vou ficar aqui mais um pouco. Solto a mão dele e caminho rumo à calçada. Por sorte tem uma lojinha fechada ao lado do bar. Na frente dela há um alpendre e me aventuro a subir a escadinha e me sentar nele; meus pés não tocam o chão, mas gosto daqui. A noite está fresca, um pouco fria até, mas o silêncio pela falta de carros e barulho — mesmo com o som abafado do bar — é tranquilizador. — Posso te fazer companhia? Levi ainda está parado no meio da rua. Esperava que ele fosse voltar imediatamente para dentro, mas ao invés disso, ficou. Afirmo, balançando a cabeça, mas no íntimo não sei se é uma boa ideia.

Meu coração dispara apenas com a perspectiva de ficar aqui com ele, minhas mãos suam frio. Não de vergonha dessa vez, é algo diferente. Ao invés de subir os degraus, Levi escala a mureta pela frente e se senta ao meu lado, perto demais. Sinto o calor da sua perna contra a minha e seu braço também esbarra no meu, enviando toda essa energia pulsante que há entre nós. — E que tal Don Corleone? — A pergunta me pega de surpresa. Talvez a voz dele também, tão perto, tão íntima e meio sussurrada. Outra onda de arrepios... — Não entendi. — Você viu o filme, certo? Quando devolveu na terça, levei ele e assisti no mesmo dia. Quero saber o que achou. Penso por um instante no que realmente achei do filme. Desde que conheci Levi minha racionalidade parece ter me abandonado e me pego sempre falando bobagens e não compreendendo metade do que ele fala porque só sei olhar, fascinada. — Bom, eu gostei dele — respondo, refletindo a sério. —, do personagem do Marlon Brando e de conhecer mais sobre a máfia italiana, mesmo que nesse caso, em Nova Iorque. Na verdade, é um bom enredo, mas não sei... Todo aquele código de ética e moral me confunde, além da questão

das mulheres. — Que questão? — ele pergunta. — Exatamente! Elas são só enfeites, não fazem nada. Eu entendo que é a realidade daquela vida, mas ainda me incomodou. Ele sorri e ergue o rosto para o céu. — É, dizem que a esposa de um filho vai se rebelar no terceiro filme, acho que deveria assistir até lá. A noite está linda. Acompanho seu olhar e me deparo com um céu muito mais estrelado do que me lembrava, a lua também está imensa. — Está mesmo. — Sabe, minha mãe disse a mesma coisa sobre o filme. Adorou o poderoso chefão, mas algumas atitudes dele e a forma como as mulheres não tinham um grande papel foi bem incômoda. — E você? Achou o que disso tudo? — Não sei. Não gostei tanto assim do filme, tem um enredo interessante, mas não é meu estilo preferido. E sobre as mulheres... Bom, graças a Deus não somos a máfia e alguns anos nos separam de tudo isso. Acabo rindo com o comentário. — É, Levi, mas não é tão passado assim. Alguns pais ainda querem

controlar suas filhas e decidir por elas. O meu, por exemplo, me arrumaria até mesmo um casamento de conveniência, se eu aceitasse. — Isso é sério? — Seu rosto apresenta verdadeiro choque ao me encarar. — É sim. Ele é bem... insistente em suas vontades. Levi parece surpreso, os olhos azuis me fitam por um momento e depois se desviam para o céu outra vez. — Bom, acho que a regra é não ceder, Clara, se impor. Além disso, melhor ver outros filmes... Isso me arranca outra risada. — Sim, prefiro geralmente os romances, fui tentar esse clássico e olha no que deu. — Na minha lista tem alguns romances clássicos. Você deveria ver. Assinto, ainda achando graça. — Minha mãe vê todos eles comigo — comenta. — Algumas vezes minha irmã, Lavínia também assiste, vou pegar os nomes de alguns bons que já vimos e te passar. Mando mensagem no seu celular. Ele atira uma pedrinha longe e evita me olhar. — No meu celular? — questiono achando divertida a maneira dele

pedir meu telefone. — É, depois que você me der seu número. Que foi? Achou que eu não teria um? Comprei com o dinheiro do tráfico de branquinhos. Juntei por muito tempo. O sorriso dele é de um garoto que foi pego aprontando alguma coisa. Saber que ele quer falar comigo me deixa toda boba e na verdade, nem tinha pensado sobre ele poder ter um celular ou não. — Certo. Acho que algumas dicas não fariam mal... Ele concorda. — É, e alguém pra conversar a noite, antes de dormir. Desejar bons sonhos e essa coisa toda — comenta, como se não fosse nada importante. — Olha, pra um garoto do campo você é bem abusado. — E você é uma menina da cidade muito tímida — retruca. — Estereótipos nem sempre funcionam, não é mesmo? — questiono. — Acho que estamos aqui como prova. — Se funcionassem, com certeza eu não entenderia o que essa palavra significa. Uma risada me escapa. — E eu seria a garota linda e confiante, que arrasa corações.

— Linda você é — diz e minha respiração fica presa. — A confiança é uma questão a ser trabalhada... — continua parecendo achar graça. Nem se deu conta de que já parei de respirar. — Já a última parte, melhor não ser esse tipo de garota. Seu rosto se volta para mim e fico presa no nosso momento. Seus olhos estão escuros como o céu e eles percorrem meu rosto e se fixam em minha boca. De repente, sinto que preciso umedecer os lábios e passo a língua por eles em um gesto impensado. Acho que Levi toma isso como incentivo, seus olhos se estreitam e ele se aproxima. O aroma gostoso de roupa limpa e do perfume que ele usa me atinge primeiro e me obrigo a não fugir, assustada. Eu quero isso. Me inclino um pouco em sua direção e sinto sua palma quente nas minhas costas, que estão frias com o ar da noite. Seu toque é gentil e suave e, mesmo antes de beijá-lo, sei que será algo único. — Clara? Levi? Onde vocês estão? Me afasto em um pulo e por sorte a mão dele está ali e me ampara antes que eu despenque do alpendre. — Aqui... — respondo. Só eu ouço a culpa em minha voz?

Sutilmente afasto a mão de Levi e ele compreende que não quero que ela nos veja assim, só acho que não sabe o motivo. — Oi! — Ela se equilibra nos saltos finos em meio às pedras do calçamento. — O que estão fazendo aqui fora? Aconteceu alguma coisa, Clara? Para uma pessoa menos atenta, ela poderia soar preocupada, mas sei bem a que ela se refere e, na verdade, seu radar é ótimo, porque quase aconteceu mesmo. Não que eu seja estúpida ao ponto de dar razão a ela. Lena namora o Felipe, amigo do Levi. Deus do céu... Mas ainda assim não posso bancar a inocente, ela me disse no primeiro momento o que sentia e cá estou eu, a ponto de beijar Levi em uma noite estrelada. — A Clara não estava se sentindo bem — Levi responde, quando nota que estou demorando muito. — Vocês estavam gargalhando lá dentro... — Sua expressão é claramente de alguém desconfiada. — Nós, não — argumento. — Ele estava rindo de mim e você sabe, morro de vergonha de tudo. Todo mundo ficou me olhando e me deu um desespero... Saí para tomar um ar e ele veio pedir desculpas.

— Por que estava rindo dela, Lê? — Lena questiona, parecendo mesmo brava por ele ter me constrangido. Nas horas em que ela é uma boa amiga, me sinto ainda pior. Mas Levi apenas sorri. — Conta pra ela, Clara. Reviro os olhos. — Você também vai rir. Eu ouvi a Paula falar pra ele trazer um branquinho e deduzi que fosse cocaína, que Levi vendesse drogas. Mas era só queijo. Lena, em sua defesa, faz um esforço imenso para conter a risada e apenas esboça um sorriso, mas percebo que está com muita vontade de rir. — Bom, não posso culpá-lo por ter rido daquele jeito. Mas todo mundo já esqueceu isso, vamos entrar. O Padre Fernando chegou e ele parece bêbado, então esse é o assunto do momento. Ela me oferece a mão e eu aceito a ajuda para descer. Levi apenas salta atrás de nós e juntos voltamos para o bar. Nosso momento apagado como se não houvesse acontecido.

“Nunca deixe que alguém te diga que não pode fazer algo. Nem mesmo eu. Se você tem um sonho, tem que protegê-lo.” A Procura da Felicidade

Logo que deixamos o frio da rua e meus braços gelados encontram o calor do bar, peço licença para ir ao banheiro. Quando passo a tranca na portinha de uma das cabines, ouço a voz de Lena e suas batidas desenfreadas. Fecho os olhos por um minuto, antes de responder. — Oi, já vou sair! — Tá, me deixa entrar quando terminar. Quero falar com você... — ela

responde. Eu sabia que Lena não deixaria passar o quase flagra, e o pior é que odeio mentir para ela, mas também não tenho nada a dizer. Abro a porta. Nem queria mesmo ir ao banheiro. — Tudo bem? Lena entra e fecha a porta atrás de si, ficamos as duas espremidas dentro do pequeno quadrado, a luminária um tanto decadente acima de nossas cabeças. Uma luminária ao invés de uma lâmpada... Estranho. — Lembra que no dia em que nos conhecemos falei todas aquelas coisas sobre o Levi? — ela questiona. Afirmo com um gesto, tentando parecer indiferente. — Bom, depois disso você conheceu o Felipe e pode ter ficado pensando: O que a Lena faz namorando esse rapaz, se gosta do outro? Pensou isso, não foi? — Não posso dizer que não pensei, realmente não deu pra entender — respondo. Ela suspira e passa por mim para se sentar sobre a tampa fechada da privada.

— A verdade é que Felipe é o namorado ideal. Faz tudo pra me agradar, gosta de se divertir e se seguir a carreira que pretende, vai ser um veterinário e tanto, ele leva muito jeito com os animais e aqui, nessa região, isso dá bastante dinheiro. Mas não consigo sentir por ele o que sinto quando vejo Levi. Infelizmente Levi não namora, sabe? Não tem tempo, trabalha muito no sítio e a família dele é muito, muito pobre. — Está dizendo que ele é pobre demais para que você o namore, mesmo gostando dele? —Não consigo impedir que minha voz assuma o ceticismo que acompanha a situação. Não posso acreditar. — Não! — Lena se apressa a responder. — Meu pai é médico, temos uma situação confortável. O Levi só não me vê assim, sei que ele me acha bonita, mas tem tanta coisa na cabeça dele, sabe? Não sei como mudar isso. Bom, para começar podia não namorar o amigo dele, mas não verbalizo meu pensamento. — Não quero largar do Felipe e ficar sozinha, entende? Preciso conquistar o Levi antes. É surreal o modo como ela pensa, fala cada palavra com convicção, como se estivesse me explicando algo natural e compreensível. — Huuum... — resmungo apenas. O que mais eu poderia dizer diante de uma coisa tão horrível?

Ignorando Levi e o fato de não parecer interessado nela, o pior em tudo isso é o fato de que Lena pouco se importa com Felipe e os sentimentos dele. — Era só isso. Queria te explicar meus motivos, porque de repente pensei que você podia me achar insensível. Nossa, isso seria cruel da minha parte! — A ironia invade meus pensamentos. Lena ergue a mão e passa os dedos pelo meu rosto, em um gesto que se assemelha a carinho; coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. Apesar da suavidade do toque, seus olhos parecem ameaçadores. — Você vai ver, amiga. Ele vai ficar comigo. Amiga. Se tem algo que decido nesse instante, é que Lena é a última pessoa nesse mundo que quero chamar de amiga. — Legal! Vamos voltar para o bar? — sugiro, abrindo a porta e deixando a cabine do banheiro. Lena vem atrás de mim e seu olhar parece que vai perfurar minha nuca. Com certeza foi uma ameaça. — Vou falar com a Paula, tá bom? Encontro você e o Felipe depois. Com isso eu a deixo. Procuro por Paula e a encontro perto do balcão, recebendo um presente de alguém que acaba de chegar.

Espero que ela agradeça a pessoa e que o convidado se afaste, e apenas então me aproximo. — Ei! — ela cumprimenta. — Fugindo de quem? Levi ou Lena? Apenas sorrio. Não sei bem o quanto são amigas e prefiro não me abrir a respeito da situação estranha em que me coloquei. — Vi quando a Lena foi atrás de você lá fora — fala enquanto desfaz o laço do embrulho em suas mãos. — Sabe, ela pode ser bem intensa às vezes... Meneio a cabeça, sem ousar concordar e evitando discordar. — Ela te falou algo sobre o Levi, não foi? — pergunta, olhando para os lados para afirmar que Lena não está ouvindo. Como fico quieta, Paula entende como afirmação. — Essa fixação por ele... Na verdade, Levi tem um coração puro, não vê maldade nos outros e acho que nunca percebeu as intenções dela. Felipe é ainda pior... Ou melhor. — Hum — respondo por fim. — Então você sabe? — Sei. Ela já me fez ameaças bobas quando achava que eu pudesse me interessar por ele, mas como pode notar, gosto de rapazes mais velhos. — Paula abre um sorriso e direciona o olhar para o marido, do outro lado do bar. — Ele não é velho. Tem o que? Uns quatro anos a mais que você? —

pergunto, me referindo a Mário. — Seis anos... Mas sobre o outro assunto. Acho isso horrível, só que até agora não havia incomodado ninguém. Até agora. — Mas vocês são amigas... Ao menos pensei que fossem. — Crescemos juntas — Paula explica, agora rasgando o papel de presente e revelando uma molheira de vidro. — Sou quase dois anos mais velha que Lena, mas não havia muitas garotas por aqui e isso nos aproximou. Por isso mesmo sei bem como ela é e espero que acabe logo com esse interesse, antes que saia machucada. — Eu? Não estou interessada nele — a mentira grita em minha defesa. Paula sorri. — E eu não me chamo Paula. Mas relaxa, não estou falando de você... — Dela? — questiono. — Nesse caso, acho que Felipe é quem vai de mal a pior na história. — Sim, mas pensa comigo... — Ela se aproxima e fala baixo, no meu ouvido. — Levi não a vê desse modo e, mesmo que ela termine com Felipe, os dois são amigos, não vai mudar as coisas. Assinto.

— Bom, foi uma conversa estranha a que ela e eu tivemos. Lena foi gentil, mas parecia estar ameaçando me esfaquear enquanto eu estiver dormindo, e essa coisa com o namoro dela... Prefiro me afastar e não ter nenhuma relação com ela. Paula ri. — Boa sorte com isso. Ela também está obcecada por você. A frase me causa um calafrio, me sinto como a protagonista de um daqueles filmes de terror horríveis em que um cara faz tudo para isolar a mocinha e então comete todas as atrocidades com ela. — Clara... O toque em meu ombro em um momento em que imagino cenários mórbidos, me faz soltar um grito. Por sorte a música está alta o bastante para que apenas Paula e Levi me olhem, se divertindo. — Desculpe te assustar. Eu estou indo embora, mas você não me passou seu número... Para que eu envie a lista de filmes. Paula parece achar a molheira muito interessante. — Ah, claro... — respondo. — Não tenho como anotar agora, amanhã te passo, pode ser? — Vou anotar no meu telefone — ele responde, óbvio.

— Sabe, Lê — Paula nos interrompe. — Acho que deveria esperar e levar a Clara até a pousada, ela veio sozinha e está tarde. Essas ruas são tão perigosas. — Perigosas? — Levi questiona. — Nunca teve um ass... Ahh! Sim, são perigosas a essa hora. Posso te esperar, Clara. Abro um sorriso, um pouco envergonhada pelo joguinho dos dois. Olho para os lados procurando por Lena e a vejo na pista, dançando animada com o namorado. — Tá bom, vamos agora, então. Paula... — Não vi você indo embora, mas o Levi foi sozinho. Aquiesço com a cabeça e me despeço dela rapidamente. Levi vem logo atrás de mim, muito quieto. — Por aqui... — ele diz ao apontar uma direção. Caminho ao lado dele. Atenta ao chão para fazer com que meus saltos não se metam nos vãos do calçamento da rua. Levi para diante de uma caminhonete laranja, velha. Ele passa à minha frente para abrir a porta e a princípio penso ser um gesto de cavalheirismo, mas logo fica claro que a porta está um pouco emperrada.

Quando se abre, o faz com um rangido e Levi espera que eu suba, para então a bater com força. Enquanto ele dá a volta, observo o interior da picape. Os bancos estão rasgados e um pouco de espuma sai de dentro deles. Nos tapetes, um pouco de terra e um pequeno buraco no próprio assoalho do carro. Levi se senta atrás do volante, abrindo um sorriso em seguida. — Vou te deixar na pousada. E pegar seu telefone. A autoconfiança dele é incrível e apenas me faz admirá-lo mais. Ele simplesmente parece saber que essas pequenas coisas não importam nem um pouco, nem o fato de seu carro ser velho, nem que venda queijos na cidade para ajudar a família. A picape funciona bem e, no fim, é a funcionalidade que importa. Logo estamos diante do arco de pedras da pousada. Levi me estende o próprio celular. — Pode anotar seu número aí? Quer dizer... — Pela primeira vez ele parece um pouco envergonhado. — Se quiser, acho que estou sendo insistente, então se eu estiver forçando isso, me desculpe. Pego o telefone da mão dele e anoto com agilidade meu número. Nem acredito que realmente fiz isso.

— Vou entrar agora... Antes que meu pai decida aparecer e ver o que estou fazendo aqui. Levi parece feliz observando meu contato salvo ali. — Tudo bem. Até segunda, Clara. — Até segunda, Levi. Obrigada por me trazer em casa. Nos olhamos por alguns segundos e então me viro. Tento abrir a porta, mas é em vão. Levi inclina o corpo, passando o braço sobre mim para alcançar a maçaneta e fico imóvel. A proximidade mexendo com meus sentidos. Seu cheiro, sua presença... Tudo tão intenso que prendo a respiração. Parece que se tornou comum deixar de respirar quando ele se aproxima muito. — Boa noite... — ele diz, sua voz tão perto que posso sentir o sopro de ar em meu rosto. Ergo os olhos e encontro os seus, azuis e brilhantes, concentrados em mim, em meus olhos, rosto, boca. Sem que me dê conta, minha mão pousa sobre o peito dele, o afastando, o aproximando, implorando, não sei dizer. — Levi — sussurro, ainda sem saber bem o que estou pedindo.

Ele não diz nada, apenas continua me encarando. Tão, tão perto e então, longe. Quando ele se afasta repentinamente, fico um ou dois segundos me orientando. Achei que queria me beijar, parecia que ia fazê-lo e quase recuei, mas ele o fez. — Boa noite — digo, enquanto desço da picape. Me afasto a passos rápidos para dentro da pousada e, apenas depois de entrar, ouço o ronco do motor, indicando que Levi foi embora. Retiro os sapatos e subo as escadas em silêncio, tentando não acordar ninguém, mas antes de entrar no quarto me deparo com meu pai, parado no batente da porta. — Demorou... — comenta à guisa de cumprimento. — Era uma festa de casamento, do dono do bar e uma garota que está fazendo o curso de verão comigo. Entro no quarto, deixando a porta aberta para que ele me siga. Sua risada me alcança. — Estava fazendo o que com essa gente daqui? — pergunta. Dou de ombros.

— Dançando, comendo, me divertindo. — Sei... – O brilho de humor ainda está em seus olhos. — E quem foi que te trouxe? Ouvi o carro. Aliás, ouviria do outro lado da cidade. Coloco uma mecha do cabelo para trás, apreensiva. Não quero que ele implique com Levi antes mesmo que eu possa conhecê-lo melhor. — Um colega do curso. A noiva pediu que me desse uma carona... Não menciono que não é a noiva dele. — Muito bem. Melhor que vir sozinha, eu acho. Vou me deitar, que amanhã o dia vai ser cheio. — Amanhã é domingo, pai. — “Trabalhe enquanto eles descansam”. Nunca ouviu o ditado? Vou passar o dia na agência com as portas fechadas. Se precisar de mim é só me ligar. Boa noite, Clara. — Boa noite, pai... Espero que ele saia e fecho a porta, pensativa. Me incomoda muito que meu pai diga essas coisas e aja de determinada maneira. O modo como se referiu às pessoas de Vale me atingiu em cheio, como se fossem inferiores que eu, que nós, de alguma forma, apenas por serem moradores de uma cidade pequena.

Tiro o vestido e os sapatos de salto. Meus pés agradecem o alívio. Busco uma camisola no armário, que arrumei ainda na quarta feira e me visto para dormir. Me jogo na cama, suspirando pela noite movimentada. Essa personalidade do meu pai, a confusão com Levi, a situação tensa com Lena, o quase beijo... beijos, porque foram duas vezes e a constatação de que talvez eu tenha entendido tudo errado. Levi pode simplesmente não estar interessado. Talvez minha vontade de que ele esteja seja tão grande que passei a vislumbrar coisas que não existiam. Mas o modo como ele me olhava... Meu celular toca, interrompendo minha reflexão. "Sabe... Acho que não disse, mas você estava ainda mais linda hoje." Sorrio e me sento na cama, agitada. "Quem é?" Envio de volta, já rindo ao imaginar a reação dele. "Sério? Passou seu número pra quantos roceiros que mais se parecem com galãs de novela?" Cubro a boca com a mão, abafando a risada. "Não conheci um assim ainda. Mas passei o contato pra um rapaz

gentil, que me trouxe em casa..." A resposta dele vem em seguida. "Sou eu, o próprio. Mas me diz uma coisa, sabe falar de três segundos?" Não é que eu não tenha visto outras pessoas usando essa tática, mas nunca entendi bem o sentido. “Não exatamente.” A explicação chega em instantes. "Eu te ligo, você atende e diz frases curtas, que se encaixem em três segundos de fala. Porque assim a operadora não cobra a ligação e podemos falar eternamente..." Parece interessante. Penso no meu aparelho com ligações ilimitadas e quase sugiro que eu ligue para ele, mas não o faço. Não quero que me ache arrogante e os três segundos podem me ajudar a manter a conversa sem me travar toda. "Legal." "E você não vai poder desconversar e fugir das respostas. Precisa escolher bem as palavras..." Não sei o que dizer quanto a isso.

"Vou ligar. Faço a primeira pergunta, ok?" "Ok" — respondo apenas. Meu celular vibra e vejo a tela se acender com a chamada dele. Atendo. — E que tal Dirt dancing? — Desliga. Dessa vez não entendo onde ele quer chegar. Liga de novo. — Ótimo filme. Patrick deu um show, com o perdão do trocadilho. — Foram quatro segundos. Seja mais rápida. Ele encerra a chamada. Acho uma atitude meio muquirana, mas lembrando que Lena disse que a família dele passa por uma situação complicada, relevo. — Está na minha lista e ainda não vi e... Levi diz e na próxima chamada espero que continue. — Você bem que podia me fazer companhia... — Vai ficar com sua família amanhã? Foi preciso três ligações para ele falar tudo. Mordo o lábio refletindo. Eu devia mesmo aproveitar a sugestão dele e

usá-la de desculpa. Ao invés disso me vejo falando a verdade. — Meu pai vai trabalhar. Mas não posso ir... — Por quê? É só um filme, Clara. A voz dele é tão... gostosa. Não sei explicar de outro jeito, mas ainda que tudo nele me atraia, é muito rápido. — E seus pais. — Minha mãe é um anjo e... — Falo que você me ajuda nas aulas e é uma amiga. Que mentiroso! Deixo o celular tocar três vezes antes de atender, pensando no que dizer a ele. — Primeiro que não ajudei em nada e... — Segundo, como mais poderia apresentar? — Clara, desliga essa droga! — Meu pai chama na porta do quarto e só então percebo que não coloquei no silencioso. Droga mesmo. Espero que ele se afaste, e só então atendo Levi e ouço o que diz. — Está vendo? Nada com o que se preocupar e... Coloco no silencioso e atendo novamente.

— Pensei no filme porque nós dois gostamos, mas... — Se não se sentir à vontade, tenho outra opção. — Posso te mostrar o sítio, o riacho, o pomar e... — Podemos cavalgar. Sabe andar a cavalo? Morro de medo, isso sim, mas não digo isso. — Não — sussurro. — Melhor ainda. Quando o celular vibra outra vez, fico curiosa e o questiono. — E por quê? — Porque pode aprender comigo. Mais emocionante! — Sem seus pais? — questiono baixinho, mordendo a unha em expectativa. Não acredito que eu vá mesmo fazer isso. — Prometo. — E sem... ideias? Quando ele ligou outra vez, o som da sua voz era puro humor. — Só a de um dia agradável. Penso em Lena e em tudo que aconteceu na festa, suas palavras e a saia

justa em que irei me colocar se ela descobrir. Meu celular vibra. — Mantém em segredo? Dessa vez, Levi demora mais a responder, fico com receio de que fique chateado ou algo assim. — Até a morte! Atendo com um sorriso que tenho certeza, transparece em minhas palavras. — Então eu vou...

“Procuro um momento que dure uma vida.” Casanova

13 NOVEMBRO DE 2005

Não posso dirigir ainda e Levi não mora exatamente na cidade. Mesmo assim não quis colocar esse empecilho à nossa promissora tarde e não tive coragem de pedir a ele que me buscasse, mas minha covardia terminou nesse ponto. Agora a minha nova versão calça botas, veste jeans e caminha pela

estrada de terra. Pelas informações que ele me deu, imagino que não possa ser tão longe. Tudo bem que Levi não imaginou que eu fosse chegar até lá andando, mas uma caminhada nunca fez mal a alguém. Mas chegamos ao cerne da questão. Estou completamente tombada por ele, porque quem em sã consciência sairia pela estrada de terra, caminhando para encontrar outro alguém? Uma semana atrás, quando o encontrei na locadora pela primeira vez, mal podia erguer os olhos e encará-lo e agora estou, de boa vontade, caminhando para um sítio no meio do nada. Tem alguma coisa nele... Por sorte realmente o sítio é muito perto. Depois de vinte minutos, meia hora talvez, avisto a placa branca que ele descreveu: Sítio VilasBoas. Ao mesmo tempo em que vejo a placa, também enxergo uma figura sob ela. O chapéu na mão, os cabelos meio bagunçados, a camisa aberta pela metade e os olhos cerrados por conta do sol, me observando chegar. — Vai parecer uma pergunta estranha, mas você veio andando? Dou de ombros meio envergonhada. Não esperava encontrá-lo assim, sem ter tempo de passar as mãos pelos cabelos pelo menos. — Gosto muito de andar... É bom para refletir. — Sei. Mas na próxima pode me dizer que não tem como vir que te busco em casa e nós refletimos juntos, dentro da picape.

Abro um sorriso com o comentário. Apesar da ironia, ele sugeriu que pode haver uma próxima vez. — Já que você não quer conhecer meus pais assim no primeiro encontro, vamos dar uma volta por aí. Ainda estava curtindo a sugestão anterior, quando essa faz com que meus olhos quase saltem das órbitas. Meu coração? Não sei como não passou a um som contínuo, de tão rápido que bate. Não consigo responder a isso. — Sua expressão é ótima. — Ele sorri. — Me magoa um pouco, ver tanto espanto e pavor no seu rosto, mas estou brincando. Isso não é um encontro. E aí está o algo a mais que há em Levi, ou melhor, em quem ele tem sido para mim: a capacidade latente de me fazer sentir coisas absurdas, em uma intensidade surreal e com poucas palavras. Em um minuto meu coração dispara e sobe aos céus como em uma montanha russa e no outro, despenca lá do alto com a decepção. Seu sorriso se mantém por alguns segundos enquanto seu olhar escrutina meu rosto, ele abre a boca como se fosse dizer mais alguma coisa, em seguida aperta os lábios em uma risca fina. — Vamos? — diz apenas. Assinto com um gesto e uma parte dos meus cabelos vem para frente,

lembrando-me de como devo estar parecendo. — Só um minuto — peço. Solto a presilha que mantém muito mal meu penteado, passo as mãos por eles em uma tentativa mal sucedida de dar uma arrumada e depois os amarro outra vez. Ele começa a andar quando percebe que terminei. — Consegue ver a casa ali? — Levi pergunta, apontando para uma construção charmosa à distância. — Sim, é ali que você mora? — Isso. Observo de longe. Há uma porteira pouco à frente de onde estamos e ao lado dela segue uma cerca branca, que circunda toda a frente da propriedade e imagino que atrás também. A casa é branca e tem as janelas de madeira, não parece estar em seu melhor estado, mas ainda assim tem aquele ar romântico; muitas flores foram plantadas sob as janelas e dão um ar todo harmonioso ao lugar. Ao lado da casa posso ver um poço e um celeiro mais à esquerda. — É lindo... — comento. Levi me olha de lado, a testa franzida.

— O que foi? — pergunto. — Não acha lindo? — Eu gosto. Mas acho que não esperava que você fosse gostar. Estamos agora diante da porteira. — Por quê? Porque sou uma mocinha arrogante da capital? Ele apoia um dos pés na porteira e os cotovelos também, seu olhar está um pouco distante e pela primeira vez noto um tom de insegurança em sua voz. — Não se incomoda mesmo? — Com o que? — questiono, tentando entender. — Sei lá, eu vi a caminhonete do seu pai... Ele é dono do banco pelo que estão dizendo, então imagino que sua vida seja muito diferente. Não liga que eu more aqui no meio do nada e use essas roupas, ou que tenha uma picape velha? Me sinto mal com seu questionamento. Realmente esperava que ele não se importasse com essas coisas e até o admirei por isso. — A picape é sua? — pergunto. — Não, é do meu pai... — ele responde. — Pois é. Eu também não tenho nada, Levi. Não fui eu que trabalhei por essas coisas, são do meu pai e não minhas. Assim como você, estou de

mãos vazias. Ele sorri de lado e a maldita covinha aparece. — Sabemos que não é bem assim. Nossas vidas são muito diferentes, Clara. — E daí? Seus amigos tem a mesma situação financeira que você? Todos eles? Levi me encara com aqueles olhos azuis tentadores. — Não me importo com o que eles têm. — Aí está. Você disse que isso não é um encontro, o que significa que somos amigos e então não faz a menor diferença o que vou herdar um dia. Noto que ele morde o canto da boca, segurando um sorriso. — E se fosse um encontro? Pego o chapéu na mão dele, solto meus cabelos e o coloco sobre minha cabeça, em um gesto que nem eu mesma previ. — Então eu não me importaria nem um pouco com o que você tem ou faz, apenas com quem você é e, inclusive, posso me misturar muito bem, como pode ver. Agora ele sorri amplamente e me olha de baixo acima. — Ficou perfeita — ele diz.

— Então vamos! Me prometeram aventura e até agora só tive uma conversa bem confusa. Assentindo, Levi abre a porteira e me dá passagem. — Vamos por aqui... Ele me guia por um caminho de terra batida, seguindo na frente enquanto eu o acompanho para longe da casa, ainda assim posso ver na janela uma senhora nos observando. Abaixo o rosto e finjo não notar, o constrangimento já me tomando ao tentar adivinhar o que ela pode estar pensando. Do lado direito da casa, mas a alguns bons metros de distância, existe outra construção, essa mais arcaica, toda feita de madeira, pelo meu conhecimento técnico da coisa, é um estábulo. — Hum, vai mesmo insistir nessa coisa de cavalo? Ouço a risada dele, baixa, mas deliciosa. — Antes de responder sua pergunta, preciso saber de uma coisa. Ele para e eu também paro. O sol está forte e acabo colocando a mão acima dos olhos para conseguir olhar para Levi. — Seu medo dos meus pais também se estende a criancinhas de sete anos?

Semicerro os olhos, tentando entender onde ele quer chegar. — Hum... Não? — pergunto, respondo, não sei. — Que bom. Lalá, pode sair! — grita e olho ao redor, procurando a garota. Vejo quando uma menininha loira sai de dentro do estábulo. Ela sorri para mim e acena, está usando um vestido florido e botas azuis nos pés. — Oi, Clara! — me cumprimenta. Olho dela para Levi e ele apenas cruza os braços, esperando para ver como me saio nessa. — Oi... Tudo bem? Ela balança a cabeça freneticamente. — Tudo, já arrumei tudo pra vocês. Na verdade, foi minha mãe, mas eu que trouxe. — Ah... Que legal, obrigada — respondo, mesmo ignorando o que seja esse tudo que ela arrumou. — Pode ir, Lalá — Levi diz. Os dois se entreolham por um momento e penso ter visto a menina mexer a boca, sussurrando alguma coisa, mas ela agora sorri abertamente. — Tá bom. Sabe, Clara, eu sou a Lavínia, mas pode me chamar de

Lalá. O Lê disse que você é amiga dele, mas minha mãe disse pra eu deixar vocês em paz porque é namorico. Busco o rosto dele, pedindo socorro e acho que Levi entende que estou surtando, porque interrompe Lavínia. — Agora, Lavínia. Deixa de azucrinar a Clara e vai pra casa... Ela mostra língua pra ele e depois sai correndo. — Vem... Sobe aí. Vejo as baias dos animais um pouco à frente, mas Levi não segue por essa direção. No canto, vejo um cavalo atrelado a uma carroça branca de madeira. — Vamos de carroça? — pergunto, mesmo que pareça óbvio. — Achei melhor ir devagar com você. Sei que ele se refere ao cavalo, mas não posso deixar de pensar que também esteja falando de nós. Vejo-o subir com destreza e me estender a mão. Seguro-a e apoio o pé na carroça, enquanto Levi me puxa para cima. Me sento no pequeno banquinho e ele faz o mesmo, ao meu lado, tomando as rédeas nas duas mãos e instantes depois estamos deixando o estábulo, sacolejando um pouco, de acordo com o trote do cavalo.

Seguimos pela direita da casa, indo para trás dela. As árvores ali ficam mais altas e fazem um pouco de sombra acima de nós. É tudo tão verde e bonito e, no chão, a terra vermelha e assentada mostra que a estrada é bastante usada. — Onde nós vamos? Já vi a casa, o estábulo, passamos perto do celeiro. Isso é um sítio ou uma fazenda? Ele ri. — Bom, vamos invadir terras que não pertencem aos meus pais, mas é patrimônio de Vale, então tudo bem. — E o que tem nessas terras? — Uma surpresa. Espero que explique, mas Levi continua olhando para frente, direcionando-nos para algum lugar. Meu celular vibra no bolso, com uma mensagem. “Ei, onde você foi? Vim até a pousada, pensei em passarmos a tarde juntas.” Lena, que soube exatamente o momento de me mandar um lembrete de que as coisas não são tão belas assim. — O que foi? Seu pai?

— Não, só a Lena... Vou dizer que saí para resolver umas coisas com meu pai. A expressão dele parece mais fechada um pouco, os lábios unidos em uma risca fina e percebo que tem alguma coisa errada. — Por que ficou sério? — Nada... — diz, mas em seguida dá um grito que me faz pular no lugar e o cavalo aumenta a velocidade. Pelo menos não chicoteou o coitado. — Foi sim. Estava rindo e brincando e agora ficou de mau-humor. Levi faz uma curva sutil e puxa as rédeas para pararmos. Ele desce sem me responder e amarra a corda em uma das árvores. Estou olhando para ele tão fixamente que demoro a perceber o lugar em que estamos. Árvores altas formam um círculo ao redor de uma lagoa, a grama ali é bem aparada e existem algumas pedras espalhadas. No alto as árvores abrem algum espaço para que a luz do sol penetre e ilumine o lugar. Um verdadeiro paraíso perdido no meio do nada. — Nossa, Levi... Desço para o chão e caminho para perto da água, maravilhada. — É perfeito!

— É sim, bem oculto também. Ninguém vai te ver comigo. Franzo o cenho para o comentário esquisito, mas não dou maior importância. — Por que? Vai me matar aqui? — brinco. Levi não responde. Quando me viro a fim de encará-lo, vejo que ele tem uma cesta de piquenique nas mãos. Seria tudo perfeito, não fosse seus olhos que perderam o brilho habitual e divertido. Abrindo a cesta, ele retira uma toalha xadrez, como em um filme romântico e a estende no chão, sobre a grama bem perto da água. Levi se senta de um lado e começa a retirar as coisas que trouxe. Me sento na outra ponta da toalha e encaro todas aquelas coisas. — Pão, bolo, pão de queijo... Nossa, esse suco está gelado! Onde estava a cesta? — Na carroça — responde, seco. — Tá bom, agora me fala o que aconteceu. Estava tudo bem agora há pouco e de repente parece que você recebeu uma notícia horrível. — Não é nada, vamos comer. — Vamos comer? Olha, achei que tivéssemos vindo para conversar, me

trouxe em um lugar lindo, arrumou tudo isso e agora parece bravo por estar aqui. Ele suspira, soltando o ar pesadamente. — Te perguntei se importava, se fazia diferença sermos de classes sociais diferentes e você disse que não, mas não é a primeira vez que mente para a sua amiga. Ontem você soltou minha mão quando Lena chegou, depois quando fui te levar em casa, saiu sem se despedir dela e do Felipe, acho que não queria que nos vissem juntos e depois dessa mensagem que recebeu, mentiu para não falar que estava comigo. Sinto muito, mas me parece que no fundo você só quer estar perto de mim se ninguém souber disso. — Levi! — falo mais alto que o planejado e arregalo os olhos com seu desabafo. — Sabe, vendo pelo seu lado, acho que parece isso mesmo... Me pego revivendo os acontecimentos. — Veja só, eu não posso te contar coisas que não me dizem respeito, mas posso dizer que se estou fazendo isso, é porque sei que a Lena não iria gostar de nos ver juntos por aí. Levi me encara com ceticismo, como se eu estivesse inventando desculpas esfarrapadas. — Corta essa, Clara. — Ele atira uma pedrinha dentro da lagoa. — Lena e Felipe são meus amigos, não tem por que um deles me desaprovar, se

for o que quer dizer. — Desaprovar? Não, eu não diria isso — falo, sem conseguir evitar o tom irônico. Seu olhar se mantém sobre mim e suas feições não ocultam o quanto ficou chateado. — A Lena é rica e você é ainda mais que ela. Ficou com vergonha de mim, não foi? Balanço a cabeça, sem acreditar no que estou ouvindo. — Quem está sendo preconceituoso agora? Não estou nem aí para o que você tem ou não, Levi. E, honestamente, pensei que você fosse mais seguro de si, porque se uma garota se importa com essas coisas, então não deve mesmo perder seu tempo com ela. Dessa vez o olhar dele é mais especulativo, como se estivesse começando a acreditar em mim, mas agora já conseguiu me tirar a calma, um feito e tanto. Levanto-me do chão, sem me importar que agora o caminho para casa seja ainda mais longo. — Vou embora. Acho que você deveria convidar alguém que te passe mais confiança. Ele se levanta também, mas não pede desculpas, apenas parece

frustrado. — Por que, então? Lena também é minha amiga, Clara. Por que não pode saber que conversamos e o que mais vier a acontecer? Nem eu reconheço o amargor na risada que emito. — Amiga? Se toca, Levi! Ela é apaixonada por você e me disse com todas as letras que não era para me aproximar. Minha raiva se esvai, como um balão furado ao ver a expressão dele de choque. Levi abre os olhos, assustado e sem dizer uma palavra se senta outra vez. — Olha, eu não devia ter dito isso, não pela amizade dela porque sinceramente acho que prefiro restringir minha lista de amigos, mas ainda assim não era um segredo meu, então se puder manter isso entre nós — peço. — Tem certeza? — ele pergunta, em um fiapo de voz. Realmente a confissão o abalou. Me sento ao seu lado novamente, agora mais perto um pouco. — Infelizmente tenho — respondo. — Mas, Clara... Não faz o menor sentido. E o Felipe? — Não é? — concordo com Levi. — Ele é seu amigo, então isso é bem esquisito.

— Clara... — Ele se vira de lado e segura minha mão. — Lena namora o Felipe e ele é um dos meus melhores amigos. Isso é ridículo. Apenas dou de ombros ao ouvi-lo repetir em outras palavras o que acabo de dizer. — Por que não pode falar que estamos conversando? Que veio aqui? Quem sabe ela tire essa bobagem da cabeça — sugere. Nego com um gesto, ele não entende o nível da obsessão de Lena, mas já falei muito, melhor não mencionar os planos dela para o casamento dos dois. — Não vai adiantar, ela foi bem incisiva... Me distraio por um momento, notando como o sol toca o rosto dele, conferindo uma cor única aos olhos claros. — Como assim? Ela te ameaçou? — Levi questiona, me tirando do devaneio. — Porque todo mundo aqui sabe que a Lena adora botar medo nos outros e faz umas coisas meio sem noção. Acabo rindo um pouco, parece uma boa descrição. — Não exatamente — respondo. — Não tinha porque ameaçar, já que não aconteceu nada, mas o jeito que ela me olhou foi bem estranho... — Estranho? Estranha é ela! Uai, o Felipe arrasta um caminhão de areia pela garota, faz tudo que pode pra agradar e agora essa palhaçada.

Sorrio outra vez ao ver o uai escapar no auge da irritação. — Que foi? — ele indaga ao notar meu riso. Minha mão ainda está presa sob a dele, nossos corpos próximos demais para que eu seja racional. — Você fica uma graça falando uai... — respondo e ao mesmo tempo sinto meu rosto arder de vergonha. Preciso controlar os pensamentos para que não saiam voando livremente. — Você também, toda corada. — Ele também sorri. — Me desculpa... — pede, um segundo depois. — Eu devia ter perguntado ao invés de tirar minhas próprias conclusões. E você está certa quando diz que uma garota que tenha esse pensamento não deveria ter nada de mim. Realmente não teria, por isso fiquei chateado, por pensar que tinha me enganado a seu respeito e que estava acabado. Isso me faz rir novamente. — Acabado? Não tem nada acontecendo para que acabe. Dessa vez a expressão dele é mais séria, a forma como seus olhos mergulham nos meus, parece programada para sondar minha alma. — Está falando sério? Porque se estiver, tudo bem. Mas quero saber se isso aqui é um encontro só pra mim.

Sinto os calos em sua mão tocando minha palma, a respiração dele tão compassada e suave, desalinhando a minha e meus sentidos como um todo. Cada traço em seu rosto me atraindo para mais perto, meus dedos quase coçam com o desejo de tocá-lo. Balanço a cabeça, negando, mesmo sabendo que deveria ser mais honesta com ele e comigo, deveria admitir que posso ser um fracasso nessa coisa toda. — Então é isso, temos um encontro. — O sorriso curva seus lábios para cima, conferindo a ele um ar de menino. — E o que vamos fazer com a Lena? Porque não acredito que seja só por hoje. A declaração dele me bagunça inteira. Talvez esteja falando isso com expectativas altas a meu respeito, não quero nem imaginar a decepção de Levi quando finalmente me beijar. — Bom — digo, pensando em cada palavra. — Prefiro manter assim por um tempo, tudo bem? Não é como se fôssemos nos casar e enquanto nos conhecemos ela não precisa saber e ficar toda esquisita. E sei lá, vai que Lena decide tirar satisfações comigo e o Felipe fica sabendo? Seria o caos. — Uma confusão dos infernos — Levi concorda. — Tudo bem, então. Dizem que escondido é mais gostoso... Abaixo os olhos, envergonhada com a brincadeira e ele ri.

— Agora podemos comer! Levi ergue a tampa de uma vasilha, revelando um bolo de fubá cremoso que parece uma delícia, assim como o pão de queijo e as bolachas caseiras. — Que banquete! Sua mãe caprichou. — É, ela ficou empolgada com você. — Ai meu Deus... — Isso só piora. Agora vou ser a decepção da família toda. — É a primeira vez que trago uma garota aqui. — Por quê? — Apesar do pavor que me toma diante de tudo, realmente quero saber porque ele decidiu me escolher. — Não sei. Tenho sempre muito o que fazer e ninguém me interessou até agora. Me sinto lisonjeada e pressionada ao mesmo tempo. Não tenho nada de especial, não faço ideia do que ele viu em mim, mas ainda assim sinto que meu coração pode sair flutuando rumo ao céu. — Hum... — Me fale um pouco sobre você — ele pede, enquanto morde um pedaço de bolo. Pego uma fatia para acompanhá-lo.

— Bom, tenho dezessete anos, sou órfã de mãe. Somos só eu e meu pai já tem muito tempo, mas fico mais sozinha porque ele trabalha muito. No fundo não é uma pessoa ruim, sabe? Mas vive para o banco. Ele assente, compreendendo. Serve dois copos com o suco de laranja e me estende um deles. — E o que pretende agora? Terminou o colégio e está fazendo o cursinho de verão pensando em uma faculdade, certo? Com o questionamento de Levi, me dou conta do quanto o que estamos fazendo parece tolo, nos envolvendo mesmo sabendo que é uma relação com data de validade. Não deveria me sentir tão mal com isso, acabo de conhecêlo, mas a sensação é horrível. — Quero ser roteirista — digo, ao ver que ele me encara aguardando. — Meu pai quer que eu seja atriz, dá para imaginar? Levi sorri por sobre a borda do copo. — Você tem a beleza das celebridades, nisso estou de acordo com seu pai — ele fala e me arranca uma gargalhada. — Levi, eu morro de vergonha em uma sala com dez pessoas. Imagine que eu esteja à frente de uma câmera, sabendo que milhares de expectadores vão me assistir. Eu ia desmaiar, com certeza! O risinho de bom humor ainda está estampado em seu rosto. Levi se

inclina na direção dos pés e começa a retirar as botas. Franzo o cenho para a atitude e mais ainda quando ele coloca minhas pernas sobre as suas e também arranca meus sapatos. — Relaxa... — ele diz apenas. Tento entrar na onda e continuo minha história. — Teve uma vez que tive que fazer uma peça no colégio e, adivinhe só? Vomitei antes de subir ao palco. Atuei até que bem, mas passei muito mal do estômago. — Mas você quer ser roteirista. Quer escrever filmes? — Filmes, seriados, novelas... Gosto de contar histórias. — E porque não ser escritora? — pergunta interessado. — Eu amo filmes, como sabe. Quero ver minhas criações tomando vida. — Mas e você? — pergunto — Quer fazer o quê? Uma nuvem escura parece passar por seus olhos, mas rapidamente desaparece. — Estou em uma situação bem complicada. Meus pais querem muito que eu estude, faça uma faculdade, mas não vejo isso acontecendo... — E por que não? — pergunto, encarando suas mãos que agora retiram minhas meias.

— As coisas estão difíceis — ele fala. — Houve uma geada feia uns meses atrás e perdemos boa parte das plantações que nos mantinham, nosso prejuízo foi imenso. Estamos vivendo de queijo e leite, mas não dá pra muito mais que isso. — Mas você pode estudar e passar em uma faculdade pública, é inteligente — sugiro. Ele meneia a cabeça. — Eu posso tentar, mas mesmo que consiga o problema não é esse. Meus pais estão velhos, não podem pagar funcionários para trabalhar aqui e ajudar com o serviço mais pesado. Eu faço isso e logo, quando eles não derem mais conta de tudo, vou ter que tomar a frente. É nosso ganha pão. Como vou sair da cidade pra estudar e deixar os dois e a Lalá? Assinto com pesar, realmente não é uma situação fácil de se resolver. — Bom, então você vai ser um sitiante e vai expandir isso tudo e as coisas vão melhorar — declaro, tentando soar otimista. — Isso. Só quero dar algum conforto pra eles na velhice, mas ao mesmo tempo não quero deixá-los tristes. Por isso tenho ido ao curso de verão, como se considerasse mesmo a possibilidade dos estudos. Levi terminou o trabalho com meus pés, mas ainda assim não fez menção de retirar minhas pernas de sobre as suas. Estou confortável como

nunca estive, como se ele me transmitisse essa segurança, ainda assim não sei o que fazer, então mantenho tudo como está. — Mas você queria fazer um curso superior? Digo, se pudesse, você faria? — Faria sim, as coisas seriam mais fáceis se eu pudesse. Não sei bem que curso, também gosto muito de filmes, mas não tenho talento pra escrever roteiros. Que faculdade eu preciso fazer pra comprar a locadora dos pais da Paula? Começo a rir antes mesmo que ele conclua a frase. — Só precisa do dinheiro. Uma folha cai de uma das árvores acima de nós, ela vem voando vagarosamente e pousa sobre nossas mãos unidas. Ficamos em silêncio por alguns segundos apenas observando. — Não sei, artes visuais talvez — Levi retoma o assunto. — Não pela parte do desenho, mas pensando em cinema. A verdade é que não reflito muito sobre isso, prefiro ter os pés no chão. — Eu entendo, acho que pensar na sua família e no que vocês possuem hoje é muito altruísta da sua parte. Não vejo como uma decisão que está tomando por você, mas por eles e pelo pouco que me contou, a forma como te incentivam, mostra que teve a quem puxar.

Levi encara o lago por um instante, pensativo. — Sabe, era pra você se divertir, termos uma conversa leve e quem sabe se eu fosse um cara de sorte conseguiria um beijo no fim da tarde. Acho que se você topar entrar na água comigo, ainda dá pra salvar nosso encontro. Um beijo. A simples menção faz revolver meu estômago e disfarço o melhor que posso. — Por acaso estou te entediando, Levi? — De jeito nenhum! Levantando-se, ele desafivela o cinto e começa a desabotoar a camisa, os botões que estavam fechados. Levi a retira sobre os ombros e engulo em seco, acho que emito algum barulhinho, porque ele abre um sorriso presunçoso. Deixo meu olhar vagar por seu peito, afinal garotos de dezessete anos não deviam ter tantos músculos, mas a maioria deles não dá duro em um sítio o dia todo. — Aí meu Deus! — exclamo ao ver sua calça ir ao chão. — Que foi? — O riso está presente em sua voz. — De onde você vem as pessoas nadam de roupa? — Nadar? — questiono, tentando entender o que está acontecendo. — É, o que acha que estou fazendo?

Com isso ele simplesmente pula na lagoa. Seus cabelos castanhos desaparecem da minha vista por um momento, mas pouco depois ele emerge perto de mim. — Vem — convida. — Entrar aí? Você ficou maluco? Nem roupa eu trouxe. Levi sorri, provocando, seus olhos brilhando de malícia. — Entra assim mesmo. — De calça jeans? E como vou explicar para o meu pai que voltei toda molhada? — É só tirar a roupa. — Rá! Ficou louco mesmo — resmungo, meu rosto mais vermelho que a maçã sobre a toalha. — Por quê? Você não está usando nada por baixo? — Levi! — ele continua me encarando, esperando a resposta. — Claro que estou usando. — Então só está perdendo tempo. Não sabe ainda que essa coisa toda com a calcinha, sutiã e cueca, é só cultural? Porque ninguém acha estranho usar biquíni ou sunga. É a mesma coisa! A menos que seja muito transparente...

— Não é isso! — retruco. — Então você vem? Xingo baixinho diante da teimosia dele e dos argumentos muito persuasivos e principalmente da minha vontade ridícula de fazer o que sugere. — Vou se você se virar de costas. — E perder toda a diversão? Ele ri da minha cara feia e se vira, me dando privacidade. — Só pode olhar quando eu estiver dentro da água. Seu corpo está coberto até a altura do peito, sou um pouco mais baixa então imagino que a água vá cobrir até meu pescoço e ele não verá muita coisa. — Tá bom — ainda ouço o riso na voz dele. Retiro a calça rapidamente e depois a blusa pela cabeça, entendendo tardiamente porque ele retirou minhas botas. Confiro minha lingerie antes de dar um passo à frente: comportada e de algodão, mas bonitinha. Meus pés tocam a grama primeiro e em seguida a terra molhada na margem, afundando um pouco. — Isso é pura lama! — reclamo. — Minha roupa é branca, vai encardir

tudo... Ouço um resmungo baixinho, acho que o provoquei sem ter a intenção. — Já posso me virar? — Não!? Levi continua falando alguma coisa, baixinho. Chego na beirada e olho para a água tentando ver o fundo. — Não é praia, Clara. Não tem uma parte rasa, mas pode entrar que não vai se afogar — ele diz, percebendo minha enrolação. — Não vou mesmo, nado muito bem — contesto. — Então entra logo... Pulo na água de uma vez e afundo o corpo no frio molhado. Mergulho, mas volto à superfície em instantes, sem coragem de ficar com o rosto submerso na água terrosa. Atiro os cabelos para trás e, quando finalmente abro os olhos, Levi está diante de mim. — Eu não disse que podia virar. — Você já estava dentro da água e como eu disse, isso não é nada demais, pense nas suas roupas como um biquíni. Estreito os olhos para sua fala.

— Não sei como devo me sentir quanto a isso. Não é nada demais... Fale por você! — Não quis dizer que não fica maravilhosa assim ou negar que vou ter sonhos impróprios por um mês. Só que não quer dizer que vai acontecer algo que não seja nadar. — Ah, isso eu podia imaginar. É a vez dele de semicerrar os olhos, me sondando. — Como assim? Mordo o lábio como punição, não devia ter dito isso. — Nada. — Clara... — fala em tom de ameaça e avança alguns passos, ficando à distância de um toque. — Quase aconteceu do lado de fora do bar e quase aconteceu na porta da pousada — confesso. A coragem vem do forte desejo que estou contendo, porque honestamente não sei como posso ter sido tão ousada. Entrar na lagoa vestindo minha lingerie, provocá-lo dessa maneira, nada disso faz parte de quem sou no dia a dia. Levi se aproveita da proximidade e sinto sua mão fria tocar a pele nua

das minhas costas, me enlaçando. Seu sorriso é convencido. Sabe que quero isso e apesar das batidas do meu coração soarem tão altas, que quase servem de trilha sonora para nós, não o afasto. Seus dedos estão gelados, mas por onde passam me acendem e eu queimo. Ele me puxa para mais perto, colando meu peito ao seu e nesse momento não consigo sentir vergonha, apenas um desejo avassalador. — Vamos mudar isso — diz com a voz mais grave, antes de tomar minha boca em um beijo tão esperado quanto surpreendente. Os lábios dele, ao contrário de todo o resto, são macios e suculentos. O beijo começa lentamente, apenas um toque suave e agradeço a Deus por ter tempo de assimilar o que está acontecendo. Tento acompanhar seus movimentos, para que Levi não perceba como sou inexperiente, para que não saiba que esse é meu primeiro beijo. Apoio minha mão na sua nuca ao notar que estou tremendo. Ele encara o gesto como motivação e sinto sua língua tocar levemente meus lábios entreabertos. Cedo o espaço que ele pede, enquanto sinto fagulhas explodirem dentro de mim. Levi me beija com cuidado, como se eu fosse frágil e mesmo

aprofundando seus toques, não é afoito ou invasivo, apenas maravilhoso. Relaxo um pouco em seus braços e o abraço pelo pescoço, me rendendo à sensação da boca dele na minha. Enquanto isso, o sol banha nossos corpos molhados, tornando-nos uma paisagem digna de um filme de romance.

“Para conseguir o que quer, você deve olhar além do que você vê.” O Rei Leão 3

— E então, Lê? — Então o que? — pergunto, fazendo-me de desentendido e me atirando no sofá. Minha mãe deixa a cozinha e caminha até onde estou, parando em frente à televisão para atrair minha atenção. — Como foi com a garota que você trouxe? Não se faz de bobo que estou curiosa e fiz um monte de comida pra você agradar a menina. Eu

mereço saber! — dramatiza. Olho para ela, seus olhos estão brilhando de curiosidade. — Foi legal, mãe. Acabei de levar a Clara em casa. Ela faz uma careta. — Legal? Foi tão ruim assim? — Claro que não foi ruim, o que tem de errado com legal? Ela não se dá por vencida, fica me olhando, aguardando mais informações. — Mãe, isso é invasão de privacidade. A levei até a lagoa, fizemos um piquenique, rimos juntos e conversamos muito. Foi ótimo se quer saber, fantástico. Melhor assim? É a verdade, apenas não me sinto à vontade em ficar dividindo os detalhes com minha família. O sorriso que ela abre é absurdo, sua expressão revela que já está fazendo planos de um futuro casamento. Deus me livre dessa síndrome de mãe casamenteira. — E deram umas bitoquinhas? — Mãe! Não vou falar disso com a senhora. — Ahá! Então quer dizer que sim — comemora.

— O que é uma bitoquinha? — Lalá surge atrás de mim, questionando. Olho feio para minha mãe, mas ela apenas sorri. — Tá vendo o que fez, mãe? Agora vamos mudar de assunto. Cadê o pai? Ela suspira. Sua expressão mudando de animada para apreensiva em segundos. Torce as mãos no avental, um gesto característico de quando está ansiosa. — Seu pai foi ao banco pedir um empréstimo, levou uma papelada. Se der certo pode ser que consiga salvar o sítio. Franzo o cenho, as coisas estão difíceis, mas não pode ser tão ruim. — A outra opção é fazermos um arrendamento das terras, mas aí teríamos que sair daqui e nenhum de nós quer isso. — Posso vender mais dos nossos produtos na cidade, vamos dar um jeito, mãe. Que tal se eu deixar o curso e levar os queijos e algumas verduras também pela manhã? Mamãe nega categoricamente. — De jeito nenhum, isso é sobre seu futuro e além disso não adiantaria. Precisamos de muito mais dinheiro que o dos queijos para salvarmos isso aqui. Seu pai deve muito a cooperativa dos agricultores, comprou fertilizante aos montes, contando com a colheita que não aconteceu.

— Eu sei disso, mas pensei que aos poucos pudéssemos pagar. — O problema é que não existe essa coisa de aos poucos, filho. Temos um prazo a cumprir. Vamos viajar para encontrar o possível arrendatário, sondar a proposta dele, porque caso neguem o empréstimo ao seu pai, é nossa única opção. Apoio a cabeça entre as mãos tentando pensar, encontrar uma outra solução. — Não podemos sair daqui e perder nossa casa. Tem que ter outro jeito, eles não têm motivo para negar o empréstimo ao papai. — Nem para conceder, as contas estão atrasadas e eles vão analisar tudo isso. Mas vamos ter fé, filho. Assinto, tento ser positivo, mas ao erguer o rosto, o que vejo em seus olhos não me dá ânimo. Ela própria perdeu a fé, não acredita de verdade que vamos conseguir. — Vou me sentar lá fora um pouco... Levantando-me do sofá, deixo a sala e as duas, que me observam em silêncio. Da varanda consigo ver a lua subindo devagar, crescente, quase cheia e linda. Alguns vagalumes piscam no meio do mato um pouco à frente e ouço o

som dos grilos e outros ruídos da noite. Começa a esfriar e o céu está pintado de estrelas. Foi aqui, vendo esse quadro todas as noites que cresci e é onde quero permanecer. Sinto o cheiro de dama da noite que vem da árvore que fica sob a janela do quarto dos meus pais; em algumas noites é tão forte que chega a ser enjoativo, mas não hoje. Ouço as patinhas do cachorro antes mesmo de vê-lo se aproximar. Al se deita aos meus pés, pedindo um carinho e afago sua cabeça peluda. — Ei, amigão. Você também gosta daqui, não é? Tomo como um sim o barulho que ele faz. Al é um Border Collie de pelagem preta e branca, metade do rosto de cada cor; além de ser um cão bonito, é também muito inteligente e amigo do meu pai. — Vamos dar um jeito, pensar em alguma coisa juntos. Você bem que poderia se apresentar por aí, é um garoto muito esperto e cheio de habilidades. Como que para comprovar o que digo, ele se vira de barriga para cima, esperando que eu complete o carinho. — Falando com o cão de novo, filho? Ergo os olhos e me deparo com meu pai. O chapéu na cabeça, o cinto amarrado na cintura para manter a calça social no lugar, as botas sujas de lama.

Ele está velho. Seu olhar cansado me deixa ainda mais preocupado. — O senhor pensa que não te ouço contando histórias pra ele? Al se levanta para cumprimentá-lo e os dois brincam por um momento. — A mãe disse que o senhor foi ao banco. Deu certo? Ele meneia a cabeça, desanimado. — Não sei. Ainda não me disseram nada, mas se o gerente não estava lá, era o próprio dono, esse tal Alessandro... — Ele assovia como sempre faz quando quer dar ênfase a alguma coisa. — O homem é complicado. Me lembro de Clara, tão meiga e doce, mas também me recordo das coisas que comentou sobre o pai. — Como assim, complicado? — Ficou me olhando torto e perguntou se eu tinha ido ao lugar certo. Provavelmente por causa dessa roupa suja, nem tomei banho, deixei as coisas aí e fui direto. Mas não tem nada de errado nisso, não sou pior que ele porque sou pobre. Me controlo para não xingar, mas só de pensar na humilhação do meu velho fico furioso. — O senhor respondeu o quê? — Que estava lá pra tentar o empréstimo e que vinha da roça, que

estava trabalhando, não podia ser grosso com o homem. Por falar nisso, sua mãe me disse que a filha dele veio aqui. Essa gente Levi... Balanço a cabeça negando, antes que ele termine. — Clara não é assim. Não conheço o pai dela ainda e espero que tenha sido só uma má impressão, mas mesmo que não seja, ela não tem culpa disso. Seu olhar está distante, mas ainda assim balança a cabeça, concordando com um gesto. — Certo. Muito justo, Levi. Não podemos mesmo julgar a moça pela forma como o pai dela age. — Levei ela pra um passeio na carroça... Ele ri, achando graça. — E ela continuou interessada? — Me deu um beijo — conto vantagem. — É, filho. Parece que o fruto cai, sim, longe da árvore. Você nunca vai ver um homem como o pai dela subindo em uma tranqueira como a nossa carroça. Agora vou entrar e tomar um banho, estou morto de cansaço. Quando abre a porta, no entanto, ouço sua voz outra vez. — Não fala nada sobre o empréstimo com a moça, pode achar que está saindo com ela por interesse.

— Bem pensado — concordo. Vejo-o abrir a porta e Al se agitar ao segui-lo para dentro de casa. Sinto meu celular vibrar no bolso da calça e quando o retiro, o nome dela pisca na tela com uma nova mensagem. “Adorei a tarde. Obrigada.” Digito uma resposta enquanto me critico a respeito disso. Não sei o que estou fazendo, ou porque decidi me envolver justo com ela, que pode ir embora a qualquer momento e ainda tem um pai complicado. Mas ainda assim... “Também gostei muito, linda. Te vejo amanhã?” Não resisto. A mensagem dela chega rápido. “Sim, até amanhã. Boa noite.”

14 DE NOVEMBRO DE 2005

Acordo antes do sol nascer. Para evitar que minha mãe teime em sair da cama no frio que está fazendo, pego o balde e corro ao curral para tirar o leite. A manhã está gelada, mas são as obrigações diárias por aqui. Coloco o banquinho perto da nossa vaca e a cumprimento enquanto calço as luvas. — Bom dia, Dirce! Vai ser uma manhã e tanto, não acha? Vamos começar os dois trabalhando muito. Dispenso os primeiros jatos de leite em um vasilhame preto e confirmo que está tudo certo com o líquido antes de começar a retirar dentro do balde. O sol começa a clarear o céu enquanto estou fazendo a ordenha. — Lê, você precisa ir para o curso... — Ouço minha mãe atrás de mim. — Deixa que eu cuido da Dirce. — Já estou acabando, mãe. Era pra você ficar na cama até mais tarde, está frio. Ela ri. — E eu lá consigo dormir depois que o sol acorda? Vai tomar um banho, já vou arrumar seu café. Cedo o lugar a ela e retiro as luvas. — Separa os queijos também, por favor. Hoje vou ficar em Vale direto

depois da aula. Não volto para almoçar. — E vai comer onde? — No bar com o Mário e a Paula. Volto para dentro de casa, observando no caminho o céu ser tingido de roxo e laranja. Tomo um banho demorado, com preguiça de deixar a água quente. Ao sair do chuveiro, visto uma camiseta branca e calças jeans. Troco as botas por um par de tênis e penteio o cabelo com um pouco mais de cuidado. Borrifo um pouco da água de colônia e pego minhas coisas. Na cozinha, encontro meu pai sentado à mesa com uma xícara de café fumegante à mão. Minha mãe está encostada na pia, comendo uma fatia de bolo. — Bom dia, pai. — Dia... Olho no relógio e percebo que ainda tenho um tempinho, então me sento também, sirvo um pouco de café com leite em um copo e corto um pedaço do queijo para comer com pão. — Lê, vem rápido depois que entregar os queijos. Sua mãe e eu conversamos à noite e decidimos fazer aquela viagem hoje.

Não tenho muito o que dizer, apenas posso torcer para que outra solução se apresente. Meu pai ama essas terras como a própria vida e tenho receio de que sefor colocado em uma casinha na cidade, ele simplesmente perca o gosto de viver. Minha mãe não conhece outra existência. Seria muito triste para os dois, perder o sítio. — Não vai fechar nada ainda, certo? Vamos esperar a resposta do banco. Pode ser que dê certo. Ele concorda. — Vamos só conversar, ouvir a proposta do homem. Mas vamos dormir lá, então não vai ter como ir na picape pra Vale amanhã. — Tudo bem. E a Lalá? — Vai com a gente. Só cuida de tudo por aqui. Termino meu café e me despeço deles; pego a caixa com os queijos e coloco na picape, depois a mochila e me jogo atrás do volante. Ligo o som em uma rádio aleatória, que no momento está tocando LS Jack. Acabo prestando mais atenção à letra que de costume e, mesmo que também esteja atento à estrada de terra e alguns animais que teimam em passear na frente do carro, a música ainda penetra meus ouvidos, me fazendo

refletir. “...hoje aqui, amanhã não se sabe vivo agora antes que o dia acabe...” É isso. Não sei o que vai acontecer com a gente, com o sítio, ou mesmo comigo e Clara, mas se nada der certo, as lembranças ainda vão existir. Se eu fizer tudo ao meu alcance para que elas valham a pena, então mesmo que não consiga salvar nossas terras ou que Clara vá embora no fim do verão, não terei arrependimentos. Isso me dá vontade de ligar o foda-se para Lena e suas bizarrices e beijar minha garota no colégio, mas sei que ela não se sentiria confortável com isso e sim, ela já é minha garota. Como isso aconteceu não importa. Nos conhecemos agora, mas meu modo de encarar isso, é que se me sinto assim em relação a ela em tão pouco tempo, só quer dizer que o que temos é intenso. E ainda vai ser mesmo que dure apenas dois meses. Entro nas ruas calçadas de Vale sem nem me dar conta de que já percorri todo o percurso. Sigo para o colégio e estaciono do lado de fora. Como das outras vezes, Felipe e João Paulo estão me esperando e sobem na carroceria para ficar de papo até a hora de entrar. Daqui eu a vejo chegar. Seus cabelos castanhos estão presos em um

rabo no alto da cabeça, está usando uma blusa de frio rosa e uma calça jeans clara; mesmo de tênis ela anda como se flutuasse, levando seus cadernos nos braços. Não está vestindo nada diferente e ainda assim está mais linda do que me lembrava. Clara passeia os olhos por entre as pessoas e sinto que está me procurando; quando me encontra, abre um sorriso discreto, que retribuo, e depois entra na escola. A cada vez que a vejo, Clara parece ainda mais bonita. — Huum... O que será que foi isso, João? — Felipe pergunta. João ri sem nem tentar disfarçar e só então me lembro dos dois, que estão se divertindo às minhas custas. — Isso foi o Levi babando... Acho que até me molhou. Me viro para eles tentando ficar sério. — Não faço ideia do que estão falando. — Sério? — Felipe pergunta. — Um sorriso da mocinha da cidade e pronto, você fica mais de quatro que a sua Dirce. Acerto um tapa na nuca dele. — Deixa de viagem, Felipe. Mal conversei com a menina — minto, descaradamente.

— Conversar pode não ter conversado, mas dançou abraçadinho. Depois tiveram uma briga quente no meio da pista e agora, estou sentindo as faíscas daqui. Não consigo controlar a risada com a palhaçada dele, que está se abanando. Felipe é um cara incrível, gente boa, trabalhador e esforçado, merecia mais da vida que uma namorada como a Lena. — Vamos entrar? — falo, já pulando para a rua. — Pega a caixa de queijos pra mim João. João Paulo me entrega o caixote e depois disso os dois também descem. Não sem uma piadinha antes. — Viu? A menina chegou e o Levi já sai correndo pra dentro. Deixo os dois no corredor da escola, ignorando o que disseram e vou até a cozinha levar o caixote. A senhora que toma conta da cantina concordou em guardar até o fim da aula. Quando chego na sala, noto que João está em um dos cantos conversando com Clara. Ela não parece muito à vontade, mas responde educadamente. Felipe está com Lena, que me nota assim que entro. — Vem, Lê! Senta aqui com a gente... — ela convida.

Como não notei que essa coisa toda que Lena tem comigo era estranha? Como Felipe não percebeu? — Vocês dois precisam passar mais tempo juntos — respondo. — Vou ficar ali com o João. E com a Clara, mas isso não digo. Caminho para onde os dois estão e atiro a mochila sobre a mesa de João. — Anda, pula pra cadeira da frente — falo, como se estivesse com a razão. Ele abre um sorriso imbecil. — E se eu não quiser? — Levi... — Clara chama, sussurrando. — O que você está fazendo? — Me sentando. Bom dia, Clara — respondo. João começa a rir mais abertamente e isso atrai alguma atenção. — Tá bom, tá bom, cara. Já entendi, marcando seu território... — Se levantando, ele coloca suas coisas na mesa da frente. Sento-me na cadeira à frente dela e abro um sorriso inocente. — Não vai me dar bom dia? Clara me olha feio e se inclina um pouco para chamar João Paulo.

— Ei, João... — Ela espera até que o piadista se vire. — Eu não sou um poste para que marquem território! — Não é mesmo — responde, analisando o corpo dela sutilmente. Dessa vez é ele quem leva um tapa meu na cabeça. — Mais respeito, idiota. Se toca... João esfrega o lugar em que recebeu o tapa e resmunga. — Desculpa, Clara. Só gosto de provocar o Levi. — Provocar? Não entendo porque isso provocaria ele — responde, se fazendo de boba. — Sei... — João concorda, olhando dela pra mim. A aula começa e não consigo prestar muita atenção, sempre pensando no que ela está fazendo atrás de mim, se está ouvindo a professora ou tão sem foco quanto eu. Abro o caderno e rabisco um bilhete. Passo para trás discretamente. “E então? Vou poder te ver de novo?” Ouço o riso dela ao ler e meio que já espero a resposta que ela me dá. “Você já está me vendo agora.” Escrevo outra vez, sem me preocupar muito com a letra esgarranchada. “Só eu e você, sem plateia.”

Fico ansioso esperando o bilhete. A bolinha de papel pousa na minha mesa. “Quando?” Rabisco logo minha proposta, dessa vez com o coração acelerado. Morrendo de medo do não que virá em seguida. “Que tal hoje à noite? Podemos assistir um filme juntos lá em casa. E antes que diga que fica com vergonha dos meus pais, precisa saber que eles não vão estar lá. Seremos só nós dois e eles não vão chegar de surpresa, prometo.” Dessa vez Clara demora a responder e de repente, entendo o que pode ter parecido e escrevo novamente, com pressa. “Não estou tentando avançar as coisas. É só um filme mesmo, passar algum tempo juntos e talvez eu consiga te beijar de novo, se não tiver sido horrível pra você.” Ouço o arfar dela e sorrio. “Foi horrível pra você?” Acho graça da brincadeira e escrevo logo. Passo o papel dessa vez pela lateral da mesa e quando ela se inclina para pegar, seguro sua mão por um segundo a mais. Clara pega o papel e fico imaginando sua expressão ao ler.

“Um pouco. Talvez deva treinar mais...” Mas quando recebo o bilhete dela percebo que levou a sério. “Me desculpa.” Franzo o cenho para aquilo. Como ela pode pensar que estou falando sério? “Eu estou brincando. Foi perfeito, mas não me nego a continuar treinando todos os dias.” A bolinha dessa vez passa raspando pela minha orelha, mas pego-a antes que caia no chão. “Não sei, não. Parece meio imprudente ficar sozinha com você.” Aguardo um momento ao ver que a professora olha diretamente para nós e assinto vez ou outra para fingir que estou ouvindo. “Não vou te fazer tirar a roupa de novo...” Dessa vez me viro ao entregar o papel, apenas para ter o prazer de ver as bochechas dela se avermelhando. — Prometo me comportar... — sussurro. O rosto dela adquire aquela coloração linda, mas ao invés de se esquivar, Clara parece considerar. — Dirty Dancing? — Ela testa no mesmo tom de voz que eu usei.

— Pode ser. Faço o que quiser, só diz que vai e eu paro de dar tão na cara o que está rolando. Ela olha para o lado e eu acompanho seu olhar até onde Lena está sentada, nos encarando. — Tá bom, agora vira pra frente — Clara pede. Faço o que ela diz. Com a expectativa de passar a noite com Clara meu dia melhora em uma velocidade irreal. O intervalo passa voando. Felipe está grudado na namorada e isso a impede de ficar a vontade para qualquer interrogatório, mas quando a aula termina vejo Lena cercar Clara e a levar pela mão para fora. De longe, fico de olho, tentando entender o que está acontecendo, mas logo elas se separam e relaxo um pouco. Passo pela cozinha, retiro o caixote com os queijos e sigo para a picape. Mando uma mensagem para ela, informando que vou buscá-la as sete e torço para conseguir cumprir. Faço minhas entregas rapidamente. Hoje não é dia de feira e preciso apenas passar em alguns comércios antes de ir para o bar. Quando chego ao Porta Sem Trinca, Mário está com um pano limpando o balcão. — Pensei que fosse furar com a gente — fala, abrindo um sorriso.

— Por que eu faria isso? Paula sai lá de dentro, chegou em casa rápido e já está com o avental pendurado, preparando o almoço. — Porque agora não desgruda da Clara — ela é quem diz. — Não sei de onde tiraram isso. — Sentou com ela na aula hoje, até expulsou o coitado do João — Mário diz. Me viro para Paula que nem tem a decência de parecer envergonhada. — Sua fofoqueira. Fica falando tudo pra ele, é? — Olha, em minha defesa, preciso contar que o Mário fez uma brincadeira muito sem graça, dizendo que se ainda fosse solteiro já teria levado a Clara pra sair. Mário abre a boca e a encara revoltado. — Sua dedo duro! Era só uma brincadeira, Paula. Agora ele vai ficar bravo comigo. Começo a rir dos dois. — Vocês são dois idiotas. — Eu entrego mesmo, não teve graça nenhuma o que você disse. Apenas quando Paula diz isso e nos dá as costas, voltando para dentro é

que percebo que não é brincadeira. — Ela ficou mesmo brava com você por isso? — pergunto sem acreditar. — Você não ficou? — ele questiona, parecendo duvidar. — E por que eu ficaria? — Vai começar de novo com essa história de que não tem nada com a garota? Dou de ombros. — Não, na verdade vim preparado para admitir e pedir que levasse a Clara lá em casa pra mim à noite. Mas você fez uma brincadeira, não faz o menor sentido ficar com raiva disso. Mário assente e faz um gesto de quem também não entende. — A Paula é maravilhosa, mas juro por Deus que não entendo o ciúme que tem de mim às vezes. Preciso aprender a não brincar assim com ela... Minha testa se franze no automático, nem sabia que Paula era ciumenta assim e agora, óbvio que minha ideia não vai dar certo. — Tudo bem. Posso pegar seu carro emprestado então? Porque meu pai vai sair na picape e não queria ter que levá-la na carroça. Vou em casa levar o carro e peço ao meu pai pra me deixar aqui... Se estiver tudo bem pra você.

Claro que ele começa a rir imediatamente. — Seu sem-vergonha! Vai aproveitar a saidinha do seu Joaquim e levar a menina pra lá — fala rindo, mas seu tom é baixo para que Paula não escute. — Não é nada assim, cara. Nós só vamos ver um filme juntos e quando eu vier trazê-la, deixo o carro aqui. — Tá bom, passa aí mais tarde, então. — A Paula não vai brigar com você? — Não, quanto mais envolvidos vocês estiverem, melhor ela vai achar. Mulher é assim, né? Umas viagens estranhas. Penso em dizer que não é muito comum, que não são todas assim, mas me calo. Paula é minha amiga e não quero soar desleal. — Vamos almoçar? — Ah, cara... Não sei, a Paulinha... — Vai ficar nervosa é se você for sem comer, porque já está acabando o almoço. — Sendo assim eu fico, vou até pedir a ela umas dicas para preparar alguma coisa de comer pra Clara. Quando entramos juntos na cozinha que fica atrás do bar, Paula está cantarolando e mexendo algo no fogo, parece bem mais calma.

— Desculpa, Levi. Eu sou completamente apaixonada por esse homem e às vezes saio do ar — ela brinca e aproveita para beijar o marido. Vejo os dois juntos e reflito que se ao menos a raiva dela passar sempre rápido assim, não deve ser muito ruim.

"A história é feita por aqueles que quebram as regras." Homens de Honra

Pego Clara por volta das sete da noite. Depois que meus pais me deixaram no bar, não demorei por lá, logo peguei as chaves com Mário e saí. Passei no mercado antes de ir até a pousada e comprei algumas coisas para comermos que não precisasse de habilidades que eu não possuía: pipoca, refrigerante, chocolates e sorvete, já que Paula acabou não conseguindo me ensinar nada que pudesse aprender tão rápido. Com isso resolvido, enviei uma mensagem a Clara para que me encontrasse na esquina, não sabia se ela queria que seu pai soubesse de seus

planos, mas suspeitei que não. Notei a noite chegar enquanto a esperava, o céu ostentando aquele tom de azul escuro, quase preto e as estrelas contrastando com ele. A lua se erguia cheia, enorme, mesmo na imensidão da noite. As luzes das casas começavam a se acender e os comércios já haviam fechado as portas, exceto por um ou outro, abertos para a venda de aperitivos e bebidas. Ela apareceu pouco depois, incrível em seus jeans justos e a blusa branca; seus cabelos estão soltos, emoldurando o rosto bonito. — Você está linda... — digo logo que coloco o carro em movimento. Clara sorri em resposta. — Obrigada. E esse carro? — pergunta, curiosa. — Meus pais viajaram na picape, peguei com o Mário emprestado. Ela franze a testa, mas se mantém em silêncio. — Que foi? — Vai me trazer de volta, devolver o carro e ir embora como? — questiona. Dou de ombros, realmente não pensei nisso. — Não tenho ideia. Posso pedir a ele que leve de volta, ou posso ir

andando, não é longe, você sabe. Ela assente e coloca as mãos sobre os joelhos. Só então noto que trouxe uma pasta transparente. — O que é isso? Tiro os olhos da estrada e a observo. Clara sorri, um pouco tímida, mas seus olhos escuros assumem um brilho diferente. — Lembra que disse que quero trabalhar com roteiros? Esse é um que estou escrevendo. Quero te mostrar. Se quiser ver, claro. — Tá brincando? Lógico que quero ver. Sobre o que é? Romance? Dessa vez ela emite um resmungo. — Por que acha isso? Só porque sou uma garota? Na verdade, é um suspense eletrizante. Assinto, achando graça. — Eletrizante, é? Está criando expectativas em mim, senhorita. É bom que cumpra com elas. — Vai ver só... — ela responde e não deixo de notar o modo confiante com que fala sobre isso, diferente de como age com relação a todo o resto. Quando chegamos ao sítio, o pensamento incômodo me vem à mente, me lembro de como minha casa é simples e talvez na pressa de sairmos as

coisas tenham ficado um pouco bagunçadas. Mas então recordo a discussão que tivemos a respeito disso e o modo com que ela declarou não se importar com nossas diferenças. Subo os degraus de madeira para a varanda e Clara vem logo atrás. — Ahh, que lindinho! — Ouço-a dizer. — Obrigado! — respondo brincando enquanto abro a porta. Sei bem pelo tom dela, que o elogio não foi dirigido a mim. — Qual o nome dele? Os ruídos de alegria de Al são incontestáveis, mas não posso culpá-lo. Se ela estivesse acariciando minhas orelhas dessa forma, eu ficaria no mesmo estado de alegria. — Ele se chama Al. Vamos entrar — convido. Clara entra e fecho a porta, ouvindo os protestos de Al. Sinto muito, amigo. Não posso dividi-la agora. — Seu cachorro se chama Au? Tipo, au-au? — Ela parece surpresa. — Bom, o nome vem daí, mas pra ser mais sofisticado escrevemos com L. Ela olha ao redor, observando os detalhes antes de se virar para mim, animada.

— Sua casa é uma graça! Adorei a decoração. — Sério? Imagino que seja muito diferente de onde você mora. — Sim! — responde no mesmo tom de antes, como se fosse algo bom. — Eu estou apaixonada pela cidadezinha, as construções históricas e até o calçamento das ruas. Mas aqui... Sua mãe caprichou na decoração, esses pratos de porcelana pintada nas paredes e aquelas coisas de cobre. Uau. Clara parece sincera e fico feliz em ver que ao invés de achar simples e sem graça, acha interessante e diferente. — Senta aí um pouquinho. Vou colocar as coisas na cozinha. Guardo o sorvete na geladeira e coloco o milho de pipoca na panela, com um pouquinho de óleo. Espero não queimar a pipoca e estragar tudo. Ouço seus passos atrás de mim, antes que ela fale: — Pipoca na panela... É mais gostosa, né? Faz tempo que não como assim. — Mais gostosa que o que? — pergunto sem entender. — Que a de micro-ondas. — Ah, pode ser. Mas não sei... Não temos isso por aqui. Vejo a expressão dela de espanto. — Não tem micro-ondas em Vale do Recomeço?

Isso me arranca uma risada. — Claro que temos. Quis dizer aqui no sítio, é muito caro. Mas algumas famílias têm. — Ah, claro... Nem pensei nisso. Mas gosto mais dela feita assim, na panela. Sorrio em resposta, vou ter que aceitar a declaração dela como certa. Termino de estourar a pipoca e despejo em uma vasilha, antes de entregar a Clara; ela retorna para a sala com o pote e se senta no sofá, sem nem reparar na manta que cobre os rasgos, como diz minha mãe. Enquanto isso sirvo refrigerante em dois copos. Coloco um banco pequeno na frente de onde vamos sentar para colocar as coisas e depois ligo a televisão e coloco o filme. Me sento ao lado dela enquanto observamos a abertura do longa. — Mais um para eliminar da sua lista — menciona Clara. — Aposto que não ia ver sozinho. — Está presumindo que eu não goste de romances? Achei que a essa altura já tivéssemos chegado a um acordo de que os estereótipos não funcionam para nós. Ela ri e pega um pouco de pipoca do pote.

— Verdade... O modo com ela sorri me aquece em lugares únicos. A vida não me preparou para sentir algo tão forte por alguém. Principalmente em tão pouco tempo. Quero muito beijá-la outra vez e dizer o que venho sentindo e pensando, mas Clara é diferente das outras garotas, é tímida e contida, por mais que esteja mais solta agora. Não quero assustá-la e perder os avanços que tivemos, então apenas passo meu braço ao redor de seus ombros e ela mesma cuida de se aproximar um pouco e encostar a cabeça em meu peito. Clara Baby já está caidinha pelo professor de dança, a outra dançarina já fez o aborto e a dança final deles está chegando, o momento mais esperado. E Levi ainda não me beijou. Talvez eu não seja muito transparente sobre o que quero, mas Deus! Estou na casa dele, à noite, estamos sozinhos, me encostei nele de uma maneira bem íntima e ele não tomou a iniciativa. — Olha só, como é a sua primeira vez vendo o filme, preciso te preparar, essa próxima cena é épica. Toda garota sonha em reproduzir isso aí e o personagem do Patrick foi de legal para o máximo em apenas um salto, literalmente.

Levi franze o cenho com minha observação e fica um pouco mais atento ao filme, tenho notado que ele está um pouco distraído desde que começou a história. Talvez não goste tanto de romance quanto disse. Johnny Castle salta de cima do palco e começa a incitar as pessoas a dançarem com ele; a protagonista é carregada até o chão pelos outros dançarinos e corre para o salto. Aperto a mão de Levi que está sobre meus ombros. — Ahhh, é muito lindo! Olha o modo como ele a segura, Levi. Como se nunca fosse deixá-la cair. Levi me olha com aquele sorrisinho de canto, mostrando o furinho na bochecha, como se achasse um exagero minha reação à cena. Todos se levantam e começam a dançar e então o filme termina. — Espera... — Ele até retira o braço que está a minha volta e pausa os créditos. — Acabou assim? Dou de ombros com aquele sorriso bobo. — Mas eles ficaram juntos ou não? — Claro que ficaram — respondo, convicta. Levi não aceita bem a resposta. — Como é que você sabe? O filme terminou, os pais dela eram contra a

relação, a garota era menor de idade, o verão chegou ao fim e eles nem moram perto. Precisavam explicar isso direito... Ele se levanta do sofá e o observo curiosa, enquanto ele se dirige à cozinha. Ainda ouço alguns resmungos, mas pouco depois ele retorna com o pote de sorvete e duas colheres. — Vamos nos sentar lá na varanda um pouco... Concordo, mesmo sabendo que já está tarde e eu deveria ir para casa. Avisei meu pai que passaria um tempo na casa de uma amiga, mas não posso voltar tão tarde. Sigo Levi para fora de casa e me sento ao seu lado no chão, no último degrau da escada. A noite está incrível; o céu estrelado e a lua muito cheia, deixando tudo mais claro, mesmo sem uma lâmpada acesa. Levi destampa o pote de sorvete e me estende uma colher; sinto a intimidade do gesto, mas não posso deixar de reclamar internamente de ainda não termos repetido o beijo. — Não gostou do filme? — questiono, mergulhando a colher no sorvete. — Só acho que eles precisavam ter esclarecido tudo, quando duas pessoas querem ficar juntas de verdade, terceiros não devem ser um impedimento. Mas também não podem ficar esperando que alguma coisa

aconteça para resolver a situação, tem que haver um posicionamento de acordo com o que se pode fazer. Só então percebo que todos os meus receios, todas as inibições que ainda tenho com Levi e os pensamentos e sensações que escondo para mim, não têm sentido. Ele está tão envolvido quanto eu estou e o fato de estarmos nos conectando cada dia mais, sabendo que o futuro não tem planos que sirvam a esse propósito, o incomoda tanto quanto a mim. — Ainda tenho mais de um mês aqui. Até lá muita coisa pode acontecer... Levi me fita com aquele olhar intenso, que me desarma e faz minhas emoções se refletirem em meu rosto. — Eu sei que é tudo muito novo e que não deveria ser uma preocupação agora. Mas não quero que você vá embora e também não quero te assustar, eu só... Acho que me apeguei rápido. — Não estou assustada. Não com você ou o que disse, mas confesso que a intensidade disso tudo me assusta um pouco. Dentro de mim. Ficamos em silêncio por um tempo, apenas observando a noite, ouvindo os sons suaves que vêm do campo e refletindo sobre as revelações feitas por nós mesmos. O sorvete serve de desculpa para não dizermos nada.

— Sabe, dizem que aquela estrela pode realizar desejos. — Aponto para o céu, mostrando a estrela mais brilhante que posso ver e inventando isso agora. — Quem sabe se o seu desejo for tão forte quanto o meu e se dermos sorte de querermos a mesma coisa, ela possa fazer algo a respeito. Levi também fita a estrela e vejo a sombra de um sorriso surgir. — Então feche os olhos. Não precisa me contar seu pedido, vamos deixar que apenas a estrela escute — ele pede, o tom um pouco mais baixo, como se partilhássemos um segredo. Faço o que ele diz e sinto sua mão envolver a minha, o pote gelado é posto de lado. — Agora faz um pedido, Clara. Eu faço. Se isso que estou descobrindo é amor, desejo que nunca acabe e que possamos encontrar um meio de fazer dar certo. Levi fica em silêncio ao meu lado e dou a ele o tempo necessário para si. Quando abro meus olhos, os dele já estão bem abertos e seu rosto a uma curta distância do meu. O azul dos olhos dele está mais escuro, sem uma fonte de luz direta sobre eles, mas estão ainda mais brilhantes e determinados. — Vou te beijar... — ele sussurra.

Abro um sorriso. — Finalmente — respondo. A boca dele encontra a minha e sinto seu sorriso contra meus lábios. — Não quis apressar a noite — murmura no meio do beijo. — Não precisava enrolar tanto. — Levi se afasta ainda rindo, para me ouvir. Seus dedos acariciando meus cabelos. — Já estava achando que não queria. — Ficou louca? Nem consegui prestar atenção ao filme direito. — Continua enrolando. Seus lábios voltam aos meus, agora com mais intensidade, como se eu o houvesse incitado. Apoio minha mão na nuca dele, sentindo os fios de cabelo ali, as mãos dele circundam minha cintura de uma maneira diferente. Não é tão gentil quanto da primeira vez, é mais latente, mais forte. Sua língua se encontra com a minha e o beijo fica mais ardente. Não sei o que causa esse desespero dentro de mim, mas sinto a força do meu coração batendo contra meu peito, cada vez mais alto, como se gritasse de desejo. Lentamente uma das mãos dele me solta e começa a passear pelas minhas costas, as pontas dos dedos me causando arrepios e me arrancando

um suspiro de deleite. Desço as mãos para os ombros dele e sinto os músculos por baixo da camiseta, com mais força do que deveria. Sua mão alcança a barra da minha blusa e ele finalmente toca minha pele. O calor do toque, a aspereza da mão dele contra meu corpo, enviam um pedido que meu cérebro entorpecido não consegue recusar. Passo uma perna por sobre as dele, me sentando em seu colo e aprofundando o beijo. Espero estar fazendo isso certo, porque... Não quero mais parar. As mãos de Levi adquirem uma nova força; sinto os calos passeando pela maciez da minha pele, deixando-me em brasa. Arrisco-me a repetir seus gestos, sentir o calor do corpo dele sob a camiseta. Talvez seja o brilho da lua sobre os ombros dele, os braços e o peito, mas quando ele mesmo atende aos meus estímulos e retira a blusa pela cabeça, há uma luminosidade sobre seu corpo que o deixa ainda mais atraente. Um frio se instala em meu ventre. Um receio do que quer que estejamos fazendo, ao mesmo tempo que a vontade de prosseguir e me afundar nas sensações que Levi me desperta apenas cresce. Há um silêncio tão singular. Ainda ouço os ruídos noturnos, grilos e

outros insetos ao longe, mas não há mais nada. Somos Levi e eu e nossos toques desesperados e incertos. Um desejo avassalador, permeado por insegurança e inexperiência. Os lábios dele deixam os meus e tomam meu pescoço. O roçar é frio e quente ao mesmo tempo e me pego suspirando alto. Gosto disso. Meu corpo reage a ele com ainda mais ímpeto e o agarro pelos braços desnudos, arqueando a cabeça e me oferecendo um pouco mais. Uma brisa suave toca minha pele e sinto os dedos dele erguendo minha blusa, ao que não ofereço resistência. Nem mesmo quando a vejo atirada ao chão. Levi afasta o rosto e me fita. Seus olhos queimam por onde passam; ele se detém em meus seios pequenos e de repente me sinto exposta demais, nua dentro do meu sutiã simples. — Você é real? — ele quebra o silêncio. — Levi... — cruzo os braços sobre os seios, tentando me cobrir um pouco. — Isso está meio descontrolado. Eu não sou... Você sabe, não sou assim. Ele me oferece aquele sorriso lindo, capaz de afastar minhas incertezas e me desmanchar um pouco. — Eu também não — responde. — Acha que a cada oportunidade trago

garotas pra cá e as seduzo com um filme de dança? Também sorrio com o comentário. — Não. Eu sei que não, mas eu... — Fico um pouco tensa com a revelação, mas não posso esconder. — Eu nunca fiz isso. — Isso o que? Sexo? — ele pergunta e apenas me calo. — Olha, não deveria dizer isso, nem sei se te tranquiliza ou piora tudo. Mas eu também não fiz. Franzo o cenho, porque isso sim me pega de surpresa. Mas também não é como se houvesse tantas garotas por aqui e Levi não tem ainda dezoito anos. — Hum, certo... — respondo. — Mas já tinha saído com outras garotas? Um encontro ou algo assim? Ele assente. — Tive encontros e fiquei com algumas meninas, mas nunca tive tanta vontade de avançar as coisas, como agora. Mordo o lábio, ponderando se já não me abri o suficiente, mas decido ser sincera. Não sei o que tem nele, se é quem ele é ou se é o que quero quando estamos juntos, mas sinto que antes de qualquer passo, preciso ser honesta. — Bom, eu não. Aquele beijo no lago, antes dele eu nunca havia

beijado alguém. Nunca venci a vergonha para demonstrar interesse por outra pessoa e, não sei... Só não aconteceu antes. Levi parece mais sério de repente. — Isso quer dizer que fui o único a te beijar? — Incomoda você? Minha inexperiência? Ele solta um riso engasgado. — De certa forma, sim. Não pode me dar uma notícia dessas e esperar que eu não aja como um desses territorialistas e te marque como minha garota. Só minha. Seus dedos se afundam um pouco na carne das minhas costas. — Então não é um problema? — Abro um sorriso com a brincadeira. — Não, mas também não vai ser se não quiser mais continuar com isso. Reflito um pouco antes de responder. É lógico que eu o quero, tenho quase dezoito anos e não sei até quando vou permanecer virgem se não for agora. Provavelmente até os cinquenta. Levi foi o único que me despertou a vontade, o desejo e me fez sentir confiança o bastante para querer prosseguir, e saber que nenhum de nós tem outras experiências me dá ainda mais certeza. Ainda assim não temos

garantia de nada além do que sentimos e tudo está acontecendo rápido demais. — Eu quero, de verdade, mas podemos ir um pouco mais devagar? Ele assente, suas mãos enlaçam minha cintura e sua cabeça pousa sobre meu peito em um abraço apertado. — Preciso te levar embora... Eu queria tanto que você ficasse. Não quero te soltar — sua voz abafada me alcança. Eu só sei pensar que também não quero deixá-lo. Como que em resposta à minha preocupação, meu celular vibra sobre a tábua de madeira do chão da varanda. O visor se acende com o nome do meu pai e eu atendo, fazendo sinal para que Levi fique quieto. — Oi, pai... — Clara, está tarde. Como vai vir embora? — Hum... Não é muito longe, logo chego aí. — Devia ter ligado, filha. Eu iria te buscar, agora acho que deveria dormir aí se estiver tudo bem pra sua amiga. Olho para Levi e percebo pelo sorrisinho bobo que ele me dá que está ouvindo a conversa toda.

— Não, pai. Realmente é perto. — Você não disse que era fora do vilarejo? Aqui não é um lugar violento, mas não pode andar quase meia noite pela estrada de terra, Clara. Pode aparecer uma cobra e me disseram que existem várias onças por aqui. Quer que eu fale com os pais dela? Levi me solta e une as duas mãos em súplica diante de mim. Estreito os olhos para ele e suas más intenções. — Não, não precisa pai. Eles já tinham oferecido para que eu dormisse aqui, mas rejeitei não querendo te preocupar. Mas se pelo senhor está tudo bem. — Fazer o que né, Clara? Confortável não fico, mas preocupado mesmo ficaria com você andando por aí a essa hora. Francamente, era só ter me dito antes. Agora já me troquei. — Não tem problema, pai. Amanhã nos vemos tá bom? Boa noite!

“Às vezes a ideia mais simples faz a maior diferença.” A Corrente do Bem

Passar a noite com essa garota nos braços é surreal, mal posso acreditar que isso vá realmente acontecer e sinto certa ansiedade permeando o restante do nosso tempo na varanda. Ainda assim, agora que o tempo não ruge contra nós, nossos gestos carregam um pouco mais de calma que antes. Clara se senta ao meu lado, depois de vestir a blusa, entrar na casa e voltar com a pasta que havia trazido.

— Vá em frente, mas se não gostar... — Ela pausa a frase no meio, pensando antes de concluir. — Ia dizer que preferia que não me dissesse, mas não é verdade. Prefiro saber se estou perdendo tempo com sonhos bobos. Seguro a pasta, mas ela não solta. Ouço um riso baixo e vejo-a desviar os olhos para longe dos meus. — Está nervosa? — Óbvio que sim, estou entregando meu coração nas suas mãos... — brinca, mas sinto o quanto de verdade há em cada palavra. Finalmente ela cede e abro a pasta, retirando as folhas. O texto foi escrito à mão e a letra é bonita e bem nítida. — O assassino das segundas chances? — questiono, me referindo ao título do roteiro. — É, vai entender logo... Clara se levanta e caminha alguns passos à frente, as mãos nos bolsos da calça, fitando o nada com tanta atenção que poderia pensar que realmente vê alguma coisa, mas a verdade é que está me dando tempo e privacidade para reagir aos seus escritos. Volto minha atenção para o texto e aos poucos realmente vou compreendendo do que se trata. A história gira em torno de um serial killer que mata mulheres que vão se casar pela segunda vez, divorciadas ou viúvas,

as vítimas são pessoas que decidiram dar uma segunda chance ao amor. A detetive que investiga o caso não percebe isso de imediato e tenta encontrar um padrão que não se torna visível facilmente, já que a idade das mulheres, profissões e todo o resto não são semelhantes. Com diálogos precisos e reviravoltas bem construídas, o enredo é incrível e passo uns vinte minutos ou mais imerso na atmosfera que Clara construiu. — Não acredito nisso! — exclamo em um determinado momento. Ela apenas se vira e sorri, mas continua onde está, aguardando que eu conclua. — Clara... Dessa vez ela retorna para perto de mim, caminhando devagar. Vejo seus calçados afundarem-se na grama alta, até que ela chega diante da escada e se senta ao meu lado. — É muito bom! Eu ia curtir muito ver um filme com essa trama, inclusive vou colocar na minha lista e um dia vamos nos sentar juntos e assistir a isso aqui na televisão. Começo a reconhecer suas manias e essa, de morder o lábio ou mesmo a bochecha por dentro, demonstra seu receio e a empolgação, ao mesmo tempo.

— Você gostou mesmo? — Ela passa a mão pelos cabelos, um pouco tensa apesar da confiança com que falou sobre o enredo mais cedo. — Se gostei? Esse final é digno de um Óscar — respondo, fazendo um gesto expansivo. — O assassino ali, o tempo todo... E saber que a própria investigadora poderia... Caramba, como foi pensar nisso? Clara abre um sorriso imenso. A lua clareia suas feições e há muitas estrelas essa noite, mas nada ilumina tanto esse momento quanto o brilho de alegria que emana dela. — Nunca mostrei a ninguém, meu pai não quer que eu faça isso. Já te contei essa parte difícil da minha vida... Aquiesço, me lembrando do que falamos no lago outro dia. — Trabalhar com o que te faz bem, é o segredo da felicidade e do sucesso. Você pode ser um profissional bom, mediano, em várias coisas que se dispuser a fazer. Mas quando se trabalha com amor, ninguém é tão bom quanto você, e o reconhecimento vem. Você não precisa fazer o que dá destaque, mas se destacar no que faz, entende? Ela balança a cabeça com veemência e seus cabelos a acompanham. — Sim, concordo com cada sílaba. Quero fazer o que eu amo e vou lutar por isso, mesmo que contrarie as vontades dele... — Faça isso, Clara. Eu queria poder lutar assim, descobrir o que

realmente quero fazer da minha vida, mas infelizmente no meu caso não tenho opção. Por sorte eu amo esse lugar e o que ele representa. Conversamos assim por algum tempo; se foram minutos ou horas, não sei dizer. Quando estamos juntos não consigo lembrar do tempo, apenas existimos. Entramos um pouco mais tarde e a levo para meu quarto. Clara observa tudo com tanto interesse que não me sinto constrangido pelo lugar pequeno ou minhas roupas espalhadas. Nos deitamos na cama e ainda falamos sobre nossos sonhos e planos para o futuro e confesso a ela que, se eu pudesse, não hesitaria em me mudar para mais perto da capital. Clara assume que quer o mesmo e em nosso desespero para mantermos o que temos construído, prometemos esforço mútuo. Ela aninha a cabeça no meu peito e o gesto espalha calor por todo meu corpo. Não a sensação que vem com a luxúria e o desejo, mas aquele fogo que aquece a alma e faz brotar uma chama de esperança, de sonhos... — Você tem responsabilidades aqui — ela afirma e balanço a cabeça, concordando. — Eu não tenho. Vale do Recomeço pode não ter uma faculdade que eu possa cursar, mas a cidade vizinha tem. Meu coração dispara ao ouvir suas palavras, a esperança de que ela

esteja dizendo que podemos fazer dar certo e o medo de estar apenas ouvindo o que desejo. — O que quer dizer? — Que posso me mudar para mais perto. Estudar por aqui e dessa forma vamos conseguir passar mais tempo juntos. Ergo um pouco o rosto, fitando-a para ter certeza de que fala a sério. — Faria isso? Meu pulso está acelerado, tento fixar meus olhos no rosto dela e aparentar uma serenidade que estou longe de sentir. — Meu pai jamais concordaria, mas faço dezoito anos em duas semanas, sabia? Na outra sexta-feira. Depois disso vou trilhar meu caminho e, bem, não estou decidindo por você, Levi. É apenas uma alternativa a ir embora e fingir que nada disso aconteceu. — Vamos fazer dar certo — respondo. — Não é comum o que temos aqui, Clara. Muita gente vive uma vida inteira e não sente algo assim, e quando acontece... — Eu seria uma idiota de deixar que me escapasse, Levi. Sabe... Estou sozinha desde que me lembro; minha mãe faleceu quando nasci, morreu no parto, tiveram várias complicações e ela não resistiu. Meu pai é assim, como você vê. É um bom pai, mas é distante e só pensa no trabalho e quando

estamos juntos discutimos muito. Não tive irmãos e nem outros parentes por perto e cresci apenas com os funcionários da casa, pessoas ótimas, mas nada muito pessoal. Você e eu, isso, é a primeira relação de verdade que tenho. Minha resposta às suas confidências é outro beijo e, por mim, posso fazer isso eternamente. Fizemos planos e tecemos nosso futuro juntos, nos beijamos e nosso recém descoberto amor, embalou nosso sono. Não tivemos uma experiência sexual naquela noite, mas nos unimos de muitas outras maneiras. Quando o sol nasceu e a luz inundou o quarto, nenhum de nós despertou e foi assim que perdemos a hora. Clara acordou antes de mim, já passava das nove. Ela me despertou com seus beijos suaves e os cabelos cheirando a shampoo esparrados sobre mim. — Levi... Seus pais voltam que horas? Acorda! Eles não podem me encontrar aqui. Abro apenas um olho, me certificando de que ainda é real. — Não voltam agora, linda. Apenas à noitinha. Isso faz com que ela relaxe um pouco.

— Perdemos a hora — Clara comenta, voltando a se deitar. — Que tal então tomarmos um café antes que eu te leve à cidade?

20 DE NOVEMBRO DE 2005

A semana passou voando. Levi e eu nos encontrávamos sempre que podíamos, sozinhos e trocávamos bilhetes às escondidas durante a aula. A verdade é que todos desconfiavam do que estava acontecendo, mas ninguém tinha certeza. Nos apaixonamos mais a cada minuto roubado. A cada beijo as escondidas. Meu pai acabou reforçando as regras, meus horários e passou a me esperar acordado, desconfiado. Felipe e João não perdiam uma oportunidade de brincar conosco e Lena nos olhava de um jeito medonho. Eu fugia dela sempre que possível e evitava suas tentativas de aproximação e amizade de um modo que já não era sutil. No domingo de manhã fui à igreja, assim como os outros. Até mesmo

meu pai compareceu à missa e após o sermão, o padre passou a falar sobre a construção da nova igreja. — Pensando em retomar a obra, nossa querida Lena Aguiar sugeriu uma quermesse e, como faz tempo que não temos uma e a época é apropriada para as festividades, tive que concordar com a sugestão. Eu nunca participei de algo assim, mas já vi em filmes e tenho uma vaga noção do que se trata, mas ouço atenta para compreender melhor. — O parque vai estar na cidade durante o final de semana, as senhoras vão cuidar dos doces para a venda e os rapazes dos jogos. E todo o dinheiro arrecadado será convertido em doação para a obra. Ainda nesse espírito, teremos o leilão de tortas. O burburinho se instaura, consigo ouvir trechos empolgados de conversa por todo canto e vejo meu pai fitar o padre com desdém. — As moças solteiras vão preparar suas especialidades e as delícias serão leiloadas — o reverendo prossegue. — Os rapazes darão lances e o que der o maior poderá partilhar a torta em um passeio com a responsável por ela. Quem sabe surjam doces casais dessa brincadeira? As pessoas acham graça na piadinha e o próprio padre ri de si mesmo. Meu pai assiste a cena com o cenho franzido e acaba rindo também. — Essas pessoas... — ele sussurra, inclinando-se para mim. — Não

vejo a hora de voltarmos à civilização, Clara. Os moradores daqui são muito limitados. Olho ao redor, tentando compreender o motivo do que ele diz, mas não vejo nada fora do lugar, nada de estranho. — Por quê? — pergunto, por fim. — Como “por quê”? Quermesse? Isso é coisa do século passado. Leilão de tortas com encontros de brinde? Muito me espanta que não veja o absurdo nisso. Não vai me dizer que é machismo? É a minha vez de franzir o cenho e refletir. — Na verdade, não. Está mais para uma brincadeira, pai. É flerte, os rapazes vão comprar as tortas para sair com as garotas, já elas vão torcer para que alguém de quem gostem acabe comprando. Depois disso vão se conhecer melhor, mas ninguém é obrigado a nada, é inocente. Ele ergue a sobrancelha, julgando minha defesa. — Quer dizer que você vai participar disso? Faça uma torta, Clara. Saia com um desses caipiras, quero ver se tem essa coragem. Se fosse alguns dias atrás eu com certeza me negaria. — Mas é claro que tenho. É pela construção da igreja. — Você nunca fritou um ovo — ele contesta.

— Mas posso aprender — sussurro de volta, começando a me irritar. — Veremos. Já tentei te apresentar os melhores partidos do nosso meio e você não quis. Quero ver até onde vai com isso. Não são as palavras, mas o sarcasmo presente no tom de voz dele que me incomoda. Então ao final da missa, quando Lena me procura, não fujo. Preciso me inscrever no leilão e ela é a responsável pelas inscrições. — Até que enfim você apareceu — diz, arrumando os cabelos ruivos em um rabo alto. — Desculpe. Andei ocupada... — Tento me esquivar com uma resposta vaga. — Certo — Ela me fita com curiosidade —, e então? Vai fazer sua torta? — Vou sim. — Dou de ombros, como se não fosse nada. — Tudo pela construção da igreja. Lena anota meu nome na lista que tem nas mãos, aquiescendo com um gesto de cabeça. — Vou fazer torta de maçã... — Ela olha para os lados enquanto confidencia. — É a preferida do Levi. Aposto que vai dar lances por ela e aí, se ele ganhar, Felipe não vai achar ruim e nem desconfiar de nada. Tento conter a irritação ao ouvi-la. Enquanto não puder revelar a todos

que estamos juntos, vou continuar passando por isso. Só mais alguns dias, na verdade exatamente no dia, já que o leilão e meu aniversário vão acontecer na mesma data. — Sei — respondo. — Vou pensar em algo legal. Chocolate talvez ... — Tem que ser de limão. Já tem alguém com chocolate... — Ela festeja batendo palmas, como se fosse uma grande coisa. — E também, limão é o sabor que o Felipe mais gosta, assim você passa o tempo do encontro com ele e eu fico despreocupada de que alguma garota o paquere, já que somos amigas. Quase reviro os olhos, mas me controlo em tempo. Essa garota é a Regina George de Vale do Recomeço e ela vai surtar quando ficar sabendo sobre mim e Levi. Não vejo a hora. Vou esperar a sexta-feira e então contar ao meu pai sobre meus planos e depois disso Lena vai ter que entender que suas chances com Levi são nulas e parar de bancar a louca. — Tudo bem, que seja limão. Ela assente, feliz. — Sabia que ia entender. Quer se encontrar comigo para fazermos as tortas? Podemos ir à loja da Cátia depois. Ela recebeu vestidos lindos e você vai precisar de um vestido novo para a quermesse.

— Ann, claro. Te ligo depois — respondo, me esquivando. — Combinamos alguma coisa. Quando dou as costas à Lena e saio à procura do meu pai, o encontro conversando com o médico da cidade, que por coincidência é o pai da Lena. Os dois parecem estar se dando bem e ele não nota quando, ao invés de esperá-lo, me aproximo de onde Levi está com os amigos. — Ei... — cumprimento, disfarçando meu sorriso. Levi também sorri ao me ver e se afasta de João e Felipe, aproximandose mais de mim. — Oi, linda. Olha, não surta, Clara e não tente me matar depois. Demoro um tempo para entender o que ele diz e só me dou conta do que está acontecendo quando noto uma senhora de cabelos claros se aproximando de nós, atendendo a um chamado dele. — Mãe, essa é a Clara. Minha.... A palavra morre nos lábios dele já que não temos um termo definido ainda, mas sabemos o que somos e pelo sorriso no rosto da mulher, ela também sabe. — Ah, como você é bonita! — Ela abre os braços e me envolve em um abraço apertado. — Levi fala tanto de você. O tempo inteiro... — Mãe, para com isso... — ele reclama e acabo rindo, apesar do

desconforto. — É um prazer conhecer a senhora, dona Maria. Ele também me falou muito bem de vocês todos. Apesar do pânico que pensei que sentiria, não é bem assim. Ela não me deixa nervosa e nem o pai dele, que observa a cena disfarçando um risinho e cochichando com a Lalá. A garotinha acena para mim e sopro um beijo para ela. Nesse momento sinto uma mão pousar sobre meu ombro e a voz do meu pai reverberar atrás de mim. — Vamos, Clara? — chama, ignorando totalmente o fato de que estou com outras pessoas. — Pai, esse é Levi e essa é a mãe dele, Maria. Meu pai acena com a cabeça, cumprimentando-os, mas percebo o olhar que direciona a Levi, o medindo de cima a baixo. Isso gera em mim certo incômodo, mas a verdade é que nunca fui tola ao ponto de pensar que ele apoiaria ou aceitaria Levi, então não é nenhuma surpresa. — Vamos? — insiste. — Eu já vou. Pode me dar um minuto? — peço, tentando soar gentil.

Apesar do modo de pensar e de algumas falas arrogantes, meu pai não é de fazer grosserias, então logo assente e se afasta. Me viro para eles outra vez. — Desculpem pelo meu pai, ele não é muito sociável. Foi um prazer conhecê-la, dona Maria. Pela expressão dela, o ocorrido não a incomodou tanto quanto a mim. — Não tem problema, querida. Apareça no sítio qualquer dia desses, assim poderemos conversar melhor. Noto que há sinceridade no convite e, mesmo que assim como todo o resto, isso também seja rápido demais, me vejo concordando. — Eu vou. Muito obrigada por convidar. Com um último aceno, ela se afasta, caminhando para junto do marido e então me volto para Levi. — Olha, me inscrevi no leilão de tortas... Levi tenta esconder de mim uma risada, mas não se sai muito bem. — Vai cozinhar? — pergunta me olhando divertido. — Soube que sua torta preferida é de maçã. Mas me deram limão. Ele faz uma careta. — Odeio limão...

Ergo a sobrancelha, esperando que ele se toque. — Mas de que isso importa? Vou comer inteira, lógico. Quem precisa de maçã? Aquiesço, concordando e ouço sua risada alegre. Me despeço dele, morta de vontade de poder beijá-lo ou ao menos encostar minha mão na sua, mas não o faço. Aceno para os pais e a irmã dele à distância e deixo a igreja com um único pensamento: preciso aprender a fazer uma torta.

“A coisa mais importante que você pode aprender é amar e em troca, amado ser...” Moulin Rouge

26 DE NOVEMBRO DE 2005

Por mais que esteja ciente de que estou agindo por impulso, não posso deixar de celebrar a pequena vitória. Só em pensar que vou levar essa torta para o leilão e que Levi vai me escolher diante de todos, ainda que odeie limão, me sinto exultante.

Reconheço que, se Lena já tinha suas desconfianças sobre nós, depois de hoje elas se tornarão certezas. Não poderia haver outro motivo, que não o encontro, para que Levi escolhesse dar lances por algo que detesta, mas isso pouco importa, afinal, hoje faço dezoito anos e posso tomar minhas próprias decisões. Dona Ilda me ofereceu um de seus panos de prato bordadinhos para cobrir a forma, depois de me ensinar uma receita sua, de família. Meu pai apenas ergue os olhos do seu jornal ao me ver passar rumo à saída. — Boa sorte — diz, tentando parecer sincero, mas ouço o riso em seu timbre. Ele não me leva a sério. Caminho na direção da igreja, passando por ruas praticamente desertas, mas logo que viro a esquina, chegando ao local da festa sou surpreendida pela decoração em destaque. O coreto que fica no meio da praça está todo enfeitado com os mais variados tipos de flores e das árvores descem lanternas, que mais se parecem com balões iluminados. Pequenas luzes estão espalhadas por toda a praça, sobre as mesas brancas dispostas ao redor do palco, toalhas xadrezes colorem os tampos

delas e vasinhos de flores finalizam os adornos. Geralmente nesse horário a cidade está se preparando para adormecer, mas hoje Vale do Recomeço está tão viva quanto uma metrópole, considerando a diferença no trânsito e no evento. Para onde quer que olhe, vejo mais e mais pessoas chegando, aglomerando-se aqui e ali. Atrás da igreja posso ver as luzes do parque e a roda gigante já em funcionamento. As barracas formam um corredor no meio da rua, dos dois lados e seguem até o parque. Elas já fervem com cores e cheiros, com risadas e conversas animadas. — Então é hoje que você conhece Vale... Observando tudo, bem no meio da rua lotada, não percebo a aproximação de Mário e Paula, até que a voz dela me chama a atenção — Estou impressionada — respondo. — Não tinha nada aqui de manhã! E de onde saiu tanta gente? Nunca vi metade dessas pessoas! Paula sorri diante do meu assombro. — É assim mesmo. Não temos muito agito por aqui, então quando acontecem as festividades e os eventos nos feriados, ninguém perde. Já deu uma olhada nas barracas? Pode achar muita coisa legal por uma pechincha. — E não pode deixar de comer o pastel da Gertrudes. No final da rua — Mário aponta na direção da fileira e eu assinto.

— Podem deixar. Vou provar tudo e garimpar umas coisinhas. A propósito, sabem onde deixo minha torta? Paula olha de mim para a forma, notando-a pela primeira vez. — Vai participar do leilão? Tem que ficar atrás do coreto com as outras garotas. Já vai começar! Aceno para os dois, me despedindo e saio correndo na direção indicada. Ao chegar, me deparo com um grupo de garotas, todas usando vestidos floridos e enfeites nos cabelos, parece uma cena saída de um filme de 1960. Meu plano de discrição foi por água abaixo, porque agora meu vestido preto vai se destacar como se fosse um ponto de luz — uma luz apagada, talvez. — Ah, ela chegou! — Lena sai do meio delas e caminha na minha direção. Noto primeiro o vestido rodado, estampado com grandes flores vermelhas. Depois os cabelos que foram enrolados em grandes cachos. Os saltos enormes e a maquiagem bem-feita não deixam dúvidas de que ela veio para a guerra. Sinto muito por ela. Ou não, porque a verdade é que é maravilhoso não ter que lutar por Levi, se fosse uma disputa eu não teria chances contra a beldade interiorana aqui, mas é como se nossas almas tivessem se escolhido e

não há espaço para outras pessoas. — Pensei que tivesse desistido! O padre já vai nos chamar ao palco... — Apenas me atrasei um pouco — respondo. Minha mente por outro lado já começa a tecer vários cenários nos quais Levi não chega em tempo e acabo em um encontro com um completo estranho. — Boa noite, Vale do recomeço! — a voz do padre ecoa pela praça. — Vamos dar início à nossa noite com o leilão das tortas. Quero chamar ao palco, nossas concorrentes de um a dez, respectivamente. Lena enfia um cartaz pela minha cabeça e vejo o número cinco estampado no meio dele. — Boa sorte pra nós! Ela é a primeira a subir, seguida pela garota com o número dois e assim por diante. Quando estamos todas no palco, o padre retoma seu discurso. — E onde estão nossos rapazes de sorte? Se aproximem mais um pouco, meus olhos não enxergam tão longe... Reconheço Felipe em um dos cantos e João ao lado dele. Avisto outros garotos que reconheço do curso de verão e alguns que nunca vi antes. Mas não encontro Levi.

Acompanho com os olhos a pequena multidão abaixo do palco e quando finalmente volto-me outra vez para onde estão Felipe e João, vejo-o se aproximando, abrindo caminho e posicionando-se ao lado dos amigos. Levi veste uma das suas camisetas sem estampa, calças escuras e os cabelos estão penteados de um jeito diferente. Não que isso faça alguma diferença, ele é lindo independente do que use ou vista. — Vamos começar por essa linda garota ruiva! Digo, torta de maçã — o padre brinca e ri sozinho, o som amplificado pelo microfone. — Lance inicial de dez reais. Quem dá mais? É uma maravilhosa torta de maçã! A primeira plaquinha se ergue e vejo Levi com o braço levantado. Sinto uma pontada no peito que reconheço como traição. Por que ele faria isso? — Quinze. Alguém dá mais? Felipe ergue a dele com um sorriso animado. — Vinte reais. Deixem de ser muquiranas, vamos construir a igreja desse jeito? Quem dá mais? João ergue sua placa. — Vinte e cinco para João Paulo. Alguém oferece mais? Não? Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... Felipe ergue a placa duas vezes seguidamente.

— Trinta reais? Vendida para nosso querido Felipe. Garantiu a namorada e a torta, meu rapaz. Vamos para a número dois, com lance inicial de dez reais. Observo o mesmo joguinho anterior acontecer, alguns meninos dão lances aleatoriamente no início apenas para aumentar o valor da torta, mas no fim eles se retiram e deixam que o interessado arremate e então entendo o porquê de Levi ter dado o lance inicial. Quando chega a minha vez, ouço o padre Fernando todo animado: — Ah, temos aqui a nossa forasteira e a torta de limão. Minhas mãos tremem um pouco segurando a forma, felizmente tenho companhia no palco e a atenção não é toda minha, mas ainda assim certo desconforto me toma. — Dez reais. Quem dá mais? Levi ergue a placa dele e abre um sorriso pra mim. — Quinze, temos quinze. Será que alguém dá vinte? Fico presa no olhar de Levi e esqueço as outras pessoas me encarando, consigo me acalmar um pouco. João oferece vinte reais e o padre continua o joguinho até dobrar o valor. João se esquiva e Levi arremata a torta de limão odiada.

Quando os lances chegam ao fim — não sem antes João conseguir um encontro e uma torta — descemos todas por onde subimos e me preparo para o confronto com Lena ao vê-la caminhando na minha direção, seus pés tocam o chão com mais força que o necessário. No entanto, antes que ela me alcance, Felipe surge de algum lugar e a abraça por trás, impedindo qualquer conversa inconveniente. Levi aparece instantes depois, sorrindo daquele jeito que me revira toda. — Me explica porque eu acabei de pagar quarenta reais por uma torta que não vou comer? — Pagou pelo encontro... — contesto, também achando graça. — Aí está outra questão. Você sairia comigo gratuitamente, certo? — É pela construção da igreja, Lê. E deixe de ser convencido. O sorriso dele se alarga e o meu acaba por segui-lo. — Que foi? — É a primeira vez que me chama assim. Gostei. — Acho que conquistei esse direito. Mas e agora? Vou ter meu encontro ou não? — Claro que vai! Vamos começar ignorando essa torta e depois vamos

para o parque, comemorar seu grande dia. Tenho um presente pra você... Apesar da curiosidade e de estar feliz em ver que ele se lembrou do meu aniversário, não cedo com relação a torta. — Não vai ignorar coisíssima nenhuma. Gastei muito tempo na cozinha, quero que ao menos experimente e diga que detestou. Levi faz uma careta, mas não me contraria. Desenrolo a faca que trouxe junto à forma e parto um pedaço bem aqui, no meio da praça. Ofereço-o a ele sem muita pompa, não temos guardanapos ou talheres e pratos, então o jeito é comer com as mãos. Mordendo um bom pedaço, vejo-o mastigar calmamente, depois engolir e só então me dar um indício do que achou. — Olha, não está horrível como imaginei que fosse ser. Se eu estiver com muita fome, dá pra comer. Faço uma careta e retiro um pedaço para experimentar. Quando mordo, o mousse de limão se derrete em minha boca; está deliciosa, a culpa por Levi não gostar não é minha, é apenas da sua aversão ao sabor. Ele começa a caminhar e ando ao seu lado, segurando a torta com firmeza, reticente em deixá-la para trás mesmo sabendo que não vamos comê-la agora. — Ei, onde estão indo?

Levi para e faço o mesmo. São Mário e Paula outra vez. — Para o parque — ele responde. — Sabiam que hoje é aniversário dessa moça aqui? Vou mimá-la um pouco e, quem sabe, com sorte, consigo alguma coisa. Abro um sorriso com a brincadeira. Como se ele precisasse me mimar para ter algo de mim. — Você não me disse isso, Clarinha! — Paula declara, bem animada. Ela avança sobre mim em um abraço que me pega de surpresa. — Parabéns! Que coisa boa. Anda, amor! Dê os parabéns a ela. Mário me estende a mão, um tanto sem jeito e eu retribuo. Levi se aproveita do momento para me tomar a torta. — Aqui, Paula. Fiquem com isso. A Clara fez para o leilão. Abro a boca para questionar, horrorizada ao vê-lo se livrando do meu trabalho. — Como vamos aproveitar a noite carregando a forma pra todo lado? — ele me interrompe já imaginando o que ia dizer. Mas ainda não estou certa de que foi uma atitude legal. — E como vou segurar sua mão? — questiona, acabando com minhas dúvidas.

— E tudo bem pra vocês? — pergunto, porque de repente parece que estamos apenas transferindo um incômodo para os dois. Mário acena que sim, já com um pedaço inteiro na boca e Paula parece constrangida com a atitude do marido, mas não diz nada. — Vemos vocês depois... — Levi avisa, antes de segurar minha mão com força e sair me arrastando na direção das barracas. — Vamos na roda gigante? — convido. — Lógico que sim, mas posso te mostrar nossas atrações da feira antes? Concordo e basta um incentivo meu para que ele volte a andar desenfreado em meio às outras pessoas. As barracas são iluminadas por pequenas lâmpadas no centro dos toldos e em uma espécie de mesa os produtos são expostos: roupas, sapatos, bijuterias, artesanatos de todos os tipos. Passamos pelas tendas de comidas típicas da época do ano em que estamos e Levi continua andando. Quando estamos quase deixando a feira, ele para diante de uma barraca diferente. Na frente dela há uma cortina escura e desenhada sobre ela, estrelas douradas. No alto do toldo, uma placa brilha com as letras grandes: Madame Suzinda. — O que é isso?

— Madame Suzinda é uma cigana, ela mora aqui em Vale desde que a cidade surgiu, ou antes disso pelo que dizem. Ergo a sobrancelha, descrente. — É uma múmia? — Quase — ele responde, rindo. — Ela é como uma bruxa: advinha o futuro e já que hoje você completa dezoito anos e eu tenho ótimas notícias para te dar, vamos entrar e ver o que o destino reservou pra nós dois. Olho dele para a tenda, tentando compreender a história toda. — Pensei que ciganos fossem nômades... — Não essa aqui. — E o padre Fernando está de acordo com essas adivinhações na festa da igreja? Pensei que os padres odiassem essas coisas de cartas e ler mãos. — Eles odeiam, mas ninguém odeia Suzinda e o padre gosta dela... E tem medo também — confidencia em tom de sussurro. — Certo. Então vamos... Você disse que tem uma surpresa? — É, vamos ver o que Suzinda vai dizer e depois te conto os fatos. Levi abre a cortina e me puxa para dentro da tenda escura. Há um grande tapete espalhado pelo espaço e diversas almofadas coloridas sobre ele. Um cheiro forte de incenso preenche o lugar, dando aquele toque

místico. Dois grandes lampiões estão acesos ao fundo da tenda e entre eles, sentada no chão, está a mulher. Seus longos cabelos brancos estão presos em uma trança e os olhos fechados, enquanto os lábios murmuram uma prece inaudível. Pelas rugas ao redor dos olhos e nas mãos magras, ela deve ter uns noventa anos. — Sentem-se... Levi continua me conduzindo, ele se senta em uma das almofadas no chão e faço o mesmo, colocando-me ao seu lado. Suzinda inclina seu corpo para frente e inala o ar ao nosso redor ainda sem abrir os olhos. — É o menino dos Vilasboas. E quem é sua amiga? — Já sabe como funciona, Suzinda. Não falo nada que possa te dar pistas. A velha solta uma risada engasgada. — Ainda não acredita em mim. — Faço isso para não duvidar — ele responde. — Tudo bem, menino. O que querem saber? Ele me olha, seus dedos ainda envolvem os meus e me transmitem calor, mas são seus olhos azuis que me queimam por dentro.

— O que queremos saber? — refaz a pergunta dela, para mim. Penso por um momento. Não acredito realmente nisso, mas se a questão é o nosso futuro e o que ele nos reserva, não quero saber da minha vida e outros aspectos dela. Quero saber de nós. — Apenas se vamos ser felizes. Juntos — digo por fim. O rosto da mulher se move na direção da minha voz e ela enfim abre os olhos, apenas para revelar córneas brancas e opacas. Estremeço. A velha inclina a cabeça um pouco e depois o corpo, como fez com Levi e inala o ar ao meu redor. Parece pensativa, reflexiva, mas por fim abre um sorriso sagaz. — É a menina da cidade. Ouçam bem, pensem na vida como uma estrada, um caminho cheio de obstáculos, cascalho e pedras maiores. Mas também recheado de paisagens bonitas, uma brisa refrescante e um destino maravilhoso. A felicidade não é apenas o destino, ela deve ser encontrada no percurso. Ela se cala e penso um pouco em suas palavras. Não discordo de maneira alguma, mas ainda não responde o que... — Sim, vocês vão ser felizes juntos — ela diz, antes que eu questione algo mais. — Agora podem ir, vivam a noite. Ambos nos levantamos satisfeitos. Acreditando ou não, ela nos deu o

que viemos buscar: esperança. Levi deposita algumas moedas em uma tigela perto da saída e juntos deixamos Suzinda para trás. — E então? O que achou dela? — pergunta. — Ela é cega? Ele assente. — E como sabia que éramos nós? Levi dá de ombros. — Não tente explicar o inexplicável — responde. Levi é sempre tão racional, que não consigo discernir se é uma grande piada ou se realmente acredita nisso. Nos distanciamos da feira e entramos no trilho de terra que leva ao parque atrás da igreja. Levi me leva até um jogo de tiro ao alvo, prometendome um urso como prêmio. Não leva cinco minutos para que cumpra a promessa e me entregue um enorme ursinho branco, que segura um coração. Fico impressionada com a habilidade dele com a espingarda e talvez ainda mais com o fato de ter uma espingarda aqui, mas abraço meu presente extasiada.

Nunca, nem em meus sonhos mais insanos imaginei encontrar alguém como Levi na minha tediosa viagem de verão. Jamais pensei que o encontraria, me apaixonaria e viveria dias tão intensos. — Obrigada, Lê. Ele é lindo... Ele se aproxima e pousa as mãos na minha cintura, aqui, na frente da cidade toda e roça suavemente os lábios no meu rosto. — Não é seu presente ainda. Vamos andar de roda gigante! Caminhamos para a fila e enquanto esperamos, Levi me compra uma maçã do amor. Nossa vez chega e nos sentamos no banquinho lado a lado, o urso ocupando boa parte do espaço. O brinquedo é ligado e nós começamos a subir, o braço dele circundando meu corpo, enquanto ele cantarola baixinho. Esse momento. Vivi por esse momento perfeito. — O que você está cantando? — É uma música do LS Jack. Pensei em você enquanto a ouvia outro dia, quando ainda não sabia onde isso ia nos levar e ela se encaixava perfeitamente naquele instante, mas mesmo agora... Ainda se encaixa. — E qual é? Para minha surpresa, ao invés de começar a cantar, ele retira um

Discman velho do bolso e me oferece um lado do fone de ouvido, usando o outro ele mesmo; Levi avança para o ponto que quer que eu escute e enquanto subimos na direção do céu, ouço o que a letra diz.

"Hoje aqui não importa pra onde vamos Vivo agora, não tenho outros planos E é tão fácil viver sonhando Enquanto isso a vida vai passando

Me abraça, me aceita Me aceita assim, meu amor Me abraça, me beija Me aceita assim, como eu sou E deixa ser o que for, o que for...”

Como que seguindo uma ordem, não dele, mas do universo que paira acima de nós, me viro de lado no assento, passo as mãos pela nuca dele e espero que Levi complete o caminho até mim. Quando sua boca toma a minha, nosso beijo é cálido e apaixonado,

entregamos nesse momento muito mais que o visível, bem mais que o toque. Como acontece sempre que estamos juntos. Ao nos separarmos, nos vemos suspensos bem no alto e o brinquedo estacionado no ar. — Clara, lembra tudo o que conversamos sobre eu não poder me ausentar do sítio ou estudar? Assinto, curtindo nosso instante de calmaria e observando a paisagem incrível. — Meus pais conseguiram o empréstimo que tanto precisavam. Vão conseguir pagar as despesas e dívidas, investir um pouco e contratar um caseiro. — Ai meu Deus! Mal posso acreditar. — Isso significa que vou poder estudar fora, fazer uma faculdade e não há nenhum impedimento para nós. Você nem precisa brigar com seu pai para vir pra cá, eu vou onde você estiver... Parece um sonho, sabe? Eu não tinha ideia de que queria tanto isso, até acontecer. É como se meus planos estivessem bem enterrados, no fundo, para que eu não me chateasse por não poder alcançá-los, mas agora, tudo está gritando dentro de mim e, nossa... Ele sorri tão contente, seus olhos brilham de um modo que nunca vi. É

a perspectiva, a liberdade de poder alcançar seus objetivos. — Ai, Lê... Eu sabia que vocês iam conseguir. Estou tão contente por você e por seus pais. Mas e agora? São tantas opções! O que vai ser? Dou alguns tapinhas na perna dele, animada e o instigando a me contar tudo. Realmente, mal caibo em mim de tanta empolgação. — Administração de empresas — diz, me surpreendendo com a convicção, para quem há poucos dias não tinha nada definido. — Na verdade, acho que é o que eu sempre quis e sabe por quê? — ele continua sem esperar resposta. — Vou estudar enquanto eles cuidam de tudo e quando voltar, vou transformar o sítio em algo muito maior. Nunca mais vamos ter essas preocupações na vida, desequilíbrio financeiro e meus pais vão ter uma velhice confortável. Além disso, Lalá vai poder estudar também. Vou me casar e criar nossos cinco filhos com muita tranquilidade. — Nossos cinco filhos? Calma aí... Ele começa a rir. — Mas aceito três. Depois disso, vou financiar seus projetos de roteiros. Todos eles, vamos encontrar produtoras e vou te ajudar com os contratos, vários deles e no fim da tarde vamos nos sentar em frente a uma imensa televisão e assistir as adaptações deles. Sempre posso fazer artes visuais mais tarde, depois de estabilizado.

— É o plano perfeito. Encosto a cabeça em seu ombro, vislumbrando aqueles anos maravilhosos que estão por vir; enquanto voltamos à terra fisicamente, nossas mentes ainda flutuam em um mar de possibilidades. — Precisa ir? — Levi tem os olhos suplicantes. — Tenho algum tempo ainda. — Então vamos andando. Preciso entregar seu presente. Deixamos a movimentada festa e caminhamos até a rua que antecede a balbúrdia, onde Levi estacionou a picape dos pais. Gentilmente ele abre a porta para que eu entre e depois se senta do outro lado. Levi dirige até o outro lado da cidade, em um ponto mais afastado, que parece ter sido um drive-in um dia. Ele desce do carro e o acompanho, ainda sem entender bem o que estamos fazendo aqui. Vejo-o abrir a carroceria e subir nela, carregando o urso que me deu. Ele me estende a mão e me ajuda a subir também. — Vem, deita aqui do meu lado... — diz, colocando meu urso como travesseiro.

Apesar de ser um convite estranho em algumas circunstâncias, no clima em que estamos hoje não é. Me deito e seguro sua mão enquanto fitamos o céu estrelado. — Aqui está. Levi me entrega um embrulho e abro-o apressada, sentando-me no processo. Encontro um caderno lindo, a capa parece ser de couro e o fecho é delicado, contrastando com a aspereza do tecido. — É perfeito! — Bom, o que se pode dar a alguém que tem tudo? Pensei que seria legal para trabalhar em seus roteiros. Me inclino sobre ele e o beijo com carinho, agradecida sim, mas muito mais apaixonada. Levi é tudo que um homem deveria ser e me faz ser muito mais que me julgava capaz. Envolvendo meu corpo com seus braços, ele me beija desesperado. Nossos toques e carícias se tornam afoitos muito rápido, como se antes houvesse uma represa ali, que de repente houvesse estourado. Nossas roupas se amontoam em uma pilha atrás de nós, peça por peça e aqui, sob a magia da lua, entrego a ele meu coração, minha alma e meu corpo e recebo amor, o mais puro e imensurável de todos os sentimentos.

Quando a chama que pulsa nele encontra refúgio em meu interior, a estrela, aquela para a qual entregamos nossos desejos, brilha mais forte que nunca sobre nós. Mas estamos distraídos em nossa própria luz.

“O homem é definido por seus atos, não por suas lembranças.” O Vingador do Futuro

27 DE NOVEMBRO DE 2005

Eu não me sentia diferente, ao menos não fisicamente. Não me sentia mais homem por ter tido minha primeira transa com uma garota, mas com certeza algo havia mudado. Nunca pensei que seria como meus pais, que se conheceram jovens, foram o primeiro amor um do outro, se casaram e ponto final, mas pelo visto me enganei e não há problema algum nisso.

Rápido, intenso e definitivo. As três características que definem meu relacionamento com Clara, mas se os dois se sentem da mesma maneira, não há razão para não nos jogarmos com tudo nisso. Apesar de estar aéreo e pensando em tudo que aconteceu ontem à noite, o domingo no sítio é de comemoração. Meus pais estão mais felizes que nunca e tenho certeza de que não é pelo dinheiro, mas pelo que ele nos possibilita. Mais que um sonho meu, dar a mim essa liberdade de fazer minhas escolhas, é um sonho deles. Depois do almoço em família minha mãe abriu um vinho tinto que meu pai trouxe da cidade e acabou bebendo mais que duas taças, o que consiste em muito sono pelo resto do dia. Meu pai se retirou após ela e prefiro não pensar nos dois no quarto. Lalá também ficou contente. Verdade que ela não entende bem o que significa o empréstimo para nós, mas se todos estão felizes, ela também fica. À noite converso com Clara por alguns minutos no celular e combinamos de conversar melhor sobre minhas opções de faculdade e os lugares mais perto dela, em que poderei estudar. O banco informou que na terça-feira o dinheiro seria encaminhado à conta dos meus pais e, a partir de então, nossos problemas serão resolvidos.

Quando me deito para dormir, a ansiedade por tudo que está para mudar me incomoda e tira meu sono por algumas horas. Finalmente adormeço quando o dia está quase nascendo. Não durmo mais que duas ou três horas. Eu poderia deixar de ir ao curso hoje, ficar em casa, mas não consigo. Preciso estar com ela, a empolgação é gigante e não consigo me conter. Vejo que recebi uma mensagem dela um pouco antes. “Lê, aconteceu uma coisa...” Como estou saindo para vê-la, não respondo. Espero para conversarmos na aula; meu pai me avisa que vai usar a caminhonete e que preciso ir para Vale cavalgando. Não é um problema, apenas um pouco mais lento. O sol mal nasceu, mas sei que na volta o calor estará infernal. Pego meu chapéu, me troco e coloco a mochila nas costas. À galope, não demoro muito para avistar a cidadezinha. Estou entrando nela quando Alessandro Alves Coutinho passa por mim em alta velocidade em seu carro elegante. Eu literalmente como poeira e, ao olhar para trás, tenho a sensação inquietante de que Clara também estava no carro. Continuo meu caminho até o colégio, com aquele incômodo no meio do peito. Amarro o cavalo do lado de fora da escola e entro para a sala,

procurando por ela. Antes mesmo que eu me sente, Felipe e Lena se aproximam de mim. João vem logo atrás. — E aí, cara? Você sabe o que aconteceu? João questiona e franzo o cenho, sem compreender a pergunta. — Com a Clara e o pai — Felipe explica. — O que houve? — pergunto, já buscando meu celular na bolsa. — Pensei que soubesse, vocês não desgrudavam. Me levanto sentindo o desespero me atingir. — De que merda vocês estão falando? — Meu pai disse que seu Alessandro, o pai da Clara, simplesmente ligou ontem de madrugada e disse que era pra ele assumir de volta seu cargo de gerente. Que estava muito satisfeito com o trabalho dele e que não precisaria mais ficar aqui. Parece que os planos eram dois meses, mas ele juntou as coisas agora cedo e partiu pra Belo Horizonte com a Clara — João explica. — E ela nem se despediu de mim — Lena choraminga. — Vocês estão de brincadeira? Porque se for, não tem a menor graça. Eles apenas se entreolham, sem saber o que dizer.

— A Clara não iria embora assim, sem me dizer nada. Eu vou... Vou na pousada saber o que aconteceu. Lena coloca a mão sobre meu braço, me impedindo por um instante. — Lê, você sempre soube que ela iria embora. Sei que ficaram amigos, mas... Balanço a cabeça, negando o absurdo que ela está dizendo. — Você não sabe do que está falando, Lena. A Clara prometeu, isso não faz o menor sentido. Deixo-os ali, todos me olhando com cara de pena. Do lado de fora, monto no cavalo e saio em disparada na direção da pousada. Seu Genaro é quem me recebe, está anotando alguma coisa atrás do balcão. — Bom dia! Onde está a Clara? — pergunto de uma vez. Ele dá de ombros antes de começar a falar. — Vai entender essa gente da cidade, meu filho... O homem pagou adiantado por dois meses e sem mais nem menos, juntou as coisas e a filha e foi embora. — A Clara foi com ele? O senhor tem certeza? É claro que, racionalmente, eu sei que não estou fazendo muito sentido,

mas mesmo que eu a tenha visto e ouvido os comentários no colégio e seu Genaro esteja afirmando isso, eu não posso acreditar. Dona Ilda entra no saguão e sorri de um jeito triste ao me ver. — Ela se foi, querido. Mas me pediu que te entregasse isso... Avanço sobre o pedaço de papel, ávido. Esperançoso de que haja uma explicação para isso tudo e que Clara esteja me deixando um endereço, um modo de encontrá-la. Saio para o jardim e me sento em frente a um dos canteiros. Reconheço a letra dela assim que desdobro o papel, mas não posso acreditar que sejam mesmo suas palavras. E enquanto sua carta dilacera meu coração, vejo uma única gota de lágrima cair sobre o papel e manchá-lo e só então, percebo que estou sangrando por dentro.

Clara — Para com isso. Não precisa chorar por um celular, eu já disse que chegando em casa te dou um novo. Mal posso ouvir a voz dele sem estremecer. Não posso acreditar que seja meu pai a fazer isso comigo.

— Você fez o certo. Tem um futuro brilhante pela frente e quase estragou tudo por um caipira. Imagine se esse roceiro te engravidasse? Deus do céu! Onde estavam meus olhos? Como não percebi essa situação antes? — Eu te odeio... — respondo, apenas. Ele ri. — Quando for famosa, tiver o país todo aos seus pés, vai me agradecer por isso. Você é muito boazinha, Clara. E esse é seu problema. Pode ter sido útil pra mim agora, mas pra você... É um desserviço. Boazinha. Como se eu tivesse feito uma escolha altruísta, como se eu pudesse escolher Levi e lidar com as consequências disso. — Você é meu pai! Como pode fazer isso comigo? Ao invés de pensar na minha felicidade. — Faço isso porque sou seu pai e você, mocinha, vai cumprir nosso acordo ou então, já sabe.

“Eu sei o que eu tenho que fazer agora. Eu tenho que continuar respirando, porque quem sabe o que a maré me trará amanhã?” Náufrago

06 DE JUNHO DE 2020

Quinze anos. Quinze anos vendo o rosto dela apenas pela televisão, vendo suas expressões ensaiadas e os sorrisos artísticos. E agora, como uma estrela cadente, Clara Alves Coutinho está aqui, deitada e inerte diante dos meus olhos. Já entrei e saí desse cômodo uma dezena de vezes desde que foi

transferida para o quarto. A verdade é que, apesar de estar preocupado com seu estado — e eu ficaria com qualquer pessoa que despencasse barranco abaixo —, não quero que me veja, não quero ter que falar com Clara outra vez. Quando vi o carro no acostamento e uma moça sozinha na estrada, pensei que precisasse de ajuda. Jamais iria prever que fosse ela e menos ainda que o susto ao me reencontrar fosse fazer com que perdesse o equilíbrio e escorregasse. Alguém bate na porta e me adianto para conter qualquer fã maluco que possa tê-la descoberto aqui. — Sou eu... — Ouço a voz do doutor Aguiar e solto a maçaneta. O médico entra e a observa com um sorriso contente e com certo brilho no olhar. — Não posso acreditar que seja ela aqui! E eu cuidei dos ferimentos, acha que vão acreditar quando eu disser que fui o médico de Clara Coutinho? Franzo o cenho, tentando parecer firme, apesar de achar graça em sua empolgação. Clara pode ter sido alguém importante em meu passado, mas hoje ela é famosa no país inteiro. — Bento, ninguém pode saber que ela está aqui ou esse hospital vai virar um inferno. Vale inteiro vai parar aí na porta e os repórteres vão invadir

nossa cidade se descobrirem sobre o acidente. — Vale iria parar em todos os sites de fofoca, eu sei... Foi só um momento de animação — ele responde, parecendo constrangido. — Mas não sei como vamos manter isso em segredo, os enfermeiros precisam trocar de turno e quanto mais gente tratar dela, mais chances de espalharem a fofoca. Coço a cabeça e desvio os olhos para vê-la, imóvel na cama a não ser pelo peito que sobe e desce com a respiração. — Olha, Bento... Não quero me envolver nisso — falo de uma vez. — A verdade é que não é problema meu, só a trouxe para que cuidassem dela, então vou pra casa e você decide o que fazer. O homem me dirige um olhar de pavor. — Mas, Levi, como vou esconder uma atriz desse calibre no hospital por mais tempo? Eu não estou preparado para proceder em uma situação como essa, mas vamos ter que avisar alguém. Tentei o contato do pai dela, mas não é o mesmo telefone mais. Não sabe de alguém com quem ela tenha mantido contato na cidade? Meu riso vem fácil. — A Clara? Ela não queria ter nada a ver com essa cidade ou qualquer um de nós. Inclusive não sei porque toda essa agitação por alguém que foi embora sem olhar pra trás.

Percebo que falei muito ao notar os olhos arregalados de Aguiar, mas então o susto é substituído por compreensão, o que é muito pior. — Agora me lembro que vocês tiveram um namorico. Por isso não quer ficar aqui? Foi há muito tempo, rapaz. — Foi mesmo, o que quer dizer que não tenho responsabilidade alguma nisso. Ele parece discordar. — A não ser o fato de que ela caiu quando você apareceu...Tudo bem, se prefere ir embora, mas pode ficar até que eu busque um segurança para vigiar a porta? Assinto, sem muito entusiasmo. Quando o doutor Bento Aguiar deixa o quarto me aproximo pela lateral da cama e sento-me na poltrona ao lado dela. Preciso descansar e esquecer o fantasma do passado, a noite foi longa e o sono está me vencendo. Um copo de café me faria bem...

Clara Abro os olhos e os fecho em seguida. A luz branca é forte e sinto o cheiro de produtos de limpeza; aos poucos meus sentidos vão despertando

junto com meu corpo e consigo abrir outra vez os olhos. Observo o local em que estou e percebo, confusa, que é um quarto de hospital. Mas o que eu vim fazer aqui? Tem um acesso na minha mão, por onde recebo algum medicamento e estou usando uma daquelas camisolas largas. Um homem está sentado ao meu lado, todo torto em uma poltrona. O rosto afundado entre os braços, dormindo. Forço a mente para encontrar as respostas, sobre quem é ele e o que estou fazendo nessa cama, mas não consigo me recordar. E meu pai? Não é como se fosse o mais presente dos pais, mas se sofri algum acidente ele devia estar aqui. Pigarreio baixinho, limpando a garganta. — Com licença... — chamo, tentando despertar o homem ao meu lado. — Oi, com licença! Quem é esse? O homem usa botinas um pouco sujas de terra e uma camisa social preta, consigo ver parte do seu rosto, coberta por uma barba cerrada. — Moço! — chamo mais alto e finalmente ele se mexe. Demora um pouco para me olhar. Primeiro se move na poltrona, depois

ergue o rosto e o esfrega com as mãos e apenas então me encara. Instantaneamente meu coração acelera. Tem alguma coisa muito errada acontecendo aqui, vejo o monitor que controla meus batimentos disparar e o bipe soar alto. É ele. Levi. Mas não pode ser. Ainda assim são os olhos dele. — Vou chamar o médico — fala, levantando-se em um pulo, a voz me parece estranha e diferente. — Não! — Seguro sua mão, mas ele a puxa de uma vez e me dirige um olhar cheio de raiva. — Espera, Levi. Ele coloca as mãos dentro dos bolsos, evitando meu toque, mas ao menos para, esperando. — O que aconteceu? Por que você... Minha cabeça dói muito e por mais que eu tente não consigo ordenar meus pensamentos. — Sofri um acidente? Por quanto tempo eu dormi? Você... Você tem barba! Analiso os traços bonitos no rosto dele, não é mais um menino e isso faz soar um alarme em minha mente. As coisas estão fora de lugar. Olho para mim mesma, minhas mãos e a cor mais clara dos meus

cabelos. — Quanto tempo eu dormi? A porta do quarto se abre e um homem vestido de branco entra. O médico, graças a Deus. — Ahh, que coisa boa! Nossa celebridade acordou! Franzo o cenho, sem compreender suas palavras. — Acho que tem algo errado com ela — Levi diz. Não consigo entender porque ele está agindo assim ou como, de repente, se transformou em um homem feito. Ou estou tendo um sonho muito insano ou fiquei desacordada por pelo menos uns dez anos; quando compreendo a dimensão do que me aconteceu, as lágrimas começam a descer. Sinto que o ar falta em meus pulmões e uma compressão sobre meu peito que dificulta ainda mais minha respiração. O pavor começa a me dominar enquanto uma forte náusea revolve meu estômago. Minha cabeça dói tanto... Não posso ter perdido todo esse tempo. E Levi, apesar da irritação aparente, ficou ao meu lado todos esses anos. — Calma, calma... — O médico se aproxima e coloca a mão no meu

ombro em uma tentativa de me acalmar. — Por que está chorando? Seus exames estão excelentes, está um pouquinho anêmica na verdade, mas vai ficar tudo bem. Fungo um pouco e acabo deitando a cabeça no ombro do homem mais velho, desesperada por algum consolo, ainda que de um total desconhecido. — Quanto tempo perdi? — pergunto em meio aos soluços. — Como assim? — Fiquei em coma por quantos anos? Porque o Levi era um menino e agora acordei e está tudo assim! Devo parecer prestes a entrar em pânico, porque o médico acaba me afastando e olha em meus olhos. Levi apenas observa a cena em um canto, mantendo-se distante. — Espera, minha filha. Você dormiu apenas por apenas por esta noite, está querendo dizer que não se lembra de nada? Qual sua última lembrança, Clara? Tento me concentrar e tudo que me vem à mente é ele. Nós dois no lago, na varanda olhando as estrelas, a roda gigante... Nossa primeira vez. — Bom, me lembro que Levi e eu saímos juntos depois do leilão de

tortas e também me lembro de outras coisas nessa noite, mas depois disso é tudo um borrão. O médico me olha assustado e percebo o quanto ele me parece familiar. — Mas que merda é essa, Bento? Ouço a voz dele, tão grossa e madura, raivosa e tão diferente do que me lembro e isso me assusta ainda mais. — Clara, querida, isso aconteceu quinze anos atrás — explica o doutor, ignorando a explosão de Levi. — Quinze anos — repito, tentando me controlar e pensar. — Então eu não dormi todo esse tempo, na verdade não estou conseguindo me lembrar. É isso? — Sim. É terrível, mas acontece quando se bate a cabeça com força. Provavelmente é temporário. — Temporário. Certo... — Levo a mão ao peito, sentindo as batidas descontroladas do meu coração. Acho que vou infartar. — Podemos ligar para seu pai, ou seu assessor. — Assessor? O médico ri alto, fazendo com que minha cabeça, que já dói muito, passe a também latejar.

— Bom, não é todo dia que posso contar a um paciente desmemoriado que ele é uma celebridade. Você é uma atriz de muito sucesso, Clara. Sinto o vômito prestes a me escapar, como sempre acontece quando meu pai insiste nessa história. Ou insistia, porque pelo jeito ele venceu. Levi continua parado me olhando, mas agora há uma fagulha de ódio em seus olhos, como se estivesse mesmo com raiva de mim. — Não, Levi. Não me olha assim, tá? Eu... Eu não sou uma atriz — me explico, sem saber bem o que estou fazendo. — Por isso está bravo assim? Você se mudou pra perto de mim, como combinamos, nós estudamos e depois eu... Quinze anos? Nós nos casamos, então? Desculpe por não me lembrar. Ai, meu Deus! Nós temos filhos? Eu não me lembro deles, por isso você está furioso. Afundo o rosto nas mãos e o choro recomeça. Não posso acreditar que não me lembre de nada e que quinze anos da minha vida tenham sumido de repente. Em meio às lágrimas, ouço o riso dele, cheio de escárnio. — Filhos? Nós não somos nada um para o outro, Clara. Ergo os olhos para ele e balanço a cabeça negando. Isso não pode ser verdade, nós estávamos apaixonados e tínhamos um plano. A dor me dilacera ao entender o que ele está dizendo, eu vivo uma vida que nunca planejei, sem

o rapaz que amei tão intensamente e em uma profissão que tentei tanto evitar. — Não, isso não pode ser sério. Eu prometi, nós prometemos que encontraríamos um jeito. Ele caminha para a porta sem olhar para trás. — Pois é, mas descobrimos que você não é boa em cumprir promessas. — Onde você vai? Onde ele vai? — me dirijo ao médico, que se mantém em silêncio. — Isso parece um dos seus filmes — o homem comenta. — O que quer que façamos? Posso ligar para o seu pai vir, avisar a imprensa ou seu noivo. Ah, não, não, não. Um noivo não. — Doutor, eu acho que não estou bem. São minhas últimas palavras antes de perder os sentidos. Durante algum tempo, tudo é escuridão, caos, confusão e quando acordo alguns minutos depois, mantenho os olhos fechados por um momento, torcendo muito para que seja apenas um sonho. — Clara... A voz do médico me alcança, me tirando a pontinha de esperança. — Eu sei que você precisava de mais tempo, mas Levi voltou para avisar que infelizmente alguém deu com a língua nos dentes. Tem um

pequeno grupo na frente do hospital e logo todo morador dessa cidade vai estar aí. O que quer fazer? O que eu quero? Eu não deveria decidir essas coisas sozinha. — Não sei! Não me lembro onde eu moro. Não posso encarar essas pessoas porque não faço ideia do que é meu trabalho, aliás, nem sei como isso foi acontecer. Eu odeio atuar! O homem arregala os olhos com meus gritos. — Não odeia, não. Você é ótima nisso! Atiro o lençol para o lado e me levanto da cama. — Eu vou fugir... É isso que vou fazer. Não posso encarar essa situação agora. Perder minhas memórias já é muito para lidar. — Acalme-se, suas lembranças devem voltar logo, seus exames não acusaram nada. Pode ser psicológico, talvez emocional... Precisa descansar mais um pouco. Pode ficar na minha casa uns dias se quiser, você e a Lena eram tão amigas. Lena. Ah, sim, grandes amigas. Apenas então me dou conta de que ele é Bento Aguiar, o pai dela. O homem envelheceu bastante considerando a imagem que tinha dele.

— O senhor disse psicológico ou emocional? Como assim? O velho dá de ombros, como se não tivesse todas as respostas. Mas se ele não tem, quem vai ter? — Pode ser. Não sei o que na sua vida a levaria a isso, mas algumas vezes inconscientemente as pessoas optam por esquecer, talvez um trauma, algo muito triste e pesado para suportar. Ele está dizendo que escolhi isso? Como se estivesse fingindo? — Vou me esconder no sítio. — Decido por fim. — Onde está o Levi? — Na recepção, acho que ainda não foi embora. — Então é isso. Diga a ele que vou pro sítio e de lá aviso meu pai, ou a alguém. O médico parece não considerar uma boa ideia. — Olha, você e Levi não se viam há quinze anos. Não são amigos e ele não parece disposto a se envolver nessa situação. Como se eu tivesse muitas opções. Mesmo que ele não queira me levar, é preferível lidar com o humor dele e o que quer que eu tenha feito, que enfrentar fãs. Não posso ter fãs. — A pousada da dona Ilda ainda existe? — pergunto, pensando na única alternativa que me vem à mente.

O médico nega com um gesto. — E tem alguma outra aqui? Outra negativa. — Levi se tornou um serial killer? — questiono, por fim. — O que? Lógico que não! É um homem trabalhador, íntegro. — Pois então vou ficar no sítio até meu pai aparecer. O médico meneia a cabeça, discordando da minha escolha, mas deixa o quarto ainda assim. Fico sozinha pensando em como tive a audácia de me oferecer para ficar na casa dos pais dele. A verdade é que estou apavorada e por mais irritado que ele esteja, Levi é a única pessoa que realmente conheço e confio aqui. Observo minhas mãos e percebo o tremor nelas. Não tenho certeza pelo modo como ele agiu de que vá aceitar que eu fique em sua casa, mas não sei o que mais poderia fazer. Olho ao redor buscando por meu celular. Preciso dele e talvez lendo as mensagens e vendo as fotos, algumas lembranças voltem. A porta volta a se abrir e doutor Aguiar entra outra vez. — E então? Ele disse que posso ir?

O médico desvia os olhos dos meus e só por sua atitude imagino que não tenha sido uma conversa muito agradável. — Não exatamente. Mas a situação aí na frente está complicada e eu disse a ele que seria apenas pela tarde e essa noite, e que provavelmente amanhã alguém viria te buscar. Ele acabou concordando em levá-la. Graças a Deus. — Vou passar lá para ver como está se sentindo e já pedi que ele me ligue se acontecer algo. Assinto, concordando com o plano e tento me agarrar à esperança que o médico deixa transparecer. Talvez seja apenas o trauma e logo tudo fique bem. — Pode se trocar ali no banheiro. Vou acompanhá-la até os fundos do hospital para que saia sem ser vista. Levi chamou um amigo e ele vai levar seu carro para lá, fique tranquila. Faço o que ele sugere e respiro aliviada ao ver que ao menos as roupas são a minha cara. Um suéter branco e calças jeans, nada elegante ou ousado demais. Calço os sapatos que estão ali e evito o espelho a todo custo. Não estou preparada para ver meu rosto, saber o efeito de quinze anos na minha aparência.

Sigo o doutor Aguiar pelo corredor, de cabeça baixa e a passos rápidos. Ele abre uma porta pequena, e saímos em um beco mais escuro na parte de trás do hospital. Procuro por Levi, mas não o vejo. No entanto, instantes depois uma caminhonete preta para diante de nós, é imensa e muito mais nova do que a picape antiga. O médico abre a porta do passageiro para mim, porque Levi nem mesmo olha para fora. Me jogo no assento e passo o cinto de segurança e então partimos juntos, em um silêncio no mínimo perturbador. O aquecedor do carro está ligado, fazendo o único barulho dentro da cabine. Observo discretamente o homem ao meu lado. Apesar de todas as diferenças, ainda consigo reconhecê-lo em cada traço. As linhas do rosto são mais duras, os olhos muito mais sérios, o queixo quadrado e a expressão de mau-humor que não desapareceu por um único momento, a barba escura e os cabelos castanhos bagunçados. Levi não é nem de longe o menino de quem me lembro, é um homem e isso fica claro nos ângulos do corpo dele, no modo como a camisa abraça os ombros largos e nas mãos firmes que seguram o volante. Ao lado do assento dele há um chapéu escuro, também diferente dos chapéus simples de palha que ele usava.

Quando Levi faz a curva para deixar o beco, me inclino para observar a entrada do hospital. — Ai, meu Deus, tem umas vinte pessoas ali! — exclamo, surpresa. — É, parabéns. Esperava uma multidão? — ele questiona, sarcástico, compreendendo minha fala de outra maneira. Me abaixo no assento, tentando não ser vista, mas mesmo nessa posição desconfortável não deixo de respondê-lo. — Sabe que não precisa falar assim, não é? Não pedi por isso, Levi. Sabe bem que nunca quis atuar, não sei como foi acontecer. Ele faz um barulho com a garganta que demonstra sua descrença. — Você dizia que não, mas agarrou a primeira oportunidade. Minha vontade é dizer o quanto ele está sendo grosseiro e insensível, afinal, eu estou doente, levei uma pancada na cabeça e não me lembro de nada. Mas não o faço. Deito a cabeça nos meus braços e fecho os olhos com força, tentando buscar no fundo da mente algum lampejo da verdade. Por mais que eu procure, é tudo escuro, um grande vazio, a não ser por ele. Não reconheço as feições duras que agora dominam seu rosto,

tampouco a aspereza na voz. Mas meu coração ainda grita que é ele e, mesmo considerando que não representamos nada um para o outro, é tudo que tenho agora. Não entendo como tudo foi acabar assim. Me recordo das mãos dele passeando pelo meu corpo à luz das estrelas, do presente de aniversário que tocou meu coração. Lembro-me de termos planejado tudo. Ele iria comigo para a capital e ficaríamos juntos. — O que aconteceu? — pergunto enfim. — Por que não foi comigo pra capital? Ele não me olha. Mantém os olhos fixos na estrada e apenas balança a cabeça. — Não vou ter essa conversa de jeito nenhum. — Mas Lê... — Não me chame assim, Clara. Suspiro, decepcionada por ser tão difícil falar com ele. — E como devo te chamar? Ele emite outro resmungo. — Vilasboas está ótimo.

Olho para ele incrédula. — Não vou te chamar pelo sobrenome! Ele me olha de lado, exasperado. — Levi já serve. Aquiesço, menos mal. — Levi, eu não entendo. Desculpe se estou sendo insistente, mas nós tínhamos um plano e estávamos apaixonados! Como as coisas foram acabar assim? — Não delira, Clara. Foi um rolo de verão, muitos anos atrás. Podemos parar de falar nisso? O tom dele, assim como as palavras me magoam. Como ele pode dizer isso? Não foi só um caso temporário, eu me entreguei para ele e sonhei com nosso futuro. — Se nós dois não temos mais nada, por que eu estou aqui? Por que estou em Vale do Recomeço? — E eu vou saber? Te encontrei na estrada e quando me viu saiu rolando barranco abaixo. Não tenho a menor ideia do que estava fazendo aqui no meio da madrugada. Absorvo suas palavras, tentando encontrar um sentido nisso. Por que eu

estaria ali no meio da noite? A menos que... Eu poderia ter vindo por ele? Não. Se ele age desse modo grosseiro comigo, eu não o procuraria. — Por que está me tratando assim? — pergunto. — Depois de tudo, não restou nem mesmo amizade? — Tudo o que, Clara? Foram dias divertidos naquela época, nada demais. Mas ontem você despencou de um barranco e passei a noite toda sem dormir, meu dia hoje está sendo infernal. Tive que deixar minhas coisas de lado pra ficar ali no hospital e isso me deixou bem frustrado, sabe? Agora estou com uma dor de cabeça do cão. Será que pode, por favor, ficar quieta? Não consigo raciocinar direito, nem entender quem é esse homem maleducado e cruel. Levi era doce e me tratava com gentileza em todos os momentos. Não tenho uma única lembrança em que ele tenha sido rude ou grosso, mas em meio a névoa que oculta de mim minhas lembranças, também está perdido o momento em que isso mudou e que explicaria o que o deixou assim. Não sei o que houve nesse espaço, nessa lacuna imensa. De repente um pensamento horrível me atinge. E se ele estiver casado com outra pessoa? Para ele, se passou uma eternidade. Para mim, tudo aconteceu ontem. Não posso vê-lo com outra mulher e agir com naturalidade e,

principalmente, não posso obrigar a família dele a me receber. Penso em questioná-lo, mas seu pedido para que me cale vem à mente, então apenas observo sua mão em busca de uma aliança e respiro mais aliviada ao perceber que ele não usa uma. Isso me lembra de olhar para a minha própria mão e também não há sinal de aliança. Se estou noiva, deveria haver um anel de noivado aqui. Excluo os pensamentos a esse respeito da minha mente, balançando a cabeça. O caminho é rápido, mas dessa vez a paisagem é bem diferente do que me lembro. Desde que saímos de Vale do Recomeço e pegamos a estrada de terra, dos dois lados dela e por todo o percurso, uma plantação de café nos acompanha. Espero que Levi ligue o som para amenizar o clima estranho, mas ele não o faz e seguimos calados. Quando paramos diante da porteira, ele desce para abri-la, mas retorna em poucos instantes. Olho ao redor um pouco confusa, tudo está tão diferente que não consigo me controlar. — Estamos no lugar certo? — Acho que me lembro como chegar em casa. A intenção dele era apenas de ser grosseiro, mas me atinge de uma

maneira mais forte, afinal não me lembro como chegar em casa ou mesmo onde é minha casa. Me viro para a janela e abro o vidro, concentrando-me em todas as mudanças que foram feitas no lugar. Ao invés do pequeno celeiro, há agora um imenso, feito em madeira e pintado em azul e branco. Onde havia o curral, foi erguido um verdadeiro estábulo e, pelo comprimento da construção, imagino que abrigue muitos animais. Dentro da propriedade vejo duas casas. Uma na frente, com janelas azuis e canteiros floridos em frente a elas e um casarão de fazenda aos fundos, construído sobre uma elevação de terra. A casa principal é imponente e em nada lembra a casinha que havia ali, que era bonita e romântica, mas pequena. Uma escadaria leva diante de grandes portas de madeira e ao lado dela, coqueiros verdes oferecem sua sombra. Levi estaciona diante das escadas e desce do carro. Imito-o preparada para encontrar seus pais e lidar com o julgamento deles por algo que não sei bem o que é. Batendo as botas no primeiro degrau, para tirar a poeira ou algo assim, ele sobe o lance de escadas e subo em seu encalço.

Noto uma bolsa pendurada em seu braço no momento em que ele coloca a chave na fechadura. Além da caminhonete, vejo na lateral da casa uma garagem aberta e mais dois carros estacionados. As portas da casa se abrem e sigo-o para dentro do enorme hall. Por dentro, o casarão tem muitos detalhes em madeira compondo a decoração. É um ambiente rústico, mas a julgar pela mobília, também é extremamente moderno. Levi atira as chaves sobre um aparador e entra em outro cômodo, ainda calado. Vejo-me então em uma sala grande, com piso de madeira. Há uma tela enorme que, por sinal, toma conta de metade da parede; observo as dimensões dela e o quanto é fina, os aparelhos embaixo dela, estão presos a um painel. É como se eu estivesse e, um daqueles filmes do futuro. Não reconheço a tecnologia, apesar de ter uma noção a julgar pelos formatos de tudo. Ocupando boa parte da sala está o maior sofá que me lembro de ter visto. Parece uma cama com encosto. Nas paredes há quadros variados e do teto desce um lustre que parece de cristal, tão luxuoso quanto os que ficam na cobertura em que morava com meu pai, em Belo Horizonte.

No canto esquerdo, há uma escada em espiral que leva ao andar superior e, no direito, uma outra que conduz a uma área subterrânea. Ouço um rangido baixo e então vejo o Border Collie de Levi vindo lentamente até o dono; Levi se abaixa e coça um pouco suas orelhas. É tão gentil com Al que chego a esquecer por um momento o quanto tem sido grosseiro. — Oi, Al! Se lembra de mim, garotão? — falo, atraindo a atenção dele para mim. Ele se aproxima, preguiçoso e lambe minha mão, me sondando ainda. — O Al morreu tem muito tempo, esse é o filho dele. Sinto uma tristeza que tenta romper a fachada de bem-estar que estou tentando manter. Nada mais é igual e não sei nem mesmo o porquê da minha vida estar em uma direção tão contrário ao que me lembro de planejar. — Qual o nome dele? Levi ignora minha pergunta. — Os quartos ficam lá em cima. Vou te mostrar onde vai dormir, vem comigo. Seus passos pesados sobem os degraus e o acompanho calada e morta de constrangimento. Estou na sua casa e ele parece o senhor cruel de uma fortaleza.

No topo da escada há um corredor extenso que leva para duas direções e várias portas fechadas. Levi caminha para a direita, sem dizer nada até chegarmos diante da última porta. — Vai dormir aqui... — Ele abre a porta. — Tem um banheiro que poderá usar e, durante o dia, uma pessoa cuida pra mim da limpeza e das refeições. Se precisar de alguma coisa, fale com ela. Entro no quarto, analisando os detalhes. Acho que é um quarto de hóspedes, a cama perfeitamente arrumada com uma colcha florida, o tapete felpudo aos pés dela, o cortinado palha, a penteadeira em um canto, tudo limpo e perfeitamente organizado, são indícios de que o quarto não é usado por ninguém. — Obrigada — digo, sem saber o que mais posso falar nessa situação inusitada e sobre a qual não sei nada. — A janela dá para o lago. Pode sair do quarto e andar pela casa, usar os outros cômodos caso precise e se quiser usar a internet, tem um computador no escritório, lá embaixo. O aquecedor está naquela tomada, caso faça frio a noite. Fito o objeto e aceno, compreendendo. — Certo.

— Pode usar o telefone e ligar para o seu pai se não conseguir usar seu celular, garanto que se souber que está aqui ele vem logo de manhã. Agora preciso avisar duas coisas: meu quarto fica na outra ponta do corredor, o mais longe possível do seu. Quero pedir que não vá até lá. Balanço a cabeça apenas, concordando. Que idiota! — E o que mais? — Deve ter visto a outra escada na sala. Não desça. Trabalho lá embaixo e não gosto de ser interrompido, tenho documentos importantes e prefiro que ninguém vá até lá sem mim. Concordo outra vez. — Levi... — chamo, criando coragem. — Preciso de algumas respostas e sei que você as tem. Podemos conversar sobre isso? Sei que está chateado com alguma coisa que fiz, mas não tenho nem ideia do que seja e como devo me desculpar. — Para estar chateado, eu teria que me importar, Clara. Se estou irritado é simplesmente porque sua aparição e o acidente atrapalharam toda minha rotina de trabalho. Amanhã o médico vem e você pode conversar com ele sobre tudo isso... Levi coloca a bolsa sobre a cama e se distancia, rumo à saída. — Essa bolsa estava no seu carro e o Bento me entregou. Tem algumas

coisas suas, mas não tem roupas, então se precisar pode pegar alguma coisa no armário. Tem uns vestidos aí e umas coisas da Lavínia. — Ele se vira para ir, mas continua falando: — Enquanto estiver aqui, acho melhor não ficar andando fora da casa quando meus empregados estiverem trabalhando, sei que disse que não se lembra, mas você é famosa e pode achar meio assustador lidar com seus fãs agora. E então ele me deixa sozinha. Fecho a porta do quarto e tranco-a, e apenas então me rendo ao choro. É tudo tão horrível. O modo como ele me trata e fala comigo machuca, mas seus olhos, ora frios, ora cheios de ódio, ferem ainda mais. Levi me assusta, as mudanças me apavoram, mas o que realmente me aterroriza e faz com que eu me desmanche em lágrimas, é perceber que nem ao menos sei quem eu sou.

“Sem o amargo, o doce não seria tão doce.” Vanilla Sky

É tudo muito estranho e estou tentando me orientar e compreender a situação e a mim mesma. Levi me deixou sozinha e deve ter se enfiado em um dos lugares que fui proibida de conhecer. De um modo ou de outro, com ou sem a ajuda desse grosseirão, preciso descobrir o que aconteceu comigo e o que houve conosco. Apesar da instrução do doutor Aguiar e as indiretas de Levi para que eu ligue logo para meu pai, não pretendo fazê-lo antes de conseguir me guiar sozinha pela vida estranha que atribuem a mim.

Independentemente do que tenha acontecido nesses quinze anos, duvido muito que algo possa ter me feito mudar de ideia sobre ser atriz, o que só pode significar que meu pai tem algo a ver com isso e prefiro mantê-lo exatamente onde está — seja lá onde for — enquanto recupero minha memória. Reviro a bolsa em cima da cama e encontro alguns pertences dentro dela: um par de óculos escuros, um brilho labial, um aparelho preto, quase do tamanho da minha palma, com uma tela que o preenche quase que por completo e que apesar de não reconhecer, só pode ser meu, um cartão de crédito e um molho de chaves. Pego o aparelho na mão e a tela dele se acende. Parece um celular mais moderno. Ao encostar o dedo nele, procurando por um botão escondido, ele desbloqueia sozinho por meio da minha digital. Várias notificações estão acumuladas na tela, mas mesmo vendo as mensagens e os nomes das pessoas que as enviaram, não consigo ler por completo. Do meu pai... “Clara, pelo amor de Deus, onde...” De um tal de Leonardo, “Clarinha, seu pai está preocupado, onde se meteu? Se for pelos

chocolates, te dou uma...” Franzo o cenho estranhando o contexto, mas quando rolo a tela vejo as outras mensagens dele, todas assim, cortando pela metade. Abaixo dessa, encontro outra mensagem de uma moça chamada Alícia. “Amiga, verdade que viajou pra ver seu pai? Pelo amor de Deus, fala com ele...” Gostei dessa Alícia, de longe minha melhor mensagem. Me levanto e abro a porta por onde Levi saiu pouco antes. — Levi! — grito, esperando que ainda esteja por perto. Vejo seu rosto surgir em uma das portas ao final do corredor e logo ele sai e vem andando até onde estou. — O que foi agora? Faço uma careta para o tom rabugento, mas viro o aparelho para que o veja. — É meu celular, certo? Parece uma mini televisão. Levi franze o cenho e se mantém quieto. — Quero falar com uma pessoa, mas minhas mensagens ficam aparecendo pela metade na tela. Ele pega o aparelho da minha mão e toca em cima da mensagem e

como em um passe de mágica ela se abre toda. — Não tem botão... — constato, ainda confusa. — É touch screen. Você coloca o dedo sobre o que quiser ver e vai abrir. Essas mensagens são do Whatsapp, um aplicativo de mensagens. Como... Como o MSN — ele explica. Assinto, compreendendo o que quer dizer. — Quer falar com quem? — Levi pergunta. — Com essa Alícia aí... Tocando sobre a foto dela, ele faz com que uma página de conversação se abra. — O teclado fica aqui e pode digitar as mensagens pra ela. Aqui em cima, nesse ícone, você consegue fazer uma ligação. É isso, vai mexendo que você aprende. Apesar de explicar os detalhes, a carranca dele continua intacta e logo em seguida ele me dá as costas e volta pelo caminho que veio. Passo o dedo pela tela, descendo nossas conversas anteriores e aos poucos percebo o quanto somos amigas. Alícia me deseja bom dia todas as manhãs e mandei algumas fotos do tal Leonardo, fazendo piadas sobre as ordens idiotas dele.

Essa câmera é boa mesmo. Meu celular antigo já tinha uma, mas era o modelo mais avançado de celular e as fotos ainda eram embaçadas. Consigo me reconhecer ao falar com Alícia, por mais que muitas vezes nossos assuntos sejam sobre meu trabalho. Decido ligar para ela. Parece desespero, e é exatamente isso. Toco o ícone que Levi me disse para usar. — E aí, gata? — ela atende, percebo um sorriso em sua voz, que infelizmente não reconheço. Apesar de apreensiva, me mantenho firme na ligação. — Oi... Escuta, preciso te contar uma coisa que vai ser bem estranha. — Ai, meu Deus! Conta, já me sentei. — Primeiro pode me responder uma coisa? — Ela fica quieta e entendo como deixa para prosseguir. — Nós somos amigas, certo? Muito amigas? Ela solta uma risada, provavelmente levando na brincadeira. — Matou o Leonardo? Eu já disse que ajudo a esconder o corpo. — Não. Minha pergunta é muito séria, mas isso já responde. — Claro que somos amigas. Sou a melhor amiga de todas e ai de você se disser outra coisa, Clara! Respiro mais calma, porque apesar de não lembrar, me sinto bem

falando com ela e sua voz me passa sinceridade. — Alícia, por algum motivo eu parei o carro perto de Vale do Recomeço... — Ahhhhh sua doida! — ela grita. — Vai me dizer que foi ver seu grande amor? O encontrou? — Falei do Levi pra você? — Se falou? Clara, você está bem estranha. Suspiro, resignada. — Pois é. Eu caí de um barranco e bati a cabeça. Acordei no hospital e não me lembro de nada... Nem sei o que estava fazendo aqui. Ela começa a rir histericamente. — Deixa de ser idiota. Estou no meio da aula de Pilates e você me liga pra bancar a louca. — Não é brincadeira. Eu imagino que meu pai e o tal do Leonardo devem estar me procurando feito loucos. Precisava falar com alguém que me conhecesse e, bom, li nossas conversas e te considerei a melhor opção. Alícia fica quieta por quase um minuto inteiro. — Alícia? — Isso é sério?

— Infelizmente. — Ai meu Deus! Me diz onde você está que vou te buscar agora! — A voz dela soa embargada e imagino que deva gostar mesmo de mim. — Você deve estar apavorada, está no hospital? Em Vale do Recomeço? — Não exatamente. Foi Levi quem me encontrou e levou ao hospital, mas começaram a aparecer pessoas lá, querendo me ver e ele me trouxe para a casa e, sim, eu estou assustada. Preciso da sua ajuda. — Me passa a localização desse sítio, vou te pegar. Pelo que eu soube, você estava indo ver seu pai em São Paulo. Não posso acreditar nisso... Parece mentira. — Eu... Não quero ir embora ainda. Não quando sei que vou encontrar esse Leonardo e meu pai e vão me forçar a atuar em alguma coisa idiota. Por que eu fiz isso, Alícia? Eu odeio atuar. — Queria poder ajudar mais, mas você sempre foi muito fechada sobre isso. Já me disse várias vezes que odeia o que faz, mas nunca me explicou o porquê de fazer. Noto que já roí metade da unha enquanto conversamos. — Tudo bem. O médico disse que é temporário, que isso ocorreu por causa da pancada na cabeça e que pode até ser... psicológico, mas que logo devo me recuperar. Alícia, e sobre ele? O que eu disse sobre o Levi? As

últimas lembranças que tenho são de nós dois, quinze anos atrás. — Ai... Isso é tão romântico. — Não digo que ele virou um babaca para não desfazer a ilusão da coitada. — Bom, não disse muita coisa. Uma noite nós duas bebemos um pouco e eu estava muito mal porque havia terminado com o Rodrigo e então você me disse... — O que exatamente? — Que era pra eu olhar pra dentro de mim e analisar o que eu sentia. E que se o amasse, não deveria deixar que me escapasse, porque você tinha perdido seu primeiro amor, que pensou que o sentimento desapareceria e que muitas vezes pensou que era coisa de adolescente, mas que sempre que encostava a cabeça no travesseiro se lembrava dele e perguntava-se o que teria acontecido. Se ele era feliz. — Eu contei a história? Por que terminamos? — Não disse os detalhes, mas falou um monte sobre covardia, que podiam ter encontrado um modo e que Levi era o seu para sempre, mesmo que não fosse um feliz para sempre. — Olha só, estou descobrindo como sou péssima como amiga agora. A beleza está nos detalhes e eu não pareço gostar de contar eles. Ela ri. — Não mesmo. O que quer que eu faça?

— Quero que não diga a ninguém onde estou, mas precisa dizer ao meu pai e ao meu agente que tirei férias. Porque, caso contrário, vão me dar como desaparecida. Diga que te liguei e disse que precisava de uns dias, mas que logo entro em contato. — Tudo bem. Vai ficar aí uns dias? Posso ir no final de semana se quiser uns dias pra se recuperar e tentar falar com ele, descobrir o que deu errado. — É exatamente o que eu quero. Ele não é como eu me lembrava, mas tenho a sensação de que sou culpada pelo modo como tem me tratado. — Estarei aí no sábado. Mas aqui... Já pensou que isso, por mais estranho que seja pode ser obra do destino? Assinto, mesmo que ela não me veja. — Vou descobrir em que ponto minha vida virou tudo que eu não queria e quem sabe, consertar alguns erros. Alícia começa a dizer alguma coisa, mas perco seu comentário ao ver a porta do quarto se abrir e uma senhora de idade colocar a cabeça pra dentro. — Com licença, o senhor Vilasboas disse que tinha visita. Se quiser comer alguma coisa... Observo-a com atenção e aos poucos a imagem de agora e a que tenho em minha mente se fundem em uma só.

— Ilda? — Alíciaaaa... — minha amiga grita ao telefone. — Desculpe Alícia, vou desligar. Te envio a localização depois. — Tá bom, me manda notícias. Beijo. Coloco o celular sobre a cama e percebo que Ilda ainda me olha, curiosa. — Clara? — pergunta, abrindo bem os olhos em seguida. — Meu Deus, menina! Tenho te visto tanto na televisão, mas nunca pensei que fosse aparecer por aqui outra vez. Abro um sorriso. — Aqui estou. — Ah, que coisa boa. Então veio ver o senhor Vilasboas? Estranho o comentário. — O pai do Levi? Na verdade, eu estava de passagem, mas sofri um acidente e Levi acabou me acolhendo. — Não me refiro ao Joaquim, que Deus o tenha, mas ao menino Levi. Ele prefere que o chamemos pelo sobrenome. Ficou um rapaz sério, não acha? Bateu com a cabeça? Se precisar trocar esse curativo me fala, que trago a caixa de primeiros socorros.

Só então noto o curativo próximo ao meu couro cabeludo. — Hum... O doutor Aguiar vem ver isso amanhã. Mas Ilda, eu estou cheia de perguntas, será que pode me esclarecer algumas coisas? — O que eu puder ajudar, menina. Vem tomar um café. Acompanho-a para fora do quarto e sigo-a até a cozinha, que ainda não havia visto. É um cômodo amplo e os eletrodomésticos são de última geração. Me sento à mesa enquanto Ilda começa a colocar vasilhas com quitutes variados sobre ela. Enche um copo de suco e me oferece, depois se senta do outro lado da mesa. — Você disse, que Deus o tenha... O pai do Levi morreu? Ilda parece ficar triste com minha pergunta, seu semblante muda para contrito. — Faz uns dez anos. Sofreram um acidente de carro e morreram de uma maneira muito trágica. — Morreram? — Sim, Joaquim e Maria. Eram meus amigos, sabe? Eu gostava muito dos dois. Aquiesço, me perguntando se por acaso eu soube disso. Se mandei ao

menos um cartão. — E a Lalá? — A Lavínia está uma moça linda. Abriu uma pequena floricultura em Vale e mora em cima, em um apartamento. Ela deve vir aqui entre hoje e amanhã... Mal vai acreditar quando te vir. Enquanto conversamos, o cachorro — filho do Al — entra pela portinhola da cozinha e então identifico o barulho dela batendo, ao fechar. — Então eu não vim aqui? Nunca mais desde meus dezoito anos? — — Se veio aqui? Não se lembra? Faço que não. — Bati a cabeça muito forte quando caí. Não consigo me lembrar de nada. — Mas... Minha Nossa Senhora! Você se lembrou de mim. — Não lembro do que aconteceu depois daquela noite. Lembra que me ajudou a fazer uma torta para o leilão? É a última noite de que lembro. Todos ficam dizendo que sou famosa, que nunca mais vim aqui... E eu... O Levi não gosta de mim, não me quer aqui, e eu não entendo. Me recordo do modo como ele me tratou mais cedo, suas palavras afiadas e sinto a vontade de chorar vir forte. Tento ignorar e me controlar,

mas quando dona Ilda segura minha mão sobre a mesa, as lágrimas começam a cair. — Ele mudou muito. Não é que não goste de você, ele sofreu com a perda dos pais e teve que se transformar em um homem muito cedo, essas situações mudam as pessoas. Assinto. Realmente perder os pais deve ter sido terrível, eles eram muito apegados. O cãozinho parece também sentir minha tristeza, porque vem se deitar aos meus pés. — E você, Ilda? Por que trabalha pra ele agora? E sua pousada? — Ah, menina. Quase ninguém se hospedava lá, ficou inviável manter aquele lugar e as coisas foram se modernizando. Eu e o Genaro não lidamos bem com tecnologia, fomos ficando pra trás. Levi ofereceu a ele o cargo de caseiro e eu vim para cozinhar. Moramos na casa da frente aí e a vida no campo é maravilhosa. Além de já estarmos velhos. — Que bom que estão felizes. Fico contente por ele também, saber que conseguiu reerguer o sítio e transformar nessa fazenda linda. — Não só isso. Hoje os Vilasboas são responsáveis pela maioria dos empregos de Vale, boa parte dos homens trabalha aqui. Com os cavalos, os cuidados com as plantações, o café... — Café... Dizem mesmo que é o ouro de Minas. Incrível — comento,

admirada. — O senhor Vilasboas não mexe só com café, ele não para, é cheio de ideias. Olho para os lados, sondando se de repente ele não está por perto, porque Ilda só elogia e Levi não me parece andar merecendo tantos. — Ele está em casa? — Saiu. Ele nunca diz onde vai, mas não deve demorar. — Tudo bem. Qual o nome do meu amiguinho aqui? — pergunto, acariciando a cabecinha preta ao lado da cadeira. — Pacino... Abro um sorriso ao ouvi-la. — Sério? O filho do Al é o Pacino? Está explicado porque Levi não me disse o nome. Ele sabia que eu ia rir e ele quer só lágrimas e mau humor. Ilda sorri também. — Acho que vou dar uma volta por aí... — Tudo bem. As pessoas vão adorar te ver aqui. — Ela ri alto. — Vão enlouquecer quando souberem. Suas palavras me travam, não apenas por evitar essa situação, mas porque se divulgarem onde estou, meu pai irá chegar em poucas horas.

— Tem razão. Acho que vou ver televisão, então. Aliás, Ilda... Mais alguém mora nessa casa? Prefiro não ser surpreendida — sondo, como quem não quer nada. — Não. O senhor Vilasboas não se casou e como a Lalá foi pra cidade, não tem mais ninguém por aqui, mas tudo que precisar pode me pedir e estou a um grito de distância, mesmo fora do horário de trabalho. — Ótimo então, quem sabe eu ache um filme que fiz? Pode me ajudar a entender o porquê de ter começado com isso. Ilda assente, empolgada. — Vai ficar tudo bem. Se quer minha opinião, aquele em que você é uma executiva arrogante é um dos melhores. Faço uma careta só de imaginar o papel. Levanto-me da mesa e arrasto-me até a sala que vi quando cheguei. Encontro os controles sobre o sofá e ligo a televisão, agradecendo por terem mantido a premissa de que o botão vermelho liga e desliga e a tela grande ainda é o que deve ser. A alegria acaba aí. Quando surgem as opções na tela, simplesmente não sei para onde seguir. — Ô Ilda... Cadê o DVD? A mulher aparece na porta, com uma expressão estranha.

— Ninguém usa DVD mais, amor. É só entrar na Iluminar e escolher o que assistir. Observo a tela e encontro a opção, uma logo dourada. Sem entender muito bem, mas seguindo o que Ilda diz, aperto sobre o ícone e vejo centenas de filmes surgirem na tela. — Que maravilha! É como ter uma locadora dentro da televisão. Ilda ri, meneia a cabeça e sai, deixando-me sozinha outra vez. Digito meu nome no campo de busca, mas não encontro nada. Não sei os nomes dos títulos para pesquisar especificamente. Estou tentada a procurar na internet, quando ouço o barulho de passos atrás de mim e viro-me a tempo de ver Levi entrando no cômodo. — Oi... — digo, tentando puxar conversa. Ele apenas me oferece um olhar gélido e segue para a escada. — Levi, só um minuto, por favor. Ele para no primeiro degrau e retira o chapéu escuro; me perco por um momento admirando o conjunto que ele se tornou. A camisa preta agora está aberta até quase o umbigo e posso ver os pelos aparados no peito. Há um leve brilho de suor sobre a pele dourada e engulo seco, tentando reencontrar minha voz.

— O que foi? — É que... Ele passa a mão sobre os cabelos, arrumando-os e levando a camisa a se erguer um pouco, revelando um pedaço de pele e a entrada, que leva para baixo da calça jeans. — Fala logo, quero tomar um banho. — Ah sim. Eu quero ver um filme, mas não sei mexer nisso aqui, queria ver um dos filmes que estão dizendo que eu fiz... Com certeza vou me envergonhar, mas quem sabe consigo entender porque decidi fazer isso? — A Iluminar não tem filmes seus. Mas tem vários outros, escolhe outra coisa. Ele volta a subir. — Mas... Levi suspira tão pesadamente que vejo seus ombros subirem e descerem. — Não está perdendo nada, Clara. Assiste um filme bom, é só escolher. Abro a boca diante do insulto e o observo se afastar, sem retrucar, afinal não sei se ele tem razão, mas agora fiquei com medo. Ele é bem idiota, mas eu sou ainda mais por me permitir incomodar

com seus comentários e sua frieza. Escolho um filme qualquer e passo a tarde assistindo televisão sem realmente prestar atenção; meus pensamentos se voltam a todo instante para a vida estranha que dizem ser minha e a vontade de me pesquisar na internet é grande, mas o receio pelo que vou encontrar é ainda maior. Além disso, sinto cada vez mais curiosidade com relação ao meu rosto. Levi volta para a sala um pouco depois e sem me dirigir sequer um olhar, pega a escada que leva ao andar inferior e some lá embaixo. Ilda se despediu de mim tem algum tempo e simplesmente estou entediada. Calçando um par de chinelos que encontro no armário, saio para a varanda da fazenda, determinada a conhecer os arredores. A tarde já está no fim e com certeza os funcionários de quem Levi falou, já estão indo para casa. Minha intenção é ir até o lago atrás da casa e descobrir por mim mesma como ele veio parar aqui, já que ficava mais distante, mas sou atraída por um barulho nos estábulos. Eu deveria evitar as pessoas, mas imagino que seja Genaro, o marido da Ilda e faz muito tempo que não o vejo. Pé ante pé, aproximo-me da construção de madeira. Não vejo ninguém a princípio e passo pelas baias em silêncio, ouvindo o relinchar dos animais.

— Levi? — Ouço a voz de um homem chamar. — Vem aqui, preciso te mostrar uma coisa. Caminho na direção da voz, mesmo sendo bem óbvio que a pessoa não fala comigo. Paro na última baia e vejo um homem abaixado; a pata de um belo cavalo marrom sobre as pernas dele. Não se parece muito com Levi. É um pouco mais magro, mas usa o mesmo estilo de roupas e o chapéu também é semelhante. — Essa ferradura... Acho que é por isso que ele não correu como esperava... Ele volta o rosto para trás e se depara comigo. Sinto meu rosto se aquecer de constrangimento, principalmente pelo modo como o homem loiro me olha. — Você não é o Levi... — Eu... Saí pra dar uma volta. Desculpe atrapalhar. O homem ergue a sobrancelha e abre um sorriso cínico, dou as costas preparada para sair rapidamente. — E não vai cumprimentar direito um velho amigo? Amigo? Viro-me outra vez e analiso as feições dele.

— Desculpe. Eu te conheço? Ele desce a perna do animal e se levanta, arrumando o chapéu antes de apontar para mim. — Só porque é uma celebridade? Nem vem, Clara! — Felipe? — pergunto, reconhecendo-o por fim. — Vem me dar um abraço! São muitos anos. Ele abre os braços para mim e eu acabo abraçando-o um pouco sem jeito, afinal, mesmo antes nunca fomos tão próximos assim. — O que? — Ele me fita percebendo minha expressão. — Você é famosa agora, vou dizer pra todo mundo que te abracei no estábulo. Arregalo os olhos já buscando a saída, mas ele começa a rir e balança a cabeça achando graça da minha reação. — É brincadeira, Clara. E então? O que faz aqui? Ele olha atrás de mim e depois volta os olhos para o meu rosto. — Cadê o Levi? Ele não me disse que tinha vindo pra cá. — É complicado... Felipe parece entender isso, pelo modo com que assente. — Não vim de propósito. Sofri um acidente e não consigo me lembrar das coisas...

Agora sim ele parece confuso. — Como assim? Lembrou de mim agora há pouco. — É... Não lembro do que houve nos últimos anos. É bem frustrante, sabe? — Ah, que merda... — É mesmo. Eu acordei e não lembrava de nada. Levi estava lá, mas muito mais velho e eu não me lembrei de ter ido embora. Foi bem esquisito. Felipe assovia, surpreendido com minha história bizarra. — Quer dizer que achou que estavam namorando, ou algo assim, todo esse tempo? Assinto com um gesto. — E ele? Tá tudo bem? — Se ele estar bem significa ser grosseiro, sem educação e me evitar a todo custo, então sim, ele está. Felipe solta um riso baixo. — Mais ou menos isso. — Por quê? — pergunto, inconformada. — Por que ele ficou desse jeito? Ele era... — Diferente. Mas Clara, não foi legal o que você fez.

— E o que eu fiz? Não sei o que foi que eu fiz pra merecer isso. — Você foi embora — ele dá de ombros. — Sem dizer nada, simplesmente entrou no carro com seu pai e sumiu, o Levi ficou muito mal com isso. — Mas por que eu faria isso? Não consigo acreditar. Eu estava apaixonada, nós fizemos planos. Não posso ter sumido sem me explicar e o deixado sem motivo. — O porquê eu não sei, vocês nem falavam que estavam juntos e Levi também não sabe. Esse é o maior problema. — Mas... E as outras pessoas? A Ilda o chama pelo sobrenome e não o vi tratar ninguém com educação até agora. Não vai dizer que esse comportamento também é culpa minha. — Não. É a vida, Clara. Você foi embora e ele se fechou um pouco, os pais dele morreram e isso acabou com o cara... Se quiser ficar aqui, acertar as coisas, vai precisar ter paciência. — Não é isso. Não tem nada para ser salvo aqui, mas eu queria entender. Felipe ergue os olhos e se concentra em um ponto atrás de mim. — Pensei que não fosse aparecer. Sinto a presença dele atrás de mim, mas não me viro.

— O que faz aqui, Clara? — sua voz soa grossa como um trovão e luto para não me encolher como um bichinho assustado. — Você disse que não podia ir até lá embaixo, não disse que o estábulo também era proibido — respondo, ainda de costas. — Disse que era melhor evitar andar por aí, evitar que descubram que está aqui. — Não estou vendo o Felipe me pedindo autógrafos... — Não pedi — Felipe fala, achando graça em nossa discussão. — Mas se quiser autografar um contrato de casamento, estou disponível. Sua fortuna viria a calhar... Acabo rindo com ele. — Quer minha fortuna? — brinco. — E como vai fazer com o outro noivo? Vai sumir sem dizer nada? Levi alfineta e me lembra de algo que tenho evitado mesmo em pensamento. Meu riso morre e abaixo a cabeça. — Conversamos depois, Felipe. Tchau. Viro-me e dou de encontro com Levi, mas esquivo-me e volto para a casa, sem olhar para trás.

“A diferença do amor e o ódio é que por ódio você mata… por amor você morre!” Saída de Mestre

— O que ela estava fazendo aqui? — pergunto depois de vê-la sair irritada. — Sei lá. Apareceu aí na porta do nada. Mas e você? Veio ver o cavalo? Abro um sorriso, me esquecendo por um momento de Clara. — Não. Vim contar que trouxeram o touro. Felipe já caminha na direção da porta, animado.

— Mas, escuta... — Alcanço-o saindo dos estábulos. — O que vamos fazer com o touro? É arisco demais. Não me deixou nem chegar perto dele e não sei se é uma boa ideia montá-lo. Sinto-me bem irritado com isso. Mandei trazer o animal depois de ler sobre ele no site da Professional Bull Rider. O touro foi uma mistura dos melhores animais de rodeio, uma união genética com um resultado sanguinário, mas se Felipe não conseguir montá-lo não vai me servir de nada e, ao mesmo tempo, pode ser arriscado subir nele. — Como assim não sabe? Pagou um valor alto nele pra que eu pudesse treinar. Vou montar e fazer história em oito segundos — Felipe responde. Mas ele não viu ainda esse touro em ação. — Cara, esse animal... Não sei. Até o olhar dele parece diferente. Parece... Cruel. — Eu vou ganhar, Vilasboas — responde, como se não tivesse me ouvido. — Não tenho medo de que perca. Mas se esse animal te derrubar... Ele é grande mesmo e muito raivoso. — Estão dizendo que ele é o rei de Barretos e é por isso que eu o quero, vai ser uma proeza e tanto montar o Assassino. Meneio a cabeça, desanimado com a empolgação dele.

— Só toma cuidado, peão. Felipe me olha e ri. — Preocupado comigo, amor? Onde ele está? — No pasto. Colocaram ele dentro da cerca e ninguém quer chegar perto. As crianças da cidade já estão falando nele. Viram o caminhão chegar. — Acabo rindo também. — O bicho já virou lenda. — Eu também vou virar... — Uma lenda viva, eu espero. — Deixa de ser mole, Vilasboas. Já viu um touro me derrubar? — Então vamos ver seu oponente. Seguimos na direção do cercado branco, passando pela casa de Genaro no caminho. O velho nos vê da janela. — Vão ver o Assassino? Vou com vocês. Ele nos alcança logo e continuamos juntos. O animal foi colocado dentro do cercado branco sozinho, até os outros animais pareceram ter medo dele. Nos aproximamos e Felipe sobe na cerca para ver melhor. — Ele é magnífico. — Parece um demônio — Genaro fala, refletindo meu pensamento.

— Vocês dois são medrosos demais — ele ri. — Sinto o cheiro da vitória daqui, cheia de adrenalina e aplausos. Olha só o sol se pondo e os raios refletindo sobre ele... Parece uma pintura. Meneio a cabeça. — Se você diz. — Falando em oponente, não me disse o que a Clara está fazendo aqui. Olho pra Felipe sem abrir cara. Não é meu assunto preferido. — Não tenho ideia do que ela fazia na estrada, mas bateu a cabeça e foi parar no hospital, as pessoas começaram a falar e precisei esconder a madame. Felipe ri alto. — Ela já te ouviu chamá-la assim? — pergunta. Olho para os dois que esperam minha resposta. Genaro cospe no chão e abre um sorrisinho. — Vou chamar a Clara de Estrelinha. Já posso imaginar a cara que a dondoca vai fazer. Começo a rir também ao ver as expressões deles. — Você é um babaca. Por que não conta umas vantagens? Mostra como é podre de rico agora, exibe a empresa e depois tenta se acertar com a

mulher? — Porque eu não quero nada com ela. Que ideia ridícula. Clara e eu não temos nada em comum e não quero que saiba sobre a empresa, ouviu? Escutou, Genaro? Pode falar com a Ilda. Estão proibidos de contar a ela sobre isso. Os dois me olham de lado, mas não retrucam. Apesar das caras de deboche, sei que não vão desobedecer. — Vou entrar — informo e vejo os dois idiotas se olhando. — Não é por causa dela. — Estou indo pro Porta, se precisar beber... — Genaro grita. Velho debochado. E não é mesmo por causa dela. Se eu pudesse a evitaria o tempo todo, mas Clara está por toda parte. Passei o dia de ontem evitando-a e a noite atolado de trabalho para não ter que interagir. Por sorte, Clara vai embora hoje, porque onde quer que eu vá, lá estão as provas de que ela realmente está aqui. A cozinha cheira a doces e bolos, indicando que Ilda decidiu agradá-la como a uma convidada especial e agora, no sofá da sala, encontro pedaços de papel, escritos à mão e espalhados displicentemente. Descobrir porque fui embora.

Por que Levi me odeia tanto? Felipe se casou com a Lena? Visitar Paula e Mário. Descobrir quem é meu noivo e se eu o amo. Estou segurando um dos papeis na mão quando ouço um pigarreio atrás de mim. Inferno. — Acho que isso é invasão de privacidade — ela diz. — Na verdade, conheço como: bagunça no meu sofá. Minha resposta parece crível o bastante, porque abaixando-se, ela se apressa a juntar tudo. — Desculpe. Sei que não estou em casa, mas considerando os últimos acontecimentos, estou tentando me encontrar, sabe? — Sei. Não seria mais fácil procurar na internet? Deve ter sua biografia na Wikipedia e sempre pode perguntar aos seus amigos. — Eu tentei! Mas nem você, nem a Ilda e nem o Felipe... — Não somos seus amigos, Clara. Não te vemos tem quinze anos, nós nem mesmo te conhecemos. Mas como vai embora hoje, pode perguntar ao seu pai, seu noivo, suas amigas... Ela troca o peso do corpo de um pé para o outro. O movimento atrai

minha atenção para as pernas bonitas, expostas pelo short curto. — Sobre isso, acho que não vai ser possível. Os anos fizeram bem a ela fisicamente e não é sem motivos que é uma das mulheres mais desejadas do país. Subo os olhos, fitando a cintura fina e os seios fartos envolvidos por uma blusa decotada. Será que ela colocou silicone? Me parecem muito naturais. — O que disse? — pergunto, ao notar que ela aguarda uma resposta. — Não posso ir embora hoje. — Óbvio que pode. Seu pai vem te buscar, tenho certeza. — Não vem... Porque não liguei pra ele, sabe? Isso me faz voltar à razão. — Como assim não ligou? Ficou louca? O mundo deve estar te dando como sequestrada, desaparecida. Seus olhos se desviam dos meus, evitando-me enquanto diz o que fez. — Avisei uma amiga e pedi que dissesse a ele e ao Leonardo, meu assessor, que tirei férias. Estreito os olhos na direção dela e dou um passo para mais perto. — Férias? — pergunto em tom que beira a ameaça. — Na minha fazenda? Não mesmo, Clara. Quero você fora daqui hoje ainda.

Os olhos dela são expressivos demais e nesse momento isso é uma merda. Noto quando as lágrimas se acumulam e por mais que eu esteja sendo sincero em cada sílaba, também não quero lidar com choro feminino. — Não precisa disso... — contesto ao ver que ela está prestes a cair em pranto. — Precisa, sim — responde com a voz embargada e depois se senta no sofá. — Pra onde eu vou? Não tem mais uma pousada na cidade e você quer me colocar pra fora daqui. Não lembro nada sobre a minha vida e ainda assim fica me dando um tapa atrás do outro... Vejo a primeira lágrima descer e me sinto mal pelo modo que a venho tratando. Não considerei a perda de memória ou o que Clara está passando, apenas agi em um impulso para tirá-la de perto de mim o quanto antes. A verdade é que grande parte de mim não acredita que ela tenha mesmo perdido a memória, é muito improvável, mas pensando em uma possibilidade remota, decido ser um pouco mais maleável. — Está bem. Talvez eu tenha sido um pouco cruel, mas você tem que entender que sua chegada foi repentina e que não estou acostumado a ter alguém aqui, gosto de ficar sozinho. Pode ficar até o final da semana, tudo bem? Mas preciso mesmo que se prepare para ir embora. Ela concorda, mais calma e seca o rosto com as costas da mão.

— Alícia vem me buscar no sábado... — Certo — respondo apenas. — É minha amiga, segundo ela. — Isso sobre sua memória é muito chato. Sinto muito — digo, me esforçando para ser um pouco menos maldoso e não atirar minhas suspeitas sem provas. — Obrigada, eu acho... Quero ver um dos meus filmes, fiquei obcecada por isso agora. Mas esse negócio na sua televisão não tem nenhum. Acho que não sou tão famosa como estão dizendo. Estaciono no meio de um sorriso, me contendo em tempo. — Não é bem assim. Esse negócio, como disse, é uma plataforma de streaming e parece, pelo que anunciaram, que todos os seus filmes vão entrar no catálogo. Os olhos dela se erguem e me fitam. — Quando? Você sabe? — questiona, já parecendo mais animada. — Não sei, disseram que você ia assinar um contrato. Seu assessor deve saber. Ela concorda, agitada e vejo-a pegar o celular. — Vou ligar pra ele...— Então Clara faz uma careta. — Esse Leonardo

parece ser insuportável. Não sei o que responder a isso, então apenas observo enquanto ela pesquisa o contato dele na agenda e coloca o aparelho no ouvido. — Leonardo? — Ouço-a questionar no telefone. Deixo a sala e sigo para meu quarto, mas mesmo estando sozinho, não consigo esquecer que ela está aqui. Apesar de não admitir, estou curioso a respeito de tudo. Quero saber quem ela é, se é aquela que aparece na mídia, nos tabloides, que namora galãs de novela ou outra pessoa completamente diferente, e é exatamente porque não posso cavar esse buraco, que decido sair de casa. Troco de roupa e deixo a casa pelos fundos; a noite já caiu e em poucos minutos chego a Vale e sigo para o Porta Sem Trinca, como Genaro sugeriu. É uma boa hora para tomar algumas cervejas e esquecer essa confusão toda com Clara. Apesar de ser início de semana, o bar tem algum movimento. As mesas de madeira estão ocupadas em sua maior parte e a música se mistura com a conversa alta, enchendo o lugar. Mário está servindo uma dose para o Genaro e me aproximo dos dois; puxo um banco ao lado do meu caseiro e cumprimento-os com um aceno. — Faz dias que não vem aqui, Vilasboas — Mário cumprimenta, dando

um tapa em meu ombro. — Alguns dias. No sábado, saí pra buscar umas coisas pro meu estoque particular de bebidas e foi uma burrada sem tamanho. Se tivesse vindo aqui estaria tudo ótimo, não teria me arrumado essa dor de cabeça enorme. — Por quê? O que aconteceu? Genaro me olha de lado e solta uma risada baixa. Velho safado. — Problemas, só problemas, cara — respondo, evitando o assunto. Mário olha para o outro, esperando que ele diga alguma coisa, mas Genaro sabe quem paga seu salário. — O patrão encontrou uma velha amiga... Sabe porcaria nenhuma. — Que velha amiga? — Mário olha de um para o outro e então arregala os olhos. — É verdade, então? Ouvi as fofocas de que a Clara Coutinho estava no hospital. Saiu todo mundo pra ir lá ver se era verdade, mas não acharam ninguém. — É porque ela não está no hospital — Genaro fala baixo, meio sussurrando. — Genaro! Você é pior que uma vovó fofoqueira, viu? Mário me dá as costas e abre o freezer. Volta em poucos segundos com

uma garrafa de cerveja, que ele abre antes de me entregar. — E onde ela está, então? — Na fazenda — digo, tentando soar casual. A gargalhada dele me alcança na mesma velocidade que me irrita. — Como assim, cara? — Mário insiste. — Conta essa história direito. A Clara apareceu do nada e você levou ela pra casa? Pensei que a odiasse. Faço uma careta pro comentário dele e tomo um gole da cerveja. — Não odeio. Na verdade, nem me lembro direito dela, é alguém indiferente — respondo e noto a forma como Mário e Genaro se olham. — Se continuarem com essa bobagem vou embora e não conto nada. Genaro já se arriscou muito me irritando hoje, não acha? Mário ergue as mãos em sua defesa e fica quieto, esperando enquanto narro os últimos acontecimentos. — Nos encontramos por acaso, mas ela caiu e bateu a cabeça. Tive que levá-la ao hospital e ela passou a noite em observação. Mas algum idiota falou demais e as pessoas descobriram. Então Aguiar me pediu pra esconder ela até que venham buscá-la. — Então o imbecil do Alessandro vem pra cá? Faço que não.

— A Clara diz que não se lembra de nada, não quis ligar para o pai, sei lá porque. Mas uma amiga vem pegar ela no sábado. — Como assim não se lembra? — Bateu a cabeça. Parece que é uma perda de memória temporária, não sei o que é verdade e o que é fingimento. Mário enche outra vez o copo de Genaro, assentindo. — Então vão ficar só vocês dois na sua casa a semana toda? Cara, o que você tá fazendo aqui? É a Clara Coutinho, metade da população masculina mundial iria querer estar no seu lugar. Genaro faz um gesto indicando que concorda com Mário. Dois idiotas. — Vim beber. Acha que vou mudar minha rotina por causa de uma estrelinha mimada? — Eu gosto de estrelinhas... — Ouço a voz baixinha da menina e olho por sobre o balcão, encontrando Athena e sua boneca. — Oi, princesa. Tudo bem? — pergunto, chamando a atenção da garotinha. Mário pega a filha e a coloca sentada sobre o tampo de madeira. — O papai não disse que era pra você ficar lá dentro? Ela faz uma carinha de coitada.

— O papai falou, mas aquele desenho é muito chato... Quero bolo. Mário olha para mim e para Genaro, com evidente desespero. — Filha, não tem bolo aqui. Amanhã o papai faz um bem gostoso, tá bom? Agora fica lá dentro quietinha. Athena desce do balcão e corre para os fundos do bar, para o pequeno apartamento em que mora com o pai. — Ela é tão esperta — Genaro fala. Pela expressão de Mário, é nítido o orgulho que sente da filha, principalmente porque não deve ser fácil criá-la sozinho. — Por falar nisso... — Coço a cabeça me lembrando dos bilhetes que encontrei no meu sofá. — Acho que a Clara quer vir aqui, mas se ela realmente não se lembra das coisas, então não sabe sobre a Paula. Mário franze o cenho. — Ninguém contou? — A Lena disse que avisou, mas se o fez ou não, não faz diferença nesse novo cenário. — Acha que... Pode contar pra ela? Sabe que não gosto desse assunto. Concordo estendendo a garrafa a ele em um oferecimento de brinde. Mário evita a todo custo falar da esposa e de como a perdeu no nascimento da

filha deles. Uma complicação no parto, alguns minutos e de repente ele se tornou um viúvo com uma bebê nos braços. — Eu conto. O Felipe não veio aqui ontem à noite? Nem quis vir hoje com você, Genaro? — questiono, mudando o assunto. — Hoje não. Por quê? — Encontrei ele e a Clara conversando mais cedo. Pensei que teria comentado alguma coisa com você, Mário. — Encontrou os dois? Você não estava em casa? — Eu estava. Foi ela quem saiu e foi para o estábulo... — comento, meio contrariado. — A Clara e o Felipe estavam no estábulo? Sozinhos? Ele não disse nada, Felipe é muito discreto sobre as mulheres que... Ergo o rosto para explicar que não é bem isso, mas encontro o sorriso no rosto do idiota. — Imbecil.

Clara O tal Leonardo atende no segundo toque e preciso ser realmente a atriz

que dizem que sou para não me entregar e não deixá-lo perceber que não me lembro dele. — Leonardo? — Que isso, Clarinha? É Leo pra você. Mas pode me dizer onde se meteu? Sua amiga me ligou dizendo alguma loucura sobre férias. Clara, não pode tirar férias agora! Não é o momento... Ouço a voz dele e sinto irritação, provavelmente ele me deixa irritada com frequência. — Olha só, Leo. Estava pensando naquela coisa da Iluminar... — Seu pai não quer que assine, Clara. Problemas pessoais dele com alguém de dentro da plataforma. — Não quero saber. Diga a ele que já assinei e que só vou voltar pra casa depois que isso estiver fechado. Ele fica mudo por um momento e temo ter sido descoberta; analiso minha fala tentando encontrar o equívoco. — Uau, você foi firme agora. A verdade é que também acho uma ótima ideia, mas seu pai é quem manda, sabe disso. — Eu sei que você não pode ser um assessor se não tiver uma cliente. Então faça o que estou dizendo e me mande o contrato assim que desligarmos. Vou assinar agora e quero que liberem esses filmes ainda

amanhã. Ouço-o rir do outro lado da ligação. — Clara, isso aí já é com a Iluminar. Não posso determinar que dia vão colocar os filmes, eles seguem um cronograma. — Avise que vamos cancelar, caso não liberem amanhã. — Mas, Clara... — É só isso, Leo. Se tudo for conforme estou dizendo, segunda-feira que vem estarei em casa. Desligo o telefone, tremendo levemente e aguardando que ele me ligue em seguida. Isso não acontece e, aos poucos, começo a relaxar. Meu celular apita um pouco depois com a notificação de um novo email, que por sorte não pede a senha. Leio o contrato e até me assusto com a quantia exorbitante que me é oferecida. Agora preciso imprimir isso para assinar e enviar ainda essa noite. Olho ao redor, tentando imaginar onde Levi guarda sua impressora, afinal, ele aproveitou minha ligação para sair de casa. Penso em ir lá embaixo, onde ele disse que costuma trabalhar, mas imagino que isso possa causar problemas em nossa situação já complicada. — Lê? Onde você está? — Uma voz de mulher chama do hall.

Fico parada no meio da sala, sem saber como agir. Não sei se me escondo ou se apenas espero. Mas enquanto penso, a mulher chega até a sala e estaca na entrada no cômodo. — Não acredito nisso! — exclama. — Ai, meu Deus do céu! Senhor, amado, da glória e perfeito! Uma interjeição e tanto. A loira caminha apressada até onde estou e, sem nenhum aviso, cutuca meu rosto com a ponta do dedo. — É você de verdade! Eu vou até me sentar antes que desmaie. Desculpe pelo surto. É que eu sou tão fã do seu trabalho, muito mesmo, adoro as comédias românticas. — Ela junta as mãos na frente do rosto e me encara com um fascínio apavorante. — E aquele seu noivo? Ai, vocês são o melhor casal do mundo! Cruzo os braços, encarando-a com um sorriso sem graça. — Ann, obrigada — respondo sem saber o que dizer diante da empolgação da moça. — Não lembra de mim, né? — ela prossegue. — Tudo bem, já me beneficiei por aí dizendo como nos conhecemos. — Nós somos amigas? — questiono, sem saber quem ela é. A garota me olha estranho e depois solta um riso engasgado.

— Não. Eu não diria tanto, já que a última vez que me viu eu tinha sete anos. Fito-a de baixo a cima, detendo-me nos cabelos e na cor dos olhos. — Lalá? Ela balança a cabeça, afirmando. — Sou eu. Mas e você? O que faz aqui? Ai meu Deus! Não vai me dizer que o Lê sempre foi seu grande amor e agora abriu mão de tudo e até do Túlio para ficarem juntos? Isso é tão romântico! É a minha vez de rir. — Sinto muito, mas não é isso. Precisei ficar aqui, mas volto pra casa no final de semana. Lalá parece desapontada por um momento. Mas se recupera bem rápido. — Tudo bem. Acho que seria loucura mesmo trocar o Túlio Mark pelo Levi. Observo-a com mais atenção, evitando concordar ou discordar, ouvindo o nome completo do meu noivo pela primeira vez. Lavínia é jovem ainda, mas já é uma mulher. Mesmo assim, apesar do corpo feminino, ela está agindo como uma menina, com uma animação

contagiante. — Lalá... — Me sento ao seu lado. — Acho que preciso da sua ajuda. — O que quiser! — Bom, você disse que é minha fã, certo? Quero saber tudo que puder me dizer sobre mim. Ela me encara, confusa. — Minha memória desapareceu. Não lembro de nada dos últimos anos — confesso. Ela escancara a boca, surpresa e vejo seu semblante entristecer. — Eu sinto muito. Você acabou de ficar noiva e te acontece isso... — É mesmo? O noivado é recente? Ela assente, se alegrando outra vez. — Túlio é um sonho. Ele é loiro, tem lindos olhos verdes e um sorriso incrível, mas deve ter visto fotos, certo? Vocês se conheceram atuando em um filme de romance e apaixonaram-se durante as gravações, mas apesar de já namorarem há um ano, foi no último sábado que ele fez o pedido de casamento, logo depois que você recebeu um prêmio ao vivo. — E eu aceitei? — interrogo, as informações me deixando atônita. — Eu parecia feliz? — questiono, me dando conta apenas agora, que estou

sumida há três dias e esse noivo nem mesmo me ligou. — Bom... — Lavínia parece pensativa. — Você não pareceu exultante. Também não chorou de emoção, mas sorriu e balançou a cabeça. Também reflito um momento, tentando buscar alguma memória e me pergunto outra vez porque estou sem aliança. — Olha, você já viu o Túlio depois que perdeu a memória? Faço que não. — Vou te mostrar. Ele é um escândalo! — E... E eu? Tem alguma coisa estranha no meu rosto? Lavínia franze o cenho. — No seu rosto? — É, eu sou esquisita? Quero me ver no espelho, mas é um pouco assustador. Ela pega o celular e digita alguma coisa; em poucos instantes Lavínia encontra o que quer e vira o aparelho para que eu veja. Fotos de um rapaz bonito estão por toda parte. O cabelo loiro perfeitamente alinhado, o sorriso branco e muito certinho, os olhos alegres... Ele é perfeito. E exatamente esse é o problema. Perfeito demais, o tipo de rapaz que meu pai sempre quis que eu

namorasse e nem de longe me parece uma escolha minha. Quando penso em Levi e seus olhos intensos, a barba cerrada, os cabelos sempre fora de ordem, bagunçados pelo chapéu, as mãos calejadas mesmo quando ainda era um menino. Os dois são completamente opostos. — E então? — ela pergunta. — Ele é lindo — respondo. Não posso trair meu noivo, dizendo o que realmente achei. — Não é? Agora olha só vocês dois. Dessa vez a foto que ela me mostra é uma imagem em que ele está abraçado a uma moça em um evento. Ambos sorrindo para a câmera. Meus olhos se desviam de Túlio para mim; por mais que seja a primeira vez que me veja depois do acidente, não há nenhum grande estranhamento. Fito os traços do meu rosto, meus cabelos e a cor dos meus olhos, me conhecendo outra vez e ainda assim, sem surpreender-me com minha aparência. Sou eu, como me lembro, mas um pouco mais velha e com mais corpo que antes. Observo minha expressão e não acho que seja sincera ao lado dele, mas não dá pra saber com certeza. — Viu? Linda como uma deusa — ela diz.

Sorrio meio sem jeito. — O que mais sabe sobre mim? — Sei de todos os seus filmes... — Ahhh, falando nisso. Preciso assinar um contrato, sabe onde Levi tem uma impressora? — Lá embaixo tem uma... — Imaginei, mas ele me proibiu de ir lá. Não quer que eu veja seja o que for. Lavínia assente, parecendo compreender o que é. — Tem uma ali, ao lado do computador, vem. Ela sai andando pela casa e apenas sigo-a de perto, até pararmos em frente ao computador sobre o qual falou. Sento-me diante dele em uma cadeira macia e Lavínia o liga, mostrando-me como fazer. Ela também me ajuda com a impressora e em pouco tempo tenho o contrato nas mãos. — É um contrato com a Iluminar? — questiona, curiosa. — Sim, eles querem todos os filmes e eu quero que liberem logo pra que eu possa assistir. Quem sabe me ajuda com alguma lembrança? Lavínia se cala por um instante, pensativa e fico encarando-a,

aguardando sua resposta. — Podíamos ver juntas. O que acha? — Uma ideia excelente! Seu irmão não quer nem ficar em casa comigo aqui, vai ser bom ter companhia. Ela assente e oferece uma caneta para que eu assine o contrato.

“Só melhoramos se jogarmos com alguém melhor do que nós.” Match Point

A terça-feira passou muito rápido e nem mesmo vi quando Levi retornou para casa, assim como ele não viu que sua irmã esteve na fazenda. Já a quarta acordou depois de mim. Antes mesmo que o sol nascesse eu estava acordada, com os olhos super abertos e uma energia ridícula. De acordo com Leonardo, que insistia em me ligar — e eu em rejeitar suas chamadas —, ele havia acertado tudo com a Iluminar e apesar de terem sido reticentes de que não poderiam fazer o que eu pedia, aceitaram incluir dois dos filmes ainda na quarta.

Meu celular vibra com outra mensagem dele e dessa vez consigo abrir sem me atrapalhar tanto. “Clara, parece que vão liberar os filmes em poucas horas e os outros no decorrer da semana. Falei com seu pai e ele disse que vai relevar essa situação desde que você diga onde está e volte pra casa ainda hoje...” Reviro os olhos, quase consigo ouvir a voz do meu pai dizendo aquilo. “Segunda-feira que vem.” Levanto-me animada, hoje o dia pode ser diferente. Quem sabe o filme seja exatamente o que preciso? Pode ser que sirva de gatilho para que me lembre de tudo. — Clarinha? — Dona Ilda chama, abrindo a porta. — Já cheguei. Ouvi seu barulho aí dentro e imaginei que estivesse acordada. — É, parece que hoje meus filmes vão estar naquela plataforma na televisão do Levi. Estou ansiosa, nem consegui dormir direito... —Agora fez sentido — responde, sorrindo. — Bom, não tem porque se preocupar. Você é uma atriz excelente. Faço uma careta para o comentário. — Eu odiava atuar... O que será que mudou em mim? Tinha fobia de palcos e multidões.

— Sobre isso não sei. Mas que você estava linda naquele “Sob o mapa do oriente”, estava. Parecia uma Cleópatra. Ai, meu Deus. A conversa apenas me deixa mais nervosa. — Sabe o que precisa? De um bom café da manhã. O senhor Vilasboas já saiu, acho que foi ver o gado com o Felipe e dar uma olhada nas plantações, mas parece que acordou de bom-humor, porque deixou a mesa posta pra você. A propósito, eu não estava aqui ontem quando o doutor Aguiar veio te ver, o que ele disse? Ele não viria na segunda? Ergo a sobrancelha, descrente. Ontem à noite, após Levi me expulsar e eu envergonhar a mim mesma chorando na frente dele, nossa relação teve algum avanço. Levi se desculpou e agiu com um pouco mais de humanidade, mas depois disso desapareceu e não o vi mais, então é uma surpresa que ele tenha pensado em mim e preparado uma refeição. Ainda de pijama, um curto demais para minhas pernas, desço para a cozinha, seguindo Ilda. — Nada importante. Disse que estou bem e que a pancada na cabeça não parece ter deixado maiores sequelas além da memória. Segundo ele não há motivos para que eu não me lembre, então espero que a qualquer momento isso aconteça e, sim, ele teve um problema no hospital segunda-feira e isso o

atrasou. Além da garrafa de café, tem uma jarra com leite fresco e outra com suco de laranja. Algumas fatias de pão, bolo, queijo e geleia. Tudo disposto sobre a mesa. — Ele fez tudo? — pergunto, realmente surpresa. — Não fez, mas cortou e pôs a mesa. Fez o café e o suco, se serve de consolo. Fez o café literalmente, já que é da fazenda, moído e torrado aqui. Abro um sorriso ao ouvi-la. Não posso mesmo imaginar Levi amassando um pão e conferindo-o no forno, mas posso sem dúvidas imaginálo fazendo força para moer os grãos. — E como vão as coisas aqui? Estão lidando melhor? — Ilda pergunta, servindo-se de um copo de suco, enquanto eu opto pelo café. — Na verdade, ontem tivemos uma briga. Mas depois disso ele pareceu diferente... — Sinto muito, menina. Eu vejo no seu rosto que não o imaginava assim. Dou de ombros, bebericando e me deliciando com o café. — A verdade é que não sei o que eu pensava a respeito dele mais... Sei que com minhas memórias atuais comprometidas, só me lembro de como era na adolescência. Não conheço Levi como homem.

Dona Ilda franze os lábios, para em seguida abrir um sorriso malicioso. — Tudo bem que o patrão é meio mal-humorado, mas que se tornou um homem muito bonito, você vai ter que concordar. Meu sorriso acompanha o dela e me inclino para que Ilda me ouça sem precisar falar muito alto. — Lindo ele era quinze anos atrás. Agora? O que ele fez? Onde conseguiu aqueles braços? Ai, Ilda e aqueles olhos? Quanto mais ele me olha parecendo que quer me matar, mais me enlouquece. Ela começa a rir e eu a acompanho. — Bom dia... — Ouço a voz dele atrás de mim e arregalo os olhos. Ilda interrompe a risada e começa a tossir, não sei se fingindo ou se foi o susto. Levi passa por nós e olho-o de esguelha, tentando descobrir se me escutou. Não vejo sequer a sombra de um sorriso sob a barba sexy, mas ainda assim sinto meu rosto arder de vergonha. — Bom dia, senhor — Ilda responde e seu olhar de pavor me lembra de dizer alguma coisa. — Bom dia, Levi. Não te encontrei ontem pra contar que deu tudo certo. A Iluminar vai liberar dois dos filmes hoje e os outros durante a semana.

Ele assente com a cabeça e abre o armário, pegando uma xícara. — Obrigada pelo café da manhã... — continuo. Levi apenas assente outra vez, agora retirando o chapéu e colocando-o sobre a mesa. Noto que ele usa a mesma roupa de ontem e não parece ter dormido muito bem, mas não me atrevo a perguntar nada a respeito e minha mente começa a criar cenários diversos sobre onde ele esteve. — Ilda, viu o Felipe? Ele disse que ia tentar montar o touro hoje, mas sumiu. Acho que minha expressão é transparente, porque ele me olha com ar interrogativo. — Por que tem um touro? — questiono. — Felipe monta, não sabia? É um dos melhores peões do país, ele compete e tudo mais. — Na verdade, não sabia — respondo, realmente impressionada. — Mas ainda assim, as competições não são aqui, são? — Não. Esse é um dos mais difíceis de montar e Felipe vai treinar com ele. Mas compramos geralmente pra reprodução e como ele entende disso melhor que eu, sempre levo aquele idiota junto. — De reprodução? — pergunto, percebendo tardiamente o duplo sentido.

Ilda engasga ao me ouvir e Levi me olha feio, deixando a cozinha em seguida. — Ele ficou bravo! Ai minha boca enorme, porque fui falar isso? Ilda libera a risada que estava escondendo e eu mesma acabo rindo junto. Reprodução. Ai, meu Deus!

Depois de almoçar e de também servir um pouco de ração e água para o Pacino, passo a tarde esperando pelo filme e enquanto aguardo, assisto Dirty Dancing, porque é muito provável que eu seja masoquista e que fique me punindo por seja lá o que for que tenha feito para afastar Levi de mim. Tenho tentado observar meus sentimentos e me compreender melhor, mas por mais que exista Túlio, não consigo encontrar nenhuma referência de sentimentos quando penso nele. Talvez isso seja a falta das memórias, que criam os laços afetivos, mas meu coração não deveria sentir alguma coisa? Levi, por outro lado, causa em mim uma avalanche de emoções. Apesar da surpresa inicial por ele não ser quem eu tinha em mente, ainda assim não

consigo tirar os olhos dele e acompanho seus passos sempre que percebo que não está me vendo. Da janela do meu quarto, vi quando ele chegou de volta, retirou a camisa em frente ao lago e depois a calça; Levi saltou na água, provavelmente se livrando da poeira e suor antes de entrar em casa. Eu, por outro lado, precisei de uns bons minutos para me recuperar. Mas não é apenas seu físico que testa minha sanidade. O jeito rude com que ele se comporta me irrita sempre, mas então ele tem uma atitude gentil e vou de um extremo a outro, toda boba, em segundos. É como se, mesmo que não tenha envolvimento algum com ele, os sentimentos fossem reais demais para serem esquecidos e isso é apavorante, porque sei que não é recíproco. Só posso torcer para que as coisas voltem ao seu devido lugar junto com minhas lembranças. Vasculho a cozinha em busca de algo para comer e encontro pipoca de micro-ondas. Lembro-me de quando vimos Dirty Dancing juntos e ele me disse que não tinha um micro-ondas. As coisas eram muito diferentes naquela época, e de lá para cá a situação dele mudou completamente. Abro a porta de inox e coloco o pacote de pipoca dentro, antes de

fechar e acionar o botão para ligar. Observo pelas grandes janelas da cozinha, enquanto ouço o barulho dos estouros. A noite já caiu e faz algumas horas que Ilda foi embora daqui. Lá fora vejo a luz da casa dela acesa. — Boa noite — a voz de Levi chama, atrás de mim. Apesar de conseguir ocultar qualquer reação, meu coração dispara automaticamente diante do som rouco. — Boa noite — respondo, sem me virar. — Pipoca? — Levi pergunta, estranhamente parecendo puxar assunto. — É, eu estava lá em cima, mas imagino que meu filme tenha saído. Vou ver agora e torcer pra sobreviver a isso. Ouço a risada baixa dele e me arrependo de não ter me virado. Queria ver como fica o rosto dele sorrindo. — Vai sobreviver. Você não é nada ruim atuando. — Sei. Mas eu gostava de escrever... — Não lembro a ele que disse algo muito diferente ainda ontem. Ouço o barulho da porta do micro-ondas se abrindo e me viro a tempo de vê-lo pegando o pacote fumegante. — Vem, vou assistir com você.

Franzo o cenho, estranhando a atitude gentil. — O quê? — questiona ao ver que não me movo. — Vai que você surta ou então se lembra de tudo de repente? Pode ser perigoso. Faz sentido, mas ainda assim não é algo que eu esperaria. Não depois de vê-lo sair furioso com meu comentário sobre reprodução. — Quer tomar um banho antes? — questiono por educação, afinal ele acabou de chegar e apesar de ter vestido outra vez suas roupas, está com os cabelos molhados. — Estou muito sujo para a princesa de Hollywood? — pergunta, exalando sarcasmo. No mesmo tom irônico e grosseiro de antes. Babaca. Passo por ele e arranco o pacote das suas mãos, esbarrando em seu ombro de propósito. — Hollywood? Sua noção geográfica nunca foi das melhores, mas francamente, se não sabe, estamos no Brasil. Sento-me no sofá com a pipoca entre as pernas enquanto aguardo que ele suba as escadas, arrependido de ter se oferecido para ficar. Mas, contrariando minhas expectativas, Levi se senta em uma poltrona separada do sofá e cruza as pernas displicente. Ele aponta o controle para a televisão e em poucos minutos encontra o filme e aperta o play.

— Qual a história? — pergunto ao ver o título extremamente clichê. Tenho aquela sensação de déjà-vu, é como se parte de mim reconhecesse aquilo, mas não é uma memória. — Férias em família — responde. — Uma garota que cresceu em uma cidade pequena e se mudou para a capital, construiu uma carreira e ficou arrogante e superficial. Ela retorna para passar férias em família, porque a avó mente que está à beira da morte. Nessa viagem, apesar de muita confusão, ela se reencontra. — Hum, não parece tão ruim. — A vida imitando a arte... Prefiro ignorar o que ele quer dizer com isso. Não sei se está se referindo ao fato de eu me reencontrar ou se apenas está me chamando de superficial. — Vamos ver. Os créditos começam a surgir e uma música alegre soa pela sala. Levi estende a mão para me roubar um pouco de pipoca e posso jurar que ele pega quase metade delas de uma vez só, antes de voltar a se ajeitar na poltrona. Olho do pacote desfalcado para a televisão e dela para Levi. — Que foi? —ele questiona, fingindo ignorância.

— Você roubou metade da minha pipoca. — Deixa de ser chata. Pra começar, a pipoca é minha, a casa também. Assim como o sofá e a televisão, então acho que deveria ser menos mimada e relaxar. Abro os olhos, surpresa com a explosão. Mas, honestamente, estou cansada de aceitar o tratamento dele sem que ao menos me diga pelo que estou sendo punida. — Come sozinho, então... — Empurro o pacote pra ele. — Olha só, acho que não devia ter ficado aqui. Você não entende a gravidade da minha situação e tem me deixado louca. Levi pausa o filme, antes de se virar e me encarar com um sorriso de lado, fazendo com que as covinhas que tanto amei ressurjam. É como se um caminhão passasse por cima de mim e me esmagasse. Por que inferno ele tem que ser tão bonito? — Sei disso. Ouvi quando disse como a enlouqueço mais cedo... Adoro o modo como você fica vermelha de vergonha — continua, enquanto permaneço estática. — Não sabia que as atrizes podiam fingir constrangimento tão bem. Se eu não soubesse como você pode ser fria... — Se você sabe, eu não sei — respondo, recuperando-me do choque inicial. — Não me lembro de ser essa pessoa dissimulada que está pintando e

nem de ter feito algo tão horrível assim pra que me odeie tanto. Se não quer me ajudar a recuperar minhas memórias, então pode, por favor, parar de atrapalhar? Seus olhos azuis passeiam pelos meus e se fixam ali. Ficamos alguns instantes nos olhando e sinto o tremor característico percorrer meu corpo. É tanta raiva e tanto desejo, que eu poderia matá-lo ou agarrá-lo no mesmo instante e não sei qual dos dois quero mais. — Vou fazer outra pipoca... — fala, de repente e se levanta. Levi me estende o pacote e solta o filme. — Pode ir vendo, eu já assisti umas quatro vezes. Então ele deixa-me sozinha com essa informação. Por que ele assistiu tantas vezes? Uma imagem surge na tela e acompanho cada passo meu sem desgrudar os olhos. A mesma sensação de familiaridade me toma, mas não me lembro de quando gravei aquelas cenas ou do que pensava em cada momento. É como se eu assistisse a uma conhecida. Levi retorna um pouco depois com dois copos e outro pacote equilibrado sobre eles. Me entrega um dos copos cheio de refrigerante e senta-se ao meu lado no sofá. Muito mais perto que antes.

O filme transcorre e tento fixar-me aos detalhes, puxando alguma lembrança escondida, mas é como se não fosse algo que vivi. É como se fosse uma mera expectadora, chego até mesmo a me divertir com a história. Levi faz um ou outro comentário esporadicamente, mencionando suas partes preferidas e opiniões sobre os acontecimentos. Quando o filme chega ao final e os créditos sobem, suspiro derrotada. — E então? — ele questiona. Tomo o restante do meu refrigerante e me viro para olhar pra ele. — Nada. Na verdade, gostei da história e realmente atuo bem, estou surpresa. Mas não me lembro de nada. — Convencida — reclama. — Não sou, não! É que eu tinha tanta certeza que ia odiar, que era péssima, que não pensei na possibilidade de ser boa nisso. O ator, por outro lado... Quem é aquele? Já vi aquele rosto em algum lugar, mas ele é tão sem graça, não achou? Muito engomadinho. Levi ergue a sobrancelha, mas não se aguenta e começa a rir. — O que foi? Não concorda? Ele ri ainda mais. — Quer parar com isso e dizer alguma coisa?

— É que... Você não faz ideia, não é? Por algum motivo cheguei a pensar que estivesse fingindo essa coisa toda da memória. Mas nem você seria tão boa assim. — Fingir? Está ficando louco? Quem fingiria algo assim? Ele dá de ombros. — Quem sabe quisesse outra chance comigo? — Ahá! E a arrogante sou eu? Esqueceu que tenho um noivo? Famoso e incrível, pelo que dizem! O sorriso dele assume aquele ar presunçoso. — Eu não me esqueci, mas você pelo jeito sim. Acabou de dizer que ele não tem a mínima graça. Abro a boca para responder e então me dou conta. Olho para a televisão e depois para Levi, me recordo das fotos que Lavínia me mostrou e não consigo compreender como não percebi antes. — Mas... A Lalá me mostrou ele. Túlio é loiro e... — Tão sem graça como quando está com o cabelo preto. Mas provavelmente faz seu tipo. Levi se levanta, pegando os dois vasilhames. — O que você quer dizer com isso?

Soltando o ar dos pulmões pesadamente, ele desvia o olhar na direção da cozinha, como se planejasse fugir da conversa. — É sério, o que foi? — insisto. — Olha só, Clara. Pensei mesmo que estava fingindo e não fui muito legal com você. Sinto muito pela sua memória, mas eu não me esqueci de nada. Assisti muitas das suas façanhas durante esses anos, e ele, esse Túlio, é o tipo de cara que você gosta; vocês são a Barbie e o Ken do Brasil. — Não sou desse jeito! Não é possível que você me conheça tão pouco que pense algo assim de mim. — Eu não te conheço nada, Clara. Faz muito tempo. — Tem razão. Provavelmente eu goste de homens como ele, justamente por serem tão diferentes de você. Levi estreita os olhos, como um predador, mas não vou parar. Ele não pode ser o único a dizer o que pensa. — Que foi? Não é errado querer um homem que sabe se vestir, conversar sem atacar os outros e oferecer carinho ao invés de farpas! — É mesmo? — questiona. O tom baixo, perigoso. — Ainda gosta de romance e de fazer amor sob a luz da lua, Estrelinha? Veio ao lugar errado, não faço isso mais. Gosto das coisas mais selvagens. — Estrelinha? Eu... É ridícula essa conversa. Não pensei nisso nem por

um segundo. Nem sei do que está falando — faço-me de boba, meu coração faltando sair pelo meio do peito. Passo ao lado dele, tentando escapar da conversa. — Eu mostro — sua voz chega até mim ao mesmo tempo que seu braço me alcança. Levi envolve minha cintura e me puxa de volta. Minhas costas batem contra seu peito e arfo, surpreendida e entregue. A mão calejada passeia pela minha perna exposta pelo short e sinto a fricção que me enlouquece. Seu outro braço me mantém presa no lugar e agradeço por isso, ou poderia cair no chão, sem forças. — Sabe... Por trás dessa pose de boa moça, sensível e delicada, acredito que exista uma mulher cheia de tesão. Quer montar em mim, Estrelinha? A voz dele no meu ouvido me tira a razão. Viro-me de frente e agarro-o pelas lapelas da camisa, puxando-o para mais perto. O sorriso atrevido desponta e, pouco antes de colidir minha boca contra a dele, o som alto da campainha me traz de volta à realidade e me afasto em um pulo. — Espere aqui, ainda não terminamos.

O tom é de ameaça e promessa e realmente não consigo me mover. Levi se afasta até o hall e o acompanho a passos lentos, lembrando-me que Lavínia disse que viria ver o filme comigo. Para minha surpresa, no entanto, não é Lalá que vejo quando a porta se abre. — Oi, Lê. Trouxe nosso jantar... Ele observa a ruiva, inerte e sem responder uma só palavra. — Esqueceu da nossa noite? Sem reação, vejo quando ela passa a mão pela nuca dele e o envolve em um beijo apaixonado. Só então reconheço Lena.

“Nunca desista, encontre um jeito, pois é assim que fazem os vencedores.” Dando Onda

Antes que Levi note que o segui ou que Lena me veja, dou as costas aos dois e volto para a sala, evitando qualquer barulho. Sinto as lágrimas se acumularem em meus olhos e me esforço para não deixá-las caírem. Seria idiotice, Levi não é nada meu e isso não foi uma traição. Ainda assim sinto como se fosse. — Vamos dar uma volta, Lena? Hoje não estou a fim de ficar em casa.

Se eu esperava que ele dissesse algo, que contasse que estou aqui ou me desse alguma prova de que os dois não estão juntos, a esperança se foi ao ouvi-lo dizer isso. Em seguida, escuto o barulho da porta batendo e depois da caminhonete sendo ligada. Respiro mais aliviada ao entender que estou sozinha, mas ao mesmo tempo a sensação é horrível. Racionalmente, eu entendo que mal o conheço e que Levi e eu não temos nada há muitos anos, mas infelizmente apenas meu lado racional entende as coisas assim. Minhas emoções se sentem traídas e o modo como ele me tocou pouco antes da interrupção também não ajuda em nada. Preciso de ar. Calço os chinelos e deixo a casa, saindo para a varanda. A noite está fria e eu deveria estar usando calças grossas e uma blusa, no mínimo, e essa realidade me atinge assim que o ar gelado encontra minhas pernas. A luz nos estábulos está acesa e imagino que seja Felipe, mas não vou até lá. Eu não saberia mentir sobre o que acabo de ver e não é mesmo da minha conta. — Ei, Clara! — a voz dele me chama, confirmando minhas suspeitas.

— Vem aqui. Parece que nasci para ser testada. — Muito frio! — grito, respondendo ao convite. A luz se apaga e uma lanterna de celular brilha no escuro, enquanto Felipe caminha na direção do casarão. Ele para aos pés da escada com um sorriso debochado ao me encarar toda encolhida. — Sabe que já é inverno? Você está na roça, Clara. Faz frio. — Pois é, dentro de casa não parecia... — Então vai se trocar. Que tal ir tomar uma bebida com um velho amigo? Analiso a ideia, não me parece algo que eu faria. — Não sei... E se me reconhecerem? — Vamos no bar do Mário. Veste alguma coisa bem ao estilo de Vale e coloca uma touca, ou um chapéu, não deve estar muito cheio hoje. Penso na oferta. Eu realmente quero ir ao bar desde que cheguei e agora que Levi saiu não tenho mesmo companhia. — Anda logo, vai. Caminho para dentro da casa e subo até o quarto, trocando-me com

rapidez. Escolho calças jeans um pouco largas para mim e uma blusa de frio florida, a cara de Lavínia. Calço um par de botas, e finalizo o disfarce com o chapéu marrom que encontrei sobre a mesa de cabeceira. Não sei em que mundo isso é me esconder, porque para mim, parece chamar ainda mais atenção. Quando retorno para fora, Felipe sorri com aprovação. — É quase uma moradora local. Simbora, celebridade, vou te ensinar como se bebe. Sigo-o para dentro de um uno velho e ouço a música sertaneja ecoar pelos autofalantes potentes logo que Felipe liga o carro. — E então? Como vai a coisa da memória? — Coisa da memória? Sabe, vocês não são muito sensíveis com relação a isso por aqui. Felipe meneia a cabeça. — É, não quer dizer que não nos preocupamos. Só demonstramos de outro jeito... — Sei — respondo. — Ainda na mesma, consigo me conectar com algumas coisas e pessoas, mas não me lembrei de nada. Hoje vi um filme que fiz, achei familiar, sabe? Mas não lembrei...

Felipe aquiesce enquanto batuca os dedos ao som da música, no volante. — Vai lembrar. Já deu uma volta pela fazenda? — Não. Levi disse que as pessoas podem me reconhecer e cercar e não sei se estou preparada pra isso. — Uai, se te cercarem sai batendo em todo mundo e pronto. Não tem que ter medo disso, vai ficar trancada lá? — Vou embora no sábado, então não é tanto tempo, mas estou pensando em dar uma volta amanhã. Ele me olha de lado, antes de voltar a fitar a estrada. — Pensei que talvez fosse ficar por aqui... — Por que eu faria isso? Erguendo as mãos para o alto, ele dá de ombros. — Não está aqui quem falou, moça. — Não. Foi uma pergunta mesmo, não sei se me encaixo na minha vida atual, mas também não devo me encaixar aqui, sabe? Vivi pouco mais de um mês em Vale do Recomeço e isso foi há muito tempo. — Eu entendo. Mas você e Vale foram feitos um para o outro — diz, oferecendo-me uma piscadela em seguida.

Faço uma careta para a frase, porque é como se ele dissesse, você e Levi. Entramos na cidadezinha pouco depois e Felipe vira na direção do bar. Quando descemos do carro, noto que está tudo exatamente como antes. A fachada, a rua, nada mudou muito por aqui e isso me traz certo alívio. — Vem, garota... Felipe retira o próprio chapéu e seus cabelos claros contrastam com o escuro da camiseta preta. Ele sorri como se estivesse aprontando alguma, mas só me dou conta do que é, quando entramos no bar. Levi está sentado em uma mesa aos fundos e ao lado dele está Lena, bebericando um suco ou algo assim. Tem um outro homem junto deles que não reconheço. — Felipe — sussurro. —Você sabia que eles estavam aqui? — Eles quem? — pergunta, descaradamente. Ele segura minha mão e me puxa na direção do balcão, onde arrasta um banco para que eu me sente e depois senta-se ao meu lado. — Levi e a... — Lena? — É... Você sabe dos dois, então? — pergunto, ainda em tom baixo.

— O que vão beber? — Sou interrompida quando o mesmo homem que os acompanhava agora há pouco para diante de nós. — Duas cervejas. Uma pra mim e uma pra minha amiga aqui... — Felipe fala e aponta na minha direção com a cabeça. O gesto atrai a atenção do homem que inclina o rosto, observando-me por baixo do chapéu. — Clara? Pensei que não fosse vir me ver. Ergo os olhos e analiso os traços dele. Uau, o que essa cidade coloca na água desses homens? Mário envelheceu muito bem, deve estar beirando os quarenta anos e ainda é um dos homens mais bonitos que já vi — ao menos dos que me lembro. — Mário! — cumprimento, abrindo um sorriso. — Quanto tempo, hein? — Muito mesmo... E esse chapéu? Um disfarce? Fica tranquila que se alguém te incomodar aqui eu coloco pra fora. Abro um sorriso com o comentário. — É, não sei se sabe da minha condição atual, mas prefiro não lidar com essa coisa toda de fama agora. Ele concorda com um gesto e caminha até o freezer para buscar as

cervejas. — E por aqui, Mário? Muita coisa mudou? — pergunto, olhando ao redor disfarçadamente enquanto procuro por Paula. — Bom, além das mudanças ruins, que acho que o Vilasboas já te contou, as outras foram pra melhor. Por exemplo, agora temos Wi-Fi. Ele abre as garrafas e as empurra para nós. — Muito bom! — falo, sorrindo com a brincadeira e torcendo para que wi-fi seja algo legal. — Olha só, tem até abridor de catchup nas mesas — comento e ele sorri de volta. — É a modernidade... Vou atender aos outros clientes, mas fique à vontade e qualquer coisa é só gritar. Mário se afasta levando algumas cervejas para as mesas atrás de nós e sinto a cotovelada de Felipe, não muito discreta. — O Vilasboas não contou, né? — Contou o quê? — Sobre a Paula... Como nego com a cabeça, ele prossegue. — Paulinha morreu no parto da primeira filha deles. Tem uns cinco

anos já. Cubro a boca com a mão, surpresa com a péssima notícia e me inclino na direção dele. — Isso é horrível — comento. — Por que ninguém me disse nada? Aliás... Não sei se disseram. Obrigada por comentar, eu estava prestes a perguntar sobre ela. — Por isso eu disse. Imaginei que não soubesse, e Mário não gosta de falar sobre isso. — Não sabia. Como ia saber? Levi está ocupado demais enfiando a língua na boca dessa sem-vergonha pra lembrar de me falar sobre coisas importantes. Tomo um longo gole da cerveja, absorvendo a informação triste. — Sinto muito... — Felipe diz. — Nós tivemos muito tempo para assimilar a tragédia, mas pra você é como se fosse agora. Assinto. — Sim, minha ficha não caiu. E desculpe por falar da Lena assim, não sei qual sua relação com ela hoje em dia. Felipe ri, se divertindo com minha fala. — Relação nenhuma. Demorei demais pra perceber que ela gostava

dele, mas depois que você foi embora e o Levi ficou sozinho, aos poucos a maneira com que ela agia foi ficando mais óbvia. Terminei o namoro quando entendi tudo... — Sinto muito. — Tem quinze anos, Clara. Nem penso nisso mais. — Mas e a sua amizade com Levi? Isso não te incomoda? — Na verdade, ele só começou a sair com ela de uns dois, ou três anos pra cá e nunca assumiram um namoro. Acho que é a primeira vez que os dois saem juntos em público e imagino que seja porque você está na fazenda. É só um lance, sabe? Não me incomoda, a não ser pelo fato de que Levi merece coisa melhor. — Eu entendo. Mais ou menos... — Olho por sobre o ombro e meu olhar encontra o dele, que está fixo em nossos movimentos. — Quer dizer que eles não são namorados? — A Lena quer isso tem tanto tempo que acho que ainda não entendeu que não vai rolar. É só sexo. A maneira como ele fala faz parecer que é uma besteira, mas não vejo assim. Só sexo. A imagem dos dois se beijando no hall da fazenda já é o suficiente para fazer meu estômago embrulhar. — Parece que isso incomoda mais a você que a mim — Felipe

comenta, tomando sua cerveja para soar natural. Passo as mãos pelo rosto, tentando levar uma luz aos meus pensamentos e ao que sinto. — Eu não sei porque fui embora, mas pelo que entendi, foi decisão minha me afastar. Não tenho o direito de sentir ciúmes dele. — É, não tem mesmo. E você está noiva, certo? Aquiesço. — Mas ainda assim... — Ainda assim — concordo, abrindo um sorriso fraco. — Bom, se serve de consolo, você não é a única. Sinto que os olhos dele vão queimar minha nuca a qualquer momento. Ergo a sobrancelha, compreendendo o significado daquilo. — Acha que ele está com ciúmes de nós dois? Só estamos bebendo uma cerveja. Felipe sorri, encantador como sempre e passa o braço pelos meus ombros, antes de aproximar a boca do meu ouvido. — Não tem como ele saber disso. Espalmo a mão sobre o peito dele e abro um sorriso bobo. — Você não presta...

— E você realmente atua bem. Arregalo os olhos percebendo que o que ele diz é verdade e me afasto. — Desculpe, eu não devia ter feito isso. Felipe segura minha mão e beija a palma dela. Mas que cachorro! — Devia, sim. Estou me divertindo com isso. Posso perder o emprego amanhã? É possível, mas vou ter rido um pouco às custas do Vilasboas. — E se for coisa da sua cabeça? Eles estão juntos. Por que ele sentiria ciúmes? — Vamos descobrir logo. Sigo o olhar dele e vejo Levi vindo até nós. Os olhos azuis faíscam como chamas vívidas e até seus passos parecem mais pesados. Ele para entre mim e Felipe e me olha aparentando estar com raiva. — O que está fazendo aqui, Clara? — Bebendo com o Felipe — respondo, apontando para a garrafa, demonstrando como é óbvio. — Não devia ter saído. E se as pessoas te virem? Deu sorte que o bar está quase vazio, mas ainda assim é melhor ir embora. — Ah, não seria o fim do mundo se me vissem. Pela ótima companhia, acho que o risco vale a pena.

— É mesmo? — O olhar dele se estreita e sua mão toca meu braço atraindo minha atenção. — Vamos embora, Clara. — Não, obrigada. Você já tem uma acompanhante e não pode esperar que eu vá junto, no mesmo carro. Ele olha de mim para Felipe e volta os olhos para Lena, que não parece muito feliz e tenta discernir de longe o que está acontecendo. — Vocês eram amigas. Podem ficar juntas no mesmo carro só até que eu a deixe em casa. — Isso foi há muito tempo, as coisas mudaram. Naquela época ela era namorada do Felipe e agora, veja só. Levi passa a mão pelo rosto, exasperado e eu apenas sorrio. — Felipe precisa ir pra casa dele e nós vamos para o mesmo lugar, é mais viável que volte comigo. Não é Felipe? Ele se volta para o amigo, a mão apoiada no ombro dele com mais força que o necessário. Mas Felipe nega. — Não precisa, Clara veio comigo e faço questão de levá-la de volta. Temos muita conversa pra pôr em dia. Ainda nem falei do que aconteceu com o João!

— Ah, o João! O que houve com ele? — pergunto ignorando Levi e sua carranca. — Se mudou do país. É jogador de futebol internacional, acredita? Abro a boca, tamanha a surpresa. — Vai gastar combustível — Levi interrompe. — Mas se você tem certeza. — Vamos, Lê — Lena aproxima-se por trás e apoia a mão na curva do braço dele, possessivamente. Tento manter meu olhar nos olhos dela, sem demonstrar o quanto a intimidade com que age com Levi me incomoda. — Oi, Lena. Há quanto tempo — cumprimento. Ela abre um sorriso alegre demais e arregala os olhos em falsa surpresa. — Clarinha! Não posso acreditar que esteja aqui! Ai, meu Deus! Você é tão famosa agora, o que veio fazer em Vale? Opto pela verdade, afinal de contas sendo o pai dela quem é, Lena já deve saber mesmo. — Não vim. Sofri um acidente na entrada da cidade e Levi me levou ao seu pai, mas estou me recuperando e vou embora logo... — E como isso aqui não foi invadido por repórteres ainda? — ela

questiona, olhando ao redor. Como se fossem brotar câmeras de repente. — Estou mantendo tudo em segredo. Agradeceria se não contasse a ninguém. — Pode contar comigo — ela diz. — Então está ficando na casa do Lipe? Ela olha de mim para o ex-namorado e abre um sorriso especulativo. — A Clara está ficando na fazenda — Levi conta. Vejo o sorriso dela vacilar um pouco, mas Lena disfarça bem. — Entendo. Bom, vou passar por lá qualquer dia desses para colocarmos a conversa em dia... Como pode ver, muita coisa mudou. — Estou vendo — respondo. Ao que parece, não sou mais tão boa em me manter calada. — Vou indo, então. Te vejo na fazenda, Clara. Ergo a garrafa em despedida a eles e os vejo se afastando na direção da porta. — Parece ter sido uma reunião e tanto — Mário surge com outras duas garrafas e um riso irônico. — Não, é? — concordo. — Senti tanta falta dela... Felipe e ele acabam rindo e engrenamos em outros assuntos por algum

tempo. Mário conta um pouco sobre a filha e o bar e Felipe narra as aventuras nos rodeios país afora. Acaba sendo uma noite divertida, mas não consigo deixar de pensar em Levi e Lena e no que eles podem estar fazendo nesse momento. Um pouco depois, meu celular vibra com a mensagem recebida. “Está demorando. Preciso trancar a porta da frente.” Mostro a mensagem para Felipe e me pergunto quando foi que Levi pegou meu número. Não me lembro de ter me pedido. — Bora lá. Acho que já arrisquei meu pescoço o suficiente por hoje — Felipe responde. O caminho de volta para a fazenda parece muito maior que antes, leva uma eternidade para que eu aviste a porteira branca. Ou talvez seja apenas a minha ansiedade para chegar logo. Durante o percurso, Felipe me explica em detalhes o que é o wi-fi e como funciona e inclusive coloca a senha da internet da fazenda no meu celular, afirmando que vai melhorar a velocidade. Ainda estou furiosa com Levi e mesmo com tantas novidades não consigo deixar de imaginar que talvez Lena não tenha ficado na fazenda. Preciso saber.

Quando Felipe para o carro para que eu desça, noto as portas da casa abertas e sei que Levi está me esperando acordado. — Clara... — Felipe chama e me volto para ouvi-lo. — A Lena é só uma mulher, não é um obstáculo de verdade. — Eu vou embora, Felipe. Tenho uma vida me esperando. — Eu sei. Mas talvez não seja a vida que você esperava. Me despeço com um aceno e subo as escadas da frente do casarão rapidamente. Antes que eu chegue à porta, Levi sai de dentro de casa, impedindo meu caminho. — Você demorou. Estava no bar até agora? — Quis te dar privacidade pra ficar com a sua namorada. A camisa dele está meio aberta, os cabelos bagunçados e o cheiro de álcool que chega até mim indicam que ele bebeu bastante. — Lena não é minha namorada. — Desculpe. Fiquei confusa quando vi vocês se beijando. Levi caminha mais alguns passos e apoia as mãos no cercado da varanda. Permaneço às suas costas, parada. — É só... Ela aparece às vezes. Mas a levei do bar para casa, eu tinha me esquecido que ela viria hoje, não planejei isso.

— Imagino que não. Você queria me mostrar como é selvagem e másculo. De certa forma acabou fazendo isso, só não foi comigo. Levi espalma a mão contra a madeira do cercado, nervoso. — E você? Por que me seguiu? — Acha que segui vocês? Eu nem sabia que tinha ido para o bar, Felipe me convidou pra sair e eu aceitei. Só isso. Levi aquiesce, mas vejo o modo como suas mãos agarram a madeira com força, tentando controlar-se para não dizer o que quer. — Você... Está interessada nele? — No Felipe? — questiono enquanto vejo o uno se afastar e sumir na estrada. — É. Foi um encontro? Ele te beijou? Abraço o corpo, protegendo-me do frio. — Está esfriando mais. Vou entrar e dormir, Levi. Boa noite. Viro-me para deixá-lo ali, mas ele me contém pelo braço e vira-me de frente. Seus olhos tem aquele magnetismo inexplicável, que me mantém cativa e faz-me ansiar pela perdição. — Me diz, Clara.

Me recuso a responder. Não quando eu mesma o vi beijando outra. — Isso não é exatamente da sua conta, Levi. Ele me segura pelo outro braço também, prendendo-me ao lugar, a poucos centímetros do corpo dele. — Eu estava muito bem sem você aqui e aprendi a aceitar que as nossas vidas não tem nada em comum. Mas enquanto estiver sob o meu teto, não vou aceitar que outro homem te beije. — Não é como se fosse uma decisão sua, senhor Vilasboas. Eu decido quem vou beijar. — Então me diga o que decidiu sobre isso... depois. Levi circunda meu corpo com os braços e puxa-me para perto com ímpeto. Sua força estreita meu corpo frágil, colando meu peito ao seu, enquanto sua boca ressignifica a palavra selvageria. Sua barba fere minha pele, enquanto seus lábios tomam os meus com uma fúria cega. Sem aviso, sinto a língua dele deslizar para dentro de mim, reivindicando algo que sempre foi seu. Um arrepio de paixão percorre meus braços, meu corpo e chega até mesmo à minha face. Passo as mãos pela nuca dele, temendo que Levi desapareça, caso eu o solte. Seus dedos sobem minha blusa, encontrando a pele nua das minhas

costas e enlouquecendo-me por inteira. Ele afunda as pontas dos dedos na minha carne, com tal força que imagino suas marcas sobre mim no dia seguinte. É um desejo visceral e descontrolado. Busco mais dele, embrenhando minhas mãos por sob sua camisa. No entanto, ao menor toque dos meus dedos sobre sua pele, ele reage como se o tivesse queimado e me afasta, ofegante. — Chega — diz apenas. A respiração entrecortada. E sem nenhuma explicação, Levi entra, deixando que dessa vez o frio me atinja com força.

“A única pessoa em seu caminho é você mesmo.” Cisne Negro

Noite do truco. Por que diabos fui inventar essa babaquice na minha casa? O pior de tudo é que, se tratando de uma noite entre amigos, que já perdura há alguns anos, é impossível desmarcar sem um motivo aceitável e simplesmente não posso dar a eles meus motivos. Clara. Não a quero perto deles, principalmente do Felipe, mas não tenho esse direito e, no fundo, sei disso. Ainda assim me irrita pra caramba. A verdade é que ela já tem uma pessoa para preencher esse lugar, apenas não se lembra dele e não é justo que

eu me imponha aproveitando esse lapso. Mas perco a cabeça sempre que fico sozinho com ela e, por essa razão, talvez a noite do truco nem seja mesmo uma má ideia. Felipe chega mais cedo, trazendo um fardo de cervejas, Mário não demora muito a aparecer e vem sem Athena dessa vez. Genaro é o último a chegar, por mais que seja aquele que mora mais perto. Não demora muito e o padre Fernando estaciona em frente à fazenda e decidimos nos revezar no jogo, para que todos participem. Montamos a mesa — um tampo de madeira sobre um barril velho — nos fundos da casa, em frente ao lago e coloco alguns bifes na grelha para comermos depois. — Quero só ver se ele tem mesmo alguma coisa, Genaro — falo, chamando a atenção do meu parceiro de jogo. — E vai arriscar tudo nessa aposta? E se ele tiver com o zap? — Quero arriscar. Você vai comigo? Ele assente. Coloco meu sete de ouros na mesa e vejo quando Mário meneia a cabeça, em um sinal claro de que ele não tem uma carta maior. Felipe o encara com desagrado e vira um três de espada, entregando a

segunda rodada para nós e retornando com o sete de copas. — Truco nesse sete! — grito, fazendo alarde. — Eu duvido que tenha alguma coisa, não vem com esse joguinho pra cima de mim, Vilasboas. Eu pago pra ver, vira isso aí. Ele provoca e, com um sorriso descarado, viro o quatro de paus sobre a carta dele, vencendo a última das três rodadas. O jogo continua e ninguém leva muita vantagem, mas nos divertimos um pouco. É lógico que uma hora a diversão tem que chegar ao fim e quem melhor que ela pra acabar com a minha noite? Clara surge na porta com os cabelos ainda molhados do banho, uma blusa preta decotada e uma saia mais justa que a própria justiça. Pacino, um verdadeiro traidor caminha ao lado dela, como se tivesse mudado de time. Lógico que se ela ficasse fazendo carinho nos meus cabelos e me agradando o tempo todo, eu também teria minha fidelidade testada. — Boa noite, meninos — cumprimenta, animada. Mário a retribui com um gesto e Felipe a puxa para dar um beijo estalado em seu rosto. Genaro faz um sinal de joia e o padre apenas a encara, curioso.

— Clara, lembra do padre Fernando? —pergunto, mesmo que irritado com a aparição dela. — Padre! Quanto tempo, claro que me lembro dele... O padre continua quieto. — O senhor não se lembra de mim, não é? Tudo bem, tem muito tempo. — Se eu não lembro? Vi todos os seus filmes, menina. Posso dizer que sou um admirador apaixonado do seu trabalho, porque não podemos ter ídolos além de Deus, então não posso ser um fã... — Semântica, padre — Mário comenta e o religioso dá de ombros. — Senta aqui, menina. Logo vou jogar com um deles, mas enquanto isso vamos conversando. Clara não espera segundo convite e realmente se senta ao lado do velhote. Pacino se senta ao lado dela, no chão. — E então? Quem vai jogar comigo? — o padre pergunta, esperando uma resposta de Felipe ou Mário, que perderam a rodada. — Posso ser a parceira dele? — Ouço a voz dela questionar. — Você? — O próprio padre parece surpreso. — Eu gosto de truco... — responde, Clara. — Não sei quanto tempo faz

que não jogo, mas é como andar de bicicleta, imagino. Ninguém discorda e os dois se juntam a nós, ocupando os lugares de Mário e Felipe. Embaralho as cartas e vejo que Clara mantém os olhos focados nas minhas mãos, observando se estou fazendo direito ou se estou roubando, não sei dizer. Entrego três cartas para cada um deles, viradas para baixo e depois viro as minhas para saber o que tenho, enquanto os outros fazem o mesmo. Mário está na churrasqueira, virando os bifes, mas Felipe faz questão de se posicionar atrás de Clara para ajudá-la com o jogo. Infelizmente, para mim, o rosto dele por cima dela me leva a imaginar a visão privilegiada que ele tem dali e isso faz com que eu perca a concentração. É idiotice. Não apenas porque não é da minha conta, mas porque Clara é a mulher que foi embora sem olhar para trás e eu não deveria me sentir possessivo com relação a ela e muito menos enciumado. Mas não posso evitar, principalmente depois do beijo de ontem, que, ao invés de arrefecer meu desejo, me deixou ainda mais louco de vontade de prensar seu corpo contra a parede e me perder nele. Mulher maldita. Destruiu minha vida anos atrás e agora voltou pra

terminar o que começou. Eu queria dizer que não dirigi um só pensamento a ela durante esses anos, mas com seu rosto estampando capas de revistas e protagonizando dezenas de filmes, seria impossível. — É a sua vez, Levi... — o padre chama, me tirando do devaneio. Viro minha carta e espero que Clara faça sua jogada. Ao invés de colocar a carta dela sobre a minha, ela abre um sorrisinho malicioso e, sem se exaltar, olha dentro dos meus olhos. — Truco... — diz, baixinho. O convite é para o jogo, mas sua voz é sensual e baixa. A língua passeia pelo lábio e sinto meu pau ganhar vida, como se o convite fosse para outra coisa, muito diferente. — Vou onde quiser, Estrelinha — respondo. Apesar dos meus constantes comentários sobre sua atuação, Clara não se mostra muito boa em blefe. Geralmente quando ela aposta alto é porque tem as cartas necessárias e, se não tem, ela se esquiva. Talvez a sorte esteja com ela e o padre, ou talvez seja o modo como ela me olha, o jeito como sorri e a onda de raiva que me acomete a cada vez que Felipe se inclina sussurrando algo no ouvido dela, mas quando vejo estamos perdendo de lavada. — Levi onde está com a cabeça? — Genaro reclama.

Felipe diz algo baixinho para Clara e com uma das mãos coloca os cabelos dela atrás da orelha. Me levanto de repente, atraindo os olhares confusos de todos eles. — Estou com fome. Acho que já podemos comer, pessoal — explicome, disfarçando. Por sorte os bifes já estão bem passados e Mário começa a fatiá-los enquanto busco mais cervejas no freezer. O resto da noite passa sem maiores contratempos, mas quando Clara se isola em um canto para comer e vejo Felipe ir atrás dela sem nenhum pingo de vergonha na cara, decido que já é hora de encerrar a brincadeira. Por mais que negue, tripudie e evite o assunto, ele, Mário e meus amigos mais próximos conhecem a verdade do que ela significa e tudo que fiz, inicialmente pensando nela. Então é uma filhadaputagem sem tamanho, que ao menor sinal da presença de Clara, ele dê em cima dela assim, sem nem mesmo fingir o contrário. Passa da meia-noite quando declaro que estou com sono e expulso todos da minha casa. Clara me ajuda com a louça e não parece achar ruim fazer isso. Na verdade, ela o faz de um modo tão mecânico que eu não diria que não

costuma lavar os próprios pratos. — Vou tomar um banho... Ela apenas balança a cabeça, concordando, mas seus pensamentos estão longe. Estamos assim desde ontem, desde que a beijei e depois me afastei sem explicações. Clara Um pouco antes. O jogo vai muito bem. Por algum motivo Levi está desconcentrado e o padre é realmente um bom parceiro. — Você está acabando com ele. Sabe disso, né? — Felipe sussurra em meu ouvido. Apenas dou de ombros, não tenho como responder em voz alta. — É sério. Ele não tira o olho de você, chega a ser patético. Acabo rindo do comentário, enquanto uma parte de mim torce para ser real. Tento prestar mais atenção, ver se realmente Levi está me olhando como Felipe afirma. Mas logo ele acaba com a brincadeira, levantando-se do nada e dizendo que está com fome. Todos fazemos o mesmo e o acompanhamos para nos servir.

Genaro come e faz um prato caprichado para Ilda, antes de se despedir de nós. Estou terminando de comer em um canto, quando ouço os passos, seguidos pela voz de Felipe. — Clara, posso falar com você? Assinto e aponto para o pedaço de tronco à minha frente. — Olha, Levi é meu melhor amigo tem muitos anos — diz, sentando-se no lugar que indiquei. — Essa noite ele deve me odiar, mas não posso resistir à provocação, principalmente porque sei que é para o bem dele. — Se você diz — respondo, achando graça. — É sério. Sei que mesmo não se lembrando, você tem uma vida fora daqui, tem seus planos. Mas se existe no seu coração algum sentimento por ele, deveria dar uma chance a isso. Tentar outra vez. Ele parece querer dizer algo mais, mas seus olhos se voltam para o chão e ele não o faz. — Levi não quer isso, Felipe. Só me deixou ficar aqui porque implorei, ele é quem tem outros planos. — Ele quer ter outros planos. Mas tudo é por você e sempre foi. Sei que parece loucura, Deus sabe que tentamos enfiar isso na cabeça dele por muito tempo, afinal vocês passaram um verão juntos apenas, mas sei lá...

Acho que pra algumas pessoas bastaria um dia. Me silencio por fora, mas estou gritando por dentro. Será possível que Levi se sinta assim? Porque é o que sinto em cada fibra do meu corpo. Que fossem quinze minutos, algumas horas ou um dia, Levi se embrenhou em meu coração com apenas um olhar. — Ele já te deixou descer ao andar subterrâneo? Faço que não, minha curiosidade devidamente aguçada. — Vá até lá, mesmo que ele brigue. A vida dele é aquilo lá e o reconhecimento que ele conseguiu. Se reparar nos detalhes, vai ver que vale a pena insistir no que vocês têm, seja o que for. Se passaram quinze anos, mas e daí? Quantos outros vocês têm pela frente? Felipe pisca pra mim, antes de se inclinar e beijar minha testa. Quando ele se distancia, vejo Levi parado do outro lado, nos observando. Esse peão safado... Levi acaba declarando que está com sono — de uma maneira um pouco rude, devo salientar — e os amigos dele decidem ir embora. Ajudo-o com os pratos e os talheres e estou remoendo o que Felipe disse, quando Levi me avisa que vai subir e tomar um banho.

Vejo-o se afastar na direção das escadas e penso por um momento. Se eu for rápida, posso descer até lá enquanto ele estiver longe e voltar antes que perceba. Só preciso descer, ver o que ele mantém em segredo e voltar antes que me descubra. Atiro o pano de prato sobre o balcão e tomo minha decisão. Quando os passos dele somem no corredor de cima do casarão, os meus descem sorrateiramente para o andar proibido. Diferente do resto da casa, tudo aqui é moderno demais, sem o toque rural tão característico da fazenda. As escadas são cobertas por um carpete preto e há pequenas luzes de led saindo dos cantos dos degraus, iluminando o caminho. Chego ao fim e me deparo com uma porta preta, também revestida de carpete e abro-a, quase esperando que esteja trancada. Mas não está. Ela se abre e revela diante de mim um corredor. Tateio as paredes em busca do interruptor e o encontro logo e quando o aperto, várias luzes se acendem e iluminam o caminho. São pelo menos três salas e tenho a sensação estranha de estar descobrindo algo crucial, mesmo que não faça ideia do que é. Abro a primeira porta e me deparo com uma longa mesa de trabalho. Sobre ela, um computador ultra moderno, diversas pastas pretas e uma pilha

de papéis; no topo deles há um calendário, a data de 27 de junho desse ano circulada: premiação ao vivo. E logo abaixo uma nota: Smoking ok. Não sei bem o que isso significa ou o que Felipe quis dizer, noto apenas um escritório muito elegante, a julgar pelo frigobar preto e os estofados que aparentam valer muito dinheiro. Mas então eu vejo. Entre os dois sofás, em quadros fixados na parede, estão pôsteres com fotos minhas. São cartazes dos filmes que fiz e, por mais que não seja tão estranho considerando o que faço da vida, é uma parede que foi feita por um fã. Alguém que não apenas assistiu a todos os filmes, como também fez questão de enquadrar os cartazes deles. Sinto que meus olhos se enchem de lágrimas ao imaginá-lo aqui, martelando a parede e fixando cada uma dessas imagens, enquanto eu fazia alguma coisa muito ridícula mundo afora. — Pensei ter dito que não te queria aqui. Ouço a voz dele e fecho os olhos, reconhecendo que estou encrencada. Seu tom é áspero e duro e deixa claro o quanto está irritado. Tento me acalmar e respiro fundo, antes de justificar-me.

— Clara? — O carpete abafa o som dos passos dele e quando me dou conta, sinto sua respiração ofegante na minha nuca. — É tão difícil assim respeitar a casa de alguém? Não te disse que não a queria aqui? Viro-me para fitá-lo e encontro seus olhos cheios de fúria. Levi está parado com os braços cruzados sob o peito nu e uma toalha vermelha amarrada precariamente no quadril. Perco a fala momentaneamente ao notar os poucos pelos que cobrem seu peito e as entradas sugestivas para o que há sob a toalha. Engulo, tentando recuperar a voz. — Desculpe. Eu só pensei que... Não sei o que pensei, mas achei que fosse outra coisa. Não queria invadir sua privacidade. Ele me encara com os olhos semicerrados, faiscantes. — O quê? Acha que isso aí é algum altar à sua divindade? — pergunta, o tom transbordando de sarcasmo. — Não é nada do que você está imaginando. Percebo que errei ao vir aqui. Além de não entender exatamente como essa descoberta pode nos unir, acabei por nos afastar definitivamente. — Você tem razão. Eu não devia ter vindo, vamos conversar de manhã. Passo por ele e caminho na direção da saída, mas Levi ainda não terminou.

Ele se adianta até a porta e a fecha antes que eu a alcance. — Levi, eu... Já pedi desculpas. Ele sorri de lado, me virando do avesso por dentro. Seus olhos tem aquele brilho de perigo que já vislumbrei antes e cada passo seu o aproxima mais. — Está curiosa sobre mim, Estrelinha? Caminho de costas, afastando-me do seu total domínio sobre minhas reações. — Não... Acho que entendeu tudo errado. Eu só queria... — Me queria? Ando um pouco mais para trás e sinto a mesa atrás de mim, detendo-me e impedindo minha fuga. — Não é isso. Ele para à minha frente e não resisto a olhar para baixo, encarar toda aquela pele nua. Os ombros largos e os músculos esculpidos por muito trabalho duro. — Eu não posso deixar que saia daqui desapontada. — Eu... Antes que eu consiga solidificar meu cérebro derretido outra vez, Levi

simplesmente atira ao chão as pastas e os papéis que estão sobre a mesa. Não sei se era a intenção, mas ele até mesmo sorri quando o computador cai com um estrondo. Abro a boca para dizer algo, gritar ou, não sei. Mas Levi agarra-me pela cintura e me senta sobre a mesa, arrancando toda a coerência que me restava. Posicionando-se entre as minhas pernas, ele espalma as duas mãos nas minhas coxas e sobe minha saia. O tempo todo seus olhos me escrutinam, aguardando que eu o impeça. Mas perdi a voz ou apenas não quero que pare. Seu rosto está a centímetros do meu, as covinhas que me tiram a paz maliciam seu rosto e sinto sua barba roçar a pele do meu pescoço quando ele se aproxima mais. — Sua última chance. Peça agora. Afundo os dedos em seus cabelos, planejando afastá-lo, mas não consigo. Quero me perder nas suas mãos calejadas, seus beijos tórridos e seu toque duro. Perder-me até me encontrar. Com um grunhido animalesco, Levi aperta os dedos na minha carne e toca-me sobre a calcinha. Seus dedos acariciam-me sobre a peça fina, com uma delicadeza que é

pouco usual a ele. Apesar do toque gentil, seus dentes estão crispados e sua voz sai por entre eles. — Não devia me provocar assim, Clara. Por que me atiçar com essa bunda gostosa nessa sainha? Se não fosse tão tímida, eu diria que fez de propósito. Se fui tímida um dia, isso não é uma verdade agora. Não sou nem um pouco quando passeio as mãos pelos ombros dele, desço-as pelo peitoral e paraliso no barrado da toalha. Sinto sua pele quente como brasa e me excito sabendo que basta um movimento para tê-lo inteiramente nu. Levi não espera minha próxima ação. Seus dedos se engancham nas laterais da minha calcinha embaixo da saia e ele a puxa para baixo, deixandoa pendurada aos meus pés. Quando seus dedos encontram minha carne que pulsa de desejo, atiro a cabeça para trás em abandono, gemendo seu nome. — Ah, Clara... — ele sussurra, enfiando um dedo dentro de mim e me arrancando outro gemido. — Fantasiei tanto com seu gosto. Ergo os olhos a tempo de vê-lo retirar o dedo do meu sexo e levá-lo a boca, provando-me. Levi ergue minhas pernas, posicionando-as abertas sobre a mesa, minha

intimidade a centímetros do seu rosto. Ele se inclina e o desejo que vejo em seus olhos é tão brutal que sintome pulsar com a expectativa. Sua língua me toca tão sutilmente que poderia ser apenas um sonho. Levi me encara com o sorriso endiabrado, aguardando minha reação. — Por favor... — Assim que eu gosto, Estrelinha. Seus lábios mergulham em mim e sua língua me prova lentamente, em uma tortura deliciosa. Um som rouco escapa da garganta dele, enviando uma vibração inesperada por todo meu corpo. Vejo quando ele toca o volume protuberante que se torna visível mesmo coberto pela toalha e sinto-me umedecer ainda mais. Se desejei mais alguma coisa ou alguém, isso se perdeu com minhas lembranças, porque nesse momento acredito que daria qualquer coisa para sentir Levi me possuindo. Ele chupa, me beija e toca sem nenhum pudor. Devora-me como se eu fosse um pedaço apetitoso de carne, com a selvageria que me prometeu. É tudo tão maravilhoso, tão erótico, que me pego questionando se já

vivi algo assim. E é então que me lembro de Túlio. Não que as memórias tenham retornado, não, apenas me lembro que ele existe. Que tenho um noivo e que ainda que não me recorde de nada, isso é errado além de todas as justificativas. — Levi... — chamo, tentando escapar do estado de excitação em que me encontro. — Huum... — grunhe, ainda com o rosto enterrado entre as minhas pernas. — Isso... Eu não posso fazer isso. Ele para imediatamente, mas leva alguns segundos para se reerguer do chão. Em nenhum momento ele me encara. Levi me dá as costas e vejo pelo canto do olho que arruma a toalha que se desprendeu. Abro a boca para me explicar, mas ele fala antes. — Vai. E não venha mais aqui, Clara. Sua voz é dura como aço, tão fria quanto o tremor que domina meu corpo agora. É como se dessa vez eu o tivesse atingido tão fundo, que tivesse

apagado de vez a chama que ainda queimava entre nós.

“O ontem é história, o amanhã é um mistério, mas o hoje é uma dádiva. É por isso que se chama presente.” Kung Fu Panda

É sexta-feira à tarde e a movimentação que vejo na fazenda chega a assustar. — O que você disse mesmo que iria acontecer hoje? — pergunto a Ilda, enquanto rejeito a quarta ligação do meu pai. — Não disse. É uma festa junina. O senhor Vilasboas está comemorando, vai receber um prêmio e apesar de saber da indicação, foi confirmado apenas essa semana.

Um prêmio? Lembro de ter lido algo no escritório sobre isso. — E todo mundo vai vir nessa festa? — Todo mundo, inclusive você! — Viro-me e encontro Lavínia, que entra na cozinha toda sorridente, carregando várias sacolas. — Eu? Nem sabia dessa festa até agora. E Levi não vai querer que eu vá, acordou pior que um desses touros dele. Lavínia ri e Ilda a acompanha, como se fosse uma brincadeira. — É sério. Ele está bravo comigo... — E por quê? — Lalá questiona. Não posso responder a isso, então faço minha melhor expressão de “não tenho ideia”. — Tenho certeza que ele vai gostar que você vá. Ah, vai mesmo. — Outra coisa. Passei em uma loja e trouxe umas roupas pra você experimentar. Não que me importe que use as minhas, mas não são muito o seu estilo. Olho para baixo, fitando as calças jeans que me serviram perfeitamente e a blusa branca e soltinha. — Por quê? Eu gosto delas...

Lavínia me olha de um jeito estranho e meneia a cabeça. — Não precisa fingir. Esqueceu que sou sua fã? Acompanho todos os seus looks. — Ah, isso. Mas, se eu for na festa, as pessoas vão me reconhecer. — Não com o que preparei. Vamos lá em cima que vou te mostrar tudo. Lavínia me arrasta escada acima e, ao entrar no quarto, começa a retirar várias peças exóticas das sacolas. Eu odeio a maioria. Enquanto ela tenta montar combinações que alega serem a minha cara, respondo uma mensagem de Alícia. “Sim, tudo certo pra você vir. Obrigada.” — E se for um estilo mais country? Não é algo que você costuma usar, mas vai disfarçar muito bem. — Como o que? — Camisa xadrez, calça jeans, botas e chapéu. O chapéu ainda ajuda a esconder seu rostinho milionário. Penso na escolha e assinto, afinal deu certo no bar. — Ao menos se me descobrirem, vou embora em dois dias e não devo causar tantos problemas.

Lavínia concorda, animada. — Ahhh... — Ela emite um suspiro antes de se jogar na cama, espalhando os longos cachos loiros sobre ela e colocando a mão no peito. — Você e seu noivo combinaram uma história pra te proteger dos repórteres? Achei tão fofo o post dele no Instagram, hoje. — Onde? — No instagram. É uma rede social muito usada para compartilhar fotos. Minha expressão confusa deve revelar que ainda não sei a que ela se refere. — Que post? — questiono, já sentindo o nervosismo se aproximar de mim com suas longas garras sufocantes. — Aqui...Esse é o instagram e essa é a foto. — Ela pega o próprio celular e abre o aplicativo. Em instantes Lavínia vira o aparelho para mim. Túlio e eu estamos lado a lado, montados em belos cavalos e vestindo roupas chiques de montaria e na legenda diz o seguinte: “TBT desse passeio incrível com a mulher que eu amo. Que saudades, linda. Desejo que suas férias estejam sendo incríveis, mas volta logo pra mim.” — Que foi? Eu esperava uma reação mais... feliz — Lavínia fala,

percebendo meu entusiasmo inexistente. — Hum, é que... Não sei. Isso é tão estranho. Tudo bem que pedi a Alícia que dissesse a todos que saí de férias, mas Túlio não me ligou ou mandou mensagem uma única vez e, quando tenho notícias dele, é através de uma rede social e ao mesmo tempo que todos os outros. — É fofo. Mas e sobre as roupas? Observo a camisa xadrez de vermelho e preto e sorrio. — Perfeito. Vai ser essa mesma. Terminamos de escolher e fico com mais um conjunto de calça e camiseta, para usar depois. Saio para acompanhar Lavínia até a porta e vejo que já estenderam tendas que vão desde a escadaria até perto da porteira, lá embaixo. Olhando para o céu, tenho que concordar que elas podem ser necessárias. Parece que vai chover logo. Todos estão tão concentrados na arrumação que nem me notam, então resolvo que é o momento ideal para andar pela fazenda e conhecer melhor o lugar, antes que a chuva chegue. Desço os degraus, evitando chamar atenção. Vejo Levi de costas, ocupado e erguendo uma mesa, mas ele não me vê.

Saio rumo aos estábulos, determinada a cavalgar. Eu devo saber, já que a foto ao lado de Túlio demonstra isso. Não vejo Felipe por lá, mas seu Genaro está de pé, lavando os cochos dos animais. — Boa tarde, Genaro — cumprimento. — Boa tarde, dona Clara. Animada com a festa? — Muito — respondo, mais por educação do que por qualquer outra coisa. — Escuta, quero dar uma volta pela fazenda. Posso pegar um cavalo? Genaro me olha de cima a baixo. Olha o julgamento, amigo. — Você sabe montar? — pergunta, confirmando minha suspeita. — Claro que sei — digo, com muita convicção na voz, mas sem ter muita certeza disso. — Tá bom, então. Pega a égua mais mansa... Ou não, escolhe que arrumo a cela pra senhora — completa ao ver minha expressão. Paro em frente a um cavalo marrom, bonito, parecido com o da foto. É esse. Genaro assente, coloca uma manta sobre o lombo do animal e depois pega a sela. Ele começa a arrumar toda a parafernália — não sei o nome de metade das coisas — e por fim, se afasta com os braços cruzados, esperando

que eu monte. Coloco o pé no negócio, estribo, eu acho, e monto no cavalo, ajeitandome sobre a sela. Não é tão difícil, talvez eu seja mesmo boa nisso de cavalgar. — Quer que eu vá com você? — Genaro questiona. — Posso falar com Levi e te levo pra conhecer o cafezal e as terras — oferece. — Não, obrigada. Quero aproveitar e pensar um pouco, obrigada. — Então tá... Se tem certeza. Dou um toque nos flancos do animal com os pés e ele começa a andar. Equilibro-me sobre ele tentando parecer mais confiante do que estou enquanto deixamos o estábulo. Me saio relativamente bem, não estamos trotando e não me arrisco a fazê-lo, mas ao menos não estacamos no lugar. Pelo lado de dentro da cerca que rodeia a propriedade, sigo vendo de perto as plantações de café. Vejo os frutos no pé e as folhas verdes até se perder de vista. Não tenho noção do que faz um hectare de terra, então não tenho absoluta certeza, mas pelo visto aqui tem muitos; não consigo avistar o fim das fileiras. Sigo vagando por entre elas, sentindo uma paz que não vivencio desde

o acidente. O ar aqui é tão fresco e o silêncio tão reconfortante que me fazem sentir tristeza ao pensar em ir embora. Algumas gotas de chuva caem sobre meus braços e volto os olhos para o céu. Finalmente está chovendo, mas não me incomodo. Deixo que as gotas caiam sobre meu rosto, lavando toda a apreensão dos últimos dias, todo o medo e a tristeza. Quero estar nesse lugar, essa é a vida que eu deveria ter tido. Estou tão admirada com tudo que Levi construiu e tão absorta em meu momento de autoconhecimento, que não vejo o que assusta o animal. De repente ele se inclina sobre as patas traseiras, relinchando apavorado. Me seguro no lombo dele e grito, o que apenas piora a situação, talvez eu tenha puxado as crinas dele também, no susto. O animal dispara comigo sobre ele e seguro as rédeas tentando controlá-lo, mas é em vão. Ele corre tanto que sinto meus olhos arderem com o vento e o pensamento de pavor me domina. Pulando um monte de terra, ele continua sem rumo e prevejo o pior. Vou cair e quebrar o pescoço, ou então ele vai cair em cima de mim e me esmagar. Nos dois cenários vou ter uma morte dolorosa. — Por favor, cavalinho, para aí. Vamos ficar calmos... — grito, nenhum pouco calma.

Ele deixa a fileira de café e segue para um campo aberto, mas não diminui a velocidade. Ouço o barulho dos cascos de outro animal em nosso encalço, seguido pelo som da voz dele. — Clara! — ele grita. — Levi! Estou com medo! Não sei se ele me ouve porque agora a chuva começou a cair mais forte e não consigo também ver muita coisa à minha frente. Ouço seus estímulos ao animal que cavalgo, então ele também deve ter me escutado. Instantes depois ele está ao meu lado. Levi alcança as rédeas e tenta acalmar o cavalo. Aos poucos, sua voz suave penetra o desespero do alazão e ele diminui o ritmo. Quando finalmente paramos, Levi me encara furioso. Seco as lágrimas que nem percebi que estava derramando com as costas da mão. — Obrigada... — Você ficou louca? — Ele desmonta do cavalo e sem aviso me pega pela cintura e me coloca no chão.

— Eu... Estava tudo bem. De repente ele começou a correr e... — O que te deu nessa cabeça desmiolada pra subir no cavalo sem ter certeza de que sabe montar? — Eu estava indo bem, alguma coisa assustou o animal. — Mas se você soubesse controlá-lo, eu não estaria agora vendo diversos cenários em que encontrei sua cabeça separada do corpo. Abro a boca em choque. — Seu grosso! Eu estou apavorada e você só sabe gritar e me assustar ainda mais. — E salvar sua vida, pelo jeito. Já é a segunda vez. A chuva aumenta sobre nós e vejo meus cabelos úmidos já pingando na terra. — Eu já disse que antes tudo ia bem, vi uma foto minha, eu sei montar. — Mas não se lembra. E se você morresse? E se levasse outra pancada na cabeça? — Pelo menos não ia mais ouvir seus gritos e resmungos malhumorados! Os olhos dele me fitam com tanta raiva, mas há também uma pontada de preocupação.

Sua respiração entrecortada, os cabelos escurecidos pela água da chuva e a camiseta branca, agora molhada e colada ao corpo me fazem pensar em coisas que eu não deveria agora. — Precisa aprender a se comportar como uma mulher e não como uma menina mimada que faz o que quer — ele grita outra vez, não foi o bastante pelo jeito. — E você precisa urgente que alguém te ensine bons modos. Levi dá dois passos na minha direção, fechando o espaço entre nós. — Ah, isso eu não tenho mesmo. — Não — repito, sem saber bem com o que estou concordando. A essa altura só vejo o azul tempestuoso dos olhos dele e o peito desenhado pela roupa molhada. — E você, Estrelinha, podia calar a boca. Levi me puxa para perto e me beija com fúria, sua boca tomando a minha em desespero. Nossos corpos estão encharcados, mas completamente quentes. Sinto sua mão nas minhas costas, pressionando-me para mais perto, me fazendo sentir sua rigidez. Quando seus lábios beijam meu pescoço, inclino a cabeça para trás,

concedendo o espaço a ele. Sinto as gotas de chuva pingando sobre nós em meu rosto, lavando agora também a raiva e o pavor de instantes atrás e deixando em seu lugar apenas um desejo latente que começa em todos os pontos em que ele me toca e concentra- se entre as minhas pernas. Adivinhando o rumo dos meus pensamentos, ele leva a mão para dentro do cós da minha calça e sem hesitar penetra também o tecido fino da minha calcinha. Quando seus dedos encontram meu sexo, ouço um gemido gutural que escapa dele. — Ah, Estrelinha — ele sussurra contra meus lábios. — , se não voltarmos agora, vou fazer uma besteira e não quero você fugindo à cavalo. Seguro-me ainda mais em seu corpo, não estou preparada para pararmos. Levi desce os lábios sobre meus seios e beija-me no vale entre eles, aproveitando-se do decote da blusa. A mão dele parece tencionar abrir o zíper da minha calça e eu com certeza não teria forças para resistir agora, mas um trovão nos assusta. Levi se afasta e retira a mão que me acariciava. — Vamos embora. É perigoso ficar aqui com chuva forte. Não sei se está se referindo apenas ao tempo chuvoso ou a nós dois

também. Levi me sobe outra vez para a sela, antes de montar o outro cavalo. Mas dessa vez ele mesmo conduz os dois animais e apenas preciso me manter firme. O que é uma tarefa e tanto considerando o modo como minhas pernas estão moles depois dos seus toques e minha cabeça fixa em outras coisas.

Várias luzes foram penduradas desde a varanda até os postes de madeira fincados no chão, do outro lado. Os cordões descem como se fossem varais e iluminam dentro das tendas, com as lâmpadas brilhantes. Não há assentos para os convidados, mas uma fogueira imensa está sendo acesa do lado de fora das tendas, agora que a chuva deu uma trégua, mas não me parece que isso vá durar a noite toda. Uma longa mesa de madeira foi colocada em um dos cantos e vários pratos típicos estão sendo postos sobre ela. Desde bolo de fubá cremoso até as broas de pau a pique.

Lógico que já provei a maioria dos quitutes mais cedo, aproveitandome da bondade da Ilda, mas ainda reservei espaço para muito mais. Leonardo enlouqueceria se me visse! Já devo ter ganhado uns dois quilos em menos de uma semana. O pensamento vem tão natural que levo algum tempo para perceber que foi ocasionado por uma memória. Leonardo jogou meus chocolates fora! Aquele cretino. Busco algo mais, mas não tem nada além da absoluta certeza de que minha anemia — descoberta pelo doutor Aguiar — é culpa do Leo, que também toma forma em minha mente, ganha um rosto. Fico exultante e abro um sorriso para mim mesma. O médico estava certo, tudo vai ficar bem. O lugar começa a se encher e vejo alguns rostos conhecidos passeando entre as pessoas. Tento me manter invisível e não ser notada. Vejo chegarem outros convidados, um pouco diferentes, que não se vestem ou agem como o pessoal daqui; os homens usam roupas mais sociais e mesmo suas acompanhantes parecem elegantes demais para uma festa junina. Ninguém parece estranhá-los como eu, então relaxo, esquecendo a possibilidade de que sejam da imprensa. — Aí está você! — Lavínia sorri ao me ver e caminha quase que

flutuando ao meu encontro. Ela usa um vestido rodado e florido e parece uma princesa da Disney, mesmo do alto dos seus vinte e poucos anos; é uma garota tão pura e tão inocente que quase posso acreditar que é falso. Mas não é. — Estou escondidinha aqui... — Viu meu irmão? Faço um gesto para responder que não, quando vejo-o atravessar pelo outro lado da fogueira, acompanhado de Lena. A mão dela repousa na curva do braço dele e Levi parece não se importar. Ele está completamente diferente de mais cedo. Uma mistura. Não é o típico fazendeiro, com as botas, camisa xadrez e chapéu, mas também não é um empresário, de terno e gravata. Levi usa uma camisa azul marinho, social, calças jeans em um modelo mais esporte fino e sapatos; seus cabelos escuros estão bem penteados. — Quem foi que convidou essa daí? — Lavínia diz e a olho sem entender bem. — A Lena? Não gosta dela? — Alguém gosta?

Abro um sorriso ao ouvi-la. — Eu não, mas pensei que fosse a única. — Levi não gosta — comenta, observando os dois cumprimentando as pessoas. — Ela só é muito oferecida, está esperando que ele caia em si e se declare há séculos, mas não vai acontecer. — E por quê, não? Se bem me lembro ele dizia que jamais ficaria com ela e aí estão, passeando como um casalzinho. Não consigo conter o ressentimento na voz. Não depois dos momentos que tivemos. — Porque ele não é mentiroso. Não vai viver fingindo que ama alguém, e ele não gosta dela. — É um bom motivo. Penso nas palavras de Lavínia enquanto observo Lena e Levi caminharem até a mesa que foi montada por Ilda. É o que estou fazendo? Fingindo um relacionamento sobre o qual não sei nada e perdendo a chance de me encontrar de verdade? Não consigo me imaginar sendo feliz se Levi e essas pessoas não fazem parte da minha vida e nem posso imaginar a possibilidade de que ele realmente goste de Lena e fique com ela. — Eu já volto, Lalá. Preciso fazer uma ligação.

Caminho afastando-me da música alta para um canto em que consiga ouvir o telefone e então encontro o número dele. Espero ansiosa enquanto ouço o bipe da chamada. — Ei, Clarinha... — Uma voz animada atende. — Tudo bem por aí? A Alicia me disse que tirou uns dias para descansar. E ele não acha estranho saber disso por outra pessoa? — Isso — respondo. — Vim para Vale do Recomeço... — Me calo, esperando alguma reação. — E onde fica isso? Nunca ouvi falar. Estou com o Gi na minha casa de praia, é um porre ter que ficar trancado, mas estamos aproveitando todos os cômodos. Túlio solta uma risada como se eu houvesse entendido a piada. — Gi? — Meu namorado, Clara! Te falei dele, ele estava lá, no último sábado, te mostrei também as fotos, lembra? E por falar nisso, postei uma foto com você no Instagram, mas as pessoas estão questionando porque tiramos férias separados, então acho bom dizer alguma coisa. Fico muda, assimilando o que Túlio está dizendo. Um relacionamento de fachada? Ele é gay? Ai, meu Deus! Que tipo de pessoa eu me tornei? Não gosto nem um pouco de descobrir as coisas que tenho feito por fama e

dinheiro. — Clara, eu queria me desculpar pelo pedido de casamento. Me pegou de surpresa também, foi coisa do Leonardo. Sei que você fica irritada com essas coisas, mas não se preocupe. Assim que recuperarmos nossa popularidade como casal, podemos inventar um rompimento e acabar com isso, ele disse algo sobre minha imagem ajudar a modernizar a sua e o namoro tem me ajudado a esconder minhas preferências... Por que as pessoas não aceitam um galã gay? Ele suspira. — Concordo — consigo dizer. — É a melhor opção, vamos esclarecer isso logo. E realmente foi a coisa mais sensata que ele me disse desde que atendeu a ligação e não consigo me imaginar deixando-me ser manipulada a esse ponto. — Bom, Túlio, liguei pra avisar que está tudo bem. Logo posto alguma coisa no... hum, Instagram — digo, ganhando tempo para absorver a situação. — Depois nos falamos. — Combinado, linda. Beijão. Uma parte de mim está espantada em saber que fui capaz de alimentar uma mentira como essa, mas a outra está exultante em saber que não há nada

que me impeça de ficar com Levi. Não consigo esquecer nosso momento na noite passada. O modo como ele me olhava, seus toques, nem seus beijos na chuva. Só de pensar minha pele formiga de desejo. Vejo-o de longe, sorrindo para Lena. Se ele ao menos entendesse por que o afastei ontem, eu poderia explicar que essa razão não existe mais, que tudo foi um mal-entendido e talvez pudéssemos continuar o que começamos. Caminho até onde deixei Lavínia e a encontro conversando com outra mulher. — Ah, você voltou...— Lavínia olha ao redor, parecendo preocupada. — O que foi? Interrompi a conversa, desculpe. — Não, é que você... Né? — Pela expressão dela percebo que está com receio de que a outra moça me reconheça, mas a mulher parece perdida em seus próprios pensamentos, tomando uma caneca cheia de quentão. — Relaxa, as pessoas só veem o que querem ver... — sussurro, e me coloco do outro lado dela. Lavínia assente e continua sua conversa unilateral com a outra. — Ficamos felizes que tenha vindo lecionar aqui, não tinha ninguém para substituir a antiga professora e as crianças precisam de uma perspectiva de futuro.

Como a moça apenas assente, Lavínia se vira para mim com os olhos um pouco mais abertos, pedindo socorro. Apenas dou de ombros, não sou a melhor pessoa para ajudar os outros a socializar. — Tia Ártemis! Ali, pai... A tia Ártemis veio mesmo... Vejo uma garotinha arrastando um Mário bem sem jeito pela mão, até onde estamos. Quando chegam diante de nós, ela o solta e se atira nos braços da professora, que parece bem mais contente que alguns minutos atrás. — Oi, lindinha... — Até a voz dela parece mais alegre. — Lalá... Clara... — Mário nos cumprimenta. — Gostando da festa? Lavínia assente, agitada e eu apenas dou de ombros. — Não estou me misturando muito, como pode ver. — Ah, vamos mudar isso. Que tal irmos dançar no meio desse povo? Adrenalina, garota. Coloca o chapéu cobrindo mais o rosto e bora viver perigosamente. Acabo rindo do jeito dele, que geralmente é mais contido e sinto um clima entre Mário e a professora. Provavelmente ele está me usando pra não soar estranho depois, caso a convide também. Quem sou eu pra empacar os planos dos outros...

Faço o que ele diz, ajeitando o chapéu sobre o rosto e arrumando minhas tranças no processo — uma de cada lado, como manda o figurino. Mário me arrasta pela mão para a pista improvisada de dança, fora das tendas, ao redor da fogueira, onde outros casais já se soltam ao som da música sertaneja. Nossa dança não flui muito bem, porque Mário consegue ser ainda pior que eu, mas nos esforçamos e ele sempre sorri quando piso em seu pé. — Quem são esses homens com o Levi? — pergunto, o mais baixo que consigo, mas de modo que ele ainda me ouça. — Os engravatados? Bom, hoje sem gravatas pelo menos. Assinto, mas Mário me olha estranho, comprimindo os lábios em uma risca fina. — São colegas de trabalho dele, digamos assim. — Eles não parecem apreciadores da vida no campo... — É outro trabalho. Vieram parabenizar nosso amigo. — Isso só fica mais esquisito. Mário acaba sorrindo e, dessa vez, ele é quem pisa no meu pé, arrancando-me um gritinho. — Acho que já deu por hoje, campeão. Vai arrancar o brilho da

Estrelinha com esse pisão. Ergo os olhos e encontro Levi parado ao nosso lado, a mão estendida pedindo que o amigo me solte. Volto os olhos para Mário e faço um gesto sutil de que estou bem e ele atende ao pedido de Levi, afastando-se na direção em que deixou a filha, com a professora. Levi segura em uma das minhas mãos e passa o braço pela minha cintura, puxando-me para bem mais perto do que Mário havia achado necessário. Procuro por Lena e a vejo entretida em uma conversa com Felipe, que provavelmente está ganhando tempo para Levi. — Não sabia que iria descer pra festa... — ele diz, olhando ao redor ao invés de me encarar. O que é bom, porque estou impressionada. Levi aparou a barba e está muito perfumado, as roupas são ainda mais finas do que imaginei vendo de longe e até mesmo sua postura hoje é mais elegante. Não que eu o prefira assim, gosto dele de todos os jeitos e formas. — Isso quer dizer que não deveria vir? Ele suspira e então me encara, seus olhos azuis arrancando-me o ar dos pulmões momentaneamente.

— Não é isso. É perigoso, vão fazer algumas fotos e podem te descobrir... Franzo o cenho e observo melhor as pessoas ao nosso redor; realmente noto uma ou outra câmera. — O que está acontecendo aqui? Você trabalha com a máfia, Don Corleone? Levi sorri. — Então do nosso tempo juntos você se lembra bem... — Parece que nem uma pancada na cabeça pode te apagar de mim, Levi. Os olhos dele se acendem por um instante, mas logo o brilho neles é substituído pela raiva. — Não adianta provocar, se vai fugir. Hoje mais cedo me empolguei com o momento, mas não vou fazer isso de novo. — Porque fugi? Ontem eu tinha um motivo... Levi ergue a sobrancelha, pensativo, enquanto me gira no forró mais pornográfico que Vale do Recomeço já viu. A perna entre as minhas aumentando nossa temperatura corporal absurdamente. — E hoje não tem mais?

Faço que não e vejo um sorriso curvar os lábios deliciosos dele, me atraindo. Perco totalmente a noção, mas tudo que quero é agarrá-lo para nunca mais soltar. Inclino o rosto em sua direção e o beijo; sua boca corresponde à minha com paixão, mas antes que possamos desfrutar do momento, os flashes começam a nos cegar. Levi segura minha mão com firmeza e se afasta do meio do povo, puxando-me com ele em direção à casa. Sabendo que seremos seguidos, ele sai comigo pelos fundos e, despistando as pessoas, me leva para o celeiro. Levi abre a porta e a fecha depois que entro. Seu semblante está tenso e o vejo digitar alguma coisa no celular, antes de finalmente relaxar e guardá-lo no bolso. — Me descobriram aqui? — pergunto, um pouco assustada. — Acho que não é isso, mas é melhor se preparar. Assinto, tentando compreender como isso foi acontecer. Na parede ao nosso lado, um único interruptor brilha no escuro e Levi o aperta, acendendo uma luz no centro do lugar; não deixa tudo tão claro, mas é o suficiente para tornar as coisas mais visíveis.

Olho ao redor, admirada com o tamanho do lugar. As paredes são de madeira e há no teto um grande pedaço coberto apenas por vidro e espalhadas ao lado dele, várias luzes que no momento estão apagadas. O feno está no chão e por todo lado, em pilhas para servir de alimento aos animais e vários barris estão dispostos em um canto do celeiro, provavelmente cheios de sementes, grãos e café. — Olha só, esse mistério já está me assustando. Como é que você vai de fazendeiro a empresário e de volta a fazendeiro em poucos minutos? E que empresa é essa? Não vejo nenhum produto sendo comercializado aqui e isso está... Não consigo concluir meu raciocínio. Sem aviso, Levi segura meu rosto e cola a boca na minha; suas mãos demonstram todo seu desespero, porque logo passeiam pelas minhas costas, sentindo meu corpo com pressa. Com um gemido de rendição, levo meus dedos aos botões da camisa que ele veste e abro-os um a um, tão afoita quanto ele. Levi atira meu chapéu ao chão, quase ao mesmo tempo em que passo sua camisa pelos ombros largos, livrando-o dela. Trilho todo o caminho do seu peito e das suas costas, me delicio com a sensação de seus braços e mal noto a habilidade dele para me despir também, deixando-me apenas com a calça e o sutiã.

Ele me ergue pelo quadril e passo as pernas ao redor da sua cintura, sem perder seus lábios por um único momento. Levi caminha comigo no colo e se deita sobre mim, em um monte de feno. Sinto aquilo pinicar um pouco em minha pele, mas pouco me importo, contanto que ele continue me beijando e me despindo. Ele abre o zíper da minha calça e a desce até meus tornozelos; arranco as botas para ajudá-lo e logo levo as mãos para seu zíper. Em segundos estamos embolados outra vez sobre o feno. Sua boca encontra o caminho para o meu pescoço e ele me beija com vontade, levando-me à beira do êxtase sem nem ao menos me tocar mais intimamente. Desço as mãos por seu abdômen, até alcançar o que desejo por cima da cueca boxer. Toco sua rigidez e ouço um grunhido escapar-lhe, seguido de uma mordida forte em meu ombro. — Estrelinha... Diz que não vai fugir, a gente resolve tudo depois, mas preciso de você, agora. Afasto-me apenas o suficiente para abaixar minha calcinha, mostrando a ele que não vou a lugar algum. Levi sussurra meu nome enquanto desabotoa meu sutiã, libertando meus seios que estão endurecidos de desejo. — Ah, eu vou morrer aqui... — ele diz. — Você é minha perdição,

Clara... Com um toque no cós da cueca, incentivo-o a se despir e enfim o vejo inteiramente nu diante de mim. Levi segura o membro rígido com uma das mãos, maior do que eu me lembrava, ou talvez apenas não tenha visto direito na primeira vez. Seu olhar predatório fita meu corpo completamente despido sobre o feno e sinto como se eu fosse seu novilho, prestes a ser abatido e não posso sentir-me mais ansiosa por isso. Ele se ajoelha entre as minhas pernas e toca minha entrada escorregadia. — Vou me colocar aqui e enterrar-me em você, amor. Pode ser apenas uma expressão vazia, mas para mim, nesse momento tem um significado enorme. É isso, Levi é meu único amor, independente do que tenha nos separado. Sinto-o ereto, abrindo caminho para dentro do meu corpo aos poucos, com menos facilidade do que imaginei. Ele parece ler meus pensamentos. — Tão apertada... Parece nossa primeira vez. Não exatamente. Fomos muito mais calmos e sentimentais, agora tudo que queremos é nos fundir e deixar que o mundo termine.

Quando consegue se acomodar inteiro, Levi encosta a testa contra a minha e fecha os olhos. Ele desce o rosto para o vale entre os meus seios e começa a beijar-me com lentidão. Seus beijos são molhados, lânguidos e fazem contorcer-me ao redor do nosso encaixe. — Lê... Sinto seu sorriso contra meu peito e então, uma estocada violenta que quase me arranca do corpo. — Ahhhh — gemo, sentindo uma onda de prazer percorrer cada centímetro dessa nossa ligação. — Tão gostosa... Levi movimenta-se com rapidez, entrando e saindo de dentro de mim em um compasso apenas nosso. Suas mãos seguram meus seios com força enquanto ele investe cada vez mais fundo, as pontas de seus dedos apertam meus mamilos sensíveis e estremeço ao redor dele, chegando ao ápice em questão de poucos minutos. Vejo seu sorriso arrogante surgir e ele diminui seus movimentos até parar de vez. Sinto uma palmada de leve em meu quadril. — Vem...

Ele me oferece a mão e deixa meu corpo, antes de levantar-se e ajudar a colocar-me de pé. Levi inverte nossas posições e se deita onde antes eu repousava; colocando suas pernas entre as minhas, faz com que eu me sente sobre ele. — Monta em mim, Estrelinha... Repete a frase que disse antes, lembrando-me de como nossas preliminares foram intensas. Passo as pernas pelas laterais do corpo dele e encaixo nossos corpos, descendo lentamente sobre Levi. Sinto-o preencher cada milímetro do meu ser e jogo a cabeça para trás, deliciando-me com a sensação. Abro os olhos e me deparo com o céu salpicado de estrelas sobre nós e, no centro de tudo, está aquela, a que sempre brilhou mais forte. As mãos dele me seguram pelo quadril e auxiliam meus movimentos sobre ele, enquanto encontramos nosso ritmo, agora mais lento e sensual. Rebolo vagarosamente, arrancando impropérios deliciosos de sua boca gostosa. — Mais rápido, Clara — ordena. E eu, apenas obedeço. Levi segura minhas tranças, juntando-as em um único amontoado de

cabelos e faz com que meu corpo fique arqueado, em uma posição diferente. Desço com mais velocidade sobre ele e sinto-o impelir seu sexo contra o meu, arremetendo com força bruta. O barulho dos nossos corpos se chocando preenche o celeiro e meus gemidos tornam-se incontroláveis. Levi se afunda mais em mim e sinto uma pontada de dor, que se mistura com o prazer de vê-lo enlouquecido; quase me perco ao sentir o jato quente sendo derramado dentro de mim. Ainda me remexo algumas vezes, inebriada pela sensação e entorpecida com a delícia que é ouvir sua respiração alterada. Não penso nas possíveis consequências até muito mais tarde.

“No relógio do tempo só há uma palavra escrita: agora.” O Tigre e a Neve

Não sei por que diabos pensei que uma única vez apagaria Clara dos meus pensamentos, que talvez, apenas talvez, eu a tivesse em meus braços e depois, conseguisse seguir com a vida como antes. A verdade é que, mesmo em meu antes, ela sempre esteve presente. Tenho que contar a ela o que fiz e construí nos últimos anos e torcer para que quando suas memórias retornarem, dessa vez eu seja sua escolha. Mas não agora. Vivemos distantes por tanto tempo, que sinto que estou conhecendo quem ela é novamente e preciso saber que Clara me escolheria,

apenas por mim, por nós. Estou na varanda observando os últimos convidados deixarem a fazenda, compelidos por Felipe que parece usar as mesmas táticas que geralmente são reservadas ao gado. Pacino está deitado aos meus pés, lambendo as próprias patas em silêncio. Os repórteres não estavam aqui por ela. Vieram a pedido meu, como em todos os anos anteriores, apenas me esqueci de que, com Clara aqui, deveria ter alterado meus planos. E agora, provavelmente... — Eu quero ver quem vai me impedir de entrar! Me assusto com o tom de voz irritado e desço alguns degraus tentando entender quem está forçando a entrada. Aturdido, vejo Felipe de costas para mim e uma moça baixinha encarando-o com mais ousadia que qualquer um dos fotógrafos que ele expulsou. A mulher usa um vestido rosa e tem os cabelos cacheados presos em um rabo no alto da cabeça. Sua pele morena contrasta com a vermelhidão que já tinge o rosto do peão. — Já disse para a madame que a festa acabou. O patrão disse que ninguém entra... Abro um sorriso ao ouvir o comentário. Felipe pode ser um babaca às

vezes e me irritar mais que qualquer um, mas é fiel até o talo, nem sei porque desconfiei tanto de um envolvimento dele com Clara. — E o que tenho com isso? O senhor pode, por gentileza, sair da droga do meu caminho? A mulher dá um passo à frente e Felipe se coloca diretamente na reta dela. Começo a rir, porque realmente a cena que eles protagonizam é engraçada. De onde saiu essa garota? — Seu... Seu caipira, arrogante! Se não me der licença, vou começar a gritar aqui e atrair os paparazzi. Eu vim buscar minha amiga e não saio sem ela! Buscar a amiga? — Paparazzi? — Felipe ri, debochado. — Se a dondoca não percebeu, estamos no meio do nada — fala, abrindo os braços e mostrando ao redor. — Até conseguir ajuda... — Vejo Felipe se aproximar mais, até quase encostar o rosto no da menina. — Já enterrei seu corpo. A menina arregala os olhos e decido intervir, imaginando que seja a amiga que Clara disse que viria na manhã seguinte, mas enquanto desço os degraus, o peão simplesmente atira a moça por sobre o ombro, enquanto ela grita e pede socorro.

— Felipe, para com isso. Coloca a moça no chão... — digo, ao ver o rumo estranho que as coisas estão tomando. — Claraaaaaa... — A mulher grita. Olho para trás e vejo que Clara já saiu do banho e traz uma toalha nas mãos com a qual seca os cabelos castanhos; ela está usando uma camisa minha e quase deixo que os dois se resolvam e a arrasto de volta para dentro. Clara encara a cena, aparentemente sem entender nada. — Amiga, manda esse doido me colocar no chão! — Alícia? — O rosto dela aparenta confusão. — Felipe, por que está carregando minha amiga? Felipe para. Olha da moça para Clara e dela para mim e finalmente, dando de ombros, coloca a tal Alícia em segurança no solo. — Olha só, essa doida chegou gritando e me ameaçando e ainda xingando. Nem tamanho de gente ela tem, mas parecia possuída pelo demônio. Então eu só estava resolvendo as coisas. Acabo rindo outra vez ao perceber o olhar de fúria que a moça dirige a ele. Clara por outro lado, desce os degraus mesmo descalça e se aproxima da mulher. — Amigaaa... — Alícia abraça-a em meio a um choro que veio nem sei de onde e Clara retribui. Para minha surpresa, ela também derrama algumas

lágrimas. — Você aqui, sozinha com esse povo estranho, sem memória. Não consegui mais esperar e vim um pouco antes. — Nem acredito que está aqui... — Clara diz, ainda abraçando a amiga. Elas se soltam e Alícia segura as duas mãos de Clara. — Você está bem? Não lembra nadinha? — Eu... — Clara seca o rosto com as costas da mão. — Me lembro de você... Essa é uma grande surpresa para mim e acredito que até para ela mesma. Aos poucos, suas memórias estão retornando e isso é bom, mas ao mesmo tempo, a chegada de Alícia representa a partida de Clara. Minha mente já trabalha, pensando em como evitar que isso aconteça, mas no fundo sei que não há uma forma. Clara irá ficar apenas se ela quiser, se decidir assim. — Hum, e essa camisa, hein? Eu aqui preocupada e você se aproveitando do sitiante, que por sinal... Olha pra isso aqui! É uma fazenda e tanto. Alícia não tem filtro ou apenas não entendeu ainda que o sitiante sou eu, mas Clara ruboriza inteira, dos pés à cabeça. — Ahhh... — Ela entende o constrangimento da amiga. — Então você é o Levi...

Adiantando-se, oferece a mão para me cumprimentar e eu a aceito, um pouco contrariado. Não sei até que ponto essa Alícia é confiável, ou se é uma aliada. — Não ia esquecer nem que fossem trinta anos, hein, Clarinha? Clara arregala os olhos e me encara envergonhada, mas a frase me arranca uma gargalhada. Se ela soubesse... Uma vida inteira não a apagaria de mim. — Eu vou indo, já que a invasão é bem aceita por aqui — Felipe, que estava quieto até então, se manifesta. — Ah, não, não. Não vou ficar aqui, a Clara e eu vamos para um hotel. Certo, Clara? Prefiro não incomodar. Felipe ri, achando graça e acabo sorrindo também. — Não tem hotel em Vale, Áli — Clara conta. — Vai dormir aqui... Tudo bem, Lê? — pergunta, dirigindo-se a mim. — Hum, então ele voltou a ser, Lê? As coisas vão bem pelo jeito, Vilasboas — Felipe comenta. — Vai ficar de risadinhas agora? Olha só, já começou a mudar o homem, Clara. Eu me habituei ao carrancudo e malhumorado e agora... Olha isso! — Dá o fora, imbecil — respondo e isso arranca outra risada dele.

Mas mesmo rindo, Felipe se afasta na direção em que deixou o carro. — Seu carro é rosa? Fala sério — ele grita e vejo Alícia fazer uma careta. — Ele é sempre chato assim? Clara faz que não e segura a mão da amiga, levando-a para dentro. Fico observando-as se afastarem, tentando, em vão, ter um vislumbre de como as coisas serão a partir de agora.

Clara Levi e eu voltamos para o casarão pelos fundos; ele entrelaçou os dedos nos meus durante o caminho e isso me aqueceu por dentro quase tanto quanto nosso enlace no celeiro. Decidi tomar um banho, tirar o cheiro de feno — e até mesmo alguns pedacinhos que se atreveram a embrenhar no meu cabelo. Levi ficou na sala, enquanto subi as escadas comemorando em silêncio o que aconteceu. Não tivemos tempo de conversar, mas algumas vezes os gestos e atitudes dizem tudo. Fui rápida no banho, não queria perder tempo enquanto podia estar ao lado dele e resolver tudo que havia de não dito entre nós. Vesti uma camisa

dele — não resisti a me sentir igual as protagonistas de filmes românticos — e talvez esse fosse um gesto que diria a ele o quanto quero ficar. Mas, para minha total surpresa, ao retornar o encontrei na escada, observando enquanto Felipe carregava Alícia para fora sobre os ombros. Tão natural como quando me vieram as lembranças de Leonardo, as de Alícia retornaram. Reconheci seu rosto de imediato, como se nunca houvesse esquecido. Áli tem os cabelos bem enrolados e a pele negra, é bem baixinha — não que eu seja muito mais alta — e tem o gênio difícil de controlar. Seu pai é dono de uma das maiores emissoras do país e foi através dele que nos conhecemos, mas Áli gosta de ser independente e está sempre buscando formas novas de se provar e se superar. Repasso as informações na mente e sorrio ao perceber que está tudo aqui. Felipe a coloca no chão e depois de uma série de comentários constrangedores, arrasto Alícia para dentro do casarão. — Como você está? — ela questiona outra vez, o olhar demonstrando toda sua preocupação. — Estou bem, na verdade. Fiquei apavorada nos primeiros dias, mas pra ser sincera não é como se eu vivesse a vida dos sonhos, então estar aqui

acabou sendo algo bom. — Isso tem algo a ver com o fato de estar usando uma camisa de homem? E esse cabelo molhado? Ah, meu Deus! Estavam tomando banho juntos! Cubro a boca dela, evitando que continue dizendo asneiras. — Não é nada disso. Se controla... Ela balança a cabeça para baixo e para cima, concordando e então solto-a. — Sabe, você bem que podia me ajudar com algumas coisas. Não tem nem noção do porquê fui embora de Vale? Não consigo entender porque eu deixaria... — Ele, né? — ela completa, com os olhos arregalados. — Porque o homem é um pedaço de mau-caminho, o que foi que te deu na cabeça? Suspiro ao ouvir sua resposta. — Então você não sabe? Puxo-a pela mão e me sento no sofá, arrastando-a junto. — Não sei mesmo, sinto muito. Quando nos conhecemos, isso já tinha sido há muito tempo, conversamos a respeito algumas vezes, mas você só se lamentava e chorava as pitangas.

Mordo a unha, pensativa. Tentando encontrar alguma coisa naquelas informações. — Bom, pelo menos eu sei que o que sinto por ele não é fruto do meu esquecimento. Se eu já lamentava isso mesmo antes... — Verdade, amiga. É uma segunda chance, mas as coisas não são tão simples. Tem seu trabalho, os contratos, o Leonardo, que sabe ser um pé no saco e tem seu pai, que não vai ficar muito feliz quando descobrir onde você se meteu. — Eu disse alguma coisa? Sobre meu pai e o Levi? Alícia nega. — Não, mas precisava? Pela pressão que vejo no seu relacionamento com o Túlio, não preciso ser uma gênia pra saber que ele jamais aprovaria um sitiante que não tinha onde cair morto. Falando nisso, parece que os anos fizeram bem ao seu Levi, hein? Alícia olha ao redor, quase tão impressionada quanto eu quando entrei aqui a primeira vez. Meus pensamentos, por outro lado, vão longe, concentrados no que ela disse. Meu pai não teria aceitado fácil minha relação com Levi e só pode ter dedo dele nessa história.

— Ai, amiga... Dirigi até aqui e estou muito cansada. Podemos ir dormir? Alícia chama, ao mesmo tempo em que Levi entra em casa. Ele me olha com um sorriso malicioso no rosto, provavelmente relembrando o que fizemos pouco antes. Mas, ao fitar Alícia ele é todo feito de educação e bons modos. — A Ilda já foi embora e não sabia que você ia chegar hoje, Alícia, então não tem um quarto pronto, limpo. Vocês podem dormir juntas? Amanhã peço pra ela preparar outro cômodo. A menos que estejam planejando ir embora rápido... A voz dele assume um tom mais baixo no final, me sondando e seus olhos se voltam para mim, especulando. — Não vamos embora amanhã — respondo. — Certo. Se quiser, pode deixar a cama pra Alícia e vir dormir comigo, Clara. Alícia arregala os olhos — outra vez — e escancara a boca. Apesar de ficar sem jeito, acabo sorrindo com a cara de pau do homem. — Obrigada pela oferta, senhor Vilasboas. A mão dele vai para a nuca e percebo que também não sabe como agir, o que fazer, agora que demos esse passo adiante.

— Bom, vou me deitar então. Boa noite... Ele sobe as escadas e tão logo vira no corredor. Arrasto Alícia para cima, na direção oposta. Quando fecho a porta ela se joga na cama, suspirando e em seguida se senta, me encarando com um sorriso enorme. — O que foi isso? Sua bandida, disse que não era nada do que imaginei, mas isso foi um convite e tanto. — Eu disse que não tomamos banho juntos, não falei sobre outras coisas. — Ah, meu Deus! — O sorriso dela é enorme e sua expressão não poderia estar mais animada. Mas então, como em um passe de mágica, ela fica séria de repente. — Mas amiga, e o Túlio? Eu sei que nem se lembra dele e não quero que fique brava, mas você aceitou se casar... Nem eu acredito em como fui uma amiga estranha. Como pude esconder tantas coisas de Alícia e ainda consegui mantê-la ao meu lado? — Áli, o Túlio é gay. Ela se levanta em um salto. — O quê??? Como assim, ele é gay? — Pois é. Pelo que entendi é coisa do Leonardo e possivelmente do

meu pai, mas ele tem até um namorado. Me desculpe por ter sido essa péssima amiga, que escondia tudo. — Você deve ter tido seus motivos — ela responde, compreensiva. — Mas, olha! Estou chocada com essa revelação. Ele engana super! — Pois é. Eu estava já pensando em como iria terminar esse noivado, porque se houver uma chance de ficar com Levi... — Não pode deixar esse homem escapar, Clarinha! Pelo amor dos fazendeiros gostosos, precisa laçar com força, montar e não soltar as rédeas! O riso me escapa fácil. Eu aqui tentando ter uma conversa séria e ela com essas metáforas erotizadas. — Olha, não precisa me fazer visualizar tudo isso, mas entendi a ideia. — E o que vai fazer? A pergunta de Alícia é abafada pelo toque do meu celular. Alcanço-o sobre a cama e estranho ao ver o nome de Túlio. — Alô... — Clara, só queria te avisar, parece que o Léo descobriu onde você está. Acho que deve ir te encontrar amanhã. — Você contou pra ele? — questiono, apreensiva. — Não, não fui eu... Mas ele me ligou, disse pra eu manter as coisas

como estavam e segurar as pontas com a mídia enquanto ele ia te buscar. — E meu pai? — Não faço ideia. Vou ver se descubro alguma coisa e te falo. — Tá bom. Obrigada. Desligo a ligação e atiro o telefone sobre a cama. — E então? — Alícia pergunta, vendo meu desânimo. — Parece que o Léo vem pra cá amanhã. O que vou fazer? Ele vai descobrir que não me lembro de tudo e vai tirar proveito disso. — Não vai mesmo. Não se eu puder colocar em prática minhas técnicas de despistar um idiota! Alícia me faz rir e me pego relembrando outros fatos, como o de que ela sempre me apoiou a enfrentar meu pai. As lembranças estão interligadas e, devagar, uma vai puxando a outra. Conversamos ainda por algum tempo e vou contando a ela as coisas de que me lembro, e Áli vai preenchendo as lacunas, atenciosa. Cansada, ela cai no sono cerca de meia hora depois; sua respiração se faz ouvir regular e profunda, indicando que adormeceu. Levanto-me devagar, torcendo para não acordá-la e calço as pantufas peludas e rosas ao lado da cama. Abro um sorriso para o calçado que Alícia

trouxe, tão indiscreto na cor, mas tão silencioso quanto se pode ser. Deixo o quarto, saindo para a penumbra do corredor e sigo pé ante pé na direção oposta. Levi havia me proibido de ir até seu quarto e só posso esperar que essa regra tenha caído por terra depois de hoje. Depois do convite que me fez mais cedo. Chego diante da porta e ergo o punho para bater, mas logo que encosto nela, percebo que está apenas encostada. A porta abre-se com um rangido suave e vejo Levi de costas para mim; a janela está aberta e a luz do luar banha seu rosto, conferindo a ele um aspecto lúgubre. — Levi? Ele se vira ao som da minha voz e abre um sorriso, que dissipa a sensação de tristeza que sua imagem me passou, a princípio. — Estava desanimando já. Entendo isso como permissão para entrar e fecho a porta atrás de mim. — Esperei Alícia dormir. — E eu estava aqui, torcendo para que viesse... Ele caminha até mim e para apenas quando estamos a centímetros de

distância. Suas mãos acariciam meus braços soltos ao lado do corpo. Tive receio que seu temperamento ruim retornasse, mas ele continua bemhumorado. — Você vai embora — diz, em um tom que soa como pergunta e afirmação. — Quer que eu vá? — O que eu quero tem alguma relevância dessa vez? Mordo o lábio ao ouvir sua resposta. A verdade é que enquanto não souber o que motivou minha partida anos atrás, não há como saber se a vontade dele faria diferença. Eu não quero partir, mas sinto que nunca quis e ainda assim precisei. — Você não quis me dizer antes, mas se sabe porque eu fui embora, precisa me dizer. A expressão dele não é de raiva, como era quando tocávamos no assunto antes, está mais para resignação, conformismo. Levi caminha até a cômoda de madeira do outro lado do quarto e abre uma das gavetas. Aproveito o momento para analisar o quarto. A cama grande é coberta por lençóis pretos de aparência cara, o guardaroupas, a cômoda e a mesa em um canto foram planejados, encaixam-se perfeitamente nos vãos. De resto, não há muito de decoração e enfeites, é

limpo, organizado e sem frescuras, assim como Levi. Voltando para perto de mim, ele me entrega um pedaço de papel dobrado e pego de suas mãos, curiosa e com uma pontada de medo. Abro-o prendendo a respiração e vejo que é uma carta, uma carta minha, de despedida. Leio as palavras com o cenho franzido. Não posso acreditar nem por um segundo no que está escrito nesse pedaço de papel.

26 de novembro de 2005 Levi, Preciso que entenda duas coisas nesse momento. A primeira delas é que não havia outro modo e a segunda é que eu definitivamente te amo. Sei que é muito errado me declarar assim no momento em que encerro qualquer possibilidade que exista de ficarmos juntos, mas não me perdoaria se o deixasse acreditar que o que houve entre nós foi uma mentira. Minhas próximas palavras o farão duvidar de tudo que eu já disse, então peço que não duvide do que sinto. Meu pai nos descobriu e ele me deu duas alternativas: ficar aqui e me

virar sozinha, viver com você e arrumar um trabalho, sem perspectiva de algo diferente, ou ir com ele, fazer a faculdade que ele deseja para mim e manter minha herança e padrão de vida. Gostaria de dizer que fui forte e escolhi ficar, mas sabemos que se assim fosse você não estaria lendo isso. A verdade é que, por mais que tenhamos tido algo mágico, nos conhecemos há menos de um mês. Como eu poderia trocar a certeza de uma vida, por um sonho de verão? Me perdoe por magoá-lo, realize seus sonhos e não tente me encontrar. Fiz minha escolha. Clara. Estática. Sem reação, é o mínimo para explicar como me sinto agora. No meu íntimo sei que jamais deixaria Levi por uma faculdade ou por preocupações relacionadas a uma herança. Posso não me lembrar do que aconteceu depois, mas lembro-me dos dias que antecederam a isso, do quanto estava apaixonada e de todos os planos que eu tinha intenção de seguir. Não sou guiada por dinheiro e nunca fui, nem mesmo na adolescência. Principalmente na adolescência. — Eu não escrevi isso — afirmo, meneando s cabeça. Levi me encara condescendente.

— Foi a Ilda quem me entregou e é a sua letra. — Sim. Eu escrevi... — contradigo. — Mas não de coração, tenho certeza disso. Eu jamais iria trocar você por dinheiro ou status social. Você não me ligou depois disso? — Todos os dias durante um mês, mas seu número nunca foi religado. — Mas... Tentou me encontrar? — Apesar do que diz a carta, sim, tentei te encontrar, mas não conseguia chegar até você. Depois de muitos anos, quando meus pais morreram, tentei outra vez. Eu achava ridículo que algo que vivemos tanto tempo atrás ainda tivesse tanta relevância, mas em meio ao luto eu só queria que você estivesse aqui... — E então? — Você mandou uma coroa de flores, mas não me ligou uma única vez e também não apareceu. — Levi! Isso é um absurdo. Eu jamais agiria dessa forma sabendo o que você estava passando. Ele ainda parece triste com a situação e até mesmo por me mostrar a pessoa horrível em quem me transformei, mas no meu coração sei que algo está mal explicado nisso tudo. — Você não sabe, Clara. Até recuperar suas memórias, não dá pra

saber e também não tem como saber se dessa vez vai ser diferente. — É óbvio que vai! — Não. Preciso ter certeza, não quero viver alguns dias perfeitos pra te ver ir embora outra vez. Não tenho muito o que dizer em minha defesa, mesmo porque realmente é a minha letra, eu fui mesmo embora e, se não voltei em quinze anos, talvez eu mesma já não me reconheça mais. Mas ainda assim não quero perder o que conquistamos nos últimos dias. — Tudo bem. Me lembrei da Alícia e também tive um ou dois flashes de lembranças, acredito que esteja tudo se encaixando. Não me afaste agora... Levi segura minhas mãos e me puxa na direção da cama, onde nós sentamos. — Vai me contar quando se lembrar de tudo e vai me encarar ao invés de sumir? Assinto e ele parece um pouco mais aliviado. — O Leonardo me descobriu e parece que vem pra cá amanhã. Preciso me esconder dele, eu não quero ir embora agora e ele é bem capaz de trazer repórteres e armar todo um esquema pra me forçar a ir pra casa. — Seu assessor? Aqui na fazenda?

— O próprio. Ele já estava irritado com meu sumiço e minha demora em voltar. — Não precisa se preocupar com isso. De manhã vou arrumar um lugar pra vocês ficarem e, quando ele chegar, eu resolvo as coisas. — Não tem como me forçarem a sair daqui... — É. Não tem. O tom dele demonstra que já refletiu sobre isso antes e, somando isso à carta que acabo de ler, sei bem o que se passa por sua mente. — Eu não vou fugir. — Mesmo que não saia no meio da noite, você tem uma vida, tem seu trabalho. — Uma vida que não reconheço e um trabalho que detesto... Você, por outro lado, tem vários segredos aqui e uma relação indefinida com outra pessoa. — Não é uma relação. Nunca foi nada importante. Levi se inclina e toca meus lábios de leve, dessa vez mais gentil e doce que antes. Enquanto ele abre os botões da camisa que estou vestindo, sinto que meu coração, em contrapartida, nunca se fechou para ele.

“Os pequenos detalhes são sempre os mais importantes.” Sherlock Holmes

Procurei-a por toda parte. Ilda saiu com Alícia para Vale do Recomeço, a fim de mostrar o prédio em que a pousada funcionava e ajudá-la com a limpeza para que possam ficar lá enquanto lido com o agente intrometido. Não é um hotel cinco estrelas, mas Ilda manteve o prédio e os móveis, que apenas necessitam de uma boa limpeza e poderão servir de esconderijo. Clara decidiu ficar e com toda a razão. O carro da amiga dela não é muito discreto e, em Vale, é o bastante para atrair muita atenção; eu deveria ter sugerido que fossem na caminhonete ou mesmo que pegassem o carro de

Clara na garagem, mas preferi ficar quieto. Sendo assim, logo que consegui arquitetar o plano com Ilda, soube que Clara estaria sozinha e que poderíamos passar algum tempo juntos, sem ninguém por perto nos bisbilhotando. Fiz uma pausa em minhas funções no escritório e subi procurando por ela. Entrando no quarto dela, noto a janela aberta; como que por um instinto, sou atraído para lá e caminho até conseguir vê-la. Avisto-a lá embaixo, nadando no lago, vestindo um biquíni que deveria ser proibido. — Então foi aí que você se meteu — grito da janela. Clara para em meio a uma braçada, olhando para cima. — Por que não me disse antes que era uma piscina aquecida? Todo esse tempo eu pensei que fosse um lago. Já estava te considerando um prodígio por ter trazido o lago de onde ficava, pra cá. Abro um sorriso ao ver sua expressão de contentamento. — Eu sou um prodígio. E é um lago, só que artificial, e que pode ser aquecido... — Isso aqui é o paraíso! — ela grita de volta. — Tenho certeza que o paraíso não foi feito por mãos humanas. — Vem aqui. Lembrei de uma coisa e quero testar, mas preciso de

você. É o convite mais sensual que já recebi e não penso duas vezes antes de aceitar. Desço as escadas rapidamente e chego até o lago quase ofegante. Clara tem o poder de me transformar em um menino, usando apenas seus olhos meigos. Sempre foi assim, mesmo que eu negasse e agisse de modo a afastála. Botinas, camisa, cinto e calças, termino a pilha colocando meu chapéu sobre as outras peças. O ar fora da água está frio, afinal estamos na zona rural no mês de junho, mas a água está quente e a fumaça que sai dela forma uma bruma ao nosso redor, coroada pela natureza que nos cerca aqui, pelas nuvens carregadas que indicam que logo vai chover. — E então? Precisava de mim para algum experimento? Sou todo seu — declaro, entrando pelo lado oposto ao que ela se encontra. Clara abre um sorriso radiante e nada malicioso. — Então fica aí onde você está. Ela vai em direção à borda, afastando-se ainda mais. Vejo-a remexer os bolsos do short que deixou na beirada, até encontrar o celular. Em instantes ouço The time of my life ecoar. Clara aumenta o volume o

máximo possível e então se vira para mim com um sorriso delicioso. Tão doce e apaixonado que não posso acreditar que ela partiria outra vez, não quero acreditar. — O que? Quer transar com essa trilha sonora? O que quiser, Baby — brinco, chamando-a como a protagonista do filme. Ela sorri e faz que não com um gesto, para meu total desapontamento. — Então o quê? Não sou bom em cantar... — Não, seu bobo. Foi o primeiro filme que vimos juntos, na noite em que dormimos na mesma cama pela primeira vez e em que fizemos planos de um futuro. Esse filme, essa cena, vai ser a nossa metáfora. Franzo o cenho, ouvindo e tentando assimilar o que a mente dela está criando. — Independente do que tenha acontecido, dessa vez as coisas serão diferentes e vamos acreditar em nós. Um salto de fé... — É muito bonito o que está dizendo, mas não entendi o que isso tem a ver com a música. Acho que podemos transar, fazer amor, foder... Tantas vezes que vai ficar gravado em nós. É poético. Isso arranca uma risada dela. — Eu vou saltar, Levi, e você vai me segurar firme e bem no alto.

— Não tem necessidade disso. É só uma metáfora, eu garanto que vou segurar você enquanto quiser saltar comigo. Lembra que um dia me disse que as garotas adoravam essa cena? E que ele a segurava como se jamais fosse soltar? É exatamente o que estou dizendo. Nem vou ser mais babaca, não notou como estou de bom humor? Clara balança a cabeça negando, e seus cabelos molhados espirram água para os lados. — Não, eu quero o salto. Sempre quis. Suspiro, rendido. Como posso dizer não a ela? E é assim que me vejo de pé em um canto da piscina, observando Clara prender os cabelos em um coque e ajeitar a postura, completamente ereta, preparando-se para o momento. Ela arrisca um ou dois passinhos antes do salto e seus movimentos são delicados e suaves, mas até mesmo sua expressão é compenetrada. — Agora! A música chega próxima ao final... Because I've had the time of my life No, I never felt this way before Yes I swear it's the truth And I owe it all to you

'Cause I've had the time of my life E correndo em minha direção, Clara salta de olhos fechados. Rindo da loucura que é tudo isso e contente por vê-la bem, feliz e entregue, ergo os braços e a seguro acima de mim, rodando um pouco enquanto ela arqueia o corpo todo e abre suas asas como um pássaro. Lentamente desço seu corpo, tão perto que sinto seu peito sobre o meu e, quando finalmente seus pés tocam o chão, seus lábios se unem aos meus em um beijo com sabor de promessas e, dessa vez, tendo Dirty Dancing como testemunha. Ficamos abraçados por algum tempo e não apresso as coisas. Quando ela se sente confortável, Clara volta a falar. — Sabe o que é mais incrível? As pessoas sofrem por perderem suas lembranças, entram em depressão e até se suicidam. É incrível que algo que é visto como uma perda incalculável pra tanta gente, tenha vindo pra mim como um presente. Uma chance de recomeço. Há tanto ainda a ser dito e resolvido, tantos questionamentos meus e dela sem resposta, mas acima de todos os pequenos problemas estamos nós dois e nossa segunda chance. Clara É maravilhoso viver esses momentos com ele, quase como se eu

estivesse em um sonho e prestes a acordar. Alícia saiu cedo com Ilda para arrumarem um quarto na antiga pousada e ainda não retornou. Passa das dez da manhã quando deixo a piscina acompanhada por Levi. Ainda pingando água no chão — porque nenhum de nós se lembrou de pegar as toalhas — entramos outra vez na casa. Levi movimenta-se pela cozinha, procurando alguma coisa para comermos, enquanto me sento em uma cadeira, apenas observando-o. — Não queria que fosse pra Vale. Vocês podiam ficar aqui mesmo e eu expulso esse idiota quando chegar. Abro um sorriso ouvindo seu tom protetor. — Léo não é exatamente ruim... pelo que me lembro. Ele é viciado em trabalho e age apenas pensando nisso e eu sou uma das fontes de renda dele. — Idiota, como eu disse. — Vamos fazer assim, eu vou com a Áli e assim que conversar com Leonardo e ele for embora, convencido de que não estou aqui, eu volto. Levi encontrou algumas frutas na geladeira e agora está picando-as em uma tábua. O cenho franzido demonstra sua preocupação, mas não consigo focar muito nisso quando o vejo assim, quase sem roupas, molhado e com esse olhar sexy.

— Você disse que iria embora na segunda. Isso é em dois dias. — Mas não vou. Vou ficar até me lembrar de tudo e aí decidir o que fazer com a minha carreira... Levi me olha de modo intenso, quase como se esquadrinhasse minha alma e meus pensamentos. Ele ainda tem receio de que eu mude de ideia. — Eu sei que é uma perspectiva péssima e que não deveria considerála, mas o que acontece se o tempo for passando e você não se lembrar? — Então vou ter que morar aqui... — Bom, não posso torcer por isso. — Ele me entrega um pote pequeno, cheio de frutas picadas. — Quero que se lembre e que ainda assim... Levanto-me e dou a volta, abrindo eu mesma a geladeira e procurando o iogurte que vi Ilda guardar mais cedo. — Como pode ver, estou bem à vontade. Olha, Lê, eu não posso garantir que recuperar a memória não vá alterar alguma coisa no meu modo de pensar, mas posso jurar que nada vai mudar o que eu sinto e preciso dizer que naquela época, éramos adolescentes. Hoje eu sou uma mulher e posso tomar minhas decisões e fazer mudanças necessárias na minha rotina. Eu não vou te deixar. Ele sorri ao me ver esparramar o iogurte sobre as frutas e, quando termino, Levi faz o mesmo com as dele.

— Eu pareço um disco arranhado. Me desculpe por ficar sempre voltando a esse assunto e duvidando que vá ficar e desculpe por ter te tratado mal e gritado ainda ontem. Foi a maneira que encontrei de não enlouquecer com você aqui, te mantendo afastada. — Se ajuda em alguma coisa, Alícia me contou muito sobre o tempo que passei longe daqui e posso te dizer que nunca esqueci você. Quando contei onde eu estava, ela perguntou a seu respeito, porque eu já tinha contado a ela nossa história... — Eu não preciso dizer nada, certo? Você viu os pôsteres lá embaixo. — Vi, mas disfarçou muito bem me escorraçando daqui e gritando o tempo todo. Ele ri outra vez. É tão diferente ver a leveza que toma conta do seu rosto, admirar outra vez as covinhas surgirem. — É que eu sou um homem muito mau. — Clarinhaaa, cheguei! A voz de Alícia chega até nós e logo ouvimos o som dos saltos martelando no piso de madeira. — Eu adorei o lugar. Por que ninguém me disse que era um castelo? Tão lindo! Verdade que está caindo aos pedaços, mas é incrível. E é rodeado por essas casinhas lindas, saídas do século XIX e aqueles comércios fofos.

Ela une as duas mãos próximas ao coração. Parece que Vale do Recomeço já conseguiu atirar seu feitiço sobre ela. — Tão meiga, pitoresca de um jeito... Por que vocês estão pelados no meio da cozinha? Ildinha! Não entra aqui, minha filha. Sinto meu rosto esquentar no já característico rubor. Levi, por outro lado, apenas meneia a cabeça e sorri. — O quê? — Ilda questiona, estacando na porta da cozinha. Os olhos dela voam de mim para Levi e então para Áli. — É roupa de banho, menina. Eles estavam nadando... Apesar de sair em nossa defesa, não deixo de perceber que ela está tão vermelha quanto eu, afinal a roupa de banho de Levi não passa de uma cueca. Áli aproxima-se de mim e rouba um pedaço de morango da tigela. — Sei. Mas então, podemos ir quando quiser, Clara. Não que você tenha motivos pra querer ir, lógico. Mas, enfim, a necessidade faz o ladrão. Levi ergue a sobrancelha. É difícil, mas uma hora as pessoas se acostumam com Alícia e seu jeito agitado, além dos ditados populares que ela adora usar, porque os acha sem sentido muitas vezes e engraçados, sempre. — Eu sei... — respondo, resignada. — Realmente eu não queria ir, mas vou pegar minha bolsa e já vamos. Vou aproveitar pra comprar umas

roupas... Já chega de abusar das peças antigas da Lalá. Subo para o quarto e reúno meus pertences bem rápido, afinal não trouxe muita coisa. Visto as roupas que usava no dia do incidente e desço outra vez as escadas, encontrando Levi que me espera no último degrau. — Eu te ligo com notícias. Assim que o Leonardo vier e for embora te aviso. Aquiesço, torcendo para que seja rápido. Agora que nos entendemos não quero passar mais um dia sequer longe dele. Deixo a casa, acompanhada por Áli e usando um dos chapéus de Levi. É uma casa, uma fazenda, mas sinto como se estivesse abandonando parte de mim... Outra vez. Áli entra na cidadezinha um pouco depois e a chuva chega junto conosco. Me afundo no banco tentando me camuflar ao carro e, quem sabe, não ser vista por ninguém. Por sorte, ela entra direto no pátio da pousada e já desço de lá para a entrada. — Esse lugar é imenso e está abandonado tem bastante tempo, então não deu pra arrumar tudo. Só limpamos dois quartos e o banheiro, o resto a gente ignora. Abrindo a porta com a chave que Ilda deixou com ela, Áli entra no hall

arrastando a mala enorme que trouxe. — Nossa... Tem tantos anos que não venho aqui. Realmente o prédio já esteve em melhor estado — comento, olhando o balcão empoeirado e as teias de aranha nas paredes. — Vamos subir? Até eu chegar lá com essa mala... — Por que trouxe tanta coisa se a intenção era ficar dois dias? — questiono, cada vez mais impressionada com o tamanho da bagagem. — Bom, nunca se sabe do que uma garota vai precisar. O bom é que você pode usar minhas roupas se quiser. Ouvindo-a dizer, sinto que tem mais algum motivo para que Alícia decida se meter em Vale do Recomeço, sem pressa para ir embora, assim, do nada. Antes que eu possa sondar o motivo, ouvimos uma voz vinda do jardim e, pouco depois, Lavínia coloca a cabeça para dentro do hall. — Pensei ter visto o chapéu e a cabeleira escondida — diz, abrindo um sorriso e passando as mãos pelos cabelos, tirando as gotículas de chuva. — Eu tentei ser discreta, Lalá, mas o carro da Alícia não ajuda muito. Áli me dirige um olhar ferino, mas estende a mão para cumprimentar a recém-chegada.

— Sou Alícia, a melhor amiga da Clara, salvadora da pátria nas horas vagas. Lavínia abre um de seus sorrisos meigos e retribui ao cumprimento. — Eu sou Lavínia, irmã do Levi. — Ahh, o garanhão da Clara... Piso no pé dela sem muita sutileza e vejo a careta que ela faz antes de ouvir a risada da Lalá. — Hum... Então o Túlio, sonho de consumo do país todo, perdeu a noiva pro meu irmão? Ele vai ficar insuportável depois dessa. — Minha filha — Áli aproxima-se mais de Lavínia e diminui o tom de voz. — O Túlio é gay! Ia querer montar no seu irmão tanto quanto a Clara. Lavínia arregala os olhos e vejo sua pele pálida se avermelhar. Assim como eu, ela não consegue esconder bem o constrangimento. — Áli! Está contando um segredo do Túlio! Isso... Ai, o Leonardo vai destruir minha vida... — O que? — ela pergunta, bancando a sonsa. — É sua cunhada, ela não vai espalhar nada. Lavínia ainda tenta encontrar as palavras para responder ao que acaba de ouvir.

— Desculpa, Lalá... A Alícia é doidinha, mas tem bom coração. E sobre o Túlio, eu agradeceria se mantivesse isso entre nós, porque não é um segredo meu para espalhar. Ela assente e então, estende-me um jarro de flores que eu ainda não havia notado em suas mãos. — Trouxe isso. A floricultura fica aqui ao lado, então se precisarem de alguma coisa é só gritar, a qualquer horário, porque moro no apartamento em cima. — Ahh que lindas, obrigada por isso. — Por nada. Vou na fazenda agora. Fiquei de levar umas correspondências da empresa pro Levi, mas mais tarde estou de volta. Me despeço dela, sem deixar de pensar que é um modo muito estranho de se referir a uma fazenda, mas se Levi ainda não me disse o que tem feito, não quero intrometer-me antes que ele se sinta confortável. — Que empresa é essa? — Áli me pergunta assim que Lavínia deixa o pátio da pousada. — Não tenho ideia.

“Quem vive de passado é museu. O futuro a gente faz agora.” Os Incríveis

A BMW passa pela porteira e avisto-a da varanda do casarão. Está chovendo um pouco, nada torrencial, mas a cadência já transformou a poeira em um lamaçal; os faróis do carro reluzem, altos, enquanto ele se aproxima mais. — Vai precisar de ajuda com esse daí? Posso dar uma surra nele se quiser. Viro-me, vendo Felipe se postar ao meu lado, demonstrando apoio, enquanto Pacino se coloca do outro lado, sempre vigilante.

— Não, mas agradeço. Estacionando diante da casa, Leonardo de Souza Bastos desce do carro, abrindo um guarda-chuva preto sobre os cabelos claros. O homem usa um terno perfeitamente cortado, sapatos sociais e um sobretudo cinza sobre as roupas. Uma escolha pouco apropriada para uma fazenda em um dia chuvoso. — Boa tarde. Qual dos senhores é Levi Máximo Vilasboas? Desço alguns degraus e estendo a mão para cumprimentá-lo. — Finalmente nos conhecemos, Leonardo. — Realmente — responde, com um sorriso que identifico como falso. — É um prazer. Queria que as circunstâncias fossem outras, mais adequadas, mas a verdade é que estou procurando minha cliente e soube por fontes seguras que ela está aqui, na sua fazenda. Interessante. — Não tem ninguém aqui. Na verdade, o senhor tem muitos clientes pelo que sei. Se refere a qual deles? — Tenho apenas uma cliente que conhece o senhor pessoalmente. Clara Alves Coutinho. Abro um sorriso, que reconheço, é um tanto cínico.

— Isso foi há muitos anos. Não mantivemos contato e não a vejo, exceto pelos filmes, há muito tempo. O homem fecha o guarda-chuva e volta até o carro para guardá-lo. Por algum motivo decidindo que a chuva não é tão forte assim. Voltando, ele coloca as mãos nos bolsos e então me fita com desconfiança. — Ela estava de passagem por essa estrada, indo se encontrar com o pai. Algo nos leva a crer que Clara acabou vindo até aqui. Vejo-o afundar o pulso no bolso o máximo que pode, protegendo o relógio caro dos pingos incessantes. — Nos leva? O pai dela também? Isso só fica mais interessante. — Não exatamente. Me refiro à equipe dela, porque por razões que o senhor pode presumir, achei melhor ainda não informar minhas suspeitas ao Alessandro. — Lógico. Ele me odeia. Sabe o que é mais interessante? Falei com ele no passado duas vezes, se muito. Não faço ideia do que motivou essa raiva toda. — Não acredito que seja raiva. É apenas zelo pela felicidade da filha... Por mais simpático que ele tente ser, é óbvio que concorda com Alessandro, e eu não sou a melhor opção para Clara no modo de ver deles.

— A felicidade da Clara me parece a última coisa que qualquer um de vocês tem considerado. Leonardo encara os próprios pés, molhados e então se volta para mim outra vez. — Podemos entrar? Seria bom aproveitarmos o momento para discutirmos negócios, nos conhecermos. Assinto, permitindo que entre, afinal já esperava por isso. O engomadinho sobe as escadas e entra no hall. Seu olhar de admiração não me passa desapercebido e noto, com orgulho, que mesmo para os seus padrões exagerados, o lugar chama atenção. Seus olhos abraçam tudo. Desde os estofados de couro, passando pela televisão imensa e ultramoderna e se demorando um pouco nos quadros, pendurados na parede. — Sua fazenda é muito bonita. Uma mistura do moderno com o histórico. — Como eu — respondo, tentando soar bem-humorado, mesmo que não me sinta assim. — Sim, exatamente — concorda. — Ela não está mesmo aqui? Tive a impressão de ver o carro dela quando entrei. Paro no lugar, pensando em como fui me esquecer de um detalhe tão

grande quanto um carro. Fecho os olhos repreendendo-me em silêncio, as coisas estavam indo bem e poderiam terminar sem que eu precisasse arregaçar as mangas. — Escuta, Leonardo... — Viro-me de frente para ele. — Quando a Clara quiser ir embora, ela vai. Quando quiser te dizer onde está ou falar com o pai, ela vai. Clara é adulta e acho que entende que não pode chegar aqui e tomar as decisões por ela. O homem também para, ajeitando a gravata e fitando a parede atrás de mim, como se analisando as pinturas nos quadros. — Entendo isso. Mas como vou saber que não está mantendo-a aqui contra a sua vontade? E se isso for um sequestro? Uma estrela de cinema, famosa, desaparece do nada e sua atitude, escondendo minha cliente, não parece das mais confiáveis. Preciso rir do comentário. — Só pode estar de brincadeira. A falsa expressão de pesar dele é o estopim para minha raiva fervilhante. — Até onde eu sei, ela pode estar sendo coagida a isso. Já tomei conhecimento de sua obsessão por ela. — Mas que porra é essa?

Quando dou por mim, minhas mãos já seguram o colarinho da camisa branca dele, trazendo seu rosto a centímetros do meu. — Quer apagar o que disse? Se desculpar? O abusado faz que não. — De jeito nenhum, e não saio daqui sem minha cliente. Clara volta comigo hoje ainda para a capital. — Está com pressa? — pergunto e sei que meu olhar é ameaçador. Arrasto-o porta afora e paro com ele no alto da escada. Pacino começa a latir, assustando ainda mais o idiota. Felipe, por outro lado, apenas observa-me com os braços cruzados e um sorriso sacana. — Vou chamar a imprensa e um advogado — Leonardo ameaça. — O senhor tem muito a perder, Vilasboas! Abro um sorriso e reconheço a adrenalina quase diabólica correndo em meu corpo. — Não tenho culpa se você é desastrado... — falo, descendo os degraus enquanto o carrego após mim. O homem é bonitão e tem o visual impecável de um príncipe da Disney, mas é bem menor que eu e mais magro e, além disso, com certeza

não está habituado a situações como essa. — Senhor Vilasboas, isso é inaceitável. Meu sorriso se alarga. Sem dar tempo para que ele se prepare, atiro-o diretamente na poça de lama que se formou ao lado do carro chique dele. — Inaceitável é o que aconteceu com o senhor, tão desequilibrado, caindo assim. Leonardo parece incrédulo, observa as próprias roupas boquiaberto, a camisa branca completamente tingida de marrom. — Levi! O que é isso? Perdeu o juízo? Apenas quando ela fala, noto minha irmã ao meu lado. De onde ela surgiu? — Isso não é coisa sua, Lavínia — respondo, me sentindo realizado. — Esse idiota chegou aqui fazendo acusações absurdas. Dou as costas a ele, entrando na casa e torcendo para que um raio caia sobre sua cabeça. Clara De tempos em tempos fito o relógio, pensando no que pode estar havendo na fazenda.

Áli fala sem parar sobre a cidade e sua empolgação é tão contagiante que sinto muita vontade de sair andando por aí. O que de pior pode acontecer? Mas assim como vem, a ideia se vai. Ainda não estou pronta para lidar com perguntas e questionamentos sobre minha carreira e à luz do dia é bem mais difícil me esconder. — Quem sabe a noite? Ahhh, eu podia pintar seu cabelo de outra cor. Ia disfarçar bem. — Não, obrigada. Mas a noite podemos dar uma volta por aí... A cidade fica bem vazia e pouca gente vai acabar me vendo. A verdade é que, ficando aqui, as pessoas vão ter que se acostumar comigo e eu com elas. Áli para e se vira de frente para mim. Suas feições adquirem uma seriedade pouco característica. — Vai ficar aqui? — Acho que já passou da hora de fazer o que eu quero. Vou trabalhar nos meus roteiros, guardados há tanto tempo e se um dia conseguir vender um deles, ótimo. Se não, devo ter bastante dinheiro já, não? Ela se senta ao meu lado na cama. — Acho que tem razão, sabe? Seu pai sempre controlou tudo, assim como o meu queria fazer comigo. Não podemos abrir mão de viver nossas

vidas, Clara. E se você ama esse homem, e não vejo porque não amaria com um pacote como aquele... Tem que ficar com ele. Dou um tapa no braço dela de leve e sua risada ecoa pelo quarto amplo. — Pode parar com esses comentários a respeito do meu Levi. — Ai meu Deus! Que possessiva, eu achava que você soubesse compartilhar. — Não. Meu pai me criou muito mal — respondo, olhando-a com ar de superioridade. Ainda estou rindo da cara dela quando meu celular começa a tocar, distraindo-me. Vejo o nome de Levi no visor e meu coração se acelera diante da pequena menção. — Oi... — atendo, tentando não soar muito afoita. — Resolvido. Ele veio, teve um pequeno encontro com uma poça de lama, entrou no carro e foi embora. Considerando que a cidade não tem mais um hotel ou uma pousada, só posso deduzir que pegou a estrada e se mandou. — Poça de lama? Levi! Você bateu no Leonardo? — Não. Quem maltratou seu assessor foi a lama, não tive nada com

isso. Suspiro já antevendo o drama que vou ter que ouvir de Leonardo. Cada vez mais me recordo dele e de suas façanhas e, aos poucos, uma imagem vai se ligando à outra, formando o contexto todo. — Precisava chegar a tanto? — Ele me acusou de te sequestrar. Acredita nisso? Sujeitinho descarado. Mordo o lábio contendo o riso, é bem a cara do Leonardo fazer algo assim. Ele só não contava com Levi. — Sorte dele que o galinheiro fica longe, ou eu teria dado a ele uma ótima cobertura de penas... — Você não existe — respondo, me divertindo mais do que deveria. — E então? Volta hoje mesmo? — Prometi passar um tempo com a Áli. — Ela pode vir também. — Vou voltar mais tarde, então. À noite. — Vou te esperar. Encerro a ligação com um sorriso no rosto e me deparo com Alícia me encarando, aguardando as informações.

— E então? Vai pra onde?

A tarde passa enquanto nos perdemos em uma conversa animada e recheada de informações. Sempre que Alícia conta alguma coisa que fizemos juntas, consigo ter vislumbres do momento. Sinto algumas pontadas de dor na cabeça nesses momentos, mas recuperar minha história vale a pena. Saímos da pousada logo que a noite cai. As luzes nos lampiões antigos já estão acesas, conferindo a Vale aquele ar de antiguidade e romantismo que só essa cidade consegue ter. Sinto o cheiro das ruas molhadas. A chuva parou há algum tempo, mas o calçamento ainda está escorregadio e o ar frio da noite já levou a maioria dos moradores para casa. — Isso aqui... é incrível, Clara. — Então deveria se mudar e ficar aqui, comigo. Alícia não responde a brincadeira e parece pensativa, considerando realmente minha sugestão.

— Está tudo bem? — pergunto. Ela me olha de um jeito estranho e sinto que realmente está me escondendo alguma coisa. — Tudo bem. Por que não estaria? Há uma barraca vendendo espetinhos de carne assada e o vendedor nos cumprimenta ao passarmos, sem nos dirigir muita atenção. Seguimos caminhando na direção em que ficava a pracinha da igreja. As casas, com suas fachadas históricas, trazem uma sensação de nostalgia. Podem ter se passado quinze anos, mas apesar de mudanças advindas da tecnologia, Vale não mudou muito e isso é maravilhoso. A essência da cidade continua a mesma. Viro a esquina, seguida de perto por Áli. — Pode me esperar? Eu não consigo caminhar tão rápido com essas pedras. — Quem mandou vir de salto? É paralelepípedo, Áli. — Sabe minha opinião sobre salto. Tento me recordar, mas não me lembro disso. Não deve mesmo ser algo importante se tem a ver com os sapatos dela. — Olha! A igreja nova! — exclamo, apontando para o prédio alto. —

Como ficou linda, Áli! O padre deve ter ficado tão feliz com ela... — É bem fofa mesmo. Mas, assim, não me parece muito nova. — Bom, estavam arrecadando fundos para a construção quando estive aqui. É nova só pra mim. Áli assente, compreendendo o que estou dizendo. — Aquele coreto também é uma graça — ela diz, apontando para a construção circular no meio da praça. — Ahhh, ele ainda está lá! Foi bem ali em cima que o padre leiloou a torta que garantiu minha primeira noite com Levi. — Quê? Me perco nas lembranças daquela noite. É tudo tão nítido, me recordo tão bem de cada momento especial que tivemos durante a festa, na roda gigante e depois. Está tudo preservado em minha memória. Agradeço a Deus por isso. São lembranças especiais demais e estou feliz por tê-las mantido. — Onde vamos agora? Está bem frio aqui. — Alícia esfrega os braços nus, em uma tentativa de se aquecer. — Clara? É você, menina? Volto-me na direção da voz e encontro padre Fernando, amparando

uma senhora que anda muito encurvada, apoiada também a uma bengala. — Padre! Tudo bem? Me aproveitei que a cidade já está bem silenciosa e trouxe minha amiga para conhecer a igreja. — Ah, são muito bem-vindas. — Ele segura a batina com uma das mãos, acima dos tornozelos, evitando o contato com o chão molhado. — Caso queiram entrar, apenas fechem as portas ao saírem. Eu e Suzinda estamos indo para o bar. Olho dele para a velhinha de cabelos brancos. O rosto dela está voltado para o chão e ela nem mesmo parece estar entendendo o que acontece ao redor e, meu Deus do céu! É ela mesmo. — Madame Suzinda? Há quanto tempo! Honestamente não esperava que ela estivesse viva. A mulher deve ter mais de cem anos. — Hoje, Suzinda não está falando muito, mas ainda gosta de passear e, de vez em quando, levo-a até o bar. Áli observa os dois com uma expressão de pavor. Posso entender, Suzinda causa uma impressão e tanto. — Não fique assustada, minha filha. Suzinda gosta de aterrorizar turistas, mas na verdade não sabe de nada. Não é mesmo, minha amiga? A mulher continua imóvel.

— Bom, acho que o senhor teve uma excelente ideia. Acho que vamos até o bar também. — Um bar? — Áli me interrompe. — Ficou doida? Vão te reconhecer! — É o bar de um amigo. Não deve ter muita gente, fui lá outro dia com o Felipe. — Uma ideia dessas só podia vir daquele imbecil. Acontece que hoje é sábado. — Vamos — o padre convida. — Podemos beber na cozinha do Mário e aí ninguém vai te perturbar. Assinto, considerando essa uma excelente ideia. Áli não parece tão convencida, mas enlaça o braço no meu e juntas seguimos o padre e sua acompanhante, formando um quarteto e tanto. Digito uma mensagem para Levi às pressas. “Indo para o Porta Sem Trinca. Me encontra lá?” Guardo o celular no bolso, mas logo ele vibra, sinalizando sua resposta. “Só se voltar comigo pra fazenda, Estrelinha.” — Então... Você acharia muito ruim se te pedisse pra irmos pra fazenda mais tarde? Dormir lá? Áli me olha com malícia.

— Não aguenta um dia longe? Faço sinal para que se cale, afinal, jogando truco ou não, bebendo no bar ou não e caminhando de braços dados com a cigana ou não, padre Fernando ainda é um padre. — Acho que você deveria ir sem mim. Aproveite a noite e eu fico na pousada — Alícia sugere. — Nada disso. Se vai ficar, eu também vou, Levi vai entender. — Nada disso digo eu. Sabe que não me importo e posso chamar sua cunhada pra me fazer companhia... Assaltar a geladeira dela. — Não — sussurro. — Ou vamos juntas ou ficamos as duas na pousada. Alícia não insiste, mas sei que ainda não a convenci de nada. Enquanto isso o padre segue falando com Suzinda, que não responde absolutamente nada. Chegamos ao bar um pouco depois e olhando pela quantidade de carros na rua, deve mesmo estar lotado. Entro de cabeça baixa e sigo o padre até o balcão. — Boa noite, padre. — Ouço a voz de Mário, mas ainda tento usar os cabelos para esconder o rosto. — Trouxe sua amiga para apavorar a clientela

hoje? — Ah sim, Suzinda queria diversão — o religioso responde. — Escuta, meu filho, vim também com a nossa amiga em comum que está se escondendo. Será que podemos beber na sua cozinha? Se o pedido soa estranho, Mário não demonstra. Ele olha para o lado e me vê, e então assente. — Lógico que sim, pode entrar, Clarinha... — fala. — Bom que ficam de olho na Athena por mim. Ele ergue a tábua no balcão para passarmos por baixo e arrasto Alícia comigo. — Avisa o Levi onde estamos, por favor. Ele está vindo. Mário concorda com um aceno. — Vão querer cerveja? Levo em um minuto. Assinto e vejo Alícia fazer o mesmo. — Um suco para a Su, por favor — o padre pede e acabo rindo da situação. Nos sentamos na mesa de quatro lugares na cozinha apertada de Mário e logo ele surge, trazendo as cervejas e um suco de manga, de latinha. Ele mesmo abre a lata e coloca o canudo, antes de deixar a lata diante

de Suzinda. — Querem comer alguma coisa? — questiona. Mário parece bem atarefado, o pano de prato atirado sobre o ombro e os olhos dirigindo-se a todos os lugares ao mesmo tempo. — Estou morta de fome. O que você serve aqui? — pergunto, tentando ser prática e rápida. — Porções de todo tipo de coisa. — Tem comida? — Alícia pergunta, tão esfomeada quanto eu. — Podem deixar comigo. Logo trago alguma coisa bem gostosa pra vocês. Ele sai outra vez, deixando-nos a sós, mas antes que possamos engrenar em uma conversa, a pequena Athena surge correndo, vinda dos fundos do apartamento. — Oi pequena, tudo bem? — o reverendo a cumprimenta com um sorriso. A menina, no entanto, arregala os olhos ao ver Suzinda e sai correndo de volta pelo lugar de onde veio. — Vou lá no bar encontrar o banheiro, amiga. Tem um tempo já que estou precisando.

Concordo ao ver Áli se levantar ao mesmo tempo que o padre. — Vou ver a menina. Espero que não tenha feito careta pra ela, Suzinda. É uma criança, pelo amor Deus! Abro um sorriso ao vê-lo repreender a cigana, que nem mesmo se moveu. Ele some no corredor e ficamos apenas Suzinda e eu. Tomo um gole da cerveja e então noto o movimento do outro lado da mesa. Suzinda coloca o canudo na boca e suga o suco com bastante desenvoltura. Não parece a mesma múmia de minutos antes. — Então você voltou... — ela diz e, apesar do tom rouco e falho, consigo compreender perfeitamente. — E a senhora está falando e se lembra de mim. Ela abre um sorriso sem nenhum dente na boca. — Não fui eu quem perdeu a memória. Velha abusada. E como ela já sabe da minha memória? Deve ser obra do padre. — Voltei — repondo apenas. — Já era hora. — Ela assente, erguendo o rosto e me fitando com os olhos vazios. — Agora vai ser feliz.

Sorrio em resposta à sua profecia cigana. — Vou mesmo. Mas você podia ter me dito que ia demorar quinze anos, hein? Me enganou direitinho. Ela continua me oferecendo aquele esgar que se assemelha a um sorriso e toma mais um gole do suco. — Não fiz isso. Se bem me lembro, eu disse que a vida tinha obstáculos e que era bom aproveitar o caminho até a felicidade. Mas você não aproveitou nadinha... — Ficou foi falando em metáforas. Algo sobre cascalho e paisagens bonitas. Suzinda apenas meneia a cabeça, como se eu não tivesse compreendido nada e o fato é que, pelo visto, realmente não entendi. Ouço os passos do padre no corredor e então Suzinda volta à postura de vegetal. Essa mulher é debochada até com o pé na cova. Áli retorna pouco depois e vejo alguém que a segue de perto. Meu coração se aquece ao vê-lo, fito seus olhos azuis que também parecem se alegrar ao me ver. Levi cumprimenta a todos e coloca o chapéu em um canto, antes de arrastar um banco, posicionando-o ao meu lado.

— E então, Su? Dando trabalho pro padreco? — cumprimenta. Percebo a sombra de um sorriso no rosto da mulher, mas ela disfarça bem. — Ela está sorrindo, você viu? — Áli sussurra no meu ouvido. — Se eu não dormir hoje à noite, já sabe. Culpa sua! Acabo rindo também. Suzinda consegue assustar até os adultos. — É uma velha safada — o padre responde, parecendo perceber que vinha sendo enganado a noite toda. — E você, Clara? Soube que seu assessor chegou na cidade hoje e foi escorraçado da fazenda. Vai embora? — Ele ou eu? — pergunto. — Você, claro. O rapaz deve estar longe já ... — Não vou a lugar nenhum. Vou ficar aqui. — Então o que estamos fazendo escondidos na cozinha? Esse povo vai ter que se acostumar a ver uma celebridade andando por aí. Assinto ao ouvi-lo repetir o mesmo que disse a Alícia mais cedo. — É verdade. Além disso, não acho que vão ver uma celebridade por muito tempo. Estou refazendo meus planos. — Do que está falando? — Levi questiona, baixinho e sua mão pousa sobre minha coxa.

— Te conto mais tarde. — Aí meu Deus... Eles são fofos, não acha, padre? Um casal meloso. O padre olha de Levi para mim. — Um casal, então? Pensei que... Ele se cala antes de falar muito mais, mas imagino bem o que pensou. — Pensou que ele se casaria com a Lena, padre? Está torcendo por ela? — brinco, mas no fundo há uma verdade no meu tom ressentido. Acredito que boa parte da cidade esperava por algo assim. — Na verdade, não pensei na menina Aguiar. Pensei em outra coisa, mas esqueça isso, estou feliz por vocês. Então me toco de que ele se refere a Túlio. Às vezes me esqueço do quão conhecido meu nome se tornou e de que todos sabem tudo a meu respeito. Mais até que eu mesma. — Não estou noiva de verdade, padre. Era só atuação... — explico da melhor forma que posso. Levi vira o rosto na minha direção, surpreso com a revelação. — O que? Pensei que soubesse. Que tivesse entendido quando te disse na festa — digo, um pouco mais baixo, mas ciente de que todos à nossa volta estão ouvindo tudo.

— Imaginei que fosse algo assim, mas não tinha ouvido com todas as letras. — É. Acho que tenho muita coisa para explicar. Ele assente, satisfeito. Mas desse momento em diante Levi sorri a todo momento e percebo que aquela dúvida ainda o incomodava. Ao menos eliminamos um problema. Durante todo o tempo, a mão de Levi fica pousada sobre minha perna, enviando um alerta para meu corpo que já anseia por mais dele. Deixamos a cama ainda essa manhã, mas o desejo que vejo nos olhos dele e que reflete o meu próprio, faz parecer que acumulamos essa vontade por tanto tempo que agora só conseguimos pensar nisso. Ficamos no bar por um longo período e mesmo depois que Mário retira os pratos da maravilhosa refeição que nos trouxe — tutu de feijão, arroz e costelinha de porco — ainda mantemos uma conversa leve. Áli interroga o padre praticamente sobre tudo e não consigo entender bem aonde ela quer chegar com o assunto, mas posso notar sua empolgação. O bar já está bem vazio quando saímos, mas o que poderia ser uma vantagem na minha situação, acaba tornando-se uma desvantagem, porque é muito fácil para Lena nos ver de onde está sentada, conversando com uma outra mulher.

— Olha só! — diz em voz alta, levantando-se e caminhando até nós. — Para quem estava só de passagem você tem demorado por aqui, Clara. Levi percebe meu desconforto e logo trata de capturar minha mão. Lena observa o gesto e vejo a raiva passar por seus olhos. — Hum, então estão juntos de novo? — ela questiona. — Tantos anos depois, é mesmo interessante. Levi não responde. Imagino que não deva ser muito agradável para ele a situação, já que ainda ontem Lena estava se pendurando nele. Pelo canto do olho percebo Alícia se postar ao meu lado. Os braços cruzados em um sinal claro de desafio — como se ainda estivéssemos no ensino médio. — Realmente — respondo. — Tem coisas que são para acontecer. Lena assente. Um sorriso nada gentil nos lábios vermelhos. — Sim. Imagino que isso não vá atrapalhar nossa amizade, o fato de vocês serem um casal e você ter conhecimento de como Levi e eu ficamos próximos nos últimos anos — ela fala, atirando seu veneno. Percebo no mesmo instante que Lena acredita que não sei, que ao contar a respeito pode provocar o efeito de um distanciamento entre Levi e eu. — Isso é passado — Levi responde antes que eu encontre as palavras

certas. — Realmente. Semana retrasada — Lena completa. Ouço a tosse do padre e percebo que nossa plateia está tão incomodada quanto eu com o embate. Quase me arrependo de aceitar a mão de Levi na minha, afinal a coisa toda está ficando esquisita. — Não tem nada a ver — respondo, tentando ser mais casual do que eu seria em séculos. — Também tive outros relacionamentos. Agora vou indo, está ficando tarde. Como se eu tivesse muito o que fazer por aqui. Lena assente e, com um olhar direcionado a Alícia, como se apenas então a notasse, se afasta. — Quem era essa? — Áli questiona com uma careta. — A ex do Levi — respondo. — Não tem nada disso. Nós nunca namoramos. Dou de ombros enquanto saímos porta afora. — E então? Vocês duas voltam comigo para a fazenda? Podemos passar na pousada pra pegar seu carro, Alícia. Ela nega.

— Vão vocês, o padre me deixa em casa, não deixa, padre? Padre Fernando concorda com um gesto. — Quero ficar na cidade hoje e ver como tudo funciona aqui pela manhã. — Áli, não tem que fazer isso. Vamos para a fazenda e de manhã você pode voltar aqui... — Não, é sério. Podem ir agora mesmo. Vejo Alícia aceitar o braço que o padre oferece a acabo rindo ao ver os três se afastando. Levi passa o braço ao redor do meu corpo, me puxando para perto e juntos começamos a caminhar para onde ele deixou a caminhonete. — Sabe o que achei estranho? — ele comenta. — Lena disse que estamos juntos outra vez, mas você deve se lembrar que ela nunca teve conhecimento sobre nossa relação. Você quis esconder dela porque descobriu que ela era apaixonada por mim, lembra? Assinto, franzindo o cenho ao notar a esquisitice disso. — Pois é. Mesmo depois que você foi embora, ela nunca me disse que sabia. Enquanto voltamos para a fazenda, me pego relembrando todos os

nossos esforços para não sermos descobertos. O leilão e o encontro após ele. Ela poderia ter nos visto, sim, mas então por que na época não disse nada?

“O poder de brilhar está em cada um de nós.” Coach Carter

— E sua lista? Qual dos filmes ainda não viu? Penso um pouco e decido dizer a verdade. — Metade dela ou mais, sempre acabo acrescentando outros. Além disso, minha mãe era minha companheira nessa maratona e desde que ela se foi... O olhar dela transmite pesar, mesmo com toda a doçura que há nele. — Como aconteceu? — Clara coloca as pernas em cima do sofá e ergue os joelhos, abraçando-os.

— Um acidente... — Faz tanto tempo que não falo a respeito que nem sei como as palavras saem tão facilmente. — Meu pai queria ver um cavalo em um haras que fica a algumas horas daqui e chamou mamãe e Lavínia pra irem com ele. Na volta, eles sofreram um acidente de carro, uma batida feia... Os dois morreram na hora. — Sinto muito... — ela diz e ouço sua voz embargada. — E a Lalá? — Se feriu um pouco, mas nada tão sério fisicamente. Por estarem na frente, o impacto que eles sofreram foi bem maior. Clara me encara com os olhos marejados. Ela apoia a cabeça no próprio braço enquanto me olha de maneira tão intensa que chego a me emocionar também. Já falei disso tantas vezes, mas sempre vai ser doloroso. — Eu soube disso? Puxo seu corpo para perto e ela se ajeita, deitando-se sobre minhas pernas. — Tive raiva de você durante muito tempo. Foi difícil parar de te procurar, de ligar, mas aos poucos me convenci de que não adiantava. Mas então eles morreram e eu precisava de você. Consegui o telefone e liguei, tentei todos os contatos que pude e você não me atendeu, mas então, pouco antes do enterro entregaram uma coroa de flores em seu nome, o cartão dizia apenas “sinto muito”.

Ela suspira profundamente e balança a cabeça de um lado para o outro. Clara tem os cabelos castanhos espalhadas sobre mim e os olhos piscam, líquidos, como se fossem feitos de chocolate derretido. — Não acredito que tenha sido tão cruel. — Nem eu — respondo. — Como assim? — Me convenci de que você tinha feito aquilo e que eu tinha te idealizado, criado uma imagem sua que não era real. Mas você é exatamente como me lembro, é doce, meiga, carinhosa e preocupada com os outros. Conhecendo seu assessor e até mesmo seu pai, começo a achar que você nunca recebeu meus recados, minhas mensagens e que não soube nada sobre a morte deles. Clara passa as mãos pelo rosto e assente. — Posso acreditar nisso muito facilmente. — Foi por isso que eu não liguei quando a Paula morreu, não sabia se te importaria. Mas a Lena disse que te procurou, não sei também se é verdade. — Considerando que ela sabia sobre nós e nunca disse nada, acho que não confio muito no que ela diz ou faz. Passeio com meus dedos por entre suas mechas de cabelos e ouço-a

suspirar. — E o seu noivo? Então era tudo marketing? — Liguei pra ele durante a festa. Eu te vi com a Lena e queria muito poder ir até lá e tirar aquela mão abusada dela do seu braço. Acabo por rir ouvindo seu tom e vendo suas mãos fechando-se. — Mas como eu poderia? — ela continua. — Foi por isso que fugi na noite anterior. Eu não me lembrava dele, mas todo mundo ficava me falando que eu tinha um noivo e que ele era incrível e que inclusive eu havia aceitado o pedido poucos dias antes. Apenas assinto, esperando sua conclusão. — Liguei pensando em sondar a relação e contar a ele o que tinha acontecido. Pedir um tempo ou terminar... Mas ele atendeu e me disse que estava na casa de praia. Com o namorado! Ela começa a rir e fico imaginando qual não deve ter sido a surpresa que Clara teve, eu estou bastante intrigado. — Espera. O Túlio Mark é gay? Cara, eu quis matar o idiota tantas vezes. Sempre que o via ao seu lado, sorrindo com aquele sorriso perfeitinho. E o tempo todo era fingimento. — Ele disse que era pra eu postar algo sobre nós nas redes sociais e que o Leonardo estava me procurando. Aos poucos fui entendendo toda a

situação, mas ainda não sei como me sujeitei a isso. Dou de ombros mais tranquilo. — Você ao menos ajudou um amigo. — Será? — ela pergunta. — Até que ponto isso é uma ajuda? Como amiga eu deveria tê-lo apoiado para que se assumisse. — Você apoiaria, tenho certeza. Mas não é uma decisão sua... Sabe o que me deixa mais feliz nisso? Se tivesse terminado o relacionamento seria ótimo, mas a verdade é que nem mesmo teve um e isso é muito melhor. — Há algumas vantagens nessa minha situação — ela fala, sorrindo com malícia. — Por exemplo, não me lembro de ter feito sexo com outras pessoas. — Porque não fez, vamos acreditar assim. Seu riso alegre parece a sinfonia dos pássaros que me recebe todas as manhãs e agora, eu pareço o imbecil apaixonado que sempre fui. — Engraçadinho você. Eu tenho que celebrar por ter ficado apenas com você, mas Deus me livre de perguntar sobre as mulheres com quem saiu... — Vamos esquecer isso também. Nem me lembro mais. — Você sabe que minhas lembranças já estão voltando né? Sinto a maioria delas aqui... — Clara coloca a mão sobre a fronte. — Como se

estivessem se acotovelando para entrar. Brigando pra ver quem chega antes. — Todas vão voltar. — Sabe o que não sei? E tenho certeza de que não sabia nem mesmo antes? — O que? — Como isso aconteceu? Você, a fazenda, o dinheiro. Fez faculdade? Talvez seja mesmo hora de contar. Principalmente porque vou receber a premiação em menos de duas semanas e quero que Clara esteja ao meu lado nesse momento. — Eu fiz, sim. Estudei à distância. Clara se senta, esperando que eu continue. Mas ela é tão linda, me olhando assim, que não resisto e me inclino para beijá-la. E então estamos nos beijando no sofá, enroscados em um abraço só nosso e, nesse instante, até me esqueço que existe um mundo lá fora. — Você é tão perfeita... Digo fitando seus olhos, mas não vejo apenas o amendoado que dá cor a eles. Vejo a essência. Aquele brilho que dá vida e paixão a todas as suas expressões. — Eu amo você.

Sinto que meu coração faz uma pausa dramática, como nos filmes, e prendo a respiração absorvendo as sensações indescritíveis que me abraçam junto com a frase que sai dos lábios rosados dela. Clara sorri, esperando uma resposta, mas também se deliciando com minha cara de bobo. Toco seu rosto com carinho e sorrio também. As palavras estão aqui. Na ponta da língua para que eu diga, mas somos interrompidos quando uma música conhecida começa a tocar e ela inclina-se para frente, pegando o celular na mesa. — Oi, Áli... Com saudades já? Sua expressão muda de repente. De divertida para apreensiva e ela me olha como se suplicasse algo. — O que foi? — pergunto. — Por que foi me contar? Vou ter que dizer a ele e isso não vai ser nada bom. Me sento mais alerta, esperando o que quer que seja. — Tá bom, tchau. — Que foi? — pergunto de novo, assim que ela desliga. — Era a Alícia. Ela acabou de ver o Leonardo em Vale e ele estava

com a sua irmã. — O que? Como assim com a minha irmã? Ela faz uma careta antes de continuar. — A Alícia os viu entrando no apartamento dela e, pelo horário, ela acha que ele vai passar a noite. Clara Levi saiu em disparada pela porta, deixando-me aqui. Não sei o que pretende fazer, mas ele pegou a espingarda no armário e sei que, no mínimo, o susto vai colocar Leonardo para fora de Vale em cinco minutos. Batidas desesperadas na porta da frente e os latidos agressivos de Pacino, anunciam a chegada de alguém e me levanto correndo, preocupada, mesmo que Levi tenha acabado de sair. Abro a porta e, por algum motivo, não me surpreendo tanto quanto deveria ao encontrar meu pai de pé do outro lado. — Boa noite, filha. Ele não espera por um convite e dá um passo à frente, entrando na casa. Apesar da chegada afoita, agora ele me encara com frieza, o olhar transmitindo a mesma superioridade de sempre e que me causava arrepios já aos dezessete anos.

— Boa noite, pai — respondo. — Leonardo disse que eu estava aqui, imagino. — Eu não vim para ficar de conversa, Clara. Vim tirá-la das garras desse caipira e te levar de volta pra casa. Cruzo os braços, admirada com sua postura. Por mais que eu me lembre da imagem dele de quinze anos atrás e esse tempo tenha causado mudanças sutis em sua fisionomia, meu pai ainda é um homem robusto, mesmo que não seja tão jovem, e suas feições, essas e as de antes, não se diferem tanto. — Eu não pretendo ir embora, pai — respondo confiante. — Vai fazer como o Leonardo e dizer que fui sequestrada? Ele sorri. — Não sou um idiota, Clara. Conheço meus oponentes e conheço bem a filha que tenho. Não me parece uma atitude que você tenha tomado sozinha, sempre foi suscetível a influências, mas sei bem que não se manteve aqui contra sua vontade. Ele suspira pesadamente. — Minha filha, sabe o susto que me deu? Sumindo sem dar notícias? — Não fiz isso. Eu disse que estava tirando uns dias de férias — respondo. — Não precisava vir até aqui.

A expressão dele se fecha. — Mas não disse toda a verdade, não é mesmo? — Por que se importa tanto com o lugar em que passo minhas férias? — retruco. — Não importa. Você já tirou uns dias e agora podemos ir embora, juntos. Nego com um gesto. — Eu não vou. A risada que ele solta é desprovida de qualquer traço de humor. — Imaginei que pudesse dizer isso. Mas é o seguinte, Clara. Assim como antes, tenho um acordo pra te propor. Você não tem amor próprio e nem pelo que construiu, não ganho nada barganhando pelas coisas que dizem respeito a você. Mas ama esse roceiro, não é? Ouço suas palavras e elas são como um soco no meu estômago. Sinto a náusea vir forte e uma pontada na cabeça. — Quer que ele perca o que construiu? Porque basta que eu ligue para a imprensa. Olha o que tenho aqui comigo... Ele me estende um papel. Pego-o em minhas mãos trêmulas e a sensação de dejavu chega com força total.

Meu pai atira vários papeis sobre a cama. — Um laudo médico? — questiono, tentando manter-me no presente. — O Doutor Aguiar foi gentil em me informar sobre sua perda de memória. Juro por Deus que se você não sair comigo por essa porta, vou arrasar com a Iluminar e destruir o nome do Vilasboas no processo. Mas não estou mais ouvindo. — Tem certeza que quer continuar com isso? Esse garoto ainda vai te querer sabendo que você poderia salvar a família dele e se recusou por um capricho? — Lembro-me como se fosse ontem. Abro os olhos, impressionada e até mesmo assustada com as imagens que surgem na minha mente. Levo a mão às têmporas e devagar escorrego para o chão. — Clara? — Meu pai abaixa-se a minha frente, mas apesar de sentir sua presença, não consigo vê-lo direito, perdida em minha própria mente. — Foi você... — sussurro. — Fui eu o quê, pelo amor de Deus? — Me chantageou para ir embora. Ele tenta segurar minha mão, mas eu a puxo e permito que as lágrimas escorram pelo meu rosto.

— Não foi o suficiente? Me separou dele por quinze anos, me impediu de viver minha vida... Começo a hiperventilar e sinto meu pulso se acelerar; as lembranças estão retornando todas de uma vez, como se, ao abrir as comportas, eu tivesse facilitado o fluxo e todas lutassem para vir à luz. As pontadas ficam mais fortes e sinto como se algo comprimisse meu crânio. A dor é brutal. — Quanto drama, Clara... — ele desdenha, fazendo pouco caso. — Eu te dei uma vida de luxo, seu nome é conhecido no país todo e até mesmo fora dele, e o senhor Vilasboas construiu o próprio império. Todo mundo está feliz, não vê? — Eu odeio atuar ... — digo baixinho, relembrando o pavor do palco, os enjoos e os remédios. A vida horrível que havia deixado para trás. Leonardo me estende a toalha e limpo o rosto antes de subir ao palco. Túlio sorri e se ajoelha. — Quer se casar comigo, Clara? Eu te amo tanto. Olho para a plateia e avisto Gi sentado na primeira fila. As lágrimas escorrendo por seu rosto... Devia ser ele aqui.

Vejo Leonardo no canto do palco e ele apenas acena. — Sim... — sussurro completamente perdida. — E de que isso importa, filha? Você é ótima nisso. Agora se levanta daí, Clara. Vai buscar suas coisas e vamos embora daqui — fala, mal notando o estado em que me encontro. — Se sair comigo agora, vamos dizer que você estava cansada e precisou de um descanso. Se insistir em ficar, vou acusar o diretor executivo da Iluminar por assédio. Você veio até aqui assinar um contrato e ele a assediou e, por fim, vetou sua saída, aproveitando-se da perda de memória. Meus olhos buscam a verdade nos dele, apenas então reconhecendo o que está dizendo. — O Levi? — Outra onda forte de memórias desconexas, uma dor de cabeça que parece partir-me ao meio e um grito que encontra libertação para fora da minha garganta. São as últimas cenas que vivencio antes de perder os sentidos.

— Levi! Está sendo completamente irracional. Pode abaixar essa espingarda pelo amor de Deus? —Lavínia pede de braços cruzados e aparentando irritação. — Abaixar? Eu vou descarregar ela inteira nesse safado! Pensei que fosse mais sensata, Lavínia. O que te deu na cabeça de colocar esse idiota dentro da sua casa? — Você atirou o homem em uma poça de lama, Levi! Eu ofereci o chuveiro, só isso. Estreito os olhos para ela. Leonardo está parado no lugar, uma falsa calma no olhar. Falsa porque todo mundo tem medo de uma bala. — Ele tomou banho na sua casa? E você me diz isso com essa cara de inocente? — É porque eu sou. Ficou tarde, o Leonardo não conseguiu falar com a Clara e precisava de um lugar pra dormir. Está transformando isso em uma tempestade! As pessoas começam a sair nas janelas e também pelas portas e ajuntam-se ao nosso redor, completando o circo.

— Ele está de toalha, Lavínia. Por Deus! Minha irmã fita o imbecil e vejo seu rosto se tingir de vermelho, principalmente ao notar a plateia. — Mas é você quem está me deixando constrangida — ela sibila. — Pode, por favor, falar mais baixo e abaixar essa droga de arma? Vamos entrar e conversar como pessoas civilizadas? Então avisto Alícia, que sai pelos portões da pousada equilibrando-se nos sapatos de salto. — Ai, meu Deus! Desculpa, Lavínia. Eu avisei seu irmão que o Léo estava aí, mas não sabia que ele iria aparecer pra atirar nele. Lavínia se volta para a outra e estreita os olhos. — Por que você faria isso? — Não foi por mal, eu juro. É que eu conheço o Leonardo e ele não é quem você pensa, não é, Léo? Ele não vale uma cabaça de água, Lavínia. Lavínia vira-se para a outra e aponta o dedo em riste. — Te conheci agora e já é a segunda vez que fala do que não é da sua conta. Então sinto muito se não acredito tanto em você. Alícia abre a boa, surpreendida pela raiva da minha irmã. — Não liga pra ela, Alícia. Fez bem em me avisar — digo. — Esse

playboy chegou aqui me insultando, enche o saco da Clara o tempo todo e agora isso. Ele merece alguns furos no corpo, pra dizer o mínimo. — Não precisa! — Alícia diz, erguendo as duas mãos como se isso fosse me conter de alguma forma. — O Leonardo fica no quarto que limpei pra Clara na pousada e todos ficam em paz. — Acho uma excelente ideia. — Ouço uma voz dizer ao meu lado. Uma mão se impõe sobre o cano da arma, abaixando-a e me deparo com o sorriso velhaco do padre Fernando. — Eu não ia atirar de verdade — falo baixo, para que apenas ele ouça. — Sei que não, por isso ninguém chamou a polícia, filho. Ele merecia um susto, não é? Mas já chega. — Vem, Léo... — Alícia agarra o babaca pelo braço e sai arrastando-o na direção da pousada. Mesmo que precise se equilibrar e segurar a toalha, ele ainda se vira para Lavínia no último instante. — Desculpe por incomodar e obrigado. Lavínia me olha feio e então vira-se e entra em casa. As pessoas também começam a se dispersar. — Escuta — o padre diz, me forçando a olhar pra ele e esquecer

Lavínia. — , estava no bar e ouvi alguém dizer que o Alessandro chegou à cidade e perguntou por você. Acho que ele pode ter ido pra fazenda... Merda. Corro até a caminhonete sem nem mesmo responder e jogo a espingarda na traseira dela, antes de entrar e sair em disparada de volta para casa. Meu coração bate descompassado, o som retumbando em meus ouvidos enquanto temo pelo pior. Ela vai me deixar. Não. Clara prometeu, ela disse que me ama. Piso no acelerador tentando manter a calma e prestar atenção à estrada, antes que acabe me acidentando no caminho e não consiga chegar a tempo. Avisto a porteira e faço a curva sem ter que parar. Está escancarada. Estaciono em frente ao casarão e desligo o carro, descendo em seguida. Nunca subi os degraus da entrada tão rápido. O carro dela ainda está estacionado onde o deixei, a porta da sala está aberta e mesmo sem nenhum sinal de Alessandro, não consigo ignorar a sensação de angústia. — Clara? — grito, entrando na casa. — Onde está, Estrelinha? Nenhuma resposta. Apenas o eco da minha própria voz.

— Clara! — insisto. Passo pela sala, onde estivemos pouco antes e vejo a televisão ainda ligada. Ela não saiu. Não pode ter ido embora. Subo as escadas e sigo para o quarto dela. Minhas mãos suam, sintomáticas por meu estado de espírito. Abro a porta e vejo seus pertences todos aqui. Sua bolsa sobre a cama e dentro dela suas chaves, o cartão de crédito e outras coisas. Mas nenhum um sinal dela. Desço outra vez para o andar debaixo enquanto disco seu número, mas The Time Of My Life reverbera dentro de casa, seu celular está ainda sobre a mesa no centro da sala. Uma onda de raiva cega e de dor rasga meu peito e sinto-me estremecer com a intensidade das sensações. Atiro meu telefone contra a parede e nem mesmo o barulho e a destruição dele me trazem algum alívio. Um grunhido de sofrimento encontra caminho para fora de mim e, como um animal ferido, pranteio a perda dela. Minha estrela, outra vez ela se apagou.

“O poder real não vem do ódio, mas da verdade.” Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros

Acordo assustada. Algo muito importante aconteceu. Ou terá sido um sonho? Foi um sonho. Estou no meu quarto. Reconheço as paredes pintadas em tons pastéis e a mobília branca, meus travesseiros estão sob minha cabeça e a camisola de seda cobre meu corpo. Demoro alguns segundos, um minuto inteiro talvez, para me lembrar que não deveria estar aqui. Há um poste de medicamento ao lado da cama e

um líquido transparente na bolsa, que pinga gota a gota, um cateter fino entra pela veia da minha mão, por onde recebo o medicamento. A porta do quarto se abre e vejo alguém entrar por ela. Rita sorri ao me ver, e traz uma bandeja nas mãos. — Bom dia, senhorita Clara. Trouxe frutas e água. Mas se estiver com fome posso trazer algo mais consistente. — Oi Rita... — Nos deu um susto e tanto. Seu pai a trouxe desmaiada, parece que levou uma pancada na cabeça, ele está todo preocupado, nem mesmo voltou pra casa dele... Preocupado. As lembranças de nossa última discussão me voltam à mente e percebo que ele se aproveitou do meu desmaio para me trazer desacordada. — Pode me dar meu celular? — Ah, parece que não o trouxe... Fito minha empregada e vejo-a baixar os olhos, o pavor começa a me dominar. — Eu vou sair, Rita — digo, testando, mesmo que saiba que não estou bem ainda para isso.

— Infelizmente a senhorita não pode. Seu pai vai explicar direito, mas tem um segurança aí na porta... — ela sussurra. — Ele disse que você adoeceu e que precisa ser medicada e melhorar primeiro. Apenas depois disso vai poder deixar o quarto. Meu peito dói, minha cabeça dói, mas o que realmente me destrói é pensar em Levi voltando pra casa e não me encontrando. Pensar em como ele vai se sentir traído. — Rita... Você precisa me ajudar. Ele... — diminuo o tom de voz. — Ele está me fazendo prisioneira aqui. Ela franze os lábios. Acho que no fundo sabe que nada disso é para meu próprio bem. — Só preciso fazer uma ligação. Só isso e prometo não te colocar em encrenca. Rita coloca a bandeja diante de mim e se afasta até a porta. Me afundo no travesseiro, sem opções. Se Rita não está disposta a me ajudar, como vou ter uma chance de avisar Levi? Mas então ela apenas gira a chave e tranca a porta. Vejo-a voltar para perto de mim e retirar do avental o próprio celular. — Seja rápida, dona Clara. E fale baixinho...

Pego o telefone desesperada, ansiosa por ouvir a voz dele. Mas então... Não decorei o número de Levi e não tenho como ligar para ele. Minhas lembranças retornaram, mas nunca precisei decorar um número de telefone antes, sempre com meu celular comigo e os contatos salvos. Em um momento de súbita criatividade, pesquiso na internet pela floricultura de Lavínia e encontro o telefone. Ela atende no terceiro toque. — Vale das Flores, Lavínia... — Lalá! — Rita faz sinal de silêncio. — Lalá... — sussurro. — Sou eu, Clara. — Clara? Onde você se meteu? O Levi está desesperado. Bebeu a noite toda, mas acabou de sair daqui, ele diz que tem certeza que você foi embora contra sua vontade, porque deixou até mesmo seu carro aqui... Está indo atrás de você. É claro que ele viria, meu príncipe montado a cavalo. — Não — falo, pensando na situação. — Diga a ele que me lembrei de tudo e que vou resolver as coisas e voltar. Peça que me espere e confie em mim. Ouço o barulho na porta, alguém testando-a.

— Lalá, diga a ele que precisa confiar em mim e ter mais um pouco de paciência. — Tá bom. Vou dizer... Desligo a ligação e entrego o telefone para Rita. Ela corre até a porta e a destranca, permitindo a entrada do segurança, um homem com quase dois metros de altura e no rosto uma expressão de poucos amigos. — Por que trancou a porta? — pergunta para Rita. — A dona Clara estava trocando de roupa e você não tem educação. Entra sem bater... Ele direciona um olhar pra mim e olha ao redor. Então assente. — Deixe destrancada.

Meu pai aparece bem mais tarde, no mesmo dia. — Parece que está melhor. Viro o rosto para a janela, recusando-me a responder qualquer coisa. — Vai ficar assim? Sem falar comigo? Eu estou muito decepcionado

com você. Agiu errado, quase colocou sua carreira em risco e ainda se acha no direito de ficar de mau-humor. Como não respondo, ele se senta na beirada da cama e continua: — Sabia que te fotografaram na festa? Dançando forró. Se eu não tivesse comprado as fotos e dado um sumiço nelas, estaria tudo perdido. Depois que seu relacionamento com aquele fazendeiro fosse exposto, como íamos manter sua história com Túlio Mark? Suas palavras ecoam em minha mente. Repito-as por diversas vezes em silêncio, pensando. Já pensou se aquele roceiro tivesse te engravidado? — Lembro-me de suas palavras de quinze anos atrás. — Tudo bem. Você nunca reconheceu que faço tudo pelo seu bem e parece que não vai acontecer agora. Vai ficar aqui até se recuperar e vai deixar o quarto apenas para o trabalho e acompanhada. — Onde está o Leonardo? — pergunto, por fim. — Aqui. O coitado precisa de um aumento pelo trabalho que você tem dado. — Peça a ele que venha aqui. Perdi reuniões e gravações e preciso que ele justifique isso e reorganize tudo. — Ao menos um pouco de sensatez — ele aquiesce, sem preocupar-se,

afinal Leonardo sempre esteve no bolso dele. Meu pai deixa o quarto sem perceber que, em meio às suas lamúrias, me deu a resposta que eu precisava. Leonardo entra pouco depois. Apesar de estar vestido impecavelmente como sempre, há algo diferente em seu olhar. Culpa, talvez. Ele se aproxima da cama trazendo o pager nas mãos. — Como você está? — Fisicamente? — pergunto. Ele assente. — Bem. Recuperei minhas memórias. Sabia que eu as tinha perdido? Vai ficar tudo bem. — E emocionalmente? — Destruída. E, sabe, parte disso é culpa sua. Ele tem a decência de parecer envergonhado e percebo que tenho uma chance. O máximo que pode acontecer é ele me dedurar. — Eu não pensei... Não imaginei que estivesse te fazendo mal. Pensei na sua carreira porque o seu sucesso é o meu sucesso, como seu assessor. Não percebi como estava te magoando no processo. — As dietas insanas... Estou com anemia, sabia? As drogas que graças

a Deus tive o bom senso de não usar. Toda essa história com Túlio... Sabe, tudo isso foi ruim e difícil. Mas ligar pro meu pai e dizer onde eu estava foi o pior de tudo. Ele me chantageou no passado e me separou do Levi, e agora me trouxe embora à força. Leonardo me encara confuso. — Eu não liguei pra ele. — Não ligou? — repito, questionando-o. — Não. Não sei como ele descobriu... Lembro do que ele disse sobre o doutor Aguiar e sobre as fotos. Não sei o que aconteceu primeiro, mas foi por um desses meios que ele soube onde me encontrar. — Léo... Você me fez muito mal, mesmo que não tenha sido sua intenção, mas ainda pode me ajudar e, bom, se fizer isso, se me ajudar nesse momento em que não tenho ninguém a quem possa recorrer, prometo manter seu emprego independente do passado. As coisas vão mudar, mas ainda pode trabalhar pra mim. Não sei se é a firmeza em minha voz ou se ele apenas se sente culpado demais para negar. Mas vejo-o assentir. — O que quer que eu faça? — Estive pensando e uni minhas lembranças de antes do acidente e do

tempo em que estive na fazenda. Meu pai disse que o Levi é o dono da Iluminar, imagino que por isso ele queria tanto que eu não assinasse o contrato. Ele já sabia, não é? Leonardo não diz nada, então tomo como confirmação. — Eu tinha recebido um convite para um evento em São Paulo no final do mês, certo? Acho que a Iluminar foi indicada a um prêmio e fui umas das convidadas de honra. — Sim, dia vinte e oito. Vai receber um prêmio por ser a plataforma de streaming com melhor funcionalidade. Mas seu pai quer que cancele o contrato com eles e com certeza não vai querer que vá ao evento... — Acontece, Leonardo, que eu tenho trinta e dois anos e não vou viver com base em uma chantagem que ele fez comigo quando eu era menina. Você vai confirmar minha presença no evento e vai dar um jeito de me tirar daqui no dia e então, tudo vai mudar.

Levi Nem mesmo a brisa fresca da manhã aplacou o calor proveniente da raiva que me faz arder. Quanto mais penso, mais certeza tenho de que Clara não foi embora por vontade própria.

Selei meu cavalo logo pela manhã, depois de uma noite muito difícil e me coloquei a caminho de Vale do Recomeço, atrás do assessor dela, mas Lavínia me informou que quando acordou ele já havia partido. Lógico que sim. Passei na floricultura para me desculpar com Lavínia por tê-la envergonhado na noite anterior e para contar o que houve, e então segui para o Porta sem trinca. Mário me serve o que deve ser a quinta, ou a sétima dose de uísque. Parei de contar um pouco antes. — Não tem que trabalhar hoje? — ele pergunta, sondando. — Tenho quem faça isso por mim. — Certo, e o que vai fazer em relação à Clara? — Vou buscá-la. Tenho certeza que aquele ordinário a levou contra sua vontade. O celular ficou, até o carro dela está na minha garagem. Mário concorda. — Quer que eu vá junto? A porta do bar se abre e nós dois olhamos. É de manhã e ainda não abriu oficialmente. Lavínia me encara com aquele olhar de pena e viro a dose de uma só

vez. — A Clara ligou... Levanto-me rápido, alerta. — O que ela disse? — Pediu que não vá atrás dela agora. Ela recuperou as memórias, mas disse que nada mudou. Quer que espere aqui e confie que ela vai resolver tudo. — Então eu tenho que ficar de braços cruzados? Lalá vence o caminho até onde estou. — Olha, roubar a Clara só vai te trazer problemas. — Ela é adulta. Mas, que porra! — explodo. — Eu sei, mas pelo visto o pai dela não entende isso. Ele vai usar a imprensa contra a Iluminar, o noivado dela contra vocês... Se ela pediu que a espere e que confie, é porque deve ter um plano. Algo que resolva tudo de uma vez. — Eu sei que não é o que quer fazer — Mário diz de trás do balcão. — Mas Lavínia está certa. Precisa confiar que ela te ama o suficiente para lutar por vocês, se impor e voltar. — Como eu posso ficar aqui, esperando?

— Cara, você construiu sua empresa do nada, mas sempre foi por ela. Se colocou de joelhos por essa mulher no instante em que a viu e o que você fez, vai proporcionar à Clara uma vida no campo, do seu lado, sem a afastar do cinema. A Iluminar é a herança de vocês dois e de Vale do Recomeço, não vai destruir tudo por imprudência. Deixa que ela se resolve com o pai, porque como você disse, ela é adulta, precisa deixar que seja. Quando deixo o bar um pouco depois, estou mais calmo. Vão ser os piores dias da minha vida, a espera mais longa, mas vou respeitar Clara e dar a ela seu espaço para libertar-se. Cavalgo de volta para a fazenda e estou tão imerso em meus pensamentos que não noto a paisagem, ignoro minhas plantações e as folhas verdes do café. Entro na propriedade, mas não vou para a casa, sigo para os pastos verdes acima da casa e, do alto, observo o que consegui fazer. Clara vai voltar e vamos viver aqui, construir nossa família, vou me casar com ela. Estou tão distraído que não a vejo se aproximando, não até ouvir os cascos do cavalo no solo, quando já está bem perto. — Levi... — Lena chama, forçando o cavalo a diminuir o ritmo e parando ao meu lado. — Oi, Lena. O que faz aqui?

— Fui à fazenda te procurar e Genaro disse que estava andando por aqui. Me deixou pegar um cavalo. Aquiesço sem muito interesse. — Então a Clara foi embora... Outra vez. Dirijo um olhar a ela que faz com que se cale. Mas não por muito tempo. — Sabe, eu entendo que tenha tido vontade de reviver o romance de vocês. Ela é uma celebridade, deve ser excitante se envolver com alguém assim, mas vamos ser honestos, vocês nunca dariam certo. Somos pessoas do campo. — Imagino que vá dizer agora que podemos retomar de onde paramos. Ela dá de ombros. — E por que não? Eu gosto de você e sei que tem carinho por mim. E nenhum de nós vai a lugar nenhum. — Lena... — Observo seu rosto cheio de expectativa e me entristeço por saber que vou magoá-la, mas de que outra forma ela entenderia? — Sinto muito se nosso envolvimento te fez criar esperanças de algo mais sério, mas isso não vai acontecer. Ela olha para o chão por um momento, mas quando volta a me encarar,

seu semblante é outro. A tristeza deu lugar a raiva. — Não entende que o pai dela jamais vai aceitar que fiquem juntos? Clara é uma estrela de cinema e você, por mais que tenha dinheiro, vai ser sempre o rapaz cujos pais precisaram de um empréstimo dele. Primeiro absorvo a crueldade em seu tom e apenas depois, penso em suas palavras. — Como sabe sobre o empréstimo? Ou até mesmo sobre a opinião do pai dela? Quando me envolvi com Clara, muitos anos atrás, ela preferiu que você não soubesse, mas já deu mostras de que sempre soube de tudo. Ela range os dentes e franze os lábios em um traço fino. Os olhos faíscam. — Nunca vai me amar, não é? — Sinto muito, Lena. Então ela sorri. — Tudo bem. Não vai ficar com ela também. Eu sei de tudo porque vocês não se esconderam tão bem, se beijando no alto da roda gigante. Os dois me enganaram, então contei ao pai dela e ele me disse exatamente como faria para que Clara fosse embora daqui. Dessa vez foi ainda mais fácil. Convenci meu pai de que era responsabilidade dele como médico e, acima de tudo, por ser pai também, avisar ao pai dela sobre o que havia acontecido.

Não demorou muito para que ele viesse e a levasse embora outra vez. Talvez seja a primeira vez, mas estou sem palavras. Me vejo diante de uma vilã dramática, dessas que só imaginei ver em filmes e completamente sem limites. — Seria mais difícil se sua amada não fosse tão fraca. Escolheu mal, Levi. Eu jamais deixaria que minha família se intrometesse entre nós, ou mesmo a sua família. Deixar você para que o pai dela não revogasse o empréstimo e tomasse o sítio dos seus pais? Aquela pocilga não valia nada! Sabe de uma coisa? Me arrependo de ter deixado Felipe por sua causa. Você também é fraco. Não consegue escolher o melhor pra você, mesmo que isso esteja à sua frente. — Louca — é a primeira palavra que consigo articular. — Você sabe que ela odeia atuar? O pai dela me disse que eram os planos que tinha pra ela e até me agradeceu por dar a ele uma maneira de conseguir isso. Você abriria mão da sua fazenda por alguém? Da sua empresa? Isso é falta de amor-próprio. Me forço a responder alguma coisa, mesmo que ainda esteja absorvendo o que ela disse. — Você é completamente louca, Lena. Saia da minha fazenda e tenha a decência de não voltar nunca mais.

Ainda sorrindo, ela se distancia a galope, parecendo... feliz. Só então o peso das palavras dela me atinge. Clara foi embora para que nós tivéssemos uma chance. Me deixou por meus pais, para que eu pudesse ter a oportunidade de dar conforto a eles, de estudar e proporcionar uma vida melhor a Lavínia. Abriu mão da própria vida, dos próprios sonhos para que eu pudesse viver. Sufocou o próprio brilho, minha Estrelinha. Enquanto ela se apagava, construí tudo que tenho hoje. Agora, vou preparar a mim mesmo, para que possa merecê-la.

“Viver com medo é viver pela metade.” Dirty Dancing

Quinze dias. Quinze longos dias que se passaram mais lentamente que os quinze anos que nos separaram antes. Vinte e quatro horas por dia sou vigiada de perto. Por sorte, duas das pessoas de confiança do meu pai, Rita e Leonardo, se provaram, enfim, mais leais a mim. Não me arrisquei a fazer outra ligação a Lavínia, mas pedi que Leonardo as fizesse por mim, longe daqui. Não posso correr o risco de que o segurança do lado de fora da porta ouça qualquer coisa que possa reportar.

Leonardo conseguiu o celular dela e trocaram mensagens que ele me mostrou. Lavínia me deixou mais tranquila, dizendo que Levi estava bem e esperando por qualquer sinal meu e então o dia chegou. Rita não sabe de nada, não sobre meus planos, mas me passou informações sobre a rotina da casa e os horários de troca de pessoal. Dessa forma, pude coordenar tudo e me planejar. Deixamos a mansão durante os cinco minutos que os dois seguranças usam para tomar café diariamente e compartilhar as dificuldades do turno, que até então foram inexistentes. Não dei nenhum motivo para esperarem algo de mim, não tentei escapar e não fui rude. Apenas a princesa submissa e obediente. Exceto por estes cinco minutos. Leonardo abriu a porta e ajudou a esconder-me no banco traseiro do seu carro. Não havia ninguém vigiando a entrada, porque como eu disse, não dei razão para que aumentassem a segurança, pelo contrário, fiz o possível durante esses quinze dias para deixar todos confortáveis. Também foi Leonardo quem fretou o jatinho sem que meu pai soubesse. A viagem foi rápida, imersa em meus pensamentos e planos, mal vi o tempo passar enquanto voávamos de Belo Horizonte para São Paulo.

Agora, já no camarim, respiro aliviada. Mesmo que deem por minha falta e que, por algum motivo meu pai desconfie de onde estou, ele jamais me tiraria daqui a força diante de toda essa gente e das câmeras. — Clara, avisei a eles que seria hoje, que você já tinha tudo resolvido e voltaria a Vale. Avisei na semana passada, mas reafirmei mais cedo e a senhorita Vilasboas disse que iria te buscar. — Como assim, me buscar? Eles não vão vir para a premiação? — pergunto, sentindo-me mais calma que deveria. — Eu não disse que você viria, só falei o que me pediu e acho que ela pensou em te buscar em algum lugar combinado. Tem certeza que quer fazer isso? — Leonardo anda de um lado para o outro, parecendo um animal enjaulado. — Calma. Vai fazer um buraco no chão, Léo. — Me acalmar? Viu que vazaram as fotos do Túlio? Como vou resolver isso? Você vai dizer que não sabia, veio até a calhar, mas o que vou fazer com o relacionamento dele exposto agora? — Nada. Tem que parar de se intrometer nas vidas pessoais dos seus assessorados. — Diz aquela que vai aparecer diante de toda essa gente e dar uma declaração que vai mudar tudo, e nem mesmo parece nervosa com isso. O

que houve com você? Leonardo me fita com os olhos azuis que, por mais diferentes que sejam, acabam por me lembrar Levi. Sinto sua falta de um modo tão aterrador que não me permito um segundo de hesitação pelo que vou fazer. — Hoje sou eu mesma. Não preciso me obrigar a assumir a imagem que esperam de mim. — Mas... — Ele se aproxima e sussurra, evitando ser ouvido pelas duas mulheres que estão aqui para ajudar a me produzir. — É uma mentira, Clara. Abro um sorriso recheado de possibilidades. — Quem te disse que é mentira? O choque dele não poderia ser maior nem que eu dissesse que cometi um assassinato. A maquiadora aproxima-se, conferindo seu trabalho e sorri. Leonardo se afasta e ela pega o lápis de olho nas mãos e, com delicadeza, começa a fazer os traços perfeitos. A mulher remexe a caixa de maquiagens e se vira para mim com um batom vermelho nas mãos. Abro um sorriso honesto. — Não quero esse. Prefiro aquele... — Aponto para um nude, muito

mais a minha cara. — E vai vestir qual deles? — A outra moça, responsável pelo figurino aponta para uma arara com quatro opções. Observo os vestidos e me decido sem pensar uma segunda vez. — O longo, preto — respondo, notando o olhar incrédulo de Leonardo. — Com tanto brilho? Pensei que fosse usar um branco ou azul claro, talvez. Ele não sabe de tudo. Vejo-o se afastar um momento, com a mão no ouvido, recebendo alguma informação. — A festa começou — diz, repassando o que lhe foi dito por alguém de fora. — Ele chegou? Léo nega com um gesto. — Ninguém o viu ainda. Mas pode ser que sim, porque a irmã mais nova dele está aí. Acho que descobriu onde te achar. Ergo a sobrancelha diante do modo formal que ele diz isso. — Lavínia, Léo. E eu sei que se conhecem, lembra? Trocam mensagens e tudo mais.

— Isso, Lavínia. E as mensagens foram um pedido seu. —Também sei disso. Se eu não o conhecesse bem, pensaria que está evitando meu olhar. Minha atenção é desviada quando vejo o brilho do vestido diante de mim, oferecido pela figurinista que Léo contratou pessoalmente, já que eu não poderia vir pronta de casa. Levanto-me e entro no vestiário com ele nas mãos. Coloco-o pela cabeça e o ajusto em meu corpo, volto ao camarim para que a moça me ajude a fechar os botões discretos atrás dele. Quando finaliza, a outra mulher se aproxima e solta meus cabelos. Ela tem uma presilha nas mãos, mas peço que os deixe assim, caindo em ondas suaves pelos meus ombros. — Vai usar o Manolo? — pergunta, referindo-se aos sapatos. — Claro — respondo. — Podem me dar um minuto por favor? Eu já vou. As duas mulheres saem e Leonardo me encara, curioso. — Vai tomar seu calmante? — Não preciso dele, Léo. Pode me esperar lá fora também. Relutante, ele deixa o camarim e calço meus sapatos com calma,

repassando em minha mente meus próximos movimentos. Saio para o corredor e de lá sigo para o salão com meu assessor ao meu lado. Uma música clássica se faz ouvir bem suave e avisto o pianista responsável por ela no palco, mais ao fundo. Cumprimento as pessoas, sorrio e aceno, pela primeira vez na vida sem me sentir sufocada por tudo e todos. Champanhe está sendo servido e as mulheres mais famosas e elegantes do país se movem pelo salão se promovendo. É uma comemoração, sim, uma festa. Mas também é o lugar perfeito para fazer contatos e galgar mais alguns degraus na escada da fama. As cadeiras já estão sendo preenchidas aos poucos e procuro o assento com meu nome quando a vejo do outro lado do salão. Apesar de ainda ser tão delicada e meiga como sempre, Lavínia está diferente, hoje ela é uma mulher de negócios, parte de uma empresa nacionalmente conhecida. Ela sorri ao me ver e caminha em minha direção enquanto completo o trajeto, indo até ela. — Onde Levi está? — pergunto quando nos vemos frente a frente. — É assim que cumprimenta uma amiga que não vê há quinze dias? — ela pergunta, debochando do meu desespero. — Ele não veio?

Lavínia sorri. — Não. Levi está te esperando, e não pôde vir. Ainda assim, garanto que ele vai assistir tudo, então faça seu show. — Por que não pôde vir? E a premiação? Lalá segura minha mão. — Confie nele, Clara. Se meu irmão não desistiu de você por quinze anos, acha que quinze dias seriam o bastante? Assinto, aceitando o argumento. Me puxando pela mão, ela me leva até onde estão nossos assentos, lado a lado, no exato momento em que a apresentadora sobe ao palco. Um a um, ela anuncia os indicados aos prêmios e depois os vencedores. Eu não fui indicada a nenhuma das premiações, o que torna tudo ainda melhor a meu ver. — Para Plataforma Mais Funcional de Streaming, tivemos duas indicações, a Iluminar e a SunStorm. Porém, com mais de oitenta por cento dos votos, a grande vencedora é... A Iluminar! Ouço a salva de palmas e os acompanho. — O diretor geral, Levi Máximo Vilasboas não pôde estar presente, mas enviou uma representante. Com vocês, Lavínia Máximo Vilasboas.

Toco a mão dela, pedindo que me deixe fazer isso. Lavínia abre um sorriso hesitante, vendo todos a aplaudindo e esperando por ela. — Tem certeza? — Absoluta — respondo. Minha intenção era interromper Levi, mas se ela o representa, então o momento chegou. Levanto-me incentivado pelo olhar gentil de Lavínia e subo cada degrau, deixando-me dominar pela sensação de liberdade, enquanto ao meu redor um silêncio de surpresa e expectativa toma conta dos demais. Sorrindo, recebo o microfone das mãos da apresentadora que olha de mim para Lavínia sem entender nada. — Boa noite a todos! Sei que muitos devem estar se perguntando o que estou fazendo aqui, de repente, aproveitando-me dos minutos da senhorita Vilasboas para falar com vocês. A verdade é que estou muito feliz por poder entregar esse prêmio a aqueles que trabalharam tanto por ele, mas mais que isso, estou usando o momento para uma declaração inesperada e em tempo real. Abro um sorriso ao ver várias câmeras se erguerem, todos desesperados pelo furo que a minha simples intromissão já é. Mal sabem o que os aguarda. — Antes de mais nada, sei que pensam que estou deprimida e chateada

pelo que veio a público a respeito de Túlio, mas não é verdade. Crucifiquemme se quiserem, mas descobri há algum tempo e não pude virar as costas a um amigo querido, então aceitei ser sua namorada, pelo tempo que ele precisou. É minha primeira bomba da noite e os flashes pipocam por todos os lados. Ainda nem comecei. — Conheci o senhor Vilasboas quando eu tinha dezessete anos e nós nos apaixonamos perdidamente, mas meu pai jamais aceitou nossa relação. Isso nos manteve afastados por quinze anos e nesse tempo me tornei atriz, trabalhei muito e acabei envolvida nessa situação com Túlio, sobre a qual não pretendo mais falar. No entanto, menos de um mês atrás sofri um acidente, perto de onde residem os Vilasboas. — Aceno para Lavínia na primeira fila, e ela retribui. — Fiquei confusa com o trauma na cabeça e me esqueci de muitas coisas, até mesmo de Túlio e da minha profissão. Os repórteres se levantam e adiantam-se para debaixo do palco, tentando conseguir uma foto melhor, mais nítida. Leonardo aciona os seguranças, com receio de que me ataquem no palco e eles formam uma barreira diante de mim. Vendo as reações que estou causando, queria poder deixar algumas partes de fora, mas sei que meu pai as usaria contra nós.

— Levi me acolheu e cuidou de mim e, nesse meio tempo, tudo aquilo que sentíamos, retornou. Mas algo inusitado aconteceu. Inesperado até. Mesmo que eu tenha trinta e dois anos, meu pai ainda não aceita bem que eu possa fazer minhas escolhas e quando soube do ocorrido, trouxe-me de volta para casa contra minha vontade, mas ele não contava com a determinação que surgiu do meu tempo fora, e talvez não esperasse que o retorno das minhas memórias trouxesse várias situações à luz. Hoje diante de vocês quero agradecer por todo o tempo que me acompanharam e torceram por mim. Deixo minha carreira como atriz, grata por toda a experiência e pelos bons momentos. Vou desempenhar outro papel agora, ao lado da equipe da Iluminar, apoiando o crescimento da empresa e do futuro dela, porque o herdeiro de tudo isso, cresce aqui... — Coloco a mão sobre o ventre e a mantenho assim por algum tempo, o suficiente para que haja muitos registros. Obrigada! Ergo o troféu no ar e ouço o burburinho se transformar em uma confusão. Os repórteres tentam vencer a barreira que me cerca, mas Leonardo está pronto para me retirar pelos fundos. — Agora, vai ter que correr até o estacionamento, ou vão te cercar de um jeito que nem com mil seguranças te tiro das garras deles. Assinto e ergo a saia rodada do vestido de gala, revelando as botas marrons de cano alto que calcei escondida.

— O que? — questiono ao ver o vinco no meio da testa dele. — Acha mesmo que vou voltar pra Vale com sapatos de nove mil reais? Isso aqui é liberdade, Léo. Ele meneia a cabeça, achando graça. — Pelo menos corre mais. Segurando meu braço, ele me arrasta pelo corredor em disparada. Chegamos ao estacionamento ao mesmo tempo em que avisto uma multidão vindo pelo outro lado; por sorte Lalá foi mais rápida e, cantando pneu, para o carro diante de nós. Entramos os dois no banco traseiro e ela arranca com o carro para longe. Ainda vejo-os correr alguns metros na esperança de nos alcançar, mas aos poucos ficam todos para trás, diminuindo de tamanho até sumirem de vez. — Esse é o meu carro? — Olho ao redor apenas para confirmar. Lalá assente. — Eu não tenho um e era pra te salvar, né? Então me deixa curtir meu momento. — Mas como chegou antes deles? — Leonardo pergunta, pensando o mesmo que eu.

— Quando ela disse que sabia do Túlio, já fiquei alerta e quando falou da perda de memória, me levantei. Estava saindo pela porta quando ouvi a bomba sobre a gravidez... Saí correndo antes deles. Vejo seus olhos me encararem pelo retrovisor. — Aliás... E essa coisa toda da gravidez? — Continua a me olhar, sondando. — É sério isso? Leonardo também me fita, esperando. — Meu pai me deu a dica. Dependendo da situação em que uma atriz se coloca, nada pode salvá-la. Eu assumi que sabia das mentiras do Túlio e que fiz parte delas, contei sobre meu envolvimento com Levi e levei a público uma gravidez. Nada que ele faça pode salvar minha imagem agora. Lavínia sorri, compreendendo o que fiz, mas contesta. — Artistas são excêntricos. Você poderia voltar, se quisesse. — Não como a santa imaculada, porém sexy sem perceber, que meu pai e Leonardo construíram. Vejo os olhos dela fixarem-se nele pelo retrovisor, de um modo estranho. — E como não vou voltar, logo vão me esquecer. Leonardo é quem me olha agora, com as sobrancelhas quase coladas à

testa. — Acredita mesmo nisso? Vão te perseguir até Vale do Recomeço e acampar na frente da fazenda. — Claro que vão. Mas com eles sei que o Levi se resolve. Léo faz uma careta. — Vai sair atirando em todo mundo. — Ai, meu Deus! — exclamo, sorrindo. — Ele foi atrás de você com a espingarda. O que aconteceu? — A Alicia, que me odeia, me salvou. — Lógico — Lavínia fala, atenta ao trânsito agora que estamos deixando a cidade. — Foi ela que começou a confusão, ligando pra ele. — Avisou a ela que estou bem? — pergunto, me inclinando e tocando o ombro dela. — Eu não estou falando com ela, mas Levi avisou. Inclusive, se ela foi a Vale te buscar e você não vai mais sair de lá, acho que já está na hora dela ir embora pra casa... Reflito por um momento que realmente é esquisito que eu tenha ido embora por quinze dias e Alícia tenha ficado por lá. Mas ela sempre me apoiou, então seja o que for, vou apoiá-la também.

— Ahhh, Lalá, ela é minha amiga e é muito legal. Sei que se intrometeu um pouco além do necessário, mas dá um desconto pra ela, afinal, nosso amigo aqui é um canalha. Ela estava preocupada. Leonardo estreita os olhos pra mim, mas não se defende. Lavínia não diz nada a respeito disso e me sinto até melhor, porque se ela o defendesse, aí seria o fim do mundo como deve ser. — Eu não sei porque eu estou indo com vocês duas. Já fui expulso dessa cidade uma vez e tenho certeza de que ninguém me quer por lá. — Vou dizer a Levi que me ajudou muito e que sem você eu não poderia voltar. Só não o provoque e vamos continuar trabalhando juntos. — Como? — Lavínia é quem pergunta. — Se não vai mais atuar... — Vou escrever meus roteiros e o Leonardo vai me assessorar e conseguir os contatos certos. — Então me volto para ele. — Vamos acertar tudo e então pode voltar pra casa. Mas preciso de você lá ao menos até nos livrarmos dos repórteres e é bom ficar longe do meu pai por uns tempos... — Bom, se eles te seguiram, vão flagrar uma cena e tanto... Ela e Leonardo se entreolham e de repente, sei que estão me escondendo algo. — Como assim?

Lavínia desconversa, ligando o som como que para abafar minhas perguntas. Quando finalmente, depois de algumas horas chegamos à estradinha que leva a Vale do Recomeço, entramos por ela e abro a janela do carro. Respiro o ar da noite, feliz por estar finalmente voltando para casa. Olho para o céu e sorrio. A noite não poderia estar mais estrelada. Levi — Vai começar. Aumento o som da televisão, mas ainda não consigo ouvir a apresentadora por sobre o falatório. — Dá pra ficarem quietos? Felipe toma um gole da sua cerveja e ri, se divertindo às minhas custas. — Se queria tanto ver essa festa, devia ter ido ao invés de mandar a Lalá. Você até arrumou um smoking. — Eu não podia ir. A Clara vem hoje e eu precisava arrumar tudo e estar aqui quando ela chegasse. Mário cruza os braços e apoia os dois pés sobre a minha mesa de centro. Folgado. — E não é que pra quem nem estava ligando tanto pra premiação,

mudou de ideia bem rápido? Acabou com o nosso truco. Olho para os dois, que parecem esperar que eu me explique e até mesmo o padre e Genaro pararam o falatório. — A Lalá ligou e disse que a Clara está na festa. Merda... Eu devia ter ido buscá-la. — Não devia, não — Mário discorda. — Você devia fazer exatamente o que fez, ficar aqui, se preparar pra recebê-la de volta e assistir pela tv. — E para Plataforma Mais Funcional... — É agora — falo, ocupando meu lugar no sofá entre Mário e Felipe. E então eu a vejo. Clara sobe ao palco parecendo o céu noturno. Meu coração para por um momento, hipnotizado por tanta beleza. Felipe faz algum comentário idiota e dou um tapa na cabeça dele. — Cala a boca. Escuta o que ela vai falar... E então ela começa. No começo, Clara me arranca algumas interjeições, falando sobre Túlio. Os outros me encaram sem entender nada, mas fico imaginando o quanto seu discurso deve estar repercutindo agora. Mas então começo a ficar apreensivo ao ver os paparazzi aglomerando-se em torno dela. Ela conta nossa história, ocultando alguns detalhes e revelando coisas

que jamais pensei que seriam narradas em público. Mas quando Clara finaliza... Na televisão tudo se transforma em caos. As pessoas tentam subir ao palco e são contidas pelos seguranças, os outros atores, atrizes e premiados não parecem saber bem o que sentir: euforia pela fofoca, como os outros, ou tristeza, porque a premiação não me parece que vai continuar. O idiota do Leonardo serve para alguma coisa, por fim, e a arrasta para longe das câmeras; as pessoas se levantam e falam todas ao mesmo tempo. Já na minha sala, o silêncio reina por mais de um minuto inteiro. — Cacete, Vilasboas... Por essa eu não esperava. Felipe me olha aturdido e o padre parece bem envergonhado. — Como... Como isso aconteceu? — questiono, assimilando a novidade. Mário começa a rir e então Felipe o acompanha. Genaro é o último a entrar na algazarra e apenas o padre se mantém mais sério, apesar de uma curva sutil despontar nos lábios do velhote. — Sei exatamente como foi — respondo, ainda espantado. — Não queria ter cinco filhos? — Mário brinca. — Tinha que começar logo, então.

— Ai Deus... Vou beber algo mais forte.

“E não esqueça que eu sou só uma mulher, que está na frente de um homem, pedindo a ele para amá-la!” Um lugar chamado Notting Hill

Lavínia estaciona em frente ao apartamento em que mora, sobre a floricultura, e desliga o carro. — Vou ficar em casa — ela diz. — Você vai chegar bem na fazenda? Ambas olhamos para os lados, paranoicas com a possibilidade de surgirem paparazzi de trás dos arbustos ou dos postes de luz. — Quer que eu vá com você? — Leonardo questiona e, nesse momento, chego a admirá-lo um pouco mais. Por se dispor mesmo

conhecendo os riscos: Levi e uma espingarda. — Obrigada por se oferecer, mas quero vê-lo sozinha... Ele deve estar surtando com a coisa do bebê. — Ah, é! — Lavínia começa a rir. — Acho que pregou uma peça nele, sem querer. — Melhor eu me apressar, então. Mas, sabe... Eu queria falar com a Alícia, não devo sair da fazenda tão cedo depois que descobrirem onde estou. — Vou chamá-la. Bom que já vejo se minha hospedagem ainda está garantida. Leonardo desce do carro e nos deixa sozinhas. — Ele vai precisar de roupas... — Lavínia comenta. — Ai meu Deus... Acho que chapéu e camisa xadrez não fazem o estilo dele. Lalá começa a rir e sei que imaginou o conjunto completo, como eu. — Não mesmo — ela afirma. — Sei que ele vai dar um jeito. Vai ver, logo, logo chega um caminhão de ternos Armani por aqui. Você acredita — baixo a voz para um sussurro. —, que o Leo queria que eu viesse pra fazenda com um par de Manolo Blahnik de salto alto? Afundar na terra.

— Sua amiga iria com os dela — ela fala, apontando com a cabeça para a entrada da pousada, de onde Alícia vem. — Vou indo, Clara, amanhã passo lá pra saber de tudo, boa noite. Ela me assopra um beijo e sai, antes que Alícia chegue. Desço do carro e passo para o banco da frente, assumindo o volante, mesmo com o volume do vestido atrapalhando um pouco. — Amém, Deus! Obrigada por permitir que eu veja esse dia — ela chega falando, empolgada. — Então assistiu à televisão pelo jeito... — Olha, vou evitar a bronca por ter ligado para a futura cunhada ao invés de pra sua melhor amiga no mundo inteiro, porque adorei imaginar a cara do seu pai assistindo seu discursinho. E o bebê? — Ah, Áli, eu queria mesmo impossibilitar qualquer tentativa do meu pai de mudar a situação, mas não estou grávida. Sobre a ligação, precisava de uma linha direta com o Levi e, além do mais, não sabia que você ia ficar aqui mesmo sem mim. Alícia dá de ombros e cruza os braços, abrindo um sorriso em seguida. — Vou ficar. — Como assim? Definitivamente?

— É. Passei os últimos quinze dias aqui, conheci mais da cidade e das pessoas e negociei a pousada com a Ilda e o Genaro. Vou reformar e reabrir. Encaro-a esperando encontrar as palavras, porque estou tão surpresa com a novidade que perdi a fala. — Não quero falar sobre isso agora — ela completa, antecipando meu questionamento. — Olha, me dê mais uns dias, tá bom? Sempre respeitei seu espaço, certo? Assinto, mesmo que contra minha vontade. — Bem lembrado. Desculpe por me intrometer, é que fico preocupada ao te ver virar sua vida em trezentos e sessenta graus sem explicar nada. — Não precisa ficar aflita, eu estou bem e prometo que logo vamos nos sentar, comer pão de queijo, tomar café e vou contar tudo. Mas agora, você precisa mesmo ir, seu homem está esperando. Ele está mesmo. Ligo o carro e aceno, despedindo-me e partindo com a promessa de uma visita o quanto antes possível. Dirigir. Aí está uma coisa da qual não me lembrava saber, mas aqui estou eu seguindo pela estrada que leva a fazenda tranquilamente. Quando passo pela porteira e entro no terreno da casa, avisto outros carros parados em frente a porta, um deles reconheço como o Uno do Felipe.

Estaciono ao lado dele e desço, correndo escada acima, ansiosa. Bato na porta e espero, agitada. Em instantes ela se abre e, do outro lado, padre Fernando me fita sorrindo. — Oi, padre, tudo bem? Onde está o Levi? — Estamos jogando cartas, seu rapaz saiu agora há pouco e pediu que a avisasse para seguir a trilha iluminada. Ele deixou essa caixa e falou para começar pelo lago aí atrás. O padre se volta para dentro do hall e retorna em instantes com a tal caixa, que não é muito pequena. Um sorriso imenso teima em surgir no meu rosto, mesmo que eu devesse estar constrangida por ter o padre como mensageiro. — E parabéns pelo bebê. — Ele coça a cabeça já meio calva e desvia os olhos para o chão. — Ah... Quanto a isso... Não é bem a verdade, mas mentir também é pecado, então... Bom, eu vou indo, padre. Uma declaração é pior que a outra e o padre parece ficar ainda mais sem jeito. Ele me oferece um sorrisinho de incentivo e me deixa sozinha.

Desfaço o laço vermelho da caixa de madeira e retiro a tampa, pegando antes de mais nada o papel que está por cima. “Primeiro: Coloquei-os no pote bem depois que anoiteceu e vou soltálos logo, então não estrague o romantismo pensando na morte deles, Estrelinha. Segundo: Acho que superestimei o brilho que eles emitem. É lindo, mas não ilumina tanto, então use o lampião também. Terceiro: Coloque a manta sobre os ombros, não quero que se resfrie. Agora venha me encontrar.” Não entendi boa parte do que escreveu, então me atenho as partes compreensíveis. Retiro da caixa o lampião que Levi deixou e noto que dentro dele há uma vela; na caixa encontro os fósforos e, com algum empenho, logo consigo acendê-lo e fechá-lo outra vez. Coloco a caixa sobre a amurada da varanda e retiro ainda o manto enrolado ao qual ele se referiu, mais parecido com um xale e o ponho sobre os ombros. Assim, usando um vestido de gala, botas marrons e um xale de vovozinha, sigo para a parte de trás da casa, procurando pelo homem responsável por essa miscelânea de estilos.

Vendo, não é difícil compreender o bilhete, mas se torna um pouco complicado respirar. Encontro-me extasiada. Ao lado da piscina, há uma trilha que brilha, acendendo e apagando aqui e ali, aleatoriamente. Pequenos potes de vidro, em uma fileira interminável que me mostra o caminho a cada metro. Dentro de cada um deles, um vaga-lume pisca, emitindo uma luz singular. Sem preocupar-me com a barra do vestido, porque nesse instante tudo que me importa está no final desse trajeto, sigo o caminho de pontos luminosos que clareia a vasta escuridão do campo. Sinto a brisa fria da noite em meu rosto e o cheiro do mato, da terra úmida e isso me arranca um sorriso; estou em casa, esse é o lugar que quero chamar de lar. Dou a volta por trás do casarão e continuo a caçada pelo meu tesouro. Quando as copas das árvores começam a se encontrar acima de mim, ocultando o céu e formando um corredor, me dou conta de para onde estou indo. Chego à clareira um pouco depois e deparo-me com a cena mais linda que já presenciei toda minha vida. O cenário mais incrível sobre o qual já pus

os olhos. Diante do lago, uma árvore que quase banha suas raízes na água. Dela, descem inúmeras luzes pequeninas e alguns lampiões como o que tenho nas mãos. E sob a copa, está ele. — O quê... Olho ao redor assimilando o que vejo. Ao lado de Levi há um colchão, rodeado por lâmpadas pequenas e cheio de travesseiros brancos e, de frente, um telão erguido no meio do nada, com o lago como pano de fundo. Aproximo-me um pouco mais, encantada. — Você... Está brilhando mais que o manto da noite — ele diz. Sua voz rouca e grave chega até mim e um arrepio percorre meu corpo, paralisando meus passos. Olho para baixo, fitando meu vestido e vendo-o diferente pela primeira vez na noite; os brilhos que salpicam o tecido preto o tornam realmente semelhante ao céu estrelado. — E você... foi meu pedido à estrela, quinze anos atrás. E ainda é. Levi sorri e esse gesto, sim, acende tudo em mim.

Corro ao seu encontro, grata por ter optado pelas botas e pulo em seu colo, gargalhando quando ele me tira do chão e gira comigo nos braços. — Minha Estrelinha... Esses quinze dias foram mais difíceis que os quinze anos que passamos longe. Apenas balanço a cabeça, porque nesse instante não consigo falar devido às lágrimas que não liberei enquanto ansiava por este momento e que agora correm soltas pelo meu rosto, permeadas pelo riso fácil de felicidade. — Não chora, vamos ficar juntos agora, pra sempre. Eu, você e nosso pequeno domador de cavalos. — Quem? — O bebê... Espera... — Ele me encara percebendo minha expressão de quem foi apanhada na mentira. — Não tem bebê? Levi parece quase decepcionado. — Não tem, mas agora eu já disse que tinha para o país todo. Melhor providenciarmos um. — É uma ideia maravilhosa, vamos cuidar disso agora mesmo. Levi me pega no colo e carrega-me com cuidado até o colchão. — Você preparou tudo, hein? Delicio-me com a sensação do lençol macio e dos travesseiros fofos.

— Na verdade, a ideia era te mostrar o que aprontei enquanto esteve fora, mas vai servir aos dois propósitos. — E o que foi que você aprontou? Ao invés de deitar ao meu lado, ele se levanta e afasta-se na outra direção, onde posso ver a caminhonete parada. Levi remexe um pouco lá dentro e volta pouco depois com uma cesta, com comida. Ele aperta um botão e o telão se acende à minha frente, com o símbolo da Iluminar. — A essa altura você já sabe de tudo. Fiz faculdade, fundei a empresa e cheguei onde você viu, com muito esforço. Assinto, orgulhosa do que ele fez. — O nome da empresa é esse por sua causa. Por que mesmo antes de se tornar uma estrela de cinema, você já era o meu pedido para o universo. Clara, eu soube de tudo — ele diz. Viro-me para encará-lo, enquanto Levi se deita finalmente ao meu lado. — Sobre a chantagem para que fosse embora e do quanto abriu mão por mim, pela minha família. Eu odeio seu pai por isso. Sinto muito e prometo que quando você estiver pronta para perdoá-lo, não vou me colocar entre vocês, mas não consigo esquecer que ele te chantageou e pior, que te

obrigou por tanto tempo a viver sonhos que não eram seus. — Como você soube? — Foi a Lena. Ela quem contou a ele sobre nós antes e que fez o doutor Aguiar ligar para o seu pai, agora. E no momento da raiva, Lena acabou contando tudo que seu pai disse, os planos que foram feitos para chantagear você. Eu queria muito que tivesse me dito na época, que tivéssemos encontrado outro meio, juntos, mas... — O que? — Quando me lembro dos anos que antecederam a morte deles... A felicidade no rosto do meu pai ao ver tudo que ele sonhou se realizando. O sítio se tornando uma fazenda rentável, a alegria dele ao levar minha mãe pra viajar pela primeira vez. Quando penso que só posso te estender a mão e fazer você viver o seu sonho agora, porque lá atrás você abriu mão de tudo que queria por mim, me sinto tão grato. Eu preferia ter passado os quinze anos na pobreza ao seu lado e com certeza preferia saber que não foi o banco do seu pai que nos ajudou, mas ainda assim... Vou fazer o possível para te ver feliz por todos os anos que temos pela frente e nunca será o suficiente, mas posso tentar. Acaricio o rosto dele e toco seus lábios com os meus. Levi sorri quando a música de abertura ecoa no silêncio desse lugar e um trailer começa a ser

exibido no telão. Volto meus olhos para a tela e vejo-a piscar com as palavras: Um roteiro de Clara Coutinho O Assassino das Segundas Chances Abro a boca, espantada com o que estou vendo, quando os atores surgem na tela. Estou fascinada. — É... É o Túlio? — Leonardo conseguiu alguns dos atores assessorados por ele. — E desde quando fala com o Léo? Quase atirou nele, se bem me lembro. — Falo com seu assessor tem muito tempo. Desde que negociamos os termos da inserção dos seus filmes no catálogo da Iluminar. Ainda quero matar ele, mas mandei um funcionário entrar em contato e negociar tudo. — Está dizendo que quer produzir meu filme? Meu roteiro? — Quero dizer que vamos trabalhar também com produções originais da Iluminar e, se você quiser, vai ser a roteirista oficial da casa. — Levi... Eu... Ai, meu Deus! Aquela é a... — Sim, nossa detetive, que mal sabe o que a aguarda.

— Eu não acredito nisso! Pulo em cima dele sem ressalvas e cubro-o de beijos enquanto ele gargalha com minha reação. — Se é assim que você vai reagir, pode trazer aquele caderno de roteiros lá que já vou começar a trabalhar em todos. Levi afasta meu rosto e o enquadra entre suas mãos. Seus olhos azuis estão escuros e intensos e seu rosto, sério. — Clara, eu amo você e vou viver cada segundo, de agora até meu último fôlego, pensando no que te faz sorrir. Cada atitude minha vai ser pra aquecer o seu coração, porque eu sou apenas humano, erro e sou cheio de falhas e você é meu sol, a maior estrela de todas e que dá sentido aos meus dias. Por um momento perco a voz. É a declaração de amor mais linda que já ouvi. — Não se esqueça. Eu sou apenas uma mulher que está diante de um homem, pedindo a ele para amá-la. Ele estreita os olhos. — É de um filme. — É mesmo.

Levi toca meus lábios com os seus, enquanto seus dedos percorrem meus cabelos. O cheiro dele é tão bom que inspiro fundo. Retiro a jaqueta que ele está usando calmamente, enquanto Levi luta contra o primeiro dos botões perolados do meu vestido. — Vire-se, amor — pede, a voz carregada de desejo. Movo-me de modo a ficar de costas para ele e afasto meus cabelos, facilitando sua visão. Levi abre um botão após o outro, trilhando a linha da minha coluna com a ponta dos dedos e vou queimando lentamente, como o pavio de uma dinamite. Ele desce a alça direita e beija meu ombro suavemente. Nossos olhares se cruzam e ele sorri, com malícia. Faz o mesmo com a esquerda e surpreende-se ao me ver segurar o corpete. — O que foi? — Não estou usando nada por baixo. E se alguém vier aqui? — Ninguém vai vir, Estrelinha. Todos eles já conheciam minhas intenções.

Sinto meu rosto se aquecer ao pensar em seu Genaro e no padre, mas Levi apenas ri. — Me ajudaram a caçar os vaga-lumes, mas um colchão não podia ser mais óbvio. Eu garanto que ninguém vai vir. Solto o corpete então e seu olhar desce para os meus seios. As mãos dele acompanham os olhos, tão famintas quanto eles, enquanto sua boca beija meu pescoço, arrancando-me suspiros de entrega. Suas carícias aquecem-me onde a brisa gelada me toca. Retiro sua camiseta preta, enquanto Levi embriaga-me com seus beijos. Ele mesmo se livra das calças e, colocando-se por cima de mim, termina de me despir. — Frio? — pergunta. — Não... Calor... Ele morde meu lábio em resposta e posiciona-se entre as minhas pernas. — Vou beijá-la por inteiro. Faço que não outra vez. — Tem a vida inteira pra fazer isso, senhor Vilasboas. Quero você, agora.

Sua testa se encosta na minha e ouço um suspiro vindo dele. — Ainda bem que quer, porque estou louco de saudades de te sentir assim. — Assim como? — provoco. Levi desliza sua rigidez para dentro do meu corpo e arfo ao sentir seu comprimento, a espessura e as ondas de prazer que me fazem estremecer. Ele é incrível. Seus traços, seus músculos e sua essência principalmente, mas aqui, banhado pela luz da lua, Levi é quase sobrenatural. Sinto sua investida contra mim e cruzo as pernas atrás de seu quadril, ajudando-o a ir ainda mais fundo. Apesar do carinho com que tudo começou, nos perdemos, ardendo rapidamente um sobre o outro. Os beijos se tornam desesperados, os toques firmes e decididos, e dentro de nós o sentimento de que agora, finalmente estaremos juntos para sempre. Levando os dedos até o ponto em que nossos corpos estão ligados, Levi toca-me com delicadeza e precisão, seus movimentos enlouquecem-me e me conduzem à beira do ápice. Abro os olhos no último instante e me conecto a ele, hipnotizada pela avalanche de sentimentos que vejo em seu olhar azul. Meu corpo estremece e um gemido alto é arrancado de mim.

Arqueio o corpo, mas Levi segura meu queixo e sussurra enquanto me perco em seus olhos. — Casa comigo, Estrelinha...

“Você pode conseguir tudo se você não tiver medo.” Demolidor – O Homem Sem Medo

— E então? — Clara me pergunta, o rosto sondando por sobre meu ombro. — Ainda tem cinco deles aí fora... — Sério? Será que não vão desistir de mim? Já faz uma semana! Uma semana na qual Clara e eu mal saímos da cama, evitando os paparazzi acampados do lado de fora e aproveitando nosso período de quarentena. Vimos algumas notícias na televisão e seu discurso estampou várias capas de revistas país afora, mas seguimos com o plano de tentar agir

como se nada mais importasse, fora destas quatro paredes. — Acho que devíamos adiantar o casamento. — Por quê? — A voz dela tem aquele toque de deboche que surge sempre que começamos esse assunto. — Porque eles vão voltar quando ficarem sabendo. Assim já acontece tudo de uma vez, noticiam e o assunto morre aos poucos. O que acha? Ela assente, pensativa. — Faz bastante sentido, sabe? Melhor que as desculpas que usou para diminuir de seis meses para quatro e de quatro para dois. — Agora estava pensando em mais ou menos um mês. Olha só, Estrelinha, já temos o padre, claro. Também temos as flores, um assessor de imprensa idiota que vai trabalhar como cerimonialista, tenho pessoas para filmarem e temos nós dois. A Ilda pode cuidar da comida e arrumar ajudantes na cidade. O que falta? — Meu vestido? — pergunta, cruzando os braços. — Você fica linda assim, dentro das minhas camisas. — Agarro-a pela cintura passeando com as mãos pela flanela xadrez da camisa que cobre até a altura de suas coxas. — Não vou me casar usando uma camisa sua.

— Nós podemos comprar um vestido incrível, do estilista que você quiser. O Leonardo não fez entregarem um caminhão de ternos pra ele na pousada? Então, garanto que ele consegue o vestido. — Não foi um caminhão, deixa de ser exagerado — ela retruca. — E não é só isso... Bom, na verdade é sim. — Isso! — Comemoro pegando-a no colo e voltando para o sofá, correndo enquanto ela grita desafinada. — Você vai me matar... — Clara fala, sorrindo quando a coloco sentada. — Não antes de terminarmos a minha lista. Preparada? Porque já estourei a pipoca e trouxe os refrigerantes. Pegou o cobertor? A maratona termina dentro de dezessete horas e temos comida congelada que vai durar até lá, então relaxa. Não digo a ela que, no que depender de mim, vamos ficar embolados nesse sofá por umas quarenta e oito horas. Ela me olhando de lado, desconfiada e me deito sobre suas pernas nuas. — Você devia ter colocado uma calça. Com o rosto assim, entre as suas pernas, não vou conseguir esperar nem meia hora, quanto mais dezessete. — Olha só, você não está com o rosto entre as minhas pernas e sim em cima delas. Além disso, eu concordei com nove horas de maratona, como foi

dobrar assim? — Você esqueceu de contar os filmes do Hobbit. — Isso foi enganação, mas vou relevar dessa vez porque gosto de ver filmes com você. Clara está mexendo nos meus cabelos e quase desisto do filme para ficar assim, só olhando para ela. — Com esses seis filmes, quantos sobram na sua lista, Vilasboas? — pergunta, fazendo gracinha com meu sobrenome. Pego sobre a mesa de centro o papel, que já recebeu várias novas versões ao longo dos anos. — Faltavam vinte e oito. Mas agora, assistindo a esses seis... Vão faltar vinte e cinco. — Como assim? — Clara arranca o papel de mim. — Como podemos ver seis filmes e só diminuir três? Ah, não era só eu que não sabia sobre O Hobbit, não é? Pelo que vejo aqui a lista também não foi avisada. Pego o papel e o dobro de volta, tirando de perto dela. — Quer saber? Se relevar essa pequena desonestidade da minha parte, te deixo incluir algumas comédias românticas bem melosas na lista. — Meu Deus, essa lista nunca vai acabar!

— É a intenção — confirmo. — Jura de mindinho? Vou mesmo poder colocar meus romances? Assinto. — E que tal uns doramas? — Não precisa apelar, Clara. Ofereço o dedo a ela, que hesita, mas acaba cedendo. E assim, selamos mais uma promessa. Com o play, começamos o resto das nossas dezessete horas, sem Ilda, sem Pacino — que foi ficar com o Felipe — e se depender de mim, sem roupas, logo, logo.

No total, foram quase duas semanas para que os paparazzi desistissem de mim e, finalmente, posso fazer minha primeira aparição como moradora

oficial de Vale do Recomeço. Desfilar pela cidadezinha logo após o pôr-do-sol, entrando em praticamente todos os comércios foi ideia da Alícia, porque segundo ela, assim todo mundo me vê, falam bastante sobre isso e se adaptam logo. É por isso que estamos sentadas com nossos sorvetes de casquinha na pequena sorveteria, perto da igreja. — E lá vem os próximos — ela fala baixinho, referindo-se aos garotos do outro lado da rua, que estão vindo em nossa direção. O maior dos três deve ter uns quinze anos e fica todo vermelho ao parar a minha frente. — Oi... — o menino fala, apenas. O outro garoto dá um empurrão de leve no ombro do que fala por eles e abro um sorriso. — Oi, tudo bem? — Tudo. Será que você pode... tirar uma foto comigo? Agora que recuperei minha memória, me lembro de quantas vezes passei por isso, tantas que já não me incomodo mais. Um autógrafo ou uma foto na rua não é o mesmo que atuar e que subir ao palco em frente a milhares de pessoas. — Lógico que sim.

— Com a gente... — o outro menino se apressa a dizer. Me levanto e posiciono-me ao lado deles, enquanto o maior estende o braço e tira uma selfie. — Obrigado — o menorzinho agradece. — Por nada, meu amor. O garoto, até então tímido, se aproxima e me dá um beijo na bochecha antes de sair correndo, me deixando mais envergonhada que ele. Os outros o seguem, gritando, eufóricos. — Ficou vermelha? Nem parece a mulher que expulsou a pobre Ilda da casa, pra ter o fazendeiro só pra si — Áli provoca. — Sabe que não foi assim. Levi deu folga de uma semana pra ela, nós temos muito tempo perdido para recuperar. — É verdade. — Ela dá o braço a torcer. — E você? Já fez um mês que veio pra Vale. Como vão as coisas na reforma? — Devagar e sempre. Quero alguns itens que não tem por aqui, trazer algo novo e estou procurando uma confeiteira. — Confeiteira? — É. Eu queria colocar uma delicatéssen embaixo, mas a confeiteira

que estou de olho não sai de Lagos de jeito nenhum. Já tentei de todas as formas... — E não tem uma franquia da confeitaria? — Não! O marido dela ainda teve a audácia de dizer que: Que Seja Doce só tem uma. Sorrio, ouvindo a voz dela imitando o homem. — Relaxa, você vai conseguir alguém. — Vou mesmo. — Mas, e o encanamento? — pergunto. — Felipe comentou que você teve um probleminha. Alícia parece de repente muito interessada no sorvete, enfiando uma colher enorme na boca. — Mal assim? — Não... — Ela desvia os olhos para dentro da sorveteria, procurando alguma coisa. — Agora já resolvi. Falando em resolver, finalmente suas coisas estão chegando, suas roupas, seus sapatos...Não aguento mais te ver usando as camisas do Levi. — Leonardo falou que chegam logo? Ela assente.

— Amanhã. Parece que a briga com seu pai foi feia, mas ele resolveu tudo por lá e colocou sua casa à venda. Deu os móveis todos pra Rita, como você pediu, mas a mulher disse que vai vender mais da metade. Meneio a cabeça, achando graça. — Não me importo. Só preciso das minhas calcinhas aqui... — sussurro. E Alícia gargalha, derrubando o topo do sorvete na roupa toda. Ela se levanta reclamando e, mesmo rindo, ofereço o pote de guardanapos para que se limpe. — Ei, Clarinha... — ela diminui a voz para um sussurro. — Qual é a daquela ali? Sigo a direção para a qual Alícia olha e vejo a moça que conheci na festa junina que Levi ofereceu. — Ah, ela é professora na escola aqui... Por quê? — É a segunda vez que ela passa por mim chorando. Eu, hein. Olho outra vez e percebo que Ártemis tenta mesmo esconder o rosto, mas está toda vermelha por conta do choro. — Será que ela está bem? — Áli pergunta. — Não tenho intimidade pra perguntar. Vou falar pra Lavínia conversar

com ela... — Isso aí. O espírito da cidade pequena já nos pegou de vez. — Que história é essa de pegarem minha garota? Ninguém pega, além de mim. Ouço a voz de Levi e me viro, com o sorriso que é só dele. Meu coração acelerado apenas por vê-lo. — Nem o espírito de Vale do Recomeço? — Acho que pra esse aí posso abrir uma exceção. Vamos indo? Lalá quer que você veja os arranjos que ela fez. — Ah, estou doida pra ver — respondo, colocando-me de pé. — Áli, nos falamos depois? — Claro. Passo na fazenda amanhã. Levi segura minha mão e juntos seguimos rumo à nossa felicidade. Acima de nós, uma única estrela já brilha, a detentora de todos os nossos desejos.

“Acima de tudo, nunca pare de acreditar.” As Aventuras de PI

Esperei muito pelo dia em que seríamos inegavelmente um do outro e que ninguém ousaria tentar nos separar. Mas nem em meus devaneios mais insanos, imaginei que aconteceria dessa forma. Ao invés da igreja, optamos por uma cerimônia na fazenda e, no lugar das tradicionais festas com grandes buffets, convidamos a cidade inteira e decidimos oferecer um churrasco. Lavínia se empenhou em cada detalhe e afirmou ter conseguido captar

o que Clara queria perfeitamente. Mas não tive a real noção do que seria esse momento até agora. O tapete foi colocado em frente à casa e dos dois lados dele, os vasos cheios de flores coloridas foram dispostos e intercalados com cestos de vime cheios de flores pequenas e brancas. O dia está bonito e o sol não muito forte e, apesar de ter me rendido as formalidades da calça e dos sapatos sociais, consegui evitar o paletó. Felipe, Alícia, Mário e Lavínia são nossos padrinhos e madrinhas; não precisamos de mais que isso. Daqui, posso vê-los sentados, todos muito bem vestidos e quase tão agitados quanto eu. O músico começa a tocar o instrumental da marcha nupcial e os convidados se levantam. E então Clara surge no alto da escada. Ela usa um vestido diferente de tudo que já vi em uma noiva. Apesar de branco, não é rodado como um bolo e nem justo e sensual. É diáfano, etéreo e, ao descer os degraus, sorrindo pra mim, ela poderia ser mesmo uma estrela que desceu do céu para realizar meus sonhos. Os tecidos voam, formando um véu ao redor dela, que segue em minha direção com o buquê amarelo nas mãos. Clara caminha sozinha. Apesar de ter permitido que seu pai

comparecesse à cerimônia, Alessandro preferiu não participar de uma união com a qual não concorda. Melhor para nós. Sorrio ao vê-la confiante em cada passo e não apenas nisso, mas em todas as suas decisões. Clara vem se descobrindo e se provando a cada dia, aprendendo mais e me ensinando mais sobre si mesma. Está diante de mim agora e seu sorriso ilumina o dia, muito mais que o sol. Pego sua mão na minha e sinto aquela conexão passar por mim, a mesma que senti quinze anos atrás e que me acompanhou desde então. Viramo-nos de frente para o padre e vejo os olhos do velhote marejados. — Bom dia, amados — ele diz. — Estamos aqui reunidos para unir Levi Máximo Vilasboas e Clara Alves Coutinho nos sagrados laços do matrimônio. Ele faz uma pausa dramática. — Conheço esse menino, desde que era desse tamaninho... — Mostra com as mãos. — Assisti o amor florescer quando ele conheceu essa mulher, tanto tempo atrás, na época, uma menina, apenas. Clara sempre foi doce e meiga e cativou nosso Levi em um instante, mas a vida deles seguiu caminhos diferentes. Quem poderia imaginar que quinze anos depois aqui

estaríamos nós? Mas Deus tem seus planos e eles acontecem no exato momento em que devem acontecer. Vamos receber as alianças... Outra música ecoa pelo ambiente aberto e vemos Pacino todo charmoso vindo até o altar. Ele usa uma gravata borboleta e as alianças estão presas nela. Abaixo-me diante dele e faço um carinho em sua cabecinha. — Conseguimos, Pacino. O Al ficaria orgulhoso de nós. Retiro o par dourado e o entrego ao padre Fernando. — Virem-se um para o outro — ele pede. Clara volta o rosto na minha direção e então o corpo, seus olhos buscam os meus e, nesse mísero segundo, compartilhamos uma torrente de emoções. — Pode dizer a Clara o que queria, meu filho. Ouço o padre, mas meus olhos não se desviam dela nem por um momento. — Estrelinha... Sou seu desde que me confundiu com um traficante da zona rural. — Ela sorri e vejo uma lágrima também descer por seu rosto, além de ouvir os risos dos convidados. — Não sei como funciona o processo do amor, muitas pessoas levam meses, anos até, para se descobrirem apaixonadas. Comigo bastou que me fitasse com seus olhos da cor do mel e

eu fui seu. Fui seu durante os quinze anos que sofri com sua ausência, trabalhei e construí tudo que tenho; fui seu enquanto sonhava que um dia você pudesse voltar... O que eu não sabia, era que tudo que fiz só foi possível porque você se doou primeiro. Clara, eu te amo hoje, não com o amor de um menino, cheio de encantamento e inocência, te amo apesar da vida adulta, dos obstáculos e te amo ainda mais por essas coisas. Porque esse é o tipo de sentimento que não se encontra fácil. Muitos passam a vida sem viver um amor como o nosso, eu quero passar a vida amando você. Prometo, prometo e prometo, tudo que você quiser de mim. — Sua vez, Clara — o padre avisa. Seus dedos esguios apertam os meus e ela leva alguns segundos para conseguir encontrar sua voz. — Meu único amor. Você é o menino que me encantou com seu ótimo gosto cinematográfico desde o primeiro dia, me ganhou com seus gestos românticos e com seu jeito de enxergar apenas a minha alma, e desejar estar ao meu lado como ninguém antes esteve. Os anos se passaram e quando nos reencontramos não reconheci as mudanças que vi em você, mas o meu coração gritou seu nome e se abriu no mesmo instante. Ele jamais te esqueceu, nem mesmo quando me esqueci de tantas coisas. Obrigada por me esperar, mesmo que não houvesse prova nenhuma de que esse dia fosse possível. Amo tanto você, que abriria mão de mim...

Toco sua face, secando as lágrimas. — Não precisa mais, amor. Eu não abro mão de você... — sussurro, apenas para que Clara me ouça. — Prometo estar ao seu lado em todos os momentos difíceis e também nos alegres. Vou segurar sua mão nos dias bons e apertar mais forte naqueles em que o caos nos atingir — ela conclui. O padre também está chorando e eu oculto da plateia uma ou duas lágrimas, mas pego as alianças que me são entregues. — Clara, eu a recebo por esposa, com esta aliança como símbolo do meu amor. Para amar, respeitar, cuidar e ser fiel, durante todos os dias da minha vida. Deslizo a aliança em seu dedo e sorrio. — Levi...

Eu o recebo como meu esposo, com esta aliança, que

representa o elo inquebrável que somos. Prometo amá-lo, respeitá-lo, cuidar de você e ser fiel para todo o sempre. Não me contenho mais. Agarro minha esposa pela cintura e deito-a sobre minha perna, para um beijo de cinema. Tomo seus lábios nos meus e Clara enlaça meu pescoço, enquanto ao fundo há uma sinfonia: de pássaros, de assovios e palmas. E a voz do padre... — Bom, eu ia dizer que podia beijar a noiva.

Meu Deus... Um ano e meio depois de lançar meu primeiro livro na Amazon, aqui estou eu, com o nono. Um ano e meio depois de chorar muito aos seus pés, estou aqui, rindo e cheia de motivos para agradecer. Obrigada por me dar a capacidade de criar histórias e por incrivelmente tanta gente gostar delas. Obrigada por me permitir trabalhar com o que amo e viver disso. A gratidão é tão grande que não cabe em mim. Agradeço ao meu esposo, Gustavo, por ser meu referencial de amor. Por inspirar tantos romances no meu coração e pelo booktrailer incrível, que captou tanto a essência do nosso casal! Obrigada aos meus pais, pelo apoio em todos os lançamentos, por acreditarem tanto em mim e nos meus sonhos. Minhas irmãs, minha tia, tio, prima, sogros, cunhados e todos os outros que torcem por mim. Polli Teixeira: Obrigada por me assessorar nesse caminho difícil e tão gratificante ao mesmo tempo. Por ser sempre aquela que diz que vai dar certo. Letti Oliver, obrigada por ser meu ombro amigo, que ouve as lamúrias

e ri comigo, de desespero, em certos momentos. Por achar que meus enredos sempre merecem o Nobel e por essa capa digna de um filme. Larissa Honório, obrigada pela revisão minuciosa e por me lembrar que em 2005 nem todos tinham celulares chiques ou micro-ondas. Doutora Jéssica. Minha médica de consultas fictícias — claro que ela atende pessoas de carne e osso também —, obrigada por responder meus questionamentos estranhos e nunca chamar a polícia quando ligo perguntando o que acontece se eu atirar uma determinada pessoa do quinto andar de um prédio. April, essa diagramação perfeita captou exatamente o que Levi e Clara precisavam. Obrigada! Washington, Sil, Lari, Pry, obrigada pelo material de divulgação, pelas artes incríveis. Paola Aleksandra, obrigada por ler antes e pelos stories e vídeo que me deixaram encantada. Obrigada por esse trabalho excelente, só tenho a agradecer ao Livros e Fuxicos. Agradeço as parceiras que me ajudam a mostrar meus livros por aí, que compram minhas ideias malucas e que com seus olhos brilhantes e expressões de carinho, despertam em outras pessoas o interesse pelas minhas histórias. Obrigada, antes de mais nada, por se apaixonarem pelos

personagens tanto quanto eu e depois, por divulgarem ao mundo. Obrigada por colocarem o chapéu e calçarem as botas! Ana, Anathielle, Angel, Carla, Dri, Hayane, Isabele, Jaque, Jessica, Lahri, Lari Caren, Lígia, Lih, Luh, Maria, Juliana e Uinayara, vocês são incríveis. E a você, leitor. Obrigada pela oportunidade, por segurar esse livro — ou kindle — nas mãos e acompanhar Clara e Levi nessa jornada em busca de um recomeço. Obrigada por fazer de mim uma autora.

Até a próxima história...

Que bom, nos encontramos de novo! E então? O que você achou da história? Não deixe de avaliar no site da Amazon e dar sua opinião sobre o livro. É importante para mim e para que outros leitores saibam se vale a pena dar uma chance ao livro. Se quiserem acompanhar meu trabalho, conhecer mais sobre os personagens e sobre os futuros projetos, me acompanhem nas redes sociais. Perfil no Facebook: https://www.facebook.com/SaraFidelisGoncalves Página Sara Fidélis Autora: https://www.facebook.com/SaraFidelisAutora/ Grupo Sara Fidélis e as Ladies: https://www.facebook.com/groups/354301838631957/ Instagram Sara Fidélis Autora: https://www.instagram.com/sarafidelisautora/

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CONHEÇA MINHAS OUTRAS HISTÓRIAS

RITMO ENVOLVENTE – O BEBÊ DO ROCKSTAR (TRILOGIA AMOR & RITMO – LIVRO 1)

Ashton Ray é o vocalista da Dominium, uma das maiores bandas de rock da atualidade e aproveita ao máximo o que a vida de rockstar oferece:

festas, mulheres e brigas também. Em seu último excesso, Ash se viu diante um problema maior, um processo que pode destruir sua imagem e a da banda. Festas estão proibidas e manchetes vetadas! Julia Foster é uma mulher determinada a ter o que deseja: uma família e uma carreira de sucesso. Grávida e trabalhando como estagiária em uma grande firma de advocacia, Julia vê as coisas saírem do eixo ao ter que mudar sua vida para vigiar o astro do rock arruaceiro e auxiliar em sua defesa diante dos tribunais. Para vencer o caso ela precisará mantê-lo na linha, porém, ao contrário do que imagina, será muito mais complicado controlar seus próprios instintos. Acompanhe a história desse casal completamente oposto em meio a muito rock, romance e bem... roupinhas de bebê.

RITMO SENSUAL – A VIRGEM PROIBIDA (TRILOGIA AMOR & RITMO – LIVRO 2)

Josh Nicols é o baterista da Dominium, mas apesar de todas as loucuras advindas disso, é um homem sensato e que pesa muito bem cada uma de suas decisões. Um passado doloroso, uma família destruída... Tudo isso apenas serviu de material para moldar quem ele é e em cada um dos momentos difíceis que viveu, Ashton Ray, seu grande amigo, esteve ao seu lado e a família dele se tornou a sua própria. Por isso, nada fica fácil quando Josh começa a sentir-se atraído por

Anelyse Ray, a irmã virgem de seu melhor amigo e a garota por quem sempre jurou sentir apenas afeto fraternal. Mas, Anelyse o conhece como ninguém e nada pode ser mais inevitável, que uma mulher decidida. O que fazer quando os dois lados da balança têm o mesmo peso? Quando a distinção do certo e do errado, não é mais tão visível e o desejo se torna mais forte que o senso de lealdade? Venha descobrir o amor com Josh Nicols e seu Anjo impuro e infernal.

RITMO IMPERFEITO – AMOR & RITMO 3

O guitarrista da Dominium está sempre sob os holofotes e tem seus dias regados à farra, irresponsabilidade e sexo. Jasmim é responsável e prioriza família e trabalho duro. Apesar de hoje serem muito diferentes, nem sempre foi assim. Os dois já foram os melhores amigos um do outro e, apesar de terem se distanciado, nem mesmo a fama mudou esse fato. Mas agora, Jasmim esconde segredos e Tray não vai descansar até descobri-los. O grande problema é que alguns mistérios, quando revelados, podem colocar amizades à prova e trazer sentimentos adormecidos à tona. Tray Anders pode ser considerado um deus do sexo e o maior astro da guitarra, mas quanto mais alto o sucesso, maior pode ser a queda.

O OGRO E A LOUCA – TRILOGIA PAIXÕES

IMPROVÁVEIS (LIVRO 1)

Mathew Calston, o marquês de Wheston vive recluso em sua mansão no campo desde que acontecimentos em seu passado o fizeram repensar a vida e mudar completamente sua visão do mundo e das pessoas. A senhorita Nicole Smith, aceita o cargo de governanta na mansão, porém ela não esperava que houvesse tanto trabalho para tão poucos criados. Também não esperava conhecer o patrão em circunstâncias impróprias que o levassem a crer que ela era uma louca, desvairada. Mas foi o que aconteceu. Agora, com a pior impressão possível um do outro, eles terão que aprender a conviver, superando a aversão inicial e descobrindo um desejo incontrolável que aumenta a cada embate entre eles. Será que a linda governanta conseguirá colocar ordem, tanto na casa quanto no coração desse marquês turrão? E ele, poderá manter seu juízo diante dessa mulher que o tira do sério com tantas loucuras? Venha conhecer o marquês ogro e sua governanta louca e se apaixonar por este casal.

O HIGHLANDER E A DEVASSA – TRILOGIA PAIXÕES IMPROVÁVEIS (LIVRO 2)

A senhorita Juliette Smith sempre se orgulhou de seguir seus instintos e desejos. Convencida de que nunca se casará ou poderá desfrutar dos prazeres dentro da proteção de um matrimônio, ela decide conhecê-los com ninguém menos que Lorde Gregor MacRae, o libertino mais viril e belo no qual já pôs os olhos. Porém, contrariando as expectativas da moça, um belo dote lhe é cedido e junto com ele a oportunidade de se casar. Agora ela precisará atrair a atenção de um cavalheiro disposto a se

comprometer, o que pode não ser nada fácil quando se tem a lembrança de olhos azuis e selvagens para assombrá-la. Lorde Gregor é imprudente e adora ostentar suas conquistas amorosas, mas não essa. Se possível levará o segredo para o túmulo para não perder os amigos que tanto estima. Mas então, ela decide se casar e a mera ideia de que todo aquele fogo indomado estará nos braços de outro homem faz com que o guerreiro highlander que habita nele, desperte.

O DUQUE E A FUGITIVA – TRILOGIA PAIXÕES

IMPROVÁVEIS (LIVRO 3)

Maryelen Lorena Somerset, filha do distinto duque de Beaufort, cresceu sob a mão rígida de seus progenitores e foi preparada desde o berço para um casamento político que tornaria sua família ainda mais poderosa. Sebastian Cavendish, o filho mais novo do duque de Devonshire surge em sua vida e ao vê-lo Maryelen sente que encontrou alguém especial. Em meio ao florescer dos sentimentos, descobrem que uma união entre os dois não é bem quista pela família da jovem e o destino com suas intempéries os separa em uma sucessão de tragédias. Agora, anos depois, Sebastian é o novo duque de Devonshire e um reencontro inesperado o coloca frente a frente com a moça que acreditava estar morta ou algo ainda pior. As circunstâncias não são adequadas e a mulher que agora atende pelo nome de Helen não é mais a menina que um dia conheceu, mas uma fugitiva que forjara a própria morte impiedosamente. Após um acidente que poderia ter fatalmente lhe tirado a vida, Sebastian tem um novo objetivo, um motivo para persistir: encontrá-la e descobrir quais outros segredos oculta e por quais razões o deixou.

UM BÁRBARO DE JOELHOS – CORTEJOS IMPROVÁVEIS SPIN OFF DA TRILOGIA PAIXÕES IMPROVÁVEIS

Lorde Ian MacRae não é exatamente o que se espera de um nobre. Com um desprezo transparente por regras da alta sociedade, o escocês prefere a vida nas highlands, acompanhado de seu bom whisky e sua família.

Apenas poucos britânicos conseguem sua confiança e boa vontade, mas em um ato generoso no passado, livrou a tímida Lady Mariane Stanford das garras de sua progenitora. No entanto, seu gesto isolado de cavalheirismo ocasionou uma série de situações em que se viu vítima de perseguição e obsessão, por parte da jovem

dama. Ou não seria paixão, o real motivo pelo qual a irrepreensível Lady passou a vasculhar seus pertences e analisá-lo com mais atenção que o adequado? Mistérios, romance e muitas reviravoltas. Nesse jogo, quem se ajoelhará primeiro?

QUE SEJA DOCE – VOLUME ÚNICO

Cinco anos após a fatídica noite que fez o futuro arquitetado de Robin ruir, ela tenta sobreviver em meio a dificuldades, cuidando sozinha de seu

filho, Bernardo, e trabalhando em um emprego que odeia, após abandonar o sonho de abrir a própria doceria. Decidida de que não há espaço e nem tempo para paixões em sua vida, a confeiteira faz de tudo para não ser notada, mas o acaso se encarrega de dar a Robin uma transferência no emprego, que a leva para outra cidade. Para outra pessoa. Dominic é apaixonado por palavras e vê nelas, sejam faladas, escritas ou cantadas, uma chance de mudar vidas. Com a carreira de psicólogo em ascensão, ele está de volta à sua cidade natal e deseja apenas um colega para dividir o aluguel. Uma confusão com os nomes desses dois e voilà: temos a receita perfeita para cenas hilárias, fortes emoções, um romance com cheirinho de chocolate e potência para aquecer os forninhos.
#1 A Estrela Que Eu Desejo

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