Jose de Aguiar Dias - Da responsabilidade civil

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D a R e s p o n s a b il id a d e C iv il 12a Edição revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por RUI BERFORD DIAS

Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2011

r

In d ic e a n a l ít ic o PARTE I Título Preliminar - Responsabilidade 1. Responsabilidade: seu conteúdo, noção e definição.................................................

1

2. M ecanism o da responsabilidade.......................................................................................

3

3. Responsabilidade jurídica e responsabilidade m o ral..............................................

3

4. Responsabilidade penal: im putabilidade, culpabilidade, cap acid ade............

5

5. Responsabilidade penal, responsabilidade civil: distinção, pontos de contato. 6. D esenvolvim ento da responsabilidade civil................................................................

7 11

Título I Responsabilidade civil

Capítulo I Noções e conteúdo. Definições. Evolução

7. Responsabilidade civil. Definições segundo as várias correntes........................

15

8. Responsabilidade civil e reparação do d an o................................................................

16

9. Evolução da responsabilidade civil..................................................................................

18

10. Direito rom ano: a) tem pos primitivos. Lei das XII Tábuas; b) lei Aquilia; c) a obra pretoriana na interpretação do texto aq uiliano....................................

19

11. Direito francês: a) aperfeiçoam ento das ideias rom ânicas; b) o Código de Napoleão; c) tem pos m odernos...............................................................................................

22

12. Direito português: a) o direito primitivo, o Fuero Juzgo, as Partidas; b) as O rdenações do reino.............................................................................................................

23

13. Direito brasileiro: a) Código Crim inal de 1930; b) as Consolidações; c) os Códigos Penais de 1890 e 1940; d) o Código Civil e o Código de O briga­ ções; e) o Código Civil de 2002; f) as novas tendências da responsabili­ dade civil. O Código Crim inal de 1830........................................................................

25

As Consolidações............................................................................................................

26

Os Códigos Penais de 1890 e 1940..........................................................................

27

O Código Civil de 1916 e o Código de O brigações........................................

27

O Código Civil de 2 0 0 2 ................................................................................................

29

As novas tendências da responsabilidade civil...............................................

39

C apítulo II Teorias. Classificação. Critica

14. A responsabilidade dvil é pura resultante do equilíbrio violado pelo dano..

43

15. Teoria da culpa. A fórmula de Von Ihering................................................................

44

16. A culpa no direito rom ano..................................................................................................

44

17. A teoria de D om at e Pothier. A elaboração do Código Civil francês. Direi­ to italiano....................................................................................................................................

45

18. Direito alem ão..........................................................................................................................

48

19. Direito brasileiro. A conclusão de Alvino L im a.......................................................

49

20. Crítica da teoria da culpa. Assim ilação da noção de responsabilidade pela da culpa.......................................................................................................................................

49

21. A doutrina do risco................................................................................................................

51

22. P recu rso res da d ou trin a do risco: T h o m asiu s e H ein ecciu s. Binding. Venezian......................................................................................................................................

51

23. Tentativa para sistem atizar a doutrina do risco na literatura germ ânica: Mataja. Os Merkel. Unger. Princípio do interesse ativo, da prevenção e da equidade ou interesse preponderante. A inspiração de Bentham ...................

54

24. Os franceses com o lançad ores da ideia do risco. A influência do positivi­ smo penal e suas verdadeiras p rop orções..................................................................

57

25. A doutrina de Saleilles..........................................................................................................

58

26. As ideias de Josseran d..........................................................................................................

62

27. As soluções subsidiárias......................................................................................................

67

28. Crítica da teoria do risco. Os ataques de H. e L. M azeau d .................................

69

29. Defesa da teoria objetiva.....................................................................................................

73

30. Refutação das doutrinas extrem istas. Direitos do hom em e direitos da so­ ciedade devem orientar-se para o equilíbrio.............................................................

74

31. Os verdadeiros defeitos da teoria objetiva.................................................................

76

32. Os sistem as de conciliação e sua crítica.......................................................................

77

33. Aceitação da doutrina objetiva na legislação.............................................................

79

Capítulo III O ônus da prova

34. Responsabilidade objetiva e presunção de cu lp a....................................................

81

35. O pesado ônus im posto pelo brocardo actori incumbit probatio........................

82

36. Prova do prejuízo....................................................................................................................

83

37. N ecessidade de prova de dano na ação. Sem ela não se pode julgá-la pro­ cedente.........................................................................................................................................

84

38. Presunção do prejuízo. Juros m oratórios. C láusula penal. A rras peniten­ ciais. O utros casos de presunção do prejuízo.Juros M oratórios......................

87

39. Prova da culpa..........................................................................................................................

90

40. Presunções de culpa. Verdadeiro sentido do princípio actori incumbit probatio.......................................................................................................................................

91

41. Ficção e presunção. A lição de A rnoldo M edeiros..................................................

91

Capítulo IV A solução unitária de Mar ton 42. A violação da obrigação preexistente é a fonte da responsabilidade.............

95

43. A responsabilidade por fato de outrem e sua conciliação com o sistem a....

96

44. Efeitos da responsabilidade. A ideia da p revenção................................................

97

45. Fundam entos da responsabilidade civil: a) princípio da prevenção; b) pri­ ncípios acessórios de caráter económ ico-político....................................................

97

46. Crítica da doutrina de M arton. O princípio da restituição................................

100

47. A influência da equidade....................................................................................................

102

48. Sentido da conservação da ideia da culpa..................................................................

104

49. Convergência das diversas correntes ao fim com um de assegurar justiça ao prejudicado..........................................................................................................................

104

Título II Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual

Seção Prelim inar Princípios comuns a todos os casos de responsabilidade civil

50. Princípios Com uns a todos os Casos de Responsabilidade C iv il...................

107

C apítulo I O dolo e a culpa

51. Noção de culpa. Erro e culpa, a lição de A ndré Tunc...........................................

109

52. Distinção entre dolo e culpa..............................................................................................

111

53. A concepção de C hironi.......................................................................................................

111

54. Definição de culpa: Savatier, Lalou, os autores franceses, italianos e alem ães........................................................................................................................................

112

55. A crítica de M azeaud et M azeaud às definições conhecidas..............................

114

56. Definições im precisas: ilicicitude e im putabilidade...............................................

115

57. A concepção de M azeaud et M azeau d ..........................................................................

118

58. Crítica do seu sistem a. A opinião de A lvino L im a..................................................

119

59. Culpa genérica: dolo e culpa p ropriam ente dita, im prudência, im pericia.

121

60. A culpa n o sistem a do C ódigo Civil brasileiro.........................................................

124

Capítulo II A unidade de culpa 61. O C ód igo C ivil b rasileiro ad oto u a d istin ção en tre cu lp a co n tra tu a l e culpa extracon tratu al..............................................................................................................

127

62. Responsabilidade e garantia. A responsabilidade deve ser estudada em um plano único. M azeaud, Pontes de M iranda, C arvalho Santos...........................

128

63. Crítica aos critérios de distinção propostos...............................................................

129

64. O ensinam ento de A m ézaga e sua utilidade..............................................................

132

65. Contra a tirania do electa una via, non datur recursus ad alteram........................

135

Capítulo III Os limites da responsabilidade contratual

Seção I A questão da existência do contrato 66. A questão da existência do co n tra to ..............................................................................

137

67. D everes existentes lateralm ente ao con trato..............................................................

137

68. A prom essa de casam en to..................................................................................................

142

69. A ruptura do concubinato..................................................................................................

147

70. A concessão de salários à concubina..............................................................................

151

71. Responsabilidade em face do contrato nulo. A proteção da boa-fé................

151

Seção II As prestações gratuitas 72. As dificuldades suscitadas pelas prestações g ra tu ita s.........................................

152

73. Os transportes gratuitos. Outros serviços gratuitos...............................................

153

74. Transportes im propriam ente considerados gratuitos...........................................

154

75. O verdadeiro transporte gratuito....................................................................................

155

76. A solução contratual. Os argum entos de Savatier...................................................

155

77. A opinião de Peretti-G riva..................................................................................................

158

78. O sistem a de L alo u .................................................................................................................

158

79. As opiniões de M azeaud, Jean Liebm ann, Jean Loup, H enoch D. A g u ia r..

159

80. A rrosa e a tese extraco n tratu al.........................................................................................

161

81. Juan M. Semon e seu estudo sobre a m atéria............................................................

162

82. N ossa posição sobre o transporte gratu ito.................................................................

164

83. O transporte gratuito nas doutrinas portuguesa e brasileira: Luís Veiga e Gonçalves de O liveira...........................................................................................................

167

Seção III ¿4s declarações unilaterais de vontade 84. Intimidade da m atéria com a dos atos ilícitos..........................................................

170

85. A prom essa de recom pensa...............................................................................................

171

86. Licitação pública.....................................................................................................................

173

87. Concursos de beleza..............................................................................................................

176

Seção IV A figura do terceiro na responsabilidade contratual 88. Posição do terceiro beneficiário da estipulação. A ção do herdeiro ou suces­ sor do contratante...................................................................................................................

177

89. Inexecução do contrato por falta de terceiro..............................................................

179

Seção V Obrigações essenciais e obrigações acessórias ao contrato. Cláusulas de segurança ou incolumidade 90. Dever de segurança com relação às pessoas e coisas.............................................

180

91. A responsabilidade contratual é problema de interpretação da v o n tad e....

181

92. Influências que concorrem na caracterização da responsabilidade co n tratu al..................................................................................................................................

182

Seção VI Cumulação ou opção das ações de responsabilidade 93. Pluralidade de ações oferecidas ao sujeito ativo da rep aração.........................

183

94. A possibilidade de uma ação mista. A solução só pode ser dada com base em um a das ações...................................................................................................................

184

95. Ação delitual contra o contratante..................................................................................

184

96. Responsabilidade delitual e obrigações contratuais..............................................

185

97. Acidente do trabalho. Evolução para o cam po da previdência social...........

187

Seção VII Responsabilidade contratual por fato de outrem Sum ário 98. A interven ção do terceiro no co n trato . O en sin am en to de M azeau d et M a z e a u d .....................................................................................................................................

193

99. A lição de Josserand. Teorias p ropostas para caracterizar a figura jurídica da responsabilidade contratual por fato de terceiro. A doutrina de Soareg.

196

Título III Responsabilidade contratual

Capítulo I Os transportes 100. O transporte com o determ inante da civilização....................................................

201

101. Objeto do contrato de transporte. N atureza de sua responsabilidade no contrato de pessoas..............................................................................................................

202

102. O transporte terrestre no direito brasileiro. A obrigação de incolum idade no transporte. Sua extensão. Conseqüências quanto à p ro v a...................

205

103. O transporte de m ercadorias..........................................................................................

215

104. Responsabilidade contratual das em presas ferroviárias...................................

220

105. A aplicação do Decreto n. 2.681/12 às em presas de transporte urbano.....

228

106. O transporte aéreo. Responsabilidade civil do tran sp ortad o r aéreo no Código Brasileiro de A eronáutica. C onvenções internacionais.....................

231

107. O transporte m arítim o.......................................................................................................

257

108. O transporte de n o tícias....................................................................................................

258

Capítulo II A atividade profissional

Seção I Responsabilidade dos médicos e dos profissionais auxiliares da medicina

109. C aráter contratual da responsabilidade m édica....................................................

277

110. Objeto do contrato m édico e natureza de sua obrigação. A prova da culpa. 281 111. O brigações im plícitas no contrato m é d ico .............................................................. 112. O Tratam ento e as causas de responsabilidade. A im perícia, a negligên­ cia e a im prudência. Espécies de erros. C ondutas sim plesm ente inapro-

285

priadas. A iatrogenia...........................................................................................................

296

113. Responsabilidade p or fato de terceiro. A s relações do m édico com equi­ pes, hospitais e casas de saúde. Os danos decorrentes de instrum entos e A saúde pública....................

301

114. A responsabilidade do anestesista...............................................................................

314

115. A responsabilidade civil na cirurgia estética..........................................................

315

116. Casuística da responsabilidade m é d ica ....................................................................

323

117. Responsabilidade dos farm acêuticos, enferm eiros e p a rte ira s.....................

328

118. Responsabilidade do ciru rgião-d en tista...................................................................

332

119. Responsabilidade do m édico-veterinário.................................................................

340

equipam entos m édicos. Os planos de saúde.

Seção II Responsabilidade dos advogados, mandatários e tabeliães Sumário 120. A responsabilidade do advogado é contratual. Critério de sua apreciação pelos tribunais. A prova da culpa.................................................................................

347

121. Responsabilidade do advogad o no período anterior ao co n trato ...............

351

122. A lcance do m andato advocatício. Q uando há dever de prestar con tas.......

351

123. Responsabilidade pelos conselhos dados aos clientes. Pareceres. Entendi­ m ento do STF..........................................................................................................................

353

124. Responsabilidade p or erro de fato. O erro de direito e as condições em que acarreta responsabilidade.......................................................................................

359

125. Erros m ais freqüentes.........................................................................................................

360

126. A questão da desobediência às instruções do cliente...........................................

362

127. Responsabilidade perante terceiros............................................................................

364

128. As sociedades de ad v o g ad o s..........................................................................................

364

129. O seguro de responsabilidade civil.............................................................................

366

130. O segredo profissional.......................................................................................................

368

131. Responsabilidade do m andatário em geral.............................................................

369

132. Responsabilidade dos notários, tabeliães e oficiais de registro. Em que se distingue da responsabilidade profissional em g eral............................................

373

Seção III Responsabilidade dos empreiteiros e construtores

Sumário 133. R esponsabilidade do em preiteiro. N atu reza de su a respon sab ilid ad e e da obrigação que assume. Responsabilidade do dono d a obra em relação ao em preiteiro........................................................................................................................

385

134. Responsabilidade de caráter excepcional: art. 618 do Código Civil. A opi­ nião de Carvalho Santos, C osta Sena e Alfredo B em a rd e s..............................

390

135. Responsabilidade extracon tratu al................................................................................

392

136. Responsabilidade pela execu ção em terreno im p róp rio....................................

397

137. A responsabilidade do construtor relativam ente ao don o da obra. O pi­ nião do Professor Fernand o Pessoa Jorge sobre o assu n to..............................

398

138. A divisão da responsabilidade do em preiteiro.......................................................

398

139. A responsabilidade do em preiteiro ou construtor no C D C .............................

399

C apítulo III Responsabilidade derivada de contratos diversos 140. A locação e a responsabilidade dela d eco rren te....................................................

403

141. Responsabilidade derivada do dep ósito...................................................................

406

142. Responsabilidade dos hoteleiros...................................................................................

411

143. Responsabilidade dos hospitais.....................................................................................

412

144. Responsabilidade civil dos bancos...............................................................................

414

145. Responsabilidade das em presas de eletricidade, telefones e t c ......................

426

146. Responsabilidade oriunda d a com pra e venda civil............................................

427

147. Responsabilidade das em presas de diversões e nas atividades esportivas

428

148. Responsabilidade nos negócios decorrentes da Bolsa de Valores e por lan­ çam entos de títulos no m ercado paralelo.................................................................

434

149. Responsabilidade dos adm inistradores de sociedades com erciais..............

441

150. R esponsabilidade no C ódigo de Defesa do C onsum idor. A ntecedentes. M om ento atual.......................................................................................................................

447

PARTE II

Título IV Responsabilidade extracontratual

C apítulo I Responsabilidade por fato próprio 151. A responsabilidade extraco n tratu al no direito brasileiro. Elem entos do ato ilícito. Seu conceito......................................................................................................

477

152. A culpa com o elem ento g erad or da responsabilidade.......................................

479

153. Im putabilidade, capacidade e responsabilidade...................................................

480

154. Responsabilidade da pessoa privada de discernim ento. Fundam ento da responsabilidade do am en tal..........................................................................................

481

155. Classificação dos atos ilícitos. A ção e om issão. Responsabilidade por fa­ to próprio. As classificações de Planiol, Lalou e Josseran d ..............................

484

156. Atos contra a honestidade. Ofensa à honra da mulher. A dultério. Infra­ ções aos deveres conjugais. Injúria e calúnia. M odalidade da ofensa ao sentimento de h on ra.............................................................................................................

486

Capítulo II Responsabilidade pelo fato da coisa

Sumário 157. Im propriedade da classificação....................................................................................

491

158. A teoria da coisa perigosa: autom óveis e outros veículos. A doutrina da guarda da coisa. O art. 927 do Código Civil de 2 0 0 2 ........................................

492

159. A questão não pode p erm an ecer sujeita ao critério da cu lp a.........................

497

160. Aplicação da doutrina francesa ao direito brasileiro. Saleilles e Josserand: sua influência na con stru ção da teoria sobre a responsabilidade deriva­ da do fato das c o is a s .........................................................................................................

498

161. A presunção que se deve aceitar n ão é a de culpa, nem a de responsabi­ lidade: é de cau salid ad e...................................................................................................

500

162. R esp onsab ilidade d as e strad as de ferro p o r d an os aos p ro p rietário s m arginais................................................................................................................................. 163. Danos a terceiros. A cidentes nas passagens de nível........................................ 164. O Código de Trânsito Brasileiro e a responsabilidade pelo fato da coisa.

508 509 511

165. O problema dos acidentes de circu lação...................................................................

520

166. D anos causados a terceiros pelas em presas de transporte urb an o...............

522

167. Responsabilidade civil no direito aéreo .....................................................................

523

168. A eletricidade com o fonte de perigo. Responsabilidade civil de exp lo ra­ dor de energia elétrica.........................................................................................................

526

169. O dano produzido por instalações dom ésticas. E levadores............................

529

170. A responsabiliade derivada da obrigação de g uarda independe do vício da coisa. Q ueda de árvores. O utros danos sujeitos a esse regim e.................

531

171. Podem os edifícios ser subm etidos à responsabilidade fundada na obri­ gação de g u a r d a ? .................................................................................................................

533

172. Responsabilidade de effusis et dejectis..........................................................................

538

Capítulo III Responsabilidade por fato de animais 173. O art. 936 do C ódigo Civil. Sua vantagem sobre o Código francês..............

563

174. A responsabilidade do proprietário em face da detenção do anim al por terceiro, contra a sua von tade.........................................................................................

565

175. A responsabilidade em caso de detenção p or incum bência do p roprietá­ rio.................................................................................................................................................

566

176. D ano produzido p or animal ou anim ais em g ru p o.............................................

567

177. O dano produzido em propriedade alheia pelo animal em trânsito e a responsabilidade do proprietário.................................................................................

567

177A. O dano produzido por anim ais em rodovia sob concessão.........................

568

Capítulo IV Os atos abusivos 178. Os arts. 939 a 942 do C ódigo Civil de 2002. Crítica d a jurisprudência........

571

179. O protesto de títulos já p ago s.........................................................................................

576

180. O problem a do abuso de direito. Explicação do "nem ine laedit qui jure suo u titur". A conciliação da tendência socialista com a tendência indivi­ dualista......................................................................................................................................

577

181. Interpretação do art. 188, n 2 1, do C ódigo Civil de 2002. Pontes de M ira­ nda, G oldschm idt, Savatier, L. C am pion, Batista M artin s................................

580

182. A plicações práticas do abuso de direito....................................................................

590

1 8 3 .0 problem a da responsabilidade e as relações de vizinhança. A R espon­ sabilidade civil p or dano ambiental. Histórico. Legislação geral e especí fica. Responsabilidade civil propriam ente dita. Responsabilidade ad m i­ nistrativa. Responsabilidade penal. Sujeito ativos e passivos da responsa­ bilidade civil ambiental. A solidariedade passiva, jurisp ru dên cia................

602

Capítulo V Responsabilidade por fato de outrem

Sumário 184. Im propriedade da expressão responsabilidade p or fato de o u trem ..........

629

185. Responsabilidade dos pais. Responsabilidade do chefe de fam ília............

631

186. Responsabilidade dos tutores e cu rad o res.............................................................

642

187. Responsabilidade do em pregador ou com itente.................................................

644

188. As construções que explicam a responsabilidade do em p reg ad or pelo ato do prep osto......................................................................................................................

645

189. Responsabilidade dos professores e m estres de ofício.......................................

648

190. Responsabilidade das pessoas que houverem participado dos produtos do crime. C aráter da ação a que se refere o art. 932, ns V, do Código

Ci­

vil de 2 00 2

650

191. As em presas que exercem exp loração industrial e sua assim ilação aos em pregadores e com itentes.............................................................................................

650

Título V Responsabilidade civil do Estado

Capítulo I Teorias. Críticas. Doutrina do risco administrativo Sumário 192. A responsabilidade civil do Estado é m atéria de direito adm inistrativo. Rejeição universal da irresponsabilidade do Estado. Os sistemas inglês e norte-am ericano.................................................................................................................

653

193. Crítica das doutrinas de irresponsabilidade do Estado: Paul D uez, A m a­ ro Cavalcanti, Guim arães M enegaie...........................................................................

656

194. O art. 15 do Código Civil de 1916, atual art. 43 do C ódigo Civil de 2002, e sua interpretação. Artificiosidade da solução subjetiva. Falta pessoal e falta do serviço: delim itação do cam po da responsabilidade pessoal do agente. Definição de "a g e n te ".........................................................................................

657

195. A questão da solidariedade. O direito de regresso d o E stad o e o qu an ­ tum sobre que se e xerce........................................................................ ...........................

663

196. Evolução da ideia da responsabilidade do Estado. A lição de D uez.........

663

197. A d ou trin a da culpa ad m in istrativa. A teoria do risco ad m in istrativo . Votos dos M inistros O rozim bo N onato e Filadelfo A z e v e d o .........................

666

198. Justificação prática da doutrina do risco adm inistrativo...................................

677

199. O criterio da jurisprudencia em relação à responsabilidade civil do E s­ tado. Os atos de guerra. Os m ovim entos revolucionários do Brasil e a orientação dos tribunais quanto aos danos acarretad os. O problem a das requisições.......................................................................................................................

679

200. Fórm ula doutrinária a que tende a responsabilidade civil do E stad o......

698

C apítulo II Responsabilidade do Estado na Ordem Internacional 201. Estado responde na ordem internacional com o um a unidade. A interve­ nção diplom ática com o resultante do esgotam ento dos recursos internos..

703

202. N atureza jurídica da ação de responsabilidade do Estado no plano inter­ nacional....................................................................................................................................

708

203. O abuso dos fortes, na pretensa insuficiencia da com p en sação p or expropriações. A questão das concessões. A lição de Barbosa Lim a Sobri­ n h o .............................................................................................................................................

711

Capítulo III Exceções ao princípio da responsabilidade do Estado e situações em que elas não se aplicam 204. A tos pelos quais o Estado não responde, em principio. A tos p arlam en ­ tares. A tos legislativos. D ecretos-leis. D outrinas de H au riou e Scelle. A crítica de Duez. A lição de A m aro Cavalcanti. A tos adm inistrativos. A tos de g o v em o ....................................................................................................................

713

205. Irresponsabilidade do Estado pelos atos jurisdicionais. O erro judiciário. E xten são da rep aração concedida a esse título. Sua justificação d ou tri­ nária e prática. O art. 630 do Código de Processo Penal..................................

718

206. A respon sab ilid ade do E stad o por atos judiciais e alguns de seus estu ­ diosos ...........................................................................................................................................

741

207. A demissão ilegal. C aráter indenizatório das vantagens pecuniárias da reintegração..............................................................................................................................

746

208. Responsabilidade na repressão do abuso do poder econ ôm ico....................

748

209. R esponsabilidade civil p or d an os cau sad o s pelo terrorism o. A u tores desconhecidos ou insolváveis........................................................................................

752

Capítulo IV Responsabilidade civil do Estado e governo de fato

210. R esponsabilidade interna e extern a do governo de fato. Responsabili­ dade civil dos funcionários do governo de fato.........................................................

763

Título VI Os meios de defesa. Cláusulas e causas de irresponsabilidade

211. Cláusulas de irresponsabilidade. Seu desprestígio em face do nosso direito........................................................................................................................................

765

212. O estado de necessidade. A rts. 2 3 , 1 e 24 do C ódigo Penal. A rt. 65 do Código de Processo Penal. C aracterização jurídica do estado de neces­ sidade.........................................................................................................................................

777

213. O fato de terceiro com o causa de irresponsabilidade.......................................

781

214. Caso fortuito ou de força m aior...................................................................................

789

215. Na identificação do caso fortuito ou de força m aior deve-se atentar p a ­ ra os efeitos e não p ara o fato necessário. Tendência a sua restrição. In­ fluência da culpa na sua n eg ação ................................................................................

794

216. O vício próprio da co isa...................................................................................................

797

217. A cham ada culpa exclusiva da vítim a. Verdadeiro sentido da expressão.

797

218. A prescrição. A ação de rep aração do dano é pessoal. A confusão his­ tórica a respeito da natureza da ação de rep aração e o direito a alim e­ ntos e seu efeito sobre a prescrição. P razos especiais de p rescrição .........

803

T ítu lo VII O dano e sua liquidação

Capítulo I Dano patrimonial e dano moral

219. O dano em sentido jurídico. Definições: Paoli, C am elutti, Fisch er...........

819

220. O dano patrimonial. Dano em ergente e lucro cessante. A questão da ascenção profissional como dano ressardvel. Reparação natural e indenização p ecu n iária................................................................................................................................

822

221. Distinção entre dano patrim onial e dano m oral. A pena e a indenização.

839

222. O bjeções à reparabilidade do dano m oral. A lição de M in ozzi...................

846

223. C onfusão entre o dano m oral e o dano patrim onial de origem afetiva. O abalo de créd ito ...............................................................................................................

850

224. O dano m oral e as razões de sua reparabilidade. A doutrina e a legisla­ ção estran g eiras....................................................................................................................

859

225. O dano m oral em face do C ódigo Civil brasileiro de 2 0 0 2 ............................

861

226. A indenização por m orte de m en or............................................................................

864

C apítulo II A liquidação do dano no direito brasileiro

Sumário 227. Direito anterior ao C ódigo de Processo Civil de 1939. R egu lação da m atéria após o C PC de 1973..........................................................................................

867

228. O art. 949 d o C ód igo Civil de 2002. C om o se liq u idam os lucros ce s­ santes. D espesas de tratam en to ...................................................................................

869

229. Indenização p or esbulho ou u su rp ação do alheio..............................................

873

230. O d an o afetivo no art. 952, p arágrafo único do C ód igo Civil de 2 0 0 2 ....

873

231. R ep aração do dano cau sad o p or injúria ou calú n ia..........................................

874

232. A liqu idação de obrigação ind eterm in ad a.............................................................

874

233. Os hon orários de ad vo gad o co m p reen d em -se na re p a ra çã o .......................

877

234. O princípio da lim itação da responsabilidade.....................................................

877

235. Liquidação de con d en ação expressa em m oeda estran g eira ........................

878

236. R evisão das indenizações. Inviabilidade de com p en sação da indeniza­ ção com segu ro ou pensão de que a vítim a seja b e n e ficiá ria ......................

887

Título VIII Sujeitos e efeitos da responsabilidade civil

C apítulo I Sujeitos ativo e passivo da responsabilidade civil 237. A ação de rep aração do dano é o u to rgad a jure proprio. N ão tem ca rá ­ ter h ered itário, nem alim en tar. O p rob lem a do sujeito ativo da re p a ­ ração ...........................................................................................................................................

891

238. A re p a ra çã o n ão p o d e se r efetu ad a à revelia ou co n tra a v o n tad e do lesad o........................................................................................................................................

894

239. Solidariedade ativa. R epercu ssões do dano e a ação de re p a ra çã o ..........

895

240. A ação de re p a ra çã o está em fu n ção do d an o injusto. A com p an h eira e o direito à rep aração do d an o ..................................................................................

896

241. Outros titulares da ação de ind en ização.................................................................

904

242. Transm issibilidade d a ação de rep aração ...............................................................

906

243. Sujeito passivo da obrigação de indenizar. Solidariedade passiva. Trans­ missibilidade d a obrigação de indenizar.................................................................

907

244. Direito de reg resso ..............................................................................................................

915

245. Exclusão das obrigações provenientes de atos ilícios da com u n h ão ........

917

Capítulo II Efeito do julgamento criminal sobre a ação cível

Sumário 246. O problem a da influência recíp ro ca das jurisdições. O piniões de M en­ des Pim entel, C arvalh o Santos, V icente de A zeved o e C âm ara L e a l.......

919

247. A expressão coisa ju lg ad a não corresp on d e à realid ad e, na q u estão.......

928

248. A lei brasileira e seu m odo de reg u lar o assunto. Justificativas e dirim entes. Os arts. 65, 66 e 67 do C ód igo de Processo Penal. Q uad ro sis­ tem ático dos casos de influência do juízo penal sobre o cível.....................

929

C a p ítu lo III Garantias de indenização

249. H ip oteca legal em favor do o fen d id o .......................................................................

947

250. Seguro de responsabilidade civil. A dm issibilidade do seguro em face do art. 1.436 do Código Civil de 1916, atual art. 762 do C ódigo Civil de 2 0 0 2 ..............................................................................................................................................

948

251. Segurador e defesa do segurad o. A questão do ressarcim en to .....................

956

252. O problem a d a ação direta da vítim a contra o seg u rad o r...............................

957

índice alfab éd co-rem issivo ......................................................................................................

969

Bibliografia .....................................................................................................................................

989

T ítu lo P r e l im in a r

RESPONSABILIDADE Sumario: 1. R

e s p o n s a b il id a d e : s e u c o n t e ú d o

,

n o ç ã o e d e f in iç ã o .

2. M

e c a n is m o da r e s p o n s a b il id a d e .

3. R e s p o n s a b ilid a d e j u r íd ic a e r e s p o n s a b ilid a d e m o r a l. 4 . R e s p o n s a b ilid a d e

pen al: im

p u ta b ilid a d e ,

CULPABILIDADE, CAPACIDADE. 5 . RESPONSABILIDADE PENAL, RESPONSABILIDADE C IV Ii: DISTINÇÃO, PONTOS DE CONTATO. 6 . DESENVOLVIMENTO DA RESPONSABIUDADE CIVIL.

1. Responsabilidade: seu conteúdo, noção e definição. Toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabi­ lidade. Isso talvez dificulte o problema de fixar o seu conceito, que varia tanto como os aspectos que pode abranger, conforme as teorias filosófico-jurídicas. Várias são, pois, as significações. Os que se fundam na doutrina do livre-arbítrio, pondera o eminente Pontes de Miranda, sustentam uma acepção que repugna à ciência. Outros se baseiam na distinção, aliás, bem vaga e imprecisa, entre psicologia normal e patológica. Resta, rigorosamente sociológica, a noção da responsabilida­ de como aspecto da realidade social. Decorre dos fatos sociais, é o fato social. Os julgamentos de responsabilidade (por exemplo: a condenação do assassino ou do ladrão, do membro da família que a desonrou) são "reflexos individuais, psicológi­ cos, do fato exterior social, objetivo, que é a relação de responsabilidade. Das relações de responsabilidade, a investigação científica chega ao conceito de personalidade. Com efeito, não se concebem nem a sanção, nem a indenização, nem a recompensa, sem o indivíduo que as deva receber, como seu ponto de aplicação, ou seja, o sujeito passivo, ou paciente"1. Nesse terreno, onde as dificuldades filosóficas ameaçam, a cada passo, desviar a pesquisa para o plano metafísico, é que coincidem as noções de responsabilidade, culpabilidade e imputabilidade, tanto que a acepção vulgar assimila uma às outras. Não é possível acatar esse juízo, mas é preciso não diminuir a estreita afinidade que apresentam aquelas ideias. Mais aproximada de uma definição de responsabilidade é a ideia de obrigação. A noção de garantia, empregada por alguns autores, em hábil expediente para fugir às dificuldades a que os conduz seu incondicional apego à 1

Pontes de Miranda, in Paulo Lacerda (Manual do Código Civil, XVI, 3a parte. Direito das Obrigações), "Das obrigações por atos ilícitos", p. 7 e segs.

José de Aguiar Dias

D a R e sp o n s a b il id a d e

noção de culpa, como substituta da responsabilidade, corresponde, ela também, à concepção de responsabilidade. A palavra contém a raiz latina spondeo, fórmula conhecida, pela qual se ligava solenemente o devedor, nos contratos verbais do direito romano. Dizer que respon­ sável é aquele que responde e, portanto, que responsabilidade é a obrigação cabente ao responsável é, além de redundante, insuficiente, porque, por aí, a definição, per­ manecendo na própria expressão verbal que se pretende aclarar, não dá solução ao problema que se quer resolver, a começar pelos conceitos. Digamos, então, que responsável, responsabilidade, assim como, enfim, todos os vocábulos cognatos, exprimem ideia de equivalência de contraprestação, de corres­ pondência. E possível, diante disso, fixar uma noção, sem dúvida ainda imperfeita, de responsabilidade, no sentido de repercussão obrigacional (não interessa investi­ gar a repercussão inócua) da atividade do homem. Como esta varia até o infinito, é lógico concluir que são também inúmeras as espécies de responsabilidade, conforme o campo em que se apresenta o problema: na moral, nas relações jurídicas, de direito público ou privado. A responsabilidade não é fenômeno exclusivo da vida jurídica, antes se liga a todos os domínios da vida social2. Um grande jurista, que investigou apaixonadamente a questão, frisa o acerto dessa concepção, ao pôr em relevo o caráter unitário contido na noção de respon­ sabilidade. Mostra que ela não é independente de qualquer premissa, mas "termo complementar de noção prévia mais profunda, qual seja a de dever, de obrigação"3. A responsabilidade é, portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face desse dever ou obrigação. Se atua na forma indicada pelos cânones, não há vantagem, porque supérfluo, em indagar da responsabilidade daí decorrente. Sem dúvida, continua o agente responsável pelo procedimento. Mas a verificação desse fato não lhe acarreta obrigação nenhuma, isto é, nenhum dever, traduzido em sanção ou reposição, como substitutivo do dever de obrigação prévia, precisamente porque a cumpriu. O que interessa, quando se fala de responsabilidade, é aprofundar o proble­ ma na face assinalada, de violação da norma ou obrigação diante da qual se en­ contrava o agente. 2G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile, Paris, 1938, n- 97, p. 304. 3

2

G. Marton, ob. d t, na 33, p. 251.

E A g u ia r D ia s

Da Responsabilidade Civil

Marton estabelece com muita lucidez a boa solução, quando define responsabi­ lidade como a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito lhe imponha, providências essas que podem, ou não, estar previstas4.

2. Mecanismo da responsabilidade. Desta forma, representa-se exteriormente toda responsabilidade precisamente pelo esquema sugerido pela etimologia, a dizer, na feição de interrogatório. O órgão emissor ou zelador na norma indaga e o violador responde, tal como figura Marton: "por que faltastes a teu dever, praticando (ou omitindo) tal atoT', ao que responde o inter­ rogado de forma satisfatória, caso em que é desobrigado, ou de maneira irrelevante, e, então, é condenado5. Esta imagem serve para fazer compreender melhor o mecanismo da responsa­ bilidade. Cumpre, porém, não exagerar, além desse préstimo, o seu valor, porque a responsabilidade, excepcionalmente, surge também em casos em que o agente não responde, ou por impossibilidade de discernir, ou porque não é mesmo admitido a responder, justificando-se6.

3. Responsabilidade jurídica e responsabilidade moral. Como a princípio fizemos notar, os diferentes planos em que se desenvolve a ati­ vidade do homem, inclusive a simples atividade da consciência, é que caracterizam 4

G. Marton, ob. e loc. dts. Bonnecase (Précis de droit civil, t. II, 1934, na 471) define: uo termo responsabi­ lidade é, em essência, o equivalente do que chamamos a execução indireta da obrigação. Serve para traduzir a posição daquele que não executou a obrigação, que não pode ser obrigado a executá-la in natura, e que, dessa forma, vai ser condenado a perdas e danos". O único defeito da definição de Bonnecase é perfeitamente assinalado por Marton, que lhe atribui arbitrária restrição à noção de responsabilidade. Com efeito, esta não se resume ao caso de ser impossível extorquir a prestação original ao devedor, por via da execução forçada. Responsabilidade existe também no caso em que seja possível compelir o devedor a satisfazer diretamente a obrigação estipulada (Marton, ob. d t, na 84, p. 258, nota 1).

5

G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile. Paris, 1938, nfi 86, p. 263. O mesmo autor adverte que a resposta satisfatória se restringe a quatro pontos: a) ausênda de obrigação a cargo do agente; b) existênda de obrigação sem que o agente tenha cometido o ato incriminado; c) prática do ato, sem envolver violação de dever; d) prática do ato com a consequênda, em prindpio, de violação do dever; mas forrado por uma escusa legal (mesmo local, nota 1).

6

G. Marton, ob. d t, n2 86, p. 264.

3

José de Aguiar Dias

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os aspectos da responsabilidade. Todavia, uma visão de conjunto reduz a dois esses aspectos: o jurídico e o moral. Assinalar essa distinção não quer dizer que a inclusão de um fato em um dos dois títulos o exclua do âmbito do outro. Longe disso, a responsabilidade pode re­ sultar da violação, a um tempo, das normas, tanto morais, como jurídicas, isto é, o fato em que se concretiza a infração participa de caráter múltiplo, podendo ser, por exemplo, proibido pela lei moral, religiosa, de costumes ou pelo direito7. Isto põe de manifesto que não há separação estanque entre as duas disciplinas. Seria infun­ dado sustentar uma teoria do direito estranha à moral. Entretanto, é evidente que o domínio da moral é muito mais amplo que o do direito, a este escapando muitos problemas subordinados àquele, porque a finalidade da regra jurídica se esgota com manter a paz social, e esta só é atingida quando a violação se traduz em prejuízo. Daí resulta que não se cogita da responsabilidade jurídica enquanto não há um prejuízo. Ocorre, aqui, a primeira distinção entre responsabilidade jurídica e respon­ sabilidade moral. Esta se confina - explicam Henri et Léon Mazeaud - no problema do pecado. O homem se sente moralmente responsável perante Deus ou perante sua consciência, conforme seja, ou não, um crente. Puramente objetiva, portanto, é a sua noção. Para apurar se há, ou não, responsabilidade moral, cumpre indagar do estado de alma do agente: se aí se acusa a existência de pecado, de má ação, não se pode negar a responsabilidade moral. Essa é a única investigação a proceder. Não se cogi­ ta, pois, de saber se houve, ou não, prejuízo, porque um simples pensamento induz essa espécie de responsabilidade/terreno que escapa ao campo do direito, destinado a assegurar a harmonia das relações entre os indivíduos, objetivo que, logicamente, não parece atingido por esse lado8. Os mesmos autores salientam a estreita afinidade entre as duas disciplinas. A regra de direito careceria de fundamento, se não se ativesse à ordem moral. O domínio desta é, sem dúvida, mais extenso que o do direito, e isto porque desem­ baraçado de qualquer fim utilitário, o que acontece com o direito, cuja função é fa­ zer prevalecer a ordem e assegurar a liberdade individual e harmonia de relações entre os homens. Mas, restrito a essas finalidades, nem por isso o direito, como

4

7

G. Marton, ob. dt, nfi 87, p. 265. Este autor classifica de falso o critério que opõe o foro moral como puramente interno, ao foro jurídico, puramente externo. "As regras morais e religiosas ", diz ele, "não são, de maneira alguma, fenômenos exclusivamente intemos[...]". No seu conjunto, constituem "o sistema positivo de mandamentos morais e religiosos de uma dada sociedade". De sua parte, o direito não deixa de apresentar seu aspecto interno, revelado na convicção jurídica do homem (ob. d t, p. 266).

8

Henri et Léon Mazeaud, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile, délictuelle et contractuelle, 3a ed.Paris, 1938, t. I a, n2 7, p. 4.

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Da Responsabilidade GiuH

finalmente nenhuma outra matéria, pode deixar de ser expressão dos princípios definidos pela moral9. Marton atribui à presunçosa complacência dos doutrinadores, no tocante à ausência de uma análise séria dos fundamentos da responsabilidade jurídica, o estágio remoto em que se encontra a doutrina moderna da responsabilidade civil. Empreendendo a tarefa de suprir tal omissão, não se detém no domínio da respon­ sabilidade jurídica, até porque o seu sistema, em dada sociedade, não é senão a re­ produção do seu sistema de responsabilidade moral10. Encarecendo a importância da distinção, sob o ponto de vista de responsabilidade moral, entre as concepções individual e social, frisa que a primeira é mais profunda, mais fundamental, ao passo que a segunda é o produto demorado do desenvolvimento humano: numa palavra, ao lado do egoísmo, a equidade, que o ameniza. A concepção social é o corretivo da concepção individual da responsabilidade moral11. Quanto à respon­ sabilidade jurídica foi, em certo tempo, nos primórdios da civilização, a própria responsabilidade moral. E o legislador, aparecendo na sociedade primitiva para estabelecer as normas necessárias à regulamentação da vida social, que se deixa influir por outros elementos, percebendo que, além daquelas, outras considera­ ções, de caráter utilitário, deviam pesar na regulamentação. Foi, antes de qualquer outra, à ideia da prevenção que teve de atender12.

4. Responsabilidade penal: imputabilidade, culpabilidade, capacidade. Isolada da responsabilidade moral, a responsabilidade jurídica logo precipita a necessidade de nova distinção. Mazeaud et Mazeaud a estabelecem, pondo em relevo que os danos que turbam a ordem social são de natureza diversa: ora atin­ gem a coletividade, ora o indivíduo, às vezes é a ambos que alcança. A sociedade reage contra esses fatos que ameaçam a ordem estabelecida: fere o seu autor, com o propósito de impedir que volte a afetar o equilíbrio social e evitar que outros sejam levados a imitá-lo13. 9

Mazeaud et Mazeaud, ob. e loc. rits.

10 Marton, ob. dt., n2 97, p. 304. 11 Marton, ob. dt., n2 98, p. 305 e segs. 12 Marton, ob. d t, n2 105, p. 340. 13 Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., n2 8, p. 6. A paz jurídica tanto é perturbada pelo delito como pela ofensa ao patrimônio. Acontece, porém, que este se recompõe, quanto possível, pela indenização,

5

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É onde a responsabilidade jurídica se cinde em responsabilidade civil e responsabilidade penal, exigindo a acentuação dos seus caracteres diferenciais. A responsabilidade penal pressupõe uma turbação social, determinada pela vio­ lação da norma penal. Mas, como o problema, aqui, é aplicar uma pena, não pode deixar de suscitar a dupla questão da liberdade humana e da existência da lei moral. Registra-se, neste ponto, um contato entre a responsabilidade moral e a responsabili­ dade penal. Mas é preciso não exagerar a sua extensão. Como a pena tem por objetivo a defesa da sociedade, há, de um lado, domínios onde se reprime o ato, sem indagação sobre a responsabilidade moral do agente, como sucede nas contravenções e delitos de imprudência, onde se pune a falta de senso social e não a de senso moral; de outra par­ te, a lei penal faz influir, na dosagem da pena, o resultado do ato, ao lado do grau de culpabilidade, como nas medidas de segurança14. E orientação, aliás, do nosso Código Penal, onde são contempladas as medidas de segurança, sistema em que se completa a defesa da sociedade contra todos os criminosos, responsáveis, ou não, moralmente, desde que acarretem perigo para a ordem social, mediante um critério que é, mais que de punição, de recuperação e restabelecimento dos indivíduos inculpados. Sendo assim, desta vez se atenta na distinção entre a responsabilidade moral e a responsabilidade penal. Esta supõe necessariamente um dano, o que não ocorre naquela, muito mais ampla, pois o simples pensamento, digamos, o pecado, a má intenção, não pode constituir dano. Para que haja, pois, responsabilidade penal, é necessário que o pensamento exorbite do plano abstrato para o material, pelo me­ nos em começo de execução. Mas a lei não é imprudente. Cuida de estabelecer as situações em que tem lugar a responsabilidade penal. Obediente ao princípio nulla poena sine lege, o legislador compendia, nos Códigos Penais, os atos que considera prejudiciais à paz social, e que, como tal, acarretam a responsabilidade penal do agente. Importa, em homenagem àquele princípio, que o indivíduo, ao agir, con­ serve a sua liberdade, isto é, que, praticando certos atos, saiba que não será inquie­ tado, sabendo, por outro lado, que aqueles outros, infringentes da norma penal, provocarão a ação repressora. Esta ação repressora não se preocupa, porém, com o dano aos particulares (em­ bora, em concreto, ele ocorra), mas tem em vista o dano social, contra o qual reage, ferindo, isolando, acautelando, em uma palavra, restabelecendo e conservando o ao passo que a paz sodal só se restaura com a pena. Pode suceder, contudo, que baste ora uma, ora outra das satisfações, geralmente prestadas em conjunto. 14

6

Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., ns 9, p. 6.

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Da Responsabilidade Civil

equilíbrio desfeito. Nisso se mostra diferente da responsabilidade civil, que é reper­ cussão do dano privado. Distinguem-se também uma da outra, em que a vítima do dano não pode, ex próprio Marte, ferir o autor do prejuízo. Só lhe cabe pedir a repara­ ção, traduzida em uma importância em dinheiro. Na responsabilidade penal, ainda, exige-se a investigação da culpabilidade do agente ou o estabelecimento da antissociabilidade do seu procedimento. O penalista pressupõe no homem a liberdade de querer. Não discutamos, que aqui não se trata disso, os sistemas filosóficos penais: qualquer que seja o princípio capital, é indiscu­ tível que a base da imputabilidade penal consiste na faculdade da escolha da norma de vida, no sentido de que o agente adota uma, gozando, porém, da possibilidade de seguir outra, o que é certo pelo menos para a maioria dos indivíduos, e se apura pela nítida impressão do conflito de inspirações em que o homem se debate, entre as várias causas de agir postas em confronto pela consciência, no mecanismo do racio­ cínio. Para o jurista, o dissídio entre determinismo e responsabilidade não tem senti­ do: “O fenômeno mais simples na economia da vida é o movimento para escapar às variações das forças do mundo exteriorl...]. A reação contra o crime, o ato imoral, o pecado, não difere, essencialmente, das reações dos animais inferiores[...]"15. O conceito da imputabilidade, assimilado, no direito penal constituído, ao de responsabilidade, é, na essência, o de complexo de condições em face das quais se pode atribuir determinado fato a alguém, para que este responda pelas suas conseqüências. Em definição rigorosa, a responsabilidade penal consiste na declaração, pronunciada pelo órgão jurisdicional estatal, de que em determinado indivíduo se verificam, em concreto, as condições de imputabilidade pela lei genericamente requeridos, e de que ele, se é imputável, é obrigado efetivamente a sofrer as conseqüências de um fato, como seu autor. A imputabilidade, uma vez afirmada em forma de acusação concreta, é a imputação; declarada como efetiva e real, constitui a responsabilidade.

5. Responsabilidade penal, responsabilidade civil: distinção, pontos de contato A diferença entre responsabilidade civil e responsabilidade penal - dizem Mazeaud et Mazeaud - é a distinção entre direito penal e direito civil. Não se cogita, na responsabilidade civil, de verificar se o ato que causou dano ao particular amea­ ça, ou não, a ordem social. Tampouco importa que a pessoa compelida à reparação 15

Pontes de Miranda, ob. cit., n2 20, p. 52.

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de um prejuízo seja, ou não, moralmente responsável. Aquele a quem sua consciên­ cia nada reprova pode ser declarado dvilmente responsável16. Não há senão concordar com esta última consideração. A primeira, porém, pre­ cisa ser entendida em termos hábeis, para que não pareça demasiado estreita a uma perfeita noção da responsabilidade civil. Queremos dizer que, do ponto de vista da ordem social, consideramos infundada qualquer distinção a propósito da repercus­ são social ou individual do dano. O prejuízo imposto ao particular afeta o equilíbrio social17. E, a nosso ver, precisamente nesta preocupação, neste imperativo, que se deve situar o fundamento da responsabilidade civil. Não encontramos razão sufi­ ciente para concordar em que à sociedade o ato só atinge no seu aspecto de violação da norma penal, enquanto que a repercussão no patrimônio do indivíduo só a este diz respeito. Não pode ser exata a distinção, se atentarmos em que o indivíduo é parte da sociedade; que ele é cada vez mais considerado em função da coletividade; que todas as leis estabelecem a igualdade perante a lei, fórmula de mostrar que o equilíbrio é interesse capital da sociedade. Solon, segundo refere Plutarco, já dizia que a cidade realmente civilizada é aquela em que todos os cidadãos sentem a injúria feita a um só e em que todos exi­ gem sua reparação tão vivamente como aquele que a recebeu. Não é possível negar, a menos que isolando, contra a razão, o homem da so­ ciedade a que pertence, que o dano infligido a ele repercute na coletividade. Claro que não se fala no aspecto puramente patrimonial: é exatamente aqui que reside a confusão. No regime da economia privada, não seria mais que absurdo sustentar essa opinião. Trata-se da repercussão social, o que deve ser explicado como o reflexo que, fora de qualquer discussão, a coletividade experimenta quando é ferido um seu membro, seja do ponto de vista físico, seja na ordem patrimonial. E do conhecimento vulgar a comoção que experimenta a coletividade ao saber de um dano a um seu membro, tanto que cogita logo de saber quem o restituirá à situação anterior: "o direito é social" - diz o egrégio Pontes de Miranda - "o maior in­ teressado na mantença das situações é a sociedade e não o indivíduo"18. 16

Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., nfl 11, p. 9; Henri Lalou, La responsabilité civile. Paris, 1932,2a ed., n213, p. 7.

17

"O homem que causa dano a outrem", diz Pontes de Miranda, "não prejudica somente a este, mas à ordem social; a reparação para o ofendido não adapta o culpado à vida social, nem lhe corrige o defeito de adaptação. O que faz é consolar o prejudicado, com a prestação do equivalente, ou, o que é mais preciso e exato, com a expectativa jurídica da reparação" (ob. dt., ns 15, p. 42).

18

Ob. dt., n2 23, p. 57.

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Da Responsabilidade Civil

Para efeito da punição ou da reparação, isto é, para aplicar uma ou outra forma de restauração da ordem social, é que se distingue: a sociedade toma à sua conta aquilo que a atinge diretamente deixando ao particular a ação para restabelecer-se, à custa do ofensor, no statu c\uo anterior à ofensa. Deixa, não porque se não impres­ sione com ele, mas porque o Estado ainda mantém um regime político que explica a sua não-intervenção. Restabelecida a vítima na situação anterior, está desfeito o desequilíbrio experimentado. Assim, certos fatos põem em ação somente o mecanismo recuperatório da res­ ponsabilidade civil; outros movimentam tão somente o sistema repressivo ou pre­ ventivo da responsabilidade dvil e a penal, pelo fato de apresentarem, em relação a ambos os campos, incidência equivalente, conforme os diferentes critérios sob que entram em função os órgãos encarregados de fazer valer a norma respectiva. Reafirmamos, pois, que é quase o mesmo, o fundamento da responsabilidade civil e da responsabilidade penal. As condições em que surgem é que são diferentes, por­ que uma é mais exigente do que a outra, quanto ao aperfeiçoamento dos requisitos que devem coincidir para se efetivar. E não pode deixar de ser assim. Tratando-se de pena, atende-se ao princípio nulla poena sine lege19, diante do qual só exsurge a responsabilidade penal em sendo violada a norma compendiada na lei; enquanto que a responsabilidade civil emerge do simples fato do prejuízo, que viola também o equilíbrio social, mas que não exige as mesmas medidas no sentido de restabelecê-lo, mesmo porque outra é a forma de consegui-lo. A reparação civil reintegra, re­ almente, o prejudicado na situação patrimonial anterior (pelo menos tanto quanto possível, dada a falibilidade da avaliação); a sanção penal não oferece nenhuma pos­ sibilidade de recuperação ao prejudicado; sua finalidade é restituir a ordem social ao estado anterior à turbação. Tomamos apoio para esta opinião na teoria de Merkel, ao estabelecer, contra a distinção entre ilícito penal e ilícito civil, o princípio de que todo ilícito representa sempre uma voluntária rebelião contra a lei. Todo ilícito põe de relevo a discórdia entre a vontade do particular imputável e a vontade geral ob­ jetivada na lei penal. A coação civil e a ação penal inspiram-se no interesse geral, e dirigem-se, segundo ele, contra os fatos antijurídicos. A reação penal, de tom mais enérgico, tem caráter subsidiário. 19

Filadelfo Azevedo aceita essa diferenciação e lhe dá por base a prevalência dos interesses feridos, acentuada pelo principio da fixação estrita das figuras de crime, previamente fixadas. A diferença prática reside áinda no escrúpulo maior que têm os juizes no aplicar pena, ainda que leve (parecer, na Revista Forense, vol. 91, p. 367).

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A conclusão a que chegou Alimena, em crítica aos critérios propostos para distinguir o ilícito civil do penal, é a de que é impossível separar, com um corte nítido, as duas espécies, assim como não há maneira de diferenciar (o que não importa em negar a diferença), de forma satefatória, a pena da indenização. Não há como louvar suficientemente a contribuição trazida por Merkel para melhor compreensão do problema. Sua teoria estabelece a unidade de todos os ilícitos. Representam, uns e outros, "conflito entre a vontade do particular imputável e a vontade geral, objetivada nas normas jurídicas". Recordando este seguro ensinamento, o dou­ to jurista português Abel de Andrade, filho, toma-o para base de suas conclusões sobre o assunto: a) Aceita a concepção de Merkel. Todo ilícito é, realmente, uma discórdia entre a vontade do particular imputável e a vontade geral objetivada nas normas jurídicas. O ilícito é transgressão da lei civil ou da lei penal. A coação civil, ou a indenização, e a coação penal são formas de reação contra os fatos anti­ jurídicos, com o fim de eliminar o conflito, observando-se que a reação penal tem caráter subsidiário, que intervém quando se mostra insuficiente a outra forma de reação; b) É insustentável basear a crítica das diversas teorias de diferenciação do ilícito penal e do ilícito civil d e jure constituendo em argumentos deduzidos d e jure constituto; c) Nenhum critério exclusivo satisfaz, pois nenhum atende à necessi­ dade de proporcionar o traço diferencial entre os dois ilícitos, se bem que muitos justifiquem a formação histórica de certos conceitos; d) O primeiro critério é, pois, preferível, porque saízsfaz a todas as exigências, se completado por ligeiras ob­ servações. No ilícito penal e no civil há uma característica fundamental comum: a existência de um fato contrário ao direito, a saber, a violação da norma jurídica. Extrínsecamente, a diferença se acentua nas conseqüências que uma ou outra das violações acarreta: do ilícito civil deriva ou a execução forçada, ou a obrigação de indenização, ou de restituição, ou a declaração de nulidade do ato; o ilícito penal, podendo produzir todos esses resultados e conseqüências, provoca, além delas, uma conseqüência especial, a pena. Numa palavra, o ilícito civil acarreta coação patrimonial e o ilícito penal determina coação pessoal. Intrínsecamente, o ilícito civil afeta precipuamente o interesse da pessoa ou do grupo atingido pelo ato ilí­ cito; o ilícito penal é principalmente um dano de perigo geral mais intenso. E esta repercussão, sentida mais vivamente pela consciência dos interesses gerais e da vida juridicamente organizada, que determina as conseqüências da pena (Do ilícito penal, in Boletim do Instituto de Criminología, Lisboa, ano IV, vol. VI, p. 1 e segs.). Quando coincidem, a responsabilidade penal e a responsabilidade civil propor­ cionam as respectivas ações, isto é, as formas de se fazerem efetivas: uma, exercível

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Da Responsabilidade Civil

pela sociedade, outra, pela vítima; uma, tendente à punição, outra, à reparação: a ação civil aí sofre, em larga proporção, a influência da ação penal20.

6. Desenvolvimento da responsabilidade civil No prefácio à obra de Savatier21, escreveu Georges Ripert que nada lhe pare­ ce tão ilusório como a convicção de que se deve o extraordinário desenvolvimento da responsabilidade civil ao sentimento mais elevado de justiça e ao progresso do direjto. A seu ver, trata-se, agora, exatamente como antes, de estabelecer a norma de prudente limitação à atividade humana. Nada mais certo, se bem que o fato não justifique certas considerações pessimistas do professor de Paris. A razão está em que as regras fundamentais de direito são suficientes como standard. Não se pode duvidar de sua eterna juventude e do seu incorruptível valor, se se repara em que, na matéria da responsabilidade, permanece íntegro o áureo princípio do neminem laeáere. O que o tempo, o progresso, o aparecimento de novas e febris atividades industriais determinam é o ajustamento daquela regra às necessidades atuais. Nem sempre, porém, pode o legislador fazê-lo, porque as leis devem ter caráter, tanto quanto possível, estável. Basta que, em termo razoável, recomponham as normas de acordo com as exigências da prática. Aos tribunais é que compete extrair dos preceitos fundamentais o pronunciamento que seja, na ocasião, o mais apto a reali­ zar o fim do direito. O sentimento de justiça, nos que o têm, não é, por certo, mais refinado hoje do que anteriormente. Sucede, porém, que ele é, agora, muito mais solicitado a manifestar-se e a intervir, do que antigamente. E por isso que se tomou mais acentuadamente uma concepção social, em lugar de noção caracterizadamente individual. Mas, ainda que se não queira aceitar uma retração do egoísmo, em face da civilização atual, ao menos se deve reconhecer que também ele tem contribuído para a extensão da responsabilidade civil. A multiplicação dos infortúnios, derivada da vida moderna, induz, com efeito, o mais egoísta a pensar que amanhã será o seu dia de experimentar a desgraça, razão utilitária, decerto, mas nem por isso menos eficiente, para que aceite e sustente a necessidade de reparação com mais frequência do que antigamente. A medida que a civilização se desenvolve, dizem Mazeaud et Mazeaud, tomam-se mais e mais complexas as relações sociais, com interpenetração cada vez mais profundas dos círculos de atividade jurídica de cada um. E inevitável, 20

Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., 1.1, n2 11, p. 9.

21

Traité de la responsabilité civile em droit français. Paris, 1939.

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em tais condições, o atrito de interesses22, cada vez mais intenso, desdobrando-se em problemas de responsabilidade civil. Por outro lado, há, não se pode negar, no mundo atual, aguda sensibilidade para a reação contra o infortúnio. Nesse ponto, é procedente a censura de Ripert: "La où autrefois on supportait le dommage causé, en s'inclinant devant l'hasard néfaste, on tente aujurd'hui de trouver l'auteur du dommage”, realçada por Mazeaud et Mazeaud23. E claro que, por sua vez, decididos partidários da teoria da culpa, estes escritores exageram. Isso não compromete o valor da advertência, que tem seu cabimento. E também exato que, conforme a advertência dos Mazeaud, o problema da responsa­ bilidade civil acabou por invadir todos os domínios da ciência jurídica, conquistan­ do esse lugar privilegiado de "centre du droit civil, donc du droit tout entier en chaque matière, dans toutes les directions, c'est à lui l'on aboutit, dans le droit public comme dans le droit privé, dans le domaine des personnes ou de la famille comme dans celui des biens; il est de touts les instants et de toutes les situations; il devient le point nevralgique commun à toutes nos institutions''2i. Em suma, ocorreu o que Savatier chamou de hipertrofia da responsabilidade dvil25. Não se pode, porém, concordar com os eminentes tratadistas em que é peri­ gosa a tendência assim manifestada. O problema da responsabilidade é o próprio problema do direito: "Todo o direito assenta", disse com o vigor de uma fórmula pre­ cisa o eminente Juiz José Antônio Nogueira, "na ideia da ação, seguida da reação, de restabelecimento de uma harmonia quebrada"26. A importância crescente do instituto da responsabilidade civil não deve, pois, ser encarada senão como sinal do desen­ volvimento maravilhoso da indústria e das aplicações da ciência, exigindo dos juristas a adaptação das normas do direito. Com razão, disse ilustre jurista argen­ tino: “Se asiste en la hora presente a un proceso de moralización de la substancia jurídica en el campo de las relaciones privadas, a una como humanización dei derecho civil; y ello, no en virtud de descubrimientos de princípios desconocidos o inéditos, pues en el Derecho, 22 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., t. 1, n2 13, p. 11; cf. Sourdat, Traité générale de laresponsabilité ou de l’action en dommages-intérêts en dehors des contrats. Paris, 5‘ éd., prefácio. 23

Prefácio a Gardenat et Salmon-Ricd, De la responsabilité civüe (délits et quasi-délits); Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., 1.1, n2 14.

24

Josserand, apud Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., 1 .1, ns 15-2. Preocupação exageradamente prag­ mática é essa. As questões de fronteira, no campo do direito, são antipáticas e injustificadas, quando excedem as exigências indispensáveis à caracterização da matéria regulada, pois os vários ramos do direito se avizinham extraordinariamente, revelando sua fundamental unida­ de, como parte do mesmo sistema (Eugênio Florian, com remissão a Mariano D'Amello, in La Giustizia Penale, ano 44, fac. 6, col. 393).

25 René Savatier, Traité de la responsabilité civile en droit français, Paris, 1939,1.1, n22, p. 26 As novas diretrizes do Direito, in Revista de Direito, vol. 94, p. 15 e segs.

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1.

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Responsabilidade Civil

más que en otro aspecto de la cultura, son difíciles los verdaderos hallazgos; sino en virtud de un afinamiento y de una educación progresivos de la conciencia jurídica contemporánea influida por la obra de juristas, legisladores y magistrados en quienes el humo spiritualis se encarna intermitentemente"77. Reconhecem Mazeaud et Mazeaud, sem embargo da limitação que opõem à crescente absorção das regras jurídicas pelo princípio da responsabilidade, que ele está, nesta hora, em primeiro plano. Exatamente por isso, nele domina a incerteza. O legislador, na impossibilidade de prever tão espantoso desenvolvimento, limitou-se a estabelecer algumas regras gerais que, apesar de tudo, merecem admiração, por­ que é com elas que se resolvem as questões mais modernas28. O fenômeno é de todas as legislações e tem sido mesmo causa de quase deses­ pero para muitos autores apressados que aí veem tipos de decadência do direito, quando o que há é tão somente desequilíbrio entre a sua essência - que permanece íntegra, como indica precisamente essa instabilidade legislativa nos tempos moder­ nos, na ânsia de afeiçoar a lei ao direito - e a sua técnica, que por força se há de subordinar às contingências que pendem, no tempo, sobre o processo científico. E por isso que Gastón Morin advoga a inserção, na lei, não somente de conceitos reno­ vados, mas de normas suficientemente maleáveis para permitir ao Poder Judiciário larga autonomia para agir, obedecendo a essa moldura, mas individualizando as dis­ posições legais, conforme a necessidade do momento29. Este fato revela mais uma vez a pobreza de técnica em face da pujança da evo­ lução da sociedade, exigindo a readaptação das normas jurídicas às situações novas. Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa. Á obrigação civil decorrente de responsabilidade civil, se, sacrificados à tirania das palavras, qui­ sermos guardar a significação rigorosa do termo, só pode ser entendida como conse­ qüência da conjugação destes elementos: imputabilidade mais capacidade. E disso que se aproveitam os partidários mais ardorosos da doutrina da culpa, esquecidos de que, na verdade, já não é de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja conveniência em conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema trans­ bordou desses limites. Trata-se, com efeito, de reparação do dano. 27

Raul H. Orgaz, Civilización, Cultura, Derecho, in Boletim de la Facultad de Derécho y Ciências Sociales, Córdoba, março-junho de 1940, p. 12 e segs.

28 Mazeaud et Mazeaud, ob. d t, 1.1, n“ 16, p. 28. 29 Gaston Morin, La loi et le contrat - La décadence de leur souveraineté, Paris, 1927, p. 44. O legislador do Código Civil de 2002, sensível ao tema, não o deixou sem solução, como se pode ver do art. 927, pa­ rágrafo único, em que faculta ao juiz a identificação das situações de risco que acarretam para quem as cria uma obrigação de reparar em bases objetivas.

13

C a p ít u l o

II

TEORIAS. CLASSIFICAÇÃO. CRÍTICA Sumário: 14. A RESPONSABILIDADE CIVIL É PURA RESULTANTE DO EQUILÍBRIO VIOLADO PELO DAÑO. 15. TEORIA DA CULPA. A FÓRMULA DE VoN IHERING. 16. A CULPA NO DIREITO ROMANO. 17. A TEORIA DE DOMAT E POTHIER. A ELABORAÇÃO DO CÓDIGO ClV IL FRANCÉS. D lR EITO ITALIANO. 18. D lREITO ALEMÃO. 19. D i r e i t o b r a s i l e i r o . A c o n c l u s ã o d e A l v i n o L im a . 20. C r í t i c a d a t e o r í a d a c u l p a . A s s i m i l a ç ã o d a NOÇÃO DE RESPONSABILIDADE PELA DE CULPABILIDADE. 21. A DOUTRINA DO RISCO. 22. PRECURSORES DA d o u t r i n a d o r i s c o : T h o m a s i u s e H e i n e c c i u s . B i n d i n g . V e n e z i a n . 23. T e n t a t i v a p a r a s i s t e m a t i z a r A DOUTRINA DO RISCO NA LITERATURA GERMÁNICA: MATAJA. O s M ERKEL. U nG ER. PRINCÍPIO DO INTERESSE ATIVO, DA PREVENÇÃO E DA EQUIDADE OU INTERESSE PREPONDERANTE. A INSPIRAÇÃO DE BENTHAM. 2 4 .

OS FRANCESES COMO LANÇADORES DA IDEIA DO RISCO. A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO PENAL E SUAS VERDADEIRAS PROPORÇÕES. s u b s id iá r ia s . o b je t iv a .

30.

28.

25. A DOUTRINA DE SALEILLES. 26. As IDEIAS DE JOSSERAND. 27. As SOLUÇÕES Os a t a q u e s d e H. e L. M a z e a u d . 29. D e f e s a d a t e o r í a

C r ít ic a d a t e o r ía d o r is c o .

R e fu t a ç ã o d a s d o u t r in a s e x tr e m is ta s . D i r e i t o s d o h o m em e d i r e it o s d a s o c ie d a d e

DEVEM ORIENTARSE PARA O EQUILIBRIO. SISTEMAS DE CONCILIAÇÃO E SUA CRÍTICA.

31. Os VERDADEIROS DEFEITOS DA TEORIA OBJETIVA. 32. Os 33. A ACEITAÇÃO DA DOUTRINA OBJETIVA NA LEGISLAÇÃO.

14. A responsabilidade civil é pura resultante do equilibrio violado pelo daño. O interesse em restabelecer o equilibrio económico-jurídico alterado pelo daño é a causa geradora da responsabilidade eivil. Seu fundamento deveria, pois, ser investigado em função daquele interesse, que sugere, antes de tudo, o princí­ pio da prevenção, sem excluir, naturalmente, outros principios, que o completam. Encontra-se, portanto, em suas raízes, a razão primeira da responsabilidade penal e da responsabilidade civil. Entretanto, as doutrinas vagam em outros terrenos, forjando concepções es­ treitas que envelhecem prematuramente, surpresas e aniquiladas ante o desenvolvi­ mento da civilização. Em todas as teorias, guiadas, inconscientemente, salvo a veri­ ficação de alguns autores, pelo referido princípio, o que se procura é escolher quem deve suportar o dano. Daí a coincidência de todas as doutrinas, mesmo as mais antagônicas, nas soluções fundamentais. A culpa e o risco não são mais que critérios possíveis, mais ou menos freqüentes. A distribuição do ônus do prejuízo atende, primordialmente, ao interesse da paz social75.

75

Mataja, Das Rechts des Schadenersatzes vom Standpunkt der Nationalökonomie, Viena, 1888, p. 19; Teisseire, Essai d'une théorie générale sur le fondement de la responsabilité civile, tese, Aix, 1901, p. 154; Pontes de Miranda, Manual, dt., n“ 20, ps. 53 e 54.

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Pontes de Miranda, com impecável sentido científico, observou, à margem de exposição sobre as diversas doutrinas da responsabilidade civil, que deve ser es­ sencialmente flexível o caráter a emprestar à sua teoria. Deve esta variar de acordo com o conceito do dano, com as necessidades gnosiológicas, econômicas e políticas. Ilustra sua opinião com expressivo depoimento sobre as mudanças radicais a que assistiu, em nossa época, em matéria de responsabilidade, vistas em três cortes tem­ porais: a) individualismo, assente no princípio do atomismo social e expresso na fórmula: autonomia de vontade + culpa extracontratual = teorias clássicas da respon­ sabilidade civil; b) transição, por influência da máquina e do aumento dos sinistros. Suas consequências-ensaios são o mutualismo, a responsabilidade por acidentes, com interpretação semiclássica (responsabilidade pela causa final, invocação ao ubi emolumentum, ibi onus) e interpretação moderna (responsabilidade sem culpa); c) so­ lução científica, expressa na responsabilidade social e individual pelo dano76.

15. Teoria da culpa. A fórmula de Von Ihering. A teoria da culpa, resumida, com alguma arrogância, por Von Ihering, na fór­ mula "sem culpa, nenhuma reparação"77, satisfez por dilatados anos à consciência jurí­ dica, e é, ainda hoje, tão influente que inspira a extrema resistência oposta por auto­ res insignes aos que ousam proclamar a sua insuficiência em face das necessidades criadas pela vida moderna, sem aludir ao defeito da concepção em si mesma.

16. A culpa no direito romano. Os Mazeaud, indagando qual teria sido, no sistema do direito romano, o lugar reservado à culpa, opinam a seguir que foi somente no fim da República, sob influ­ ência das ideias gregas, que surgiu a concepção da culpa aquiliana. Negam, pois, que a noção de culpa se contivesse na Lei Aquilia como elemento constitutivo do delito78. Com eles, estão vários autores, como Betti, Cozzi e Pezzella. Do lado oposto, sustentando a indispensabilidade da culpa como elemento caracterizador do deli­ to, e repelindo a hipótese de que seja mera interpolação o princípio famoso In lege Aquilia et levíssima culpa venit, estão Girard, Gaston May, Cuq, Ihering e outros. A

44

76

Ob. rit, n2 69, p. 143.

77

Schuldmoment, p. 50, apud Pontes de Miranda, ob. rit, nfi 66, p. 140.

78

Mazeaud et Mazeaud, n9 27, p. 38.

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discussão, posta em foco na emdita monografia de Alvino Lima, tem, como salienta este ilustre autor, mero interesse teórico79, "sem nenhuma influência sobre os problemas da responsabilidade civil". De qualquer modo, acreditamos, com os Mazeaud, que a noção da culpa sem­ pre foi precária no direito romano, onde jamais chegou a ser estabelecida como prin­ cípio geral ou fundamento da responsabilidade, o que de nenhum modo exclui a convicção de que a evolução se operou definidamente nesse sentido80. A concepção do direito justinianeu era já a da culpa subjetiva: representava progresso em relação à Lei Aquilia; mas seria arriscado identificá-la com a moderna noção do instituto, não obstante constituir a origem comum de legislações atuais fundadas na culpa.

17. A teoria de Domat e Pothier. A elaboração do Código Civil francês. Direito italiano. Sobre a noção ainda insegura recolhida do direito romano clássico, Domat e Pothier construíram a teoria inspiradora do Código Civil francês e de todas as legislações modernas. Com a codificação, toma-se possível fixar a tradição clássica num princípio geral capaz de abranger aplicações ilimitadas, afirmam os Mazeaud, recordando o dito de Bertrand de Greville: "Todo indivíduo é garante de seus atos, é uma das primeiras máximas da sociedade; segue-se daí que, se esse ato causa dano a outrem, aquele fica obrigado a repará-lo" 81. Os redatores do Código, conforme testificam os mesmos autores, ocupavam-se do problema da responsabilidade sob o duplo aspecto da inexecução dos contratos e das obrigações estabelecidas sem convenção, isto é, delitos e quase-delitos. Em relação à segunda espécie, não houve discrepância, no estabelecer a necessidade da culpa para criar a responsabilidade do autor do dano. Aliás, não poderiam pensar de outro modo. Ao homem de procedimento irrepreensível jamais se poderia, nesse sistema, impor a reparação do dano que tivesse causado. Apoiando a asserção, os ilustres autores invocam Tarrible: "le dommage, pour qu'il soit sujet à réparation, doit être l'effet d'unefaute ou d'une imprudence de la part de quelqu 'un; s'il ne peut être atiribué à cette cause, il n'est plus que Vouvrage du sort, ãont chacun doit supporter les chances;

79 Da culpa ao risco, p. 15. 80 Oh. cit., n- 28, p. 41. 81 Ob. cit., n2 43, p. 56.

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D a R e s p o n s a b il id a d e ç

mais s'ily a une faute ou imprudence, quelque légère que soit leur influence sur le dommage commis, il en est dû réparation". Queria isso dizer que, se era necessária a culpa para estabelecer a responsabilidade, qualquer culpa era suficiente. Não era preciso que o autor do dano tivesse vontade de causar o dano (culpa delitual); bastava a impru­ dência ou negligência (culpa quase-delitual). A orientação se expressa no art. 382 do Código Civil: “Tout fait quelconque de l'homme qui cause à autrui dommage oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer". Mas o ato a que se referiam os redatores do Código era o que, em confronto com aquele dispositivo, estabelece contraste entre fait e ato intencional. Prova-o o art. 1.383: "Chacun est responsable du dommage qu'il a causé non seulement par son fait, mais encore par son négligence ou par son imprudence". Mas a redação traduzia mal a intenção, dizem Mazeaud et Mazeaud; a ideia de que no artigo 1.382 se contém princípio exorbitante da simples culpa intencional é au­ torizada pela redação, suficientemente clara, para prevalecer sobre a vontade dos elaboradores do Código. Mas, então, consideram, a culpa não é, nos termos do art. 1.382, condição necessária da responsabilidade? Sem dúvida que sim. Jamais foi in­ tenção dos redatores estabelecer responsabilidade sem culpa82. Ao pôr em relevo o desacordo entre o direito positivo francês e sua teoria, G. Marton frisa o desenvolvimento da legislação e jurisprudência francesas em contras­ te com a alemã. O Código francês consegue assegurar, com seus artigos breves, precisos, prote­ ção muito mais completa que os prolixos e minuciosos dispositivos do Código ale­ mão, que ocupam o centro, entre os preceitos da doutrina tradicional e as exigências da vida econômica. Em compensação, porém, é chocante a maneira por que a massa dos doutrinadores resiste, fiel às ideias hereditárias, contra aqueles dois elementos construtivos do direito, não querendo aceitar senão a culpa como princípio natural e legítimo da responsabilidade civil. Sua ingênua convicção é de que a culpa, encarada nos artigos do Código Civil, é a mesma culpa subjetiva do direito justinianeu. Essa interpretação errônea se deve ao uso ambíguo, mais ou menos inconsciente, dos dois sentidos da palavra faute (senso objetivo: infração à maneira de agir de um tipo-modelo deter­ minado; e senso subjetivo: censura moral imputável ao agente), e nesse equívoco incorre o próprio legislador. Acresce que essa interpretação se opera por um sistema artificial de presunção, as mais das vezes de ficções de culpa. Assim, tem-se como

82

46

Ob. dt., ns 47, ps. 60 e segs.

de

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Da Responsabilidade Civil

estabelecida a culpa a cargo de pessoas ou grupo de pessoas a quem não se poderia formular a menor censura. No sentir de Marton, essa maneira de ver, alheia ao espí­ rito científico, baseada no duplo sentido de uma expressão, não se poderia explicar sem se recordar que ela se prende à tradição da antiga literatura jurídica, sob a influ­ ência da escola do direito natural, mas forçada a satisfazer as necessidades urgentes da vida cotidiana83. Ao ter de incorporar o princípio à legislação, os franceses procederam de ma­ neira curiosa: enunciaram o princípio sob a influência de seu magnífico senso práti­ co, mas, em questões de pormenor, dispuseram precisamente o oposto ao princípio que professavam. Essa construção é, ainda hoje, mantida por alguns autores franceses, ao susten­ tar que a base única, e teoricamente a única admissível, da responsabilidade civil é a culpa, e que esta se estabelece com a menor infração a padrões abstratos de procedi­ mento. De forma que a culpa se toma uma noção objetiva, que em nada se relaciona com a capacidade individual do agente. Com rigorosa exatidão, pode observar, a respeito, a aguda sensibilidade jurídi­ ca de Gaston Morin, que, atualmente, com os artifícios de que se cercou, a culpa não é senão “uma mentira jurídica destinada a camuflar a realidade"M. Marton, por seu lado, mostra como é falho o critério cuja persistência atribui à omissão do elemento ilicitude no art. 1.382 do Código. Compelida a fazê-lo presente, de uma ou outra maneira, a teoria tinha fatalmente de alcançar uma concepção objetiva da culpa. Ora, esse ponto de vista é profundamente censurável. Porque, se a ilidtude do ato é o elemen­ to objetivo da responsabilidade, a culpa, encarada no sentido ético, é o seu elemento subjetivo. "O -primeiro elemento mostra somente que o ato é contrário ao direito - indepen­ dentemente da questão de saber se se pode ou não censurar ó autor; o segundo elemento, ao contrário, se relaciona diretamente com esse caráter censurável. O primeiro elemento não é senão simples verificação do fato; o segundo, contrariamente, implica apreciação moral"S5. No direito italiano, não obstante a pujante força criadora dos juristas da penín­ sula, a culpa é encarada em moldes semelhantes. 83

Ob. cit., n2 17, p. 41.

84

Ob. dt., p. 117. Nada mais expressivo nesse sentido do que as palavras de Saleilles: “On qualifie d'imprudence ce qui est le fait ordinaire de tous ceux qui agissent: le malheur qui a fait qu'un accident est survenu devient une faute et un délit. En réalité, neuffois sur dix, ceux, qui parlent de faute, et les magistrats les premiers, savent que tout le monde en aurait fait autant... (Accidents de travail, p. 74). Tradução fiel do Evangelho: “O justo peca cem vezes ao dia."

85

Ob. d t, n2 19, p. 46.

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D a R e sp o n s a b il id a d e !

18. Direito alemão. O sistema alemão, assevera Marton, foi o que mais fiel permaneceu ao direi­ to justinianeu. Na sua concepção, ninguém é responsável senão quando procede com culpa, que emerge sempre que se violam obrigações contratuais ou legais, seja de forma consciente (dolus malus), seja deixando de empregar o zelo com que teria agido um bom pai de família (culpa in abstrato) ou a diligência que teria empregado o agente nos seus próprios negócios (culpa in concreto). Passando a focalizar os vícios dessa doutrina, salienta a sua desarmonia, traduzida no fato de apresentar uma noção subjetiva e uma delimitação objetiva da culpa. Sistema estruturado em moldes subjetivos efetiva-se, contraditoriamente, de maneira ob­ jetiva. "Do momento em que não se procura investigar a culpa íntima, que é a única verdadeira, não se pode mais encarar essa noção como elemento constitutivo da respon­ sabilidade objetiva dissimulada" 86. Foi sob essa impressão que na doutrina alemã se inaugurou a tendência sub­ jetiva, por analogia com o direito penal, reivindicando a aplicação individual da culpa. Ora, se o sistema da culpa objetiva já encontra dificuldades insuperáveis, a sua apreciação conduziria incontestavelmente à supressão da responsabilidade87. Contraria também a aplicação do sistema alemão a dificuldade quanto à pro­ va da culpa. Para remediá-la, tentou-se: a) Inverter o onus probandi. A parte o fato de sua incongruência, este recurso só aligeira o encargo do autor, que continua, principalmente se o dano não foi co­ metido em sua presença, na impossibilidade de verificar as provas apresentadas pelo réu, no sentido de desobrigar-se. b) Objetivar a noção da culpa. Seu efeito é fixar um padrão de procedimento, a ser exigido de todos, o que, certamente, sana as dificuldades que se oporiam à verificação das faculdades individuais em cada caso concreto. Em compensação, importa, nem mais nem menos, no descrédito do próprio sistema, e é, com efeito, a prova de sua insuficiência88. O sistema tradicional da culpa é incapaz, por outro lado, de resolver o pro­ blema da responsabilidade por fato de outrem. As soluções que nesse sentido se

48

86

Ob. d t ,n s 2,p. 13.

87

Ob. e loc. dts.

88

Ob. cit, nfl 5, p. 14.

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apresentam são insuficientes89. Marton chega, enfim, à conclusão de que não pode ser reputada como princípio diretor uma regra sujeita a tantas exceções: "O sistema alemão não pode ser considerado como suficiente, nem teórica, nem juridicamente" 90.

19. Direito brasileiro. A conclusão de Alvino Lima. O nosso direito, em tese, adota o princípio da culpa como fundamento da res­ ponsabilidade91. Entretanto, não se filiou, decisivamente, nem a um nem a outro dos sistemas já apreciados. Aliás, o princípio influi nessa instabilidade, porque a sua in­ suficiência está, a cada passo, em qualquer dos sistemas, impondo temperamentos, exceções, derivações, que o inutilizam como regra fundamental. Alvino Lima, no magnífico estudo que faz sobre o assunto, apresenta, a respei­ to, a conclusão de que o legislador brasileiro, consagrando a teoria da culpa, nem por isso deixou de abrir exceção ao princípio, admitindo casos de responsabilidade sem culpa, muito embora não tivesse acompanhado, com mais amplitude, a orienta­ ção moderna de outras legislações, como seria de desejar"92. Aceitando, em termos, a opinião, é conveniente ponderar que, naquilo em que não seguiu a orientação moderna, o nosso legislador ficou extremamente aquém das conquistas do direito da responsabilidade.

20. Crítica da teoria da culpa. Assimilação da noção de responsabilidade pela da culpa. Em resumo, e com relação ao problema da culpa em geral, fica positivada a necessidade de uma revisão no conceito da responsabilidade. A campanha inau­ gurada por Saleilles corresponde a esse imperativo, no propósito de estabelecer uma teoria da responsabilidade que se pudesse classificar de científica e também de sincera, em contraposição à teoria da culpa, em que se aferrenham, por mero misoneísmo, homens do mais alevantado valor das letras jurídicas. Damos nosso apoio às conclusões de Alvino Lima: "Foram os próprios defensores da teoria subje­ tiva que, verificando a impossibilidade de resolver o problema da responsabilidade e o da

89

Ob. d t, n2 5, p. 19.

90

Ob. d t, nQ16, p. 38.

91

Alvino Lima, Da culpa ao risco, p. 176.

92

Da culpa ao risco, p. 215.

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reparação dos danos nos acanhados limites da culpa subjetiva, exigindo a impossibilidade moral, materializaram a noção da culpa"93. Marton, na percuciente crítica formulada à teoria da culpa, põe de manifesto que "a doutrina subjetiva da culpa, originária de Bizâncio, aparecendo sob a capa de um aspecto falseado da culpa moral, como conseqüência das dificuldades inerentes à sua realiza­ ção, não conseguiu corresponder à ideia de uma responsabilidade sã e vigorosa, mas, bem ao contrário, conduz, pelos, seus efeitos, a inconvenientes desmoralizadores"9i. O reputado professor de Budapeste, investigando a causa que teria levado a ciência jurídica ao acolhimento de construção teórica tão defeituosa, como é o prin­ cípio da culpa subjetiva, chegou à conclusão de que "o fenômeno tem uma explicação histórica, contida no fato de que a ciência do direito se inspira no direito romano, onde a responsabilidade extracontratual nunca foi um problema. A imposição do ressarcimento sem­ pre teve caráter penal: delito e reparação se identificavam de tal modo que a ação aquilianà era a única via judiciária por que se podiam estabelecer as obrigações de um e outro caráter. O grande erro e a grave omissão da teoria moderna do direito civil consistem precisamente em que, embora assistindo à obra de distinção entre o delito e a reparação, libertando esta ideia das restrições objetivas da Lei Aquilia - obra realizada pelas codificações européias e, em primeiro lugar, pelo Código francês - pensava poder manter esse ponto de vista ingênuo e antiquado, segundo o qual o fundamento da reparação não se poderia encontrar senão no delito, e que, portanto, sempre que se deparasse uma responsabilidade sem delito, conviria de qualquer forma imaginá-lo". E prossegue: "La culpabilité, voilàla seule raison imaginable de toute responsabilité qui doit être presente partout, dans chaque hypothèse, même dans celle ou la juridiction criminelle, les cas échéant, n'a pas punis l'acte"95. Realmente, assim foi. E a tal ponto que a significação de responsabilidade foi inteiramente assimilada pela de culpabilidade. Daí os artifícios, a que a pró­ pria teoria do risco não escapa, tendentes a satisfazer o requisito de rigor. Daí, talvez, a necessidade de estabelecer que o instituto chamado de responsabilidade civil, na realidade, pelo menos diante do valor que se atribui a essas noções, não é senão a reparação do dano: “O problema da reparação dos danos sofridos por uma pessoa", diz Morin, “deve ser proposto desta maneira: quem deve reparar os danos? E não assim: quem é responsável?"%. 93 Ob. d t, p. 217. 94 Ob. d t, na 58, p. 151. 95 Ob. e Ioc. dts. 96 La loi et le contrat, la décadence de leur souveraineté, Paris,1927, p. 120. Ao ilustrePereira Braga o fe­ nômeno sugere uma condusão da mais singela predsão: aexpressão responsabilidade civil nada

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21. A doutrina do risco. A teoria da responsabilidade objetiva, ou doutrina do risco, tem, pelo menos, o mérito de se inteirar daquele equívoco e, se é passível de crítica, esta por certo não reside no fato de contradição. Corresponde, em termos científicos, à necessida­ de de resolver casos de danos que pelo menos com acerto técnico não seriam repa­ rados pelo critério clássico da culpa. E visível, a este respeito, o erro das soluções encontradas pelos partidários da doutrina tradicional, e notória a artificialidade de suas construções. "Dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa - pondera com justeza Alvino Lima - não era possível resolver um sem-número de casos que a civilização moderna criava ou agravava; imprescindível se tornava, para a solução do problema da responsabi­ lidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa psicológica do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência, para colocar a questão sob um ângulo até então não encarado devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação, e não interior, subjetivo, como na imposição da pena. Os problemas da responsabilidade são tão-somente os da reparação de perdas. Os danos e a reparação não devem ser aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem emergir do fato causador da lesão de um bem jurídico, a fim de se manterem incólumes a interesses em jogo, cujo desequilíbrio é manifesto, se ficarmos dentro dos estreitos limites de uma responsabilidade subjetiva"97. Como era natural em teoria inovadora, a doutrina do risco se comprometeu no extremismo. O fenômeno não é raro. A resistência tem, muitas vezes, exatamente o efeito de conduzir a ideia nova para além dos limites que ela originariamente se tra­ çara. Vejamos o que ocorreu em relação à teoria da responsabilidade objetiva.

22. Precursores da doutrina do risco: Thomasius e Heineccius. Binding. Venezian. Refere Marton que os precursores da doutrina do risco foram alguns partidários da escola do direito natural no século XVIII, em particular Thomasius e Heineccius, que sustentavam a opinião de que o autor de um dano deve ser responsabilizado in­ dependentemente da existência de culpa de sua parte. Fizeram-no para estabelecer a mais quer representar senão uma antinomia com a responsabilidade criminal (in Revista de Crítica Judiciária, vol. 7, p. 292 e segs.). 97

Ob. d t, p. 87. Não é outra a lição do Ministro Orozimbo Nonato: "O problema da responsabilidade civil nunca pode encontrar base segura na teoria da culpa" (voto na Ap. n2 7.127, ac. do Supremo Tribunal Federal, de 18.08.42, no Diário da Justiça de 02.02.43).

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responsabilidade de pessoas privadas de discernimento e, pois, incapazes de culpa, princípio consagrado na codificação alemã, mas isolado e afinal desvanecido, prati­ camente sem deixar vestígio, na expansão universal tomada pelo direito romano na Alemanha, durante o século XIX. "Foi o legislador alemão que, embora mantendo a noção da cuhpa determinada pelo grau de diligência do bonus paterfamilias, não somente nas rela­ ções contratuais, mas também nos casos da chamada responsabilidade delitual, em lugar de procurar dissimular sob a capa da culpa, pelo emprego de presunções, a exemplo dos redatores do Código francês, os poucos casos em que, por exigência das necessidades da vida, se viu obrigado a admitir a responsabilidade sem culpa, confessou-o francamente"9*. O autor alude ao § 16 do título 6 da I a parte do Código prussiano, de 1794, onde se falava de zufälliger Schaden que obriga o autor à reparação, em dados casos, e ao § 72, ibidem, onde se estabelecia explicitamente que aquele que guarda animais que, embora perigosos por seu caráter, não são utilizados, ordinariamente, na economia rural ou urbana, responde também "sem culpa especial de sua parte”. O mesmo sucedeu ao Código austríaco de 1811, em cujo § 1.310 se instituía a re­ paração por ato praticado sem culpa ou involuntariamente e a influência da fortuna de uma e outra parte na atribuição do ressarcimento. Não deixa de ter certa ironia o fato de haver sido um criminalista, Karl Binding, o primeiro a se ocupar com o exame científico das bases teóricas da responsabilidade civil, pondo em contraste a pena, sempre e necessariamente conseqüência de um delito, e a obrigação da reparação, originada em fatos diversos, que nem sempre constituem delitos. Sua construção era errônea. Mostra-o Marton, frisando: a) que a ciência penal desautoriza, de há muito, o formalismo da noção do delito preconi­ zada por Binding e assentada exclusivamente no artifício da infração do dever de obediência do indivíduo para com o Estado; mais: que é ilógico opor a noção de delito, como lesão causada ao Estado, ao conceito de violação do direito privado, como lesão infligida ao indivíduo, visto ser evidente que, “a despeito da diferença de sanção aplicada pelo legislador, as lesões da segunda categoria ofendem igualmente a or­ dem jurídica estabelecida pelo Estado e são, também, lesões ao Estado"; b) a falta de exata avaliação do elemento causalidade. Para Binding, o simples fato de haver causado o dano obrigaria à reparação; mas Marton adverte que o papel que essa relação de­ sempenha é simplesmente o de designar o indivíduo contra o qual se deve exercer a reação correspondente à infração da norma de direito, infração corporificada no 98

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Ob. d t, n9 60, p. 158.

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dano. A imagem de que se serve Marton, para facilitar a compreensão do.exato papel da causalidade, é esta: “assim como, no caso da iluminação elétrica, a verdadeira causa do fenômeno é o dínamo produtor da corrente, e não o fio condutor, a que a lâmpada, para acender-se, deve estar ligada, assim também é o mandamento do legislador, a verdadeira força geradora da corrente da responsabilidade; a causalidade é, aí, tão-somente o fio condutor, que encaminha a sua aplicação aos casos concretos"99. E a verdade salientada por uma simples indagação ao aspecto prático do pro­ blema. Estabelecer a obrigação de reparar diante do simples laço de causalidade seria tomar a vida insuportável: “O comerciante melhor aparelhado prejudica a seus con­ correntes; o cidadão que procura casa e que, por suas relações com o proprietário do imóvel, obtém o apartamento vago, prejudica o pai de família vítima da crise de habitação; o aluno que obtém um prêmio lesa os colegas; o bispo que condena o mau livro prejudica o seu autor; o educador que proíbe o cigarro aos alunos prejudica o negociante dofumo[...]'n°°. E o prejuízo injusto que deve ser considerado. Giacomo Venezian, procurando libertar a responsabilidade civil do elemento psíquico, por influência do positivismo jurídico, concebeu a reparação como con­ seqüência lógica do ato ilícito (torto). A reparação está para ele exatamente como sua outra conseqüência, a pena: “O porquê do ressarcimento, a razão da responsabilidade encontra-se na própria concepção do ato ilícito. O ilícito deve ter uma sanção na própria ordem jurídica, ou cessa de ser tido como tal. O direito e o ilícito são uma realidade objetiva , social. Não depende da vontade do sujeito, do indivíduo, a modificação da esfera jurídica dos outros indivíduos. Não é, pois, a vontade de alguém que se deve perquirir para determinar a sua responsabilidade. Não somente suas ações involuntárias, os movimentos conscientes ou inconscientes que provenham de sua disposição física, fisiológica e psíquica, mas todos os movimentos das coisas a que se estende sua atividade, e que se destinem a produzir vantagem para ele, podem impedir o legítimo desenvolvimento de uma outra atividade. Se, quando seja possível prevenir o fato perturbador, ele é obrigado a remover a causa da perturbação à atividade alheia, quando esse fato ocorre, ele é obrigado a compensar o dano que daí deriva. A causa natural do ilícito deve coincidir com seu efeito jurídico e deste modo se restabelece a ordem jurídica"101. 99

Ob. dt., n5 62, p. 168.

100 H. Lalou, La responsabilité civile, n9 2, p. 2. 101 Apud Marton, n9 63, p. 170.

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A tese de Venezian era errônea, o que não importa contestar o precioso subsídio que seu erro genial prestou ao estudo da responsabilidade civil. Pensa Marton que a prova mais imediata do erro de Venezian, como o de Binding, está no zelo febril com que a literatura continuou a investigar os motivos da responsabilidade sem culpa. E o fato de se limitarem a este campo as suas pesquisas se explica em face da concepção inveterada de que a responsabilidade fundada na culpa não precisa de explicações, considerando-se como responsabilidade normal, oposta à responsabili­ dade anormal, a objetiva102.

23. Tentativa para sistematizar a doutrina do risco na literatura germânica: Mataja. Os Merkel. Unger. Princípio do interesse ativo, da prevenção e da equidade ou interesse preponderante. A inspiração de Bentham. As tentativas para sistematizar a doutrina da responsabilidade sem culpa na literatura germânica podem ser sistematicamente expostas como se segue: a) Princípio do interesse ativo. Fundado na máxima cujus commodum, ejus periculum, baseada no direito romano (Paulo, D. 50, 17,10). Expoente notável des­ sa corrente é o austríaco Vítor Mataja. Sustentava ele, já em 1888, que as perdas e danos provenientes dos acidentes inevitáveis na exploração de uma empresa devem ser incluídos nas despesas do negócio. Imputar as perdas às vítimas dos acidentes é, sem nenhuma dúvida, falsear o balanço da empresa103. É a ideia de Adolfo Merkel, Unger e Rodolfo Merkel, que a reduziriam a esta proposição: quem desenvolve em seu próprio interesse uma atividade qualquer deve sofrer as conse­ qüências dela provenientes104. b) Princípio da prevenção. Inspirado na dificuldade da prova da responsabi­ lidade e na insuficiência das regras processuais estabelecidas no sentido de favo­ recê-la, consiste em não admitir a exoneração da pessoa a quem se atribui a res­ ponsabilidade, enquanto não prove que o fato, aparentemente imputável a si, é, na realidade, resultado de uma causa exterior e estranha à sua atividade, e impossível de ser por ela afastada. Concepção de Gustave Rumelin, a sistematização dessa doutrina acentua que o legislador pode conseguir do homem resultados melhores 102 Ob. d t, na 64, p. 171. 103 Das Recht de Schadenersatzes, Viena, 1888. 104 Apud Marton, ob. cit., nQ65, p. 175.

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do que os produzidos pela sua diligência ordinária, estimulando-o com a ideia da responsabilidade: "O ideal, aos olhos do legislador, não é o diligens paterfamilias nem o homem dotado de diligentia ainda mais elevada, de natureza escrupulosa e desconfiada, c¡ue se deixa intimidar por todas as apreensões possíveis, e que tende a obviar a todo perigo. Bem ao contrário, é o homem que, com olhar seguro, calcula as possibilidades de bom e mau êxito, as possibilidades de acidente e os gastos de sua prevenção, e adquire, pesando fria e exatamente os diversos fatores, a garantia de acerto de sua decisão. Seria inútil prescrever essa atitude por medidas legislativas diretas, mas o legislador pode perfeitamente indicar a atitude justa e favorecê-la, de sorte que, não se contentando em prescrever a diligência típi­ ca, faça o homem responsável pelo resultadol...]. Esta maneira de agir normal, eficaz, útil, não podendo, de fato, ser prescrita pelo legislador, pode muito bem ser encarada - para dizer como Goethe - como centro negro do alvo que se deve sempre visar, embora nem sempre se consiga atingi-lo"W5. Constitui este princípio o centro do próprio sistema de Marton, que o aperfeiçoa e desenvolve106. c)

Princípio da equidade ou do interesse preponderante. Segundo ele, o me­

canismo da responsabilidade funcionaria conforme a situação das partes interessa­ das. Se a pessoa que causa o dano é economicamente forte, alarga-se o campo em que se enquadra a responsabilidade, mormente se o lesado é pouco afortunado; na situação oposta, restringe-se e se exclui, até, a ação de indenização, desde que o au­ tor do dano tenha agido sem malícia ou culpa grave. Escandalizado com a reação conservadora à ideia de utilizar a equidade na solução do problema da responsa­ bilidade, Marton mostra quanto é improcedente a impugnação, recordando, antes de mais nada, que, longe de serem hostis, direito e equidade são estreitamente ligados: ars boni et aequi é a definição que Celso dava para o direito e que guarda ainda hoje esplêndida atualidade. E não é só: há mais de século e meio instituída nos Códigos (refere-se ao § 1.310 do Código austríaco de 1811), foi acolhida no Código suíço, reconhecido como uma das mais perfeitas obras legislativas dos nos­ sos tempos, generalizando a admissão da equidade a todos os casos em que não tenha havido falta intencional ou grande negligência por parte do autor do dano, o encargo da reparação lhe acarrete a miséria (art. 44, al. 2). Em revide, salienta o autor húngaro que a teoria da culpa recorre, ela própria, à equidade, para escapar ao inevitável embaraço de classificar a responsabilidade das pessoas incapazes, o que é tanto mais surpreendente por impor aos incapazes, precisamente aqueles 105 Apud Marton, ob. cit, n2 66, p. 181. 106 Marton, ob. cit, n9 66, p. 181.

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que logicamente não podem agir com culpa, a responsabilidade objetiva, ou seja,

uma responsabilidade mais severa que a estabelecida para os homens normais: "Se |

parece eqüitativo condenar um alienado ou um menor rico à reparação deve, ao menos eo ■ magis, ser eqüitativo proceder de igual modo no caso do indivíduo rico, são de espírito, que causa o dano involuntariamente, e sem que nenhuma culpa se lhe possa atribuir. Limitar

esse tratamento aos alienados é impor-lhes, de maneira injusta, um verdadeiro privilégio ; odioso"107. Não é outra a opinião de Saleilles, que exclama: "Singular equidade essa, que agrava a responsabilidade material tão-somente para os inconscientesV'ws. Mas a equidade não pode, de si mesma, constituir-se em base da respon­

sabilidade civil. Se a julgássemos suficiente, teríamos, consequentemente, esta- I

belecido que o rico deveria, sempre e sempre, ressarcir o dano experimentado ; pelo pobre, conclusão que, por absurda, põe de manifesto a inadmissibilidade da regra. Posta no seu verdadeiro papel moderador, entretanto, a equidade não pode deixar de constituir princípio influente na reparação do dano. Atendendo a ele, e aperfeiçoando as fórmulas de Rodolfo Merkel, é que Marton defende o princípio do maior interesse social, segundo o qual não se quer expressar que exista responsabilidade exclusivamente a título de equidade, mas, exatamente ao contrário, que a sua aplicação pode até não ocorrer109.

d) Princípio da repartição do dano. Tem seu germe na ideia de Bentham, que » propôs a indenização do dano pelo seguro ou, caso contrário, a reparação a cargo do Estado. A este sistema, que resulta no seguro do acidente, não importa a origem do dano. Daí o inconveniente de, talvez, prejudicar o princípio da prevenção, influin­ do para que se relaxem a prudência e a diligência do segurado, sem garantia para o segurador, porque a ação oblíqua de que dispõe só se poderá exercer em face de culpa manifesta do autor. Considerando os receios nesse sentido manifestados por Lundstedt, Marton pondera que se o segurado sabe que o segurador fará todo o pos­ sível para recuperar o que pagou a título de reparação, isso bastará, praticamente, para restabelecer a prevenção abalada110. e) Princípio do caráter perigoso do ato. Baseia-se na concepção de que o homem cria para o seu próximo um perigo particular. Marton, que aproveita, reajustando-lh.es o valor, todos os dados fornecidos pelos princípios anteriormente expostos, 107 Ob. cit., ne 67, p. 186. 108 Étude sur la théorie générale de L’obligation, d'après le premier projet de Code Civil pour L'Empire Allemand, l a éd., Paris, 1925, nota ao art. 319. 109 Ob. dt., n2 67, p. 192. 110 Ob. d t, ns 68 e nota 5, p. 206.

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recusa lugar no seu sistema ao princípio do caiáter perigoso. Nega-lhe qualquer valor atual, e não hesita em classificá-lo de falso111. Com efeito, o caráter perigoso da empresa é, muitas vezes, mero pretexto para agravar a responsabilidade, um simples expediente para iludir a necessidade de enfrentar, em outras bases, o impor­ tante problema112. As locomotivas, primeiros engenhos a que se atribuiu aumento de perigo, ficaram surpreendentemente reabilitadas dessa acusação pelas estatísticas de desastres mortais e lesões corporais nelas verificados, acusando, em relação aos assim chamados "caminhos de ferro", comparados com as "diligências" e "cairos de posta"113 então existentes, uma proporção três a 10 vezes mais favorável114.

24. Os franceses como lançadores da ideia do risco. A influência do positivismo penal e suas verdadeiras proporções. Aceitando-se embora a primazia reclamada por Marton para a doutrina ger­ mânica, o certo é que foram os franceses os divulgadores da teoria objetiva, deven­ do-se ao seu trabalho de sistematização o impulso tomado pela teoria. Saleilles e Josserand, vultos dos mais expressivos da ciência jurídica, foram os precursores da teoria do risco, nome com que se assentou na literatura francesa a ordem de ideias afins das defendidas pelos autores alemães. Não se pode negar a inspiração do positivismo penal em alguns partidários da doutrina do risco. Mas é preciso, desde logo, estabelecer que essa influência não foi tão grande como parece aos Mazeaud e a outros defensores da teoria da culpa, empenhados em atribuir à corrente objetivista115uma tendência materialista, que repugna, de imediato, ao espírito jurídico. De que não é decisiva nem essencial aquela influência, temos prova no fato de ser precisamente à equidade, ao sentimento de

111 Ob. dt., ns 69, ps. 195 e segs. 112 Esta verificação não importa, de forma nenhuma, negar a esplêndida contribuição prestada pela concepção a soluções de casos emergentes, donde resultariam denegações de justiça a inúmeros prejudicados, por falta de um prindpio dentífico a que se arrime o julgador, adstrito ao prindpio da culpa. Não hesitamos, sempre guardando fidelidade ao nosso ponto de vista, em tolerar soluções que, tecnicamente defeituosas, atendam ao supremo imperativo que comanda qualquer sistema de responsabilidade dvil. 113 Nota do atualizador - Assim eram chamados os primeiros ônibus que circularam no Rio de Janeiro, em 1837, importados da Europa por Jean Lecoq. Segundo Waldemar Corrêa Stiel (Uma história do transporte coletivo e do desenvolvimento urbano, São Paulo, Condesenho Estúdio e Editora, 2001), eram veículos grandes, com dois pavimentos, quatro rodas, pintados de vermeiho e tinham lotação de 20 a 24 passageiros. 114 Mataja, ob. dt., n° 3, p. 58; d. Marton, ob. d t, n5 69, nota 14, p. 204. 115 A denominação doutrina objetiva contém muito de arbitrário.

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solidariedade sodal, à revolta em face da desigualdade de fortuna, influindo nos direitos reclamados pelas partes, as principais invocações com que se procura jus­ tificar a chamada teoria do risco. E, coisa curiosa, são precisamente os adeptos da doutrina tradicional, fervorosos defensores da dignidade da pessoa humana, supos­ tamente sacrificada na teoria do risco, que chegam a escarnecer da equidade e da solidariedade social, classificadas como formas de mera caridade. De igual modo, chega-se a negar à teoria objetiva a preocupação moral que, no entender de certos autores, só entra na construção da doutrina da culpa. Nada menos exato, como se pode ver dos próprios enunciados dos diferentes sistemas filiados ao critério objetivo. Aliás, ao crítico de má vontade, a culpa objetiva apare­ cerá também como doutrina de rude crueza, quando, por exemplo, considera cul­ pado quem age mal por força de suas limitações de inteligência ou dos sentidos. Que se pode censurar, por exemplo, ao homem que, por uma fatalidade da natu­ reza, não é tão destro, tão prudente, de raciocínio tão pronto, de vista ou ouvidos tão bons como o average manl Raymond Saleilles e Louis Josserand aparecem simultaneamente como defen­ sores da teoria objetiva. Sua vigorosa personalidade é tão influente que faz esquecer o fato de, ao tempo em que surgem os seus trabalhos, estar já desenvolvida em ou­ tros países a doutrina que apresentam e prestigiam.

25. A doutrina de Saleilles. A doutrina de Saleilles é mais radical do que o sistema proposto por Josserand. Enquanto este se limita a aplicar a teoria objetiva ao fato de coisas inanimadas, aque­ le prega, sem rodeios, a necessidade de substituir a culpa pela causalidade, mediante a interpretação objetiva da palavra faute no art. 1.382 do Código francês, que, no seú entender, aí não se refere senão ao próprio fato causador do dano, sem indagação ao elemento psicológico do agente. Classifica de falsa e até humilhante a ideia de culpa, e considera que é mais equitativo e mais conforme à dignidade humana que cada qual assuma os riscos de sua atividade voluntária e livre. Esta é a ideia central do seu livro Les accidents de travail et la responsabilité civile, onde generaliza o sistema que já propugnava para os acidentes de trabalho, no seu “Essai d'une théorie générale de l'obligation d'après le projet du Code allemand". A ideia de causalidade não era nova. Mas Saleilles não se apoiou em nenhum dos autores que o precederam (Binding, Venezian), e, segundo informa 58

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autorizadamente Marton, na escrupulosa análise que nos proporciona a respeito das teorias da responsabilidade civil, nem sequer os teria conhecido. Mais tarde, Saleilles refunde o seu sistema, publicando, na Revue Trimestrielle de Droit Civil, t. X, 1911, p. 23 e segs., um trabalho sobre "La responsabilité dufait des choses devant la Cour Supérieure du Canada". Começa recordando que o Código Civil da Província de Quebec se inspira no Código francês, principalmente na matéria de atos ilícitos, e demonstra que os arts. 1.053 e 1.054 do primeiro reproduzem, com ligeiras diferenças, os arts. 1.382,1.383 e 1.384 do segundo. Mas, precisamente nessa diferença, é estabelecido que o fundamento da responsabilidade quase-delitual é a culpa subjetiva do agente. De modo que Saleilles confessa não ser possível, diante do texto, considerar como simples causalidade a relação entre o dano e o ato do agente, como havia raciocinado em face do Código francês. O risco profissional já estava, em 1910, admitido na legislação canadense, a exemplo do que fizera na França a lei de 9 de abril de 1898. Mas ficavam fora de sua aplicação muitos acidentes ocorridos durante o trabalho profissional ou causados a terceiros por máquinas ou instrumentos industriais. Estabelece, assim, o ponto interessante a discutir: o sistema adotado pela juris­ prudência canadense sobre a questão capital da responsabilidade pelo fato de coisas. A princípio, e como os tribunais franceses, os juizes canadenses admitiram a solução subjetiva. Começaram, depois, a inverter o ônus da prova. Não era, ainda, uma presunção legal e muito menos presunção insuscetível de prova em contrário. E em 1909 que a jurisprudência canadense se declara francamente pela presunção legal, na responsabilidade pelo fato da coisa. A causa em que se deu a adoção da­ quele princípio vem minuciosamente relatada no trabalho de Saleilles. Em resumo: tratava-se de um empregado de uma fábrica, onde era encarregado de cuidar de determinado forno, que explodira, causando-lhe cegueira. A decisão de primeira instância entendeu que o forno causador do dano estava sob a guarda da companhia e que, portanto, era esta responsável. O tribunal de revisão discordou. Encarregado da guarda da coisa era a vítima, que estava obrigada a dar prova de culpa da compa­ nhia e hão havia feito. Por sua vez, o Tribunal de Apelação, quanto ao fato, decidiu que havia culpa da companhia e que, de direito, não havia necessidade de prová-la, porque se presume, uma vez demonstrado que o forno estava sob sua guarda. O Chief Justice, Sir Charles Fitzpatrick, na Corte Suprema, declarou que, em sua opinião, o forno estava sob a guarda do empregador, que o utilizava em seu pro­ veito e que obtinha lucro do risco que havia criado. Aquele que percebe as utilidades 59

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no uso da máquina suscetível de causar dano a terceiros está obrigado a reparar o prejuízo que esta máquina cause. Ubi emolumentun, ibi onus. Prosseguindo, sustentava que, ao art. 1.053 do Código canadense, para que apelam os que fazem da culpa a base da responsabilidade, se opunha o art. 1.054, § I a, infine, a seu juízo o único aplicável, e segundo o qual cada um é responsável pelas coisas que tem sob sua guarda. Mostra que é impossível conceber a culpa nas coisas inanimadas e que, assim, tal como empregada no art. 1.054, § l s, não pode significar exclusivamente um ato ilícito, mas expressa uma verdade jurídica encontrada em todas as legislações: "nada do que pertence a alguém pode impunemente causar dano a outrem". Assim, a parte que tem sob sua guarda a coisa pode não ter conhecimento do defeito de construção, nem do meio de utilizar-se dele. Não importa: é sempre responsável pelos danos por ela causados. Salienta que não há razão para distinguir: se se presume a culpa do proprietá­ rio do animal (art. 1.055 do Código canadense), por que classe de privilégio se isenta o proprietário da coisa inanimada? Por que não aplicar ao caso a mesma presunção que existe para aquele que tem sob sua guarda um menor, um demente etc? É categórico: “Não se trata de culpa. O fato da tutela ou da vigilância é o único motivo que estabelece a responsabilidade [...]". Aliás, frisa, a responsabilidade sem culpa não é desconhecida do Código Civil de Quebec, cujo art. 1.487 estabelece a responsabili­ dade de vendedor da coisa que lhe não pertence, perante o comprador, sem aludir a qualquer espécie de culpa. Saleilles, transcrevendo textualmente a fundamentação articulada pelo Chief Justice, dela deduz uma série de observações: a) o valor que se pode atribuir à in­ fluência do direito francês no desenvolvimento do direito canadense se resume em ressaltar a importância que a Corte canadense atribui à evolução daquela doutrina, considerando-a boa em si, e adotando-a em plena independência; b) o juiz canaden­ se admite que a interpretação dos textos, em lugar de se fazer conforme à vontade literal do legislador - supondo que realmente se conheça - deve ter em conta o conjunto dos princípios jurídicos adotados na legislação do país, com os quais aqueles texi os se devem harmonizar; c) em matéria de responsabilidade indireta, a presun­ ção :ede ante prova em contrário, se se trata apenas de guarda ou vigilância. No caso de empresa, de utilização de serviços, de exploração do trabalho alheio, a presunção legal de responsabilidade é absoluta e consagra um verda­ deiro fato criador de risco (fait de risque). O mesmo sucede em relação às coisas cujo funcionamento pode causar dano a outrem. Isto reduz a dois os casos de 60

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isenção de responsabilidade, tanto no Canadá como em França: força maior e culpa exclusivamente da vítima. Saleilles contesta uma das mais freqüentes acusações ao sistema: "Jamais disse, com efeito, que já não há responsabilidade subjetiva. Conservo todo o domínio do delito civil, compreendendo sob este lema não só a culpa intencional - ou, melhor, para ser exato, o dano consciente, o fato de haver sabido e previsto - mas, também, a culpa de negligência grave. E não formulei esta

conseqüência: que em todos esses casos haverá reparação integral. Pelo con­

trário, declarei que em todos os casos de culpa leve - para os nove décimos de nossos quase-delitos - era presunção artificial e verdadeira denegação de justiça falar de culpa moral, toda vez que fosse necessário prever tudo e jamais ir adiante, uma vez que, do momento em que é possível prever riscos, nenhuma pessoa no mundo se atreveria a agir, a tomar iniciativas". É em tom apaixonado que desarticula o critério tradicional da culpa aplicado aos resultados inevitáveis da atividade humana. Riscos da liberdade têm, na rea­ lidade, tão pouco de culpa, que a jurisprudência, para fazer reparar os danos que causam, evita verificar se o seu autor tinha inteligência bastante desenvolvida ou conhecimentos suficientes ou a qualidade moral de evitar o prejuízo ou de abster-se do ato de que resultou dano. E mais: quando ocorre culpa e responsabilidade moral, é de justiça reconhecer as circunstâncias atenuantes. Quem já o propôs, acaso, para o delito civil? Saleilles analisa a objeção de Planiol, quanto ao suposto efeito desastroso da teoria objetiva sobre as iniciativas e esclarece seu pensamento. O que pretende é que, sempre que haja duas atividades em jogo, as duas se exponham aos riscos. A questão, pois, é de imputação de riscos, e deve resolver-se segundo a natureza ob­ jetiva do fato e não pelos elementos subjetivos. "Há fatos criadores de riscos, fatos que objetivamente e por si mesmos se afastam da normalidade, como diriam os matemáticos, e que, portanto, implicam aceitação dos riscos". Ora, por aí se evidencia que a concepção de Planiol não é diferente da sua, am­ bos sustentando os mesmos resultados, mas desavindo, pelo menos na impressão comum, em mera questão de palavras. Num ponto, entretanto, confessa seu desacordo com Planiol. É quando este, não querendo admitir responsabilidade fora da culpa senão por violação de obriga­ ção legal, sustenta que todas as iniciativas atrevidas e todas as utilizações de meios perigosos se chocam com a lei. Recorda o caso das fagulhas das locomotivas. As estradas de ferro, por mais que se esforcem, não podem impedir que elas, às vezes, causem danos aos proprie­ tários marginais. A estrada, na opinião de Saleilles, não incide em culpa. Deve, não 61

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obstante, indenizar. Planiol entende, igu.almente, que a reparação é devida. Mas hinda essa obrigação na violação da obrigação legal decorrente do próprio fato de servir-se de aparelho mecânico. Com isso é que não está de acordo Saleüles, que não pode aceitar, como fato infrator de obrigação legal, movimentar locomotivas ou automóveis. Isso recorda certo julgado dos tribunais alemães: querendo, a todo o custo, manter o princípio da culpa subjetiva, em matéria de responsabilidade das estradas de ferro, teve de declarar que o simples fato de empregar tração a vapor constituía culpa [...]. E aqui está uma síntese do pensamento de Saleilles: "A lei deixa a cada um a liberdade de seus atos; ela não proíbe senão aqueles que se conhecem como causa direta do dano. Não poderia proibir aqueles que apenas trazem, em si a virtualidade de atos danosos, uma vez que se possa crer fundamentalmente que tais perigos possam ser evitados, à base de prudência e habilidade. Mas, se a lei os permite, impõe àqueles que tomam o risco a seu

cargo a obrigação de pagar os gastos respectivos, sejam ou não resultados de culpa. Entre \ eles e as vítimas não há equiparação. Ocorrido o dano, é preciso que alguém o suporte. Não há culpa positiva de nenhum deles. Qual seria, então, o critério de imputação do risco? A

prática exige que aquele que obtém proveito de iniciativa lhe suporte os encargos, pelo me- \ nos a título de sua causa material, uma vez que essa iniciativa constitui um fato que, em si

e por si, encerra perigos potenciais contra os quais os terceiros não dispõem de defesa eficaz. E um balanceamento afazer. A justiça quer que se faça inclinar o prato da responsabilidade para o lado do iniciador do risco”.

26. As ideias de Josserand.

As ideias de Josserand, expressas em vários trabalhos116, estão condensadas, 1 com metódica precisão, na sua conhecida conferência, publicada em Évolutions et actualités117. Começa por assinalar que a palavra evolução não condiz com o movimento que vai analisar; a revolução é que deveria, com mais propriedade, aludir, tratando de assunto em que tão vertiginosamente se transformam os dados estabelecidos.

Essa mutação acelerada, em face de que "a verdade de hoje, que deve, por sua vez, á ceder o passo à verdade de amanhã", se deve ao caráter cada vez mais perigoso da vida contemporânea: o século do automóvel, do avião, da mecanização universal 116 De la responsabilité du fait des choses inanimées, Paris, 1897; Cours de droit positiffrançais. Paris, 1930. 117 Évolutions et actualités, Sirey, Paris, 1936; Revista Forense, vol. 86, p. 548, traduçâo de RaulLima.

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não pode, logicamente, ser uma era de segurança material. A falta desta acarreta uma geral aspiração de segurança jurídica. Se não estamos a coberto dos riscos, te­ nhamos pelo menos a certeza de que não sofreremos impunemente as conseqüên­ cias da atividade alheia. A fórmula viver perigosamente, replicamos com esta outra, que é a sua sanção: responder pelos nossos atos. Primeira causa do progresso da responsabilidade civil, constituindo a que os filósofos chamam razão suficiente, é a um tempo de ordem social e de ordem cientí­ fica e mecânica. A seu lado, ou melhor, acima dela, está, porém, uma razão de ordem individual e moral, expressão do aperfeiçoamento de nossas consciências. Não se pretende, por aí, negar que só agora se preocupem os juristas com a injustiça e a desgraça imerecida "Qui casse les verres les paye", diz antigo provérbio francês, que é o próprio princípio do direito e da sabedoria. E os romanos tinham já emitido este generoso preceito assegurador do equilíbrio social: neminem laedere. Isso, todavia, não influi a ponto de impedir que os nossos antepassados considerassem com resig­ nação, e até com bom humor, a asserção de Montaigne: "o prejuízo de um é proveito de outro". Por outro lado, em face do acidente de causa desconhecida, dispunha-se de cômoda evasiva, o damnumfatale, o act ofGod. Não é o que sucede em nossos tempos: “temos sede de justiça, isto é, de equilíbrio jurídico, e, quando acontece um desastre, procuramos logo o responsável: queremos que haja um responsável; já não aceitamos docilmente os golpes do destino e, sim, pretendemos deter­ minar a incidência definitiva. Ou, se quiserem, o acidente já não nos aparece como coisa do destino, mas como ato, direto ou indireto, do homem. Se a palavra não fosse um pouco forte, diria com gosto que secularizamos a responsabilidade, que afizemos um caso de pura justiça humana, para vigorar no quadro de nossa comunidade social, na conformidade do equilíbrio dos interesses e dos direitos e para satisfação da nossa consciência jurídica [...]". Tudo isso se processa em menos de meio século, e vencendo toda sorte de di­ ficuldades. A doutrina tradicional assentava na velha ideia da culpa, dogma milenário, herdado do direito romano e resistente a todas as transformações políticas, sociais e econômicas. A vítima de um dano, no domínio dessa teoria, encarava ônus probatório extremamente pesado, arrostava um handicap desanimador: " Como pode­ ria o operário que se feriu durante o trabalho demonstrar a culpa do patrão? Como poderia o pedestre colhido por um automóvel, em lugar solitário, à noite, provar, na ausência de teste­ munhas - supondo-se que tenha sobrevivido ao acidente - que o carro estava de luzes apaga­ das e corria com excesso de velocidade? Como poderia o viajante que, durante o trajeto efetu­ ado em estradas de ferro, caiu no leito da linha, provar que os empregados da estrada foram negligentes no fechamento da porta do carro, à partida da última estação ? Impor à vítima ou a 63

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seus herdeiros demonstrações desse gênero é o mesmo que lhes recusar qualquer indenização: um direito só é efetivo quando sua prática está assegurada; não ter direito e tê-lo sem o poder exercer são uma coisa só. A teoria tradicional de responsabilidade repousava manifestamente em bases muito estreitas: cada vez mais se mostrava insuficiente e perempta[...]". Diversos processos técnicos se ensaiaram, sucessivamente, no sentido de asse­ gurar a praticabilidade da responsabilidade civil: a) facilidade na admissão da culpa; b) estabelecimento ou reconhecimento de presunções de culpa; c) substituição da noção de culpa pelo conceito de risco, ou seja, transformação da responsabilidade subjetiva em responsabilidade objetiva; d) eliminação da responsabilidade delitual, por maior extensão da responsabilidade contratual, favorecendo a situação da víti­ ma em relação à prova. Josserand desdobra, a seguir, essas diferentes soluções. Estava na tradição da Lei Aquilia, onde bastava a culpa levíssima para gerar responsabilidade, a facilitação da prova. A jurisprudência francesa e a belga não só a mantiveram, mas até a desenvolveram, como testemunham as teorias do abuso de direito e da culpa negativa. A teoria do abuso de direito era já antiga, mas foi restabelecida e rejuvenesci­ da pela jurisprudência, que lhe imprimiu surto novo e mais importante. Consiste, essencialmente, no princípio de que o exercício de um direito não é, de nenhum modo, incompatível com a noção de culpa. A velha máxima neminem laedit qui jure suo utitur exprime um paralogismo, na aparente feição de uma tirada de bom senso. Os direitos não nos são concedidos para que façamos uso deles discricionariamente, para prejudicar a outrem. Quando tal acontece, estão sendo desviados do seu fim e isso é abuso de direito: "os direitos não nos são concedidos com a garantia dos governos, mas sem garantia alguma; é a nós que compete usá-los de maneira justa, social, legítima; são armas cujo manejo é delicado; devemos seguir a regra do jogo; do contrário, incidiremos em culpa e seremos responsáveis pelos danos porventura causados". A teoria do abuso de direito é, numa palavra, condensação de outro princípio romano, erguido em contraposição ao neminem laedit qui jure suo utitur e que vem a ser o summum jus, summa injuria. Está consagrada nos Códigos como amplo terreno conquistado à ideia da cul­ pa, que não recua mais diante da existência de um direito, mas investe contra o seu exercício, quando degenera em abuso: a culpa no exercício do direito fez-se noção prática e corrente. De caráter nitidamente diverso é a teoria da culpa negativa, que vem a ser a abstenção ou inércia contrária a dever preestabelecido. Aplica-se extensivamente e 64

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seu espírito exige do proprietário da coisa suscetível de causar dano a adoção de todos os aperfeiçoamentos sugeridos pela ciência, de forma a restringir, sempre e sempre, as possibilidades desses danos. Se não atende a essa obrigação, se não se põe em dia, a sua responsabilidade emerge da omissão. Exemplos: a empresa que não coloca nas chaminés de suas fá­ bricas dispositivo capaz de reter as emanações capazes de causar danos aos vizi­ nhos; o proprietário do prédio que conserva o elevador de tipo antiquado, defeituo­ so e perigoso, quando deveria substituí-lo pelo tipo mais moderno e mais seguro; o dono de equipamento de som ou aparelho de rádio que impossibilita a recepção das emissões radiofônicas pelos vizinhos [...]. Os tribunais, não querendo retardar-se em relação à dênda, tomam-se complacentes no reconhecimento da culpa. Esse regime, eminentemente favorável à vítima, não seria possível em face do critério tradicional. No sistema das presunções legais, a jurisprudência alivia a vítima do oneroso encargo da prova e, às vezes, até o suprime. A dura exigência da culpa provada e efetiva, substitui-se a culpa presumida e problemática: os pais, os professores, os pa­ trões, aquele a quem cabe a guarda presumem-se culpados, uma vez ocorrido o fato danoso. A presunção, aí, é absoluta. Importa dizer: não se admite que alguma dessas pessoas ofereça prova de que não praticou ato culposo. Este, em face daquela pre­ sunção, é irremissivelmente dado como provado. Em contrário, só é possível prova de força maior ou de culpa da vítima. De forma que a vítima só tem de demonstrar que o dano foi causado pela pessoa ou coisa sob a guarda do réu. A este compete provar - e só se escusa por esta via - a culpa da vítima ou a força maior. Desloca-se, deste modo, o ônus da prova, retirado dos ombros do autor e lança­ do sobre os do réu, proprietário, guardião, patrão, pai, professor etc. Na interpretação dos textos consagradores de tais presunções agem os tribu­ nais com amplo liberalismo. O empregador, por exemplo, é responsável pelos atos do preposto, ainda quan­ do se excede no exercício de suas funções, bastando a circunstância de ter praticado o ato danoso por ocasião do trabalho. O guardião da coisa responde de pleno direito pelos danos dele advindos. Não se distingue: um armário, um carro de mão, um automóvel, uma locomotiva ou uma batedora mecânica, a bala de um fuzil ou a bola de tênis, até mesmo as folhas das árvores que delas se desprendem e vão obstruir os condutos d'água da casa vizinha, envolvem a responsabilidade do proprietário. ‘ As presunções do homem acodem, por sua vez, para estabelecer, sem maior esforço para a vítima, a responsabilidade do réu: "há fatos que trazem em si mesmos a 65

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prova de sua origem, que são como que assinados; por sua própria natureza, excluem a culpa, ¡ intervenção ou negligência da vítima. E bastante citar, a título de exemplo, os descarrilamen-

tos e as colisões de trens. O viajante, vítima de urna catástrofe desse gênero, não desempenhou ]

senão um papel passivo; seria irrisório exigir-lhe, ou de seus herdeiros, provas da culpa da ' estrada; o fato danoso éfato culposo; o transportador é presumido em culpa, sendo-lhe ressal­ vado provar o caso de força maior; o ônus da prova lhe incumbe integralmente". Por essa forma, restringe-se cada vez mais o domínio da responsabilidade sem culpa e se torna ponderável até mesmo um fantasma de culpa. Diante disso, indaga Josserand se não convém ir mais longe, abandonando essa

noção de culpa, tão desacreditada, para admitir que somos responsáveis, não so- j mente pelos atos culposos, mas pelos nossos atos, pura e simplesmente, desde que tenham causado um dano injusto, anormal. O faiseur d'actes deve responder pelas conseqüências de suas iniciativas. Por essa concepção nova, abstrai-se da ídeia de culpa: aquele que cria o risco responde, se ele se vem a verificar, pelas conseqüências lesivas a terceiros. Não comete falta quem, com licença da administração, monta um estabelecimento incômodo, insalubre, perigoso, ruidoso ou pestilencial. Mas é obri­ gado a indenizar os vizinhos prejudicados pelo seu funcionamento.

Josserand se reporta a Saleilles, cuja “visão profética encontrou numerosas consa- i grações parciais de ordem legislativa": a lei de acidentes no trabalho; a que estabelece a indenização a terceiros prejudicados com a explosão, deflagração, emanação de substâncias explosivas, corrosivas, tóxicas, nos estabelecimentos do estado ou priva­ dos que trabalhem para a defesa nacional, em tempo de paz; a qLie trata dos danos resultantes dos delitos praticados por força armada, por violência ou por tropa ou ajuntamentos; a da responsabilidade das empresas de navegação aérea. Todas essas leis realizam verdadeira revolução. Afastam-se da ideia de culpa.

Em seu lugar se impõe o princípio do risco: "a força da iniciativa, a ação consideram-se ] em si mesmas geradoras da responsabilidade". Finalmente, Josserand estuda o último processo de reação da jurisprudência contra o sistema tradicional da responsabilidade: a substituição da responsabilidade delitual pela responsabilidade contratual. Particularmente engenhoso, esse sistema tira partido da privilegiada situação do credor que exige 0 cumprimento de uma obrigação. Não lhe cabe demonstrar a culpa do devedor, mas somente a invocação do contrato. Assim, em matéria de transportes: o transportador é considerado como tendo assumido a obrigação de conduzir o passageiro em segurança. Se não o faz, está, ipso f acto, violando o contrato: "é a assimilação jurídica do viajante a um fardo de 66

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mercadoria, o que pode não ser muito lisonjeiro para o seu amor-próprio, mas que o beneficia em caso de acidente". Aliás, esse critério está consagrado em diversas legislações. Não só nos transportes, porém, se recorre a essa técnica. Aos empresários de diversões públicas e de campo de esporte, aos hoteleiros se aplica a exigência de garantia absoluta aos espectadores ou hóspedes. Afirmando o progresso da responsabilidade contratual, conclui Josserand, tal­ vez com alguma inquietação, que “é lícito perguntar se, um dia, os tribunais não decla­ rarão o médico ou o cirurgião responsáveis contratualmente pelos danos causados aos seus clientes, por um tratamento contra-indicado, por uma intervenção intempestiva ou infeliz [...]". Mas a sua expansão é também a da responsabilidade em geral, porque orienta­ da no sentido de facilitar a reparação devida à vítima do dano.

27. As soluções subsidiárias. Em essência, as diversas soluções propostas se filiam aos dois sistemas-troncos: o de Saleilles-Josserand, ou do risco-proveito, e o de Ripert, esboçado na sua tese "De l'exercise du droit de propriété dans ses rapports avec les propriétés voisines" e mais tarde ampliado à responsabilidade em geral: "O ato realizado nos limites legais estabelece, não obstante, a responsabilidade de seu autor, que, tirando proveito do seu direito, lhe deve suportar os riscos. Mas o titular do direito não se pode considerar como autor responsável do ato senão quando age em contrário às condições normais de seu tempo e de seu meio [...]". "A irresponsabilidade é criada, não pelo exercício do direito, mas pelo fato de agir o autor de acor­ do com as condições normais de sua época e de seu meio[...]"ns. E a teoria do ato normal, de efêmero prestígio, até para o seu autor, que desertou o campo da teoria do risco, para regressar à doutrina tradicional, onde se encouraçou do mais decidido espírito reacionário, para enfrentar o assunto119. Não se limitam, porém, a Saleilles e Josserand os autores objetivistas. Sem fa­ lar nos autores alemães e italianos, será omissa e defeituosa uma análise que rele­ gue a imerecido esquecimento as ideias de Gaudemet, Veniamin, Teisseire, Savatier, Bettremieux, Demogue, Geny, Leclerq e Emmanuel Levy. E possível dizer que suas construções não constituem ponto de partida, e que, a este título, só podemos con­ siderar a obra dos dois grandes precursores franceses da doutrina do risco. Isso não

118 Aix, 1902. 119 Ver, especialmente: La règle morale dans les obligations civiles, 39 éd., nQ123.

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retira o valor da contribuição que trouxeram, de modo a deixar aumentado o subsi­ dio à disposição de quem precisa estudar a materia. A concepção de Gaudemet admite o risco criado pela atividade anormal e pre­ vine a objeção de que isso, afinal, é a própria culpa, advertindo que o ato socialmente anormal déla se distingue em que, se se considera proibido, não é porque contenha ilidtude, como sucede na culpa, situação criada pelo ato ilídto, mas porque assim se revela em face dos usos e costumes. Mais: o ato sodalmente anormal independe de qualquer elemento subjetivo, ao passo que a noção de culpa não o pode dispensar120. Para Veniamin, prepondera o fator económico. O risco deve ser reconhecido como fundamento das responsabilidades, sempre que se possa considerar como essendal à atividade econômica121. Emmanuel Levy propôs o critério da confiança. Seu sistema considera que so­ mos responsáveis para com os outros na medida em que eles têm necessidade de confiar em nós para agir, e vice versa: "Na medida em que, para agir, necessitamos de confiar em nós mesmos, não somos responsáveis perante outrem; a relação de que nasce a res­ ponsabilidade é uma relação de confiança necessária; a obrigação que ela cria é uma obrigação que gera a confiança e, quando essa obrigação não é executada, quando há confiança legítima enganada, há culpa 'n22. Geny sustenta, em face do art. 1.382 do Código Civil francês que, se esse dispo­ sitivo se liga a uma responsabilidade positiva, não prescreve formalmente qualquer outro critério e não dedara, de modo nenhum, que o risco não é capaz de gerar res­ ponsabilidade. Sua opinião é compartilhada por Demogue123. Não pode passar sem referênda, num trabalho sobre responsabilidade dvil, a tese de Teisseire124, inspirada na doutrina de Saleilles, mas enriquedda de indiscutí­ vel contribuição pessoal. Para esse autor, o dano é, ordinariamente, não a expressão de um fato isolado, mas um fenômeno derivado da colisão de atividades de uma e outra parte. Em consequênda, deve ser repartida entre as partes, na medida em que tenham concorrido para ele. Partindo do prinrípio de causalidade, evidenda, de 120 Traité général des obligations, 29 éd.. Paris, 1927. 121 Essai sur les donnés économiques dans l'obligation civile, tese. Paris, 1930. 122 Responsabilité et contrat, em Revue Critique de Législation et de Jurisprudence, Paris, 1899, vol. 28, ps. 373 e segs.; Pontes de Miranda louva o engenho e habilidade de Levy em procurar a razão de ser da responsabilidade (ob. dt., n2 9, p. 29), mas parece que esse é o único mérito da doutrina, que atrai o problema a um plano em que se perdem de vista os seus dados essendais. 123 Geny, Risques et responsabilité, em Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1902, p. 846; Demogue, Obligation, t. m, n2 293. 124 Essai d'une théorie générale, sur lefondement de la responsabilité civile, tese, Aix, 1901.

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pronto e insensivelmente, a insuficiência do fundamento, aliás já posto em xeque, pelõ- menos como enunciado de teor absoluto, em face daquele princípio de colisão de atividades: é aí que se insinuam na sua construção aqueles dados sobre os quais a doutrina vinha tentando, sem êxito, edificar uma teoria racional da responsabili­ dade, o que se dava principalmente porque os tomava insuladamente: equidade, interesse prevalente, prevenção, repartição de danos etc125.

28. Crítica da teoria do risco. Os ataques de H. e L. Mazeaud. Cremos ter dado, sublinhando os pontos capitais da teoria do risco no direito , francês, noção fiel do seu conteúdo. Vejamos agora como a combatem. Depois do aparecimento do livro monumental dos irmãos Mazeaud, torna-se desnecessário compulsar a literatura adversa à teoria objetiva, por isso que con­ densa, sem exagero, todos os argumentos lembrados contra ela. Na sua crítica à teoria do risco, começam aqueles autores por declarar que são insuficientes todos os critérios propostos em substituição ao da culpa, acrescentando que, quando se descobrisse um, deveria ser de imediato rejeitado. Baseiam esta asserção em que todos os partidários do risco começam por negar a necessidade da culpa126. Uns se limitam a isso, outros tentam oferecer um substitutivo ao sistema; ambos os grupos estão em erro, porque é falso o seu ponto de partida: "a culpa é condi­ ção necessária da responsabilidade civil”. Para demonstrar que não há um argumento convincente entre os expendidos para justificar o abandono da teoria tradicional, analisam, uma a uma, as tendências responsáveis pela doutrina do risco, em seu aspecto negativo. Em primeiro lugar, classificam de fundamentalmente inexata a concepção materialista do direito. Este não pode eliminar a pessoa, com sua alma e sua vontade. Seu objetivo não é regular as relações patrimoniais, mas, bem ao contrário, unicamente as relações entre as pessoas. Ele é o mais puro resultado do espírito humano, e não pode renegar seu criador, para atender tão-somente à relação material. Quando se preocupa com as coisas materiais, não o faz porque elas constituam a sua finalidade, mas, sim, em função das pessoas: "uma coisa não existe para o jurista se não constitui um objeto de direito cujo sujeito é sempre uma pes­ soa". Prosseguindo nesta ordem de ideias, delas derivam esta indagação: Como 125 G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile, 1938, n° 70, nota 6, p. 208. 126 A asserção é infundada. O que seir.pre se pôs em foco, no campo objetivo, foi a insuficiência e não a desnecessidade da culpa.

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negar a culpa, sob o pretexto de que o patrimônio não pode incidir em erro de procedimento? A prova da falsidade da concepção objetiva, eles a enxergam em atitude que classificam de contraditória, porque reconhece a ressarcibilidade do dano moral, o que, longe de apoiar o ponto de vista materialista, vem demonstrar 1 que o problema exorbita do campo patrimonial e penetra no domínio da pessoa, de seu pensamento, de seus sentimentos, de suas afeições. Com uma propositada

citação de Hauriou e Ricol, insistem no aspecto materialista da doutrina do risco, |

que, em derradeira análise, é contraposta à teoria tradicional como sombria ame- ;

aça de uma era de conservantismo e de regresso às ideias clássicas, ou como fruto | das forças obscuras do materialismo.

Os Mazeaud não são menos impiedosos para com os que chegaram à doutri- ; na do risco através do positivismo penal: "E possível, de certa maneira, compreender o critério positivista em matéria de responsabilidade penal; ele se justifica pela ideia da

defesa social; a pena tem por fim assegurar a defesa da sociedade contra os criminosos; os : que a aplicam não têm, portanto, de se preocupar senão com o perigo corrido pela sociedade, jamais com o grau de culpabilidade do agente. Em matéria civil, porém, não pode existir

semelhante justificação: o dano sofrido por um particular não acarreta nenhum perigo à ] sociedade"127. Imediatamente ligada a esse ponto está a questão do interesse social.

Na situação em que o colocam os irmãos Mazeaud, a doutrina do risco, quan- | do o afirma, nega, por via de conseqüência, o valor do indivíduo em si mesmo. Reconhecem, reportando-se a Capitant, que não é possível considerar o indivíduo como um ser "abstrato e isolado" (quando acabaram de afirmar que o dano sofrido pelo particular não acarreta perigo à sociedade) e concordam em encará-lo como "elemento de uma coletividade"12*. Mas isso não pode significar que só o interesse social é digno

de consideração, relegado a desprezo o interesse individual. Censuram os que pre- : tendem sacrificar o indivíduo à sociedade, recordando-lhes que ela "se compõe de seres vivos e ativos" e, assim, "a primeira condição de sua existência é incontestavelmente garantir a cada indivíduo a esfera de liberdade necessária para o desenvolvimento de sua 127 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit„ nQs. 350-351, ps. 419 e segs. É outra afirmação temerária. Basta pensar nas consequendas de um dano impune sobre o espírito dos que calculam, prudentemente, que amanhã tal­ vez ocupem, por sua vez, o lugar da vitima de hoje, consideração utilitária que, se quiséssemos negar qualquer sentimento de solidariedade ao meio social, seria sufidente para determinar o movimento da defesa da coletividade em face do dano. E defesa supõe perigo, o perigo de que a próxima vítima seja o espectador porventura desinteressado da desgraça alheia. O que fazem os eminentes autores, enten­ dendo sustentarem, e sinceramente, uma concepção idealista do direito e, pois, da responsabilidade dvil, é pura e simples apologia do mais aperfeiçoado egoísmo. E o direito não o prestigia. 128 Capitant, Introduction à Vétude du droit civil, 5‘ ed., na 11.

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atividade pessoal"129. Lembram, a propósito, que o grupo só subsiste e se desenvol­ ve, goza de plena atividade e age sobre o mundo exterior na plenitude de suas faculdades130. Para os Mazeaud, o indivíduo continua a ser o centro do direito e, no problema da responsabilidade, não pode deixar de colocar-se em primeiro plano. Se não se fizer assim, o que se põe em perigo é precisamente a sociedade, em nome da qual se preconiza a adoção da doutrina do risco: condenar-se-á o homem à inércia, toda iniciativa seria paralisada. Arremetem contra a opinião de Saleilles, para quem "a certeza de ser responsável vale mais que a incerteza criada pela teoria da culpa"131, e classificam de paradoxal o juízo de Demogue, quando afir­ ma, acorde com aquele, que "a certeza do mal é preferível à esperança incerta do bem"132. Reafirmam o perigo econômico da teoria do risco, em face da asserção de Demogue de que a responsabilidade paira sobre aquele que tira proveito de sua atividade, como contrapartida dos riscos que engendra, imputando-lhe o esque­ cimento de que o produtor não pode alterar arbitrária e livremente os lucros de sua empresa, de onde resulta que, se seus encargos se acumulam, ele acabará por abandonar a obra que pretendia realizar. Outro golpe desfecham os Mazeaud contra a doutrina do risco-proveito. Segundo eles, não se pode argumentar que os receios contra a teoria do risco foram dissipados pela aplicação da lei de acidentes no trabalho, porque esta não adotou inteiramente a teoria do risco, uma vez que atribui ao patrão somente a metade do dano sofrido pelo operário133. Ouanto à moral e à equidade, os Mazeaud sustentam que estão mais bem re­ conhecidas na doutrina tradicional. "Se é justo que o culpado de um dano seja obrigado a repará-lo, a equidade parece exigir que somente ele seja responsável". Na sua opinião, constitui injustiça social, em face de um fato do acaso, que deve ser suportado pela vítima, imputar-lhe as conseqüências ao autor, quando é tão irrepreensível quanto aquele, e como ele digno do interesse do jurista. Neste particular, entretan­ to, admitem que a teoria do risco-proveito se avantaja à tese puramente negativa. Mas, ainda aí, o máximo que concedem é que, comparada com a teoria da culpa, a situação é de equivalência, isto é, não se registra vantagem nem para um nem

129 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., nQ351, p. 420. 130 Bourgeois, apud Capitant, ob. e loc. cits. 131 Les accidents de travail et la responsabilité civile, Paris, 1897, ps. 76 e segs. 132 Traité des obligations, Paris, 1923, t. 3, n2 279. 133 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., n2 352, p. 422. 71

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para outro lado "A equidade exige que aquele que retira os proveitos suporte os riscos, mas exige também que não se inquiete aquele cujo procedimento é irrepreensível". Nesta ordem de raciocínio, admitem que, do ponto de vista da equidade, a teoria do risco tenha possibilidades no domínio do direito público. Não há nada de imoral, mes­ mo na ausência de culpa, em obrigar à reparação a coletividade pública causadora do dano por ato de seus agentes. Aqui já não se trata de empobrecer um particular, mas de um problema de repartição de encargos públicos134. Consideram, por último, os Mazeaud, o argumento do método histórico. Segundo este, a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, cada vez mais precisa, conduz ao resultado inevitável de eliminar a culpa civil. O ar­ gumento, sem maior atenção ao fato de que não há razão para acreditar em evolução jurídica fatal, automática, não pode vingar, uma vez que se recorde que culpa civil e culpa penal são noções perfeitamente distintas. Para os notáveis autores, pois, o mé­ todo histórico se volta contra aqueles que o pretendem utilizar, como, aliás, já opi­ navam Planiol et Ripert, classificando a doutrina do risco de “recuo que nos transporta aos tempos bárbaros, anteriores à Lei Aquilia, quando atendia somente à materialidade dos fatos. Das regras formuladas por essa lei, fizeram os juristas surgir lentamente, graças a um longo trabalho de análise, que teria de recomeçar, se a ideia simplista do risco o desfizesse"135. Rejeitando a alegada evolução, os Mazeaud concentram seu segundo ataque so­ bre a pretensa influência do desenvolvimento social e econômico contemporâneo na regra de direito. As grandes iniciativas se desenvolveram, multiplicam-se os aciden­ tes, toma-se cada vez mais necessário atender às vítimas, tudo isto é certo. Mas para isso não há necessidade de subverter noções que, como a da culpa, resultam de evolu­ ção secular. Basta encontrar o meio de saber servir-se delas: "Inteligentemente tomado, o conceito da culpa satisfaz plenamente. A jurisprudência francesa o demonstrou, conseguindo atender a todas as necessidades práticas, sem jamais negar a necessidade da culpa"136. Proclamando vitória sobre a teoria do risco, em face das objeções que lhe opõem, os Mazeaud têm ainda uma censura a lhe imputar: a de não ter situação ver­ dadeira no terreno jurídico. O direito não se contenta com mal definidas noções de sabor filosófico ou econômico. Quer princípios certos e definidos. Os juizes hão de saber a que os conduz a aplicação das normas que lhes são propostas. Podem, mais 134 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit, ne 353, p. 424. 135 Planiol et Ripert, Traité pratique de droit civil français, vol. 2, n9 863, ter. 136 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit, n2 354, p. 425. Trata-se de outra grande ilusão dos notáveis tratadistas. A jurisprudência francesa tem seu melhor mérito precisamente em haver criado um sistema de res­ ponsabilidade civil ao lado do estabelecido no Code Civil, para atender à necessidade da reparação.

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ou menos incoerentemente, atender à doutrina do proveito; sem dúvida, obedece­ rão às regras da equidade, e assim atingirão, tanto quanto possível, aquele que se beneficia da atividade propiciadora do dano. "Jamais, porém, se servirão de semelhante noção para fundamentar decisões, jamais proclamarão que pode ser responsabilizado aquele que agir sem culpa"127.

29.Defesa da teoria objetiva. Os partidários da doutrina do risco defendem-se valentemente, refutando uma a uma as arguições levantadas pelos adversários. O eminente Professor Alvino Lima reúne e expõe ordenadamente os argumentos objetivistas, mostrando, em resumo: a) Que é falsa a mais não ser a acusação de materialismo irrogada à doutrina do risco. É verdade que considera o fato em si mesmo e dele faz derivar a responsabi­ lidade. Mas assenta nos mais lídimos princípios de justiça e de equidade. Atende aos mandamentos democráticos fundamentais: a igualdade (que a teoria tradicio­ nal não consegue salvaguardar, na brutalidade da vida moderna, perante a qual o conceito da culpa se tomou irrisório), porque o risco desfaz a superioridade de condições das empresas poderosas; doutrina de fraternidade é ela, porque resul­ ta do aprimoramento das consciências em movimento de solidariedade humana; não nega, portanto, a liberdade humana, porque é a sua própria proclamação, a garantia de sua estabilidade, b) Que é contraditória, além de improcedente, a afirma­ ção de que a doutrina do risco conduzirá à inércia e paralisará a iniciativa humana. Contraditória, porque a doutrina da culpa, ao considerar os casos em que estabelece presunções juris et de jure, como no caso de culpa da guarda, consagra pura e sim­ plesmente o próprio risco, uma vez que não admite a prova de ausência de culpa. E a improcedência da objeção é evidente. A doutrina do risco tem sido ampliativamente aplicada e não há sinal de que tenha afetado o desenvolvimento econômico. As gran­ des empresas, considerando os riscos uma condição de atividade, já os fazem figurar no seu próprio passivo, c) Que a alegação de ser a doutrina do risco um retrocesso às concepções primitivas da responsabilidade não pode, só por si, impressionar. Se se reporta a noções que foram um dia abandonadas, ela o faz sob plano mais perfeito 137 Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., nQ355, p. 370. De duas, uma: ou se reconhece na expressão responsa­ bilidade civil o equivalente de reparação do dano, e assim não há nenhum mal em que se considere ' responsável quem agiu sem culpa; ou se conserva ao termo sua significação estrita e, então, o sistema defendido por Mazeaud et Mazeaud tem de despojar-se dos artifícios com que se arma, para solucio­ nar casos como a responsabilidade dos menores, dos anormais, as famosas presunções absolutas, o reconhecimento dos chamados fantasmas de culpa etc.

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e, se a sua aplicação dá bom resultado, provará que foi um erro abandoná-las. M as:; nem isso se dá, porque não há assimilação possível entre a concepção bárbara da s vingança privada e a doutrina do risco. Aquela não tinha a justificá-la nenhum prin- j cípio de ordem moral. Esta é essencialmente fundada na moral e na equidade, aten-1 dendo ao imperioso clamor em favor das vítimas dos acidentes, multiplicados pela ; vida moderna, d) Que a ausência de proveito não influi na concepção objetivista e é ; superficial a objeção a este propósito levantada. Na doutrina do risco, não se alude a proveito in concreto, mas como finalidade da atividade criadora do risco; este é o mais provável, não o realizado, e) Que, se se admitir que a teoria do risco não oferece um princípio definido, igual defeito se pode atribuir à doutrina da culpa. É confis­ são comum de todos os seus próprios partidários que a noção da culpa é imprecisa, vaga e incerta. O que se deve recordar, porém, a este respeito, é que "não há princípio jurídico, por mais lógico nas suas conclusões, por mais primoroso no seu conceito, por mais preciso nos seus contornos, que possa abranger todos os casos que pretende regular[...]"13S.

30. Refutação das doutrinas extremistas. Direitos do homem e direitos da sociedade devem orientar-se para o equilíbrio. Acrescentaremos de nossa parte, talvez desnecessariamente, que não conhe­ cemos, tampouco, procedência nas arguições acima resumidas contra a doutrina do risco. Não é certo que a doutrina do risco faça abstração da personalidade hu­ mana. Em nossa atormentada época, já se tornou habitual argumentar por um método que poderemos chamar de extremista. Sustenta alguém que a pessoa hu­ mana é digna de respeito e seus adversários clamam que isso é individualismo ferrenho, que a sociedade é que importa etc. Em compensação, quando se invocam os direitos da coletividade, não tarda o outro grupo em bradar, alarmado, que essa opinião representa desprezo da responsabilidade humana, com sua alma e seu inextinguível valor moral139. 138 Da culpa ao risco, n - 132, p. 142. 139 Na sua magnífica luddez, Clovis Bevilaqua nos chama ao bom entendimento da questão, registrando a evolução da fórmula da Revolução Francesa, reconsiderada pelos sociólogos, para lhe firmarem o valor atual: "Há, no conceito de liberdade, dois elementosfundamentais: a) a exparisão das energias, que deve ser orien­ tada ético-juridicamente, para que realize o progresso dentro da ordem; b) o respeito à dignidade humana, barreira ético-jurídica contra os abusos do Poder Público, a absorção pela sociedade (...). A liberdade é base e finalidade de toda organização social justa e progressiva. Somente os governos despóticos desconhecem a significação social da liberdade; os outros, ainda que, por vezes, a conculquem ou menosprezem, procuram justificar-se, o que é modo de homenageá-la. A igualdade, nafórmula agora considerada, ê igualdade jurídica: capacidade de direito a mesma para todos nas relações de ordem privada, extinção de privilégiosl...]. A fraternidade... deve ser hoje entendida

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Parece que é tempo de desfazer esses equívocos: nem admitir o Leviatã, nem reconhecer o indivíduo todo-poderoso espécie de contradictio in adjectou0, porque o exercício de direito tão vasto haveria de invadir, forçosamente, o círculo do direito de outro indivíduo, do que resultaria ser tal concepção antiindividualista, antes de anti-social, pelo menos em relação aos indivíduos atingidos pelo absolutismo do direito daqueles. Meditando nisso, hão de concluir os espíritos democráticos que a situação desejável é a do equilíbrio, onde impere a conciliação entre os direitos do homem e seus deveres para com os seus semelhantes. O conflito de interesses não é per­ manente, como quer fazer crer a doutrina extremista, mas ocasional. E quando ele ocorra, então, sem nenhuma dúvida, o que há de prevalecer é o interesse da coletividade. Não hesitamos em consentir na amputação do membro que põe em risco a nossa vida. Não podemos, por qualquer motivo, permitir que o direito do indivíduo todo-poderoso atinja, não outro indivíduo, mas toda a coletividade. Na doutrina do risco, nitidamente democrática, não se chega jamais à conseqüência de afirmar o princípio, aparentemente individualista, mas, em essência, de sentido oposto, nitidamente autocrático, de que o direito de um pode prejudicar a outro, pode ultrapassar as raias da normalidade e fazer do seu titular um pequeno mo­ narca absoluto141. Também não pode ser aceita-nos termos em que é proposta pelos Mazeaud, a diferença entre culpa civil e culpa penal. O argumento, a que os eminentes autores parecem emprestar tanto valor, é, na realidade, contraproducente. Estudaremos, mais adiante, a figura da culpa, mas é conveniente adiantar algumas considerações sobre o assunto. Para nós, a culpa é a situação contrária ao que consideramos, recorrendo à linguagem teológica, o estado de graça, isto é, aquele em que não há possibilida­ de de censura, em face da lei moral, da lei positiva ou de quaisquer espécies de mandamento imposto ao homem, como tal, como membro da sociedade ou como como a consciência da unidade familiar, nacional e humana [...]" . (A fórmula - Liberdade, igualdade e fra­ ternidade, sociologicamente considerada, em Jornal do Comércio, 4 de julho de 1943, p. 4). 140 O individualismo integral nunca existiu (John M. Clark, Social Control of Business, N. Y., 1939, 2* ed., p. 32). 141 Diz Pontes de Miranda, muito a propósito, que: "Se todos têm de per si direitos, se o espaço A pode sei' preenchido pelo exercício de mais de um direito, é de mister que se regule esta possibilidade de relação entre direitos" (ob. cit., n9 83, p. 160).

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D a R e s p o n s a b ilid a d |

religioso142. Ora, a teoria subjetiva admite a responsabilidade quando não ha pos- ; sibilidade de semelhante censura. Para fugir à dificuldade, proíbe a prova em con­ trário. Exatamente como o ditador que, não querendo admitir que seu povo passe fome, começa por fuzilar os famintos. O argumento de que a adoção da teoria do risco condenaria o homem à inér­ cia está desmoralizado pelos fatos. E tão desmoralizado, que os irmãos Mazeaud, dispondo de fascinantes recursos para sustentar sua tese, invocam simplesmente a circunstância de, em seu país, atribuir a lei de acidentes do trabalho tão-somente a metade do dano ao operário prejudicado. O argumento se desfaria com a recordação de que na maioria dos países vigora outro critério, se não fosse de si mesmo insub­ sistente, porque o que se discute é o princípio e não a sua aplicação quantitativa.

31. Os verdadeiros defeitos da teoria objetiva.

A doutrina do risco não está, porém, isenta de crítica. A começar pela denomi- : nação. Se o que se quer determinar é o fundamento da responsabilidade, é bem de ver que a expressão teoria do risco não compreende o que pretende exprimir. Muito mais precisa, se bem que limitada ainda pela relativa pobreza da linguagem técnica, é a expressão teoria do risco criado. Ambas deixam sem resposta a questão capital da causa: por que deve o homem arcar com o risco, ou, ainda, por que deve supor­ tar o risco que criou? Esta palpitante indagação não é satisfatoriamente respondida pelo princípio do interesse, ubi emolumentum, ibi incommoda, que, certamente, tem seu lugar na consideração do problema mas, de si só, se mostra insuficiente. Esmein o proclama como sinal de que a responsabilidade objetiva acaba em um beco sem saída143. Marton, no entanto, repõe a situação nos seus devidos termos, esclarecendo não haver como concluir daí que a doutrina é viciosa. A conclusão única que daí se pode extrair é que os autores têm sido malsucedidos no propósito de proporcionar uma justa interpretação dos fenômenos. A observação de Esmein não deve ser con­ siderada, portanto, senão como estímulo para a procura das razões suficientes, que, com toda a certeza, existem144. Para Marton, outro vício fundamental da doutrina francesa do risco reside na concepção que admite dois pólos da responsabilidade civil, em derradeira 142 A engenhosa criação do bonus paterfamilias, do homem prudente e diligente, do average man, não resiste a um confronto com o princípio de que parte a teoria da culpa: in lexAquilia et levíssima culpa venit. 143 Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1935, p. 65. 144 Marton, ob. cit., na 70, nota 5, p. 212.

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homenagem à doutrina tradicional. Classifica-se de "política de compromisso", inaceitável do ponto de vista científico. As censuras de Marton ao sistema objetivo são resumidas em três conclusões: a) Falta de visão de conjunto. Se a teoria do direito penal pesquisa, há mais de um século, os fundamentos da responsabilidade penal, a mesma coisa se deve dar em relação à responsabilidade civil. A punição é noção tão complexa como a reparação e esta não pode, sem explicação mais precisa, considerar-se como conseqüência quase mecânica da culpa, tanto mais que sem ela também ocorre a obrigação de indenizar. b) Falta de análise suficiente dos elementos de fato da responsabilidade. A omissão repercute desfavoravelmente ao sistema, por influência, ainda, da doutrina da cul­ pa. E indispensável afastar a confusão criada pela abstração dos elementos de fato que concorrem na configuração dos diversos casos de responsabilidade civil. Só depois de os distinguir e analisar, é possível estabelecer uma concepção unitária. c) Falta de síntese dos motivos da responsabilidade civil. Os juristas que se têm ocupado da responsabilidade civil ora se limitam a referir alguns ou quase todos, sem conceber a sistematização, ora nem sequer alcançam esse ponto, ficando no enunciado de algum motivo isolado, que se revela naturalmente incapaz de satisfazer o requisito de base da responsabilidade civil145.

32. Os sistemas de conciliação e sua crítica. Os sistemas de conciliação, resguardando a noção da falta, mas instituindo, a seu lado, certo campo de ação para a concepção objetiva, sugerem uma responsabili­ dade ordinária de par com uma responsabilidade extraordinária, de que já era sinal a expressão de Josserand, quando se referia aos dois pólos da responsabilidade civil. A teoria apresentada por Demogue é desse teor. Verificando que a ideia do proveito econômico não é, apesar de sua importância, a chave das dificuldades, sugere que a teoria do risco só deve ser invocada quando há, por parte do autor do dano, empre­ go de um organismo perigoso146. Bettremieux, outro conciliador, mantendo quanto às mais a teoria da culpa, propõe duas esferas de influência para a teoria do risco: a do fato danoso anormal e a do fato danoso normal, quando resulte de exploração instrumental que coloque a 145 Marton, ob. rit, nB72, ps. 215 e segs. 146 Demogue, Traité des obligations en général, t. 3, rï?286.

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vítima e o autor do dano em momentânea situação de desigualdade material desfa-! vorável àquela147. Savatier concebe uma teoria que distingue o risco e a culpa como fontes da responsabilidade civil, e fá-lo com o aplauso de Ripert, que, em prefácio a seu livro,

considera: "O grande mérito de M. Savatier é haver mostrado em seu livro que, sob o mesmo \ nome de responsabilidade civil, há duas instituições jurídicas bem diferentes. Sem dúvida; isso já havia sido notado, mas ele é o primeiro a apresentar uma teoría completa, distinguindo como fontes da reparação e, sobretudo, relacionando, na teoría do risco, regras tradicional-1

mente ligadas à ideia da culpa, como, por exemplo, a responsabilidade do comitente. Mostra, Ji

aliás admiravelmente, que a ideia da culpa deve conservar o seu primado no direito e que | substituir a culpa pelo risco seria consagrar a vitória da matéria sobre o espirito "14í. Combatendo vivamente essas teorias, dizem os Mazeaud que caem todas sob f

os golpes desferidos contra a teoria do risco. A necessidade da culpa para estabele- |

cer a responsabilidade permanece em todos os sentidos. Em situações excepcionais, ?

bem definidas, é possível admitir derrogações ao princípio. Nunca, porém, mesmo ¡ em campo restrito, se o risco é aí suscetível de aplicação ilimitada149.

Para Marton, as teorias conciliadoras (Josserand, Demogue, Bettremieux, ;

Cesar-Bru et Morin, Savatier) são artificiais e forçadas. Apresentam o vício comum I

de assentar suas bases em noções exteriores e de exclusividade na aplicação do prin- :í cípio proposto, o que importa lhes negar valor científico, anão ser como contribui­ ção, jamais como solução de problema150. Nosso ponto de vista vem sendo expres­ sado em sentido diferente. Sem dúvida, é desejável estabelecer um sistema unitário de responsabilidade civil. Enquanto isso não se faz, as soluções têm de ser, como presentemente, subordinadas a essas contingências. As soluções de compromisso provam precisamente o período de transição para um sistema unitário. Enquanto não se estabelecem em base científica capaz de impor-se ao espírito jurídico, as so­ luções serão, como expressivamente diz H. Lalou, de vários matizes, comportando ' distinções e subdistinções, e encerrando o problema da responsabilidade civil em termos verdadeiramente casuísticos151. 147 Essai historique et critique sur le fondement de la responsabilité civile en droitfrançais, tese, Lille, 1921, n8 55. 148 Traité de la responsabilité civile en droit français, prefâdo, 149 Mazeaud et Mazeaud, nQ360, p. 372. 150 Marton, ob. cit., n° 72, nota 2, p. 218. 151 Lalou, La responsabilité civile, n2 1.684, p. 768.

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XII.



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33. Aceitação da doutrina objetiva na legislação. A teoria objetiva, não obstante o árduo combate que tem enfrentado, vingou amplamente em alguns terrenos, como nos acidentes no trabalho, nos transportes ferroviários e urbanos e nos acidentes causados pelos aviões a passageiros e a tercei­ ros na superfície. Nas codificações, a introdução da doutrina objetiva como princípio geral não logrou êxito até agora. Afora essas inserções na lei comum, a teoria objetiva se estabeleceu firmemente, através de leis especiais, em vários setores de atividade. Não existe mais exceção quanto aos acidentes no trabalho, esfera essa que domi­ na incontestavelmente o risco, a ponto de se destacar da responsabilidade dvil, como assunto que merece tratamento à parte. Não julgamos necessário considerá-lo mais demoradamente. Em matéria de automóveis, a doutrina objetiva vem fazendo constantes pro­ gressos. Foi a Dinamarca, por uma lei de 1906, o primeiro país a aplicá-la à respon­ sabilidade derivada de acidente de automóveis. Seguiram-se a esse exemplo disposi­ ções idênticas nas legislações austríaca (1908), alemã (1909) e italiana (1912). Quanto à França, sua jurisprudência consagrou a solução, através do famoso aresto de 13 de fe­ vereiro de 1930, que assinalou o termo da reconhecida luta entre as duas tendências. No direito aéreo, a responsabilidade objetiva está hoje uniformemente reconheci­ da em todo o mundo, quer relativamente aos danos sofridos pelos passageiros duran­ te o transporte, quer relativamente aos danos causados a terceiros na superfície, nos termos do Protocolo que modificou a Convenção sobre Danos Causados a Terceiros na Superfície, por Aeronaves Estrangeiras, assinado durante a Conferência Internacional de Direito Aéreo, realizada em Montreal, de 6 a 23 de setembro de 1998, promulgado no Brasil por força do Decreto n. 3.256, publicado no DOU de 19.11.1999. Convenções posteriores sobre a aviação dvil podem ser consultadas no website do Ministério das Relações Exteriores (www.mre.gov.br) ou no website da Revista Brasileira de Direito Aeroespadal iwww.sbda.org.br'). Registre-se que nos termos da Convenção de Montreal, assinada em 1999, a responsabilidade objetiva será exigível apenas até determinado montante, a partir do qual opera-se a culpa presumida. Vamos abordar o tema, quando tratarmos especificamente sobre o transporte aéreo. Em vários pontos, não obstante seu sistema continuar filiado à doutrina subjetivista, acolhe a lei brasileira a teoria objetiva. Indicamos, porém, aqui, sumariamen­ te, os dispositivos que consideramos enquadrados no sistema objetivo: Constituição Federal, art. 37, § 62, Lei de addentes do trabalho (Decreto n2 24.637, de 1934; 79

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D a R e s p o n s a b iu d a J

Decreto-Lei n9 7.036, de 10 de novembro de 1944; Lei n9 6.367, de 19 de outubro de \ 1976); arts. 226,246 e segs. do Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei n9 7.565, de 19 de J dezembro de 1986; os arts. 187, 734, 927, 931, 933, 936, 937, 938; os arts. 16, n9 VII, e 34 I n9 XV, do Código de Minas, hoje substituído pelo Código de Mineração, (Decreto-Lei

n9 277, de 28 de fevereiro de 1967); diversos artigos do Código do Consumidor (Lei na 1 8.078, de 11 de setembro de 1990).

C a p ít u l o III

O ÔNUS DA PROVA S u m á r io : 3 4 . R e s p o n s a b il i d a d e

o b je t iv a e p r e s u n ç ã o d e c u l p a .

35. O

p e s a d o ô n u s im p o s t o p e l o b r o c a r d o

ACTORI INCUMBIT PROBATIO. 3 6 . PROVA DO PREJUÍZO. 3 7 . NECESSIDADE DA PROVA DE DANO NA AÇÃO. S em

ela ,

não

C lá u su la P cu lpa .

s e p o d e ju l g á - l a

en a l.

A

V e r d a d e ir o

4 1 . F ic ç ã o

rras

P

procedente.

e n it e n c ia is .

O

3 8 . P resu n ção

do

p r e ju íz o .

s e n t id o do p r in c íp io a c t o r i in c u m b it p r o b a t io .

e presu n çã o .

A

l iç ã o d e

J uros

u t r o s ca so s d e p r e s u n ç ã o d o p r e ju íz o .

A rn o ld o M

m o r a t o r io s .

3 9 . P ro va

40. P resunções

de

d e cu lpa .

e d e ir o s .

34. Responsabilidade objetiva e presunção de culpa. Não confundimos, pelo menos propositadamente, os casos de responsabilidade objetiva com os de presunção de culpa. Na realidade, como já tivemos ocasião de dizer, o expediente da presunção de culpa é, embora o não confessem os subjetivistas, mero reconhecimento da necessidade de admitir o critério objetivo. Teoricamente, porém, observa-se a distinção, motivo por que só incluímos como casos de responsabilidade objetiva os que são confessadamente filiados a esse sistema. Assim, não quisemos alu­ dir ao Decreto ns 2.681, regulador da responsabilidade das estradas de ferro, que se funda, por declarações reiteradas de seus textos, em presunção de culpa (mas que para nós encerra hipótese inexorável de responsabilidade objetiva), nem a outros dispositi­ vos de lei, onde houve o propósito de conservar a culpa como base da responsabilida­ de. Exemplo frisante disso tinha o antigo Código Brasileiro do Ar, conforme se tratasse de responsabilidade perante passageiros ou perante terceiros. Em essência, repetimos, a assimilação entre um e outro sistema é perfeita, significando o abandono disfarça­ do ou ostensivo, conforme o caso, do princípio da culpa como fundamento único da responsabilidade. Em teoria, a distinção subsiste, ilustrada por exemplo prático: no sistema da culpa, sem ela, real ou artificialmente criada, não há responsabilidade; no : sistema objetivo, responde-se sem culpa, ou melhor, esta indagação não tem lugar. Aliás, há quem sustente a impropriedade da expressão "responsabilidade objetiva", oposta a "responsabilidade subjetiva", partindo da consideração de que o critério que informa a responsabilidade de acordo com o padrão do bom pai de família é objetivo (o que não importa tomar objetivo o sistema), ao passo que na chamada responsabi­ lidade objetiva encontram-se aspectos pessoais, que excluem a simples causalidade, princípio sobre que se teria edificado o sistema objetivo152. 152 Maiton, ob. cit., n° 134, p. 430.

81

C a p ítu lo

IV

A SOLUÇÃO UNITÁRIA DE MARTON

Sumário: 42. A VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO

PREEXISTENTE É A FONTE DA RESPONSABILIDADE.

POR FATO DE OUTREM E SUA CONCILIAÇÃO COM O SISTEMA. IDEIA DA PREVENÇÃO.

45.

O PRINCÍPIO DA RESTITUIÇÃO.

49.

43. A

RESPONSABILIDADE

EFEITO S DA RESPONSABILIDADE.

A

FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL: a ) PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO

B) PRINCÍPIOS ACESSÓRIOS DE CARÁTER ECONÔMICO-POLÍTICO. IDEIA DA CULPA.

44.

47. A

46.

INFLUÊNCIA DA EQUIDADE.

C R ÍTIC A DA DOUTRINA DE M ARTO N .

48.

SENTIDO DE CONSERVAÇÃO DA

CONVERGÊNCIA DAS DIVERSAS CORRENTES AO FIM COMUM DE ASSEGURAR JUSTIÇA

AO PREJUDICADO.

42. A violação da obrigação preexistente é a fonte da responsabilidade. Tentando novamente o que foi a ambição frustrada de Venezian, Saleilles, Josserand e outros, Marton esboça, com dados tomados às doutrinas objetivas, mas completados por opulenta contribuição pessoal, o seu sistema unitário. Parte da definição de que a responsabilidade é necessariamente uma reação provocada pela infração a um dever preexistente176. A obrigação preexistente é a verdadeira fonte da responsabilidade, e deriva, por sua vez, de qualquer fator social capaz de criar normas de conduta. O jus cogens, isto é, a disposição normativa, é inva­ riável. Mas o legislador não as estabelece para todos os casos e é onde intervém o jus dispositivum, ou seja, as disposições em que se admitem a vontade das partes, de que são exemplos a sucessão testamentária, em lugar da sucessão he­ reditária, quanto à parte disponível da herança; e o contrato, em que as partes regulam relações por meio de normas a que dão força de lei, porque constituem lei supletiva, exatamente como estabelece o aforismo contractus contrahentibus legem ponit. "E evidente - diz Marton - que a força obrigatória do contrato emana da lei, 176 Marton, ob. cit., nQ84, p. 84. Sua definição tem os melhores fundamentos. Esse caráter objetivo da responsabilidade é posto em relevo por uma verdadeira legião de bons autores: Venezian: "O conceito de responsabilidade [...] corresponde ao de obrigação derivada do ilícito". Sertilianges: "Onde não houvesse normas, não haveria responsabilidade, porque não se teria de responder a questão impossível de formular". Fauconnet: "É responsável aquele a quem a condenação deve ferir". Savatier: "[...] a responsa­ bilidade civil deve definir-se como a obrigação de tomar a nosso cargo as conseqüências de nossa atitude". Dabin: "responsabilidade se entendem [...] as sanções consecutivas à transgressão". Kelsen: "Quando se diz que uma pessoa responde, isso significa que, mediante certos fatos, uma sanção foi estabelecida contra ela" (apud Marton, ob. e loc. cits., nota 1).

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-porque a simples vontade das partes, se não as tomasse a lei sob proteção, não poderia ter essa força"177. Estabelecido o primeiro elemento, temos o segundo, aquele intimamente liga­ do: é a violação do dever preexistente. Neste segundo elemento é que o estado de responsabilidade se distingue do estado de simples obrigação: "O estado de responsa­ bilidade não é senão o estado sobrevindo em conseqüência da inexecução da obrigação, dando lugar à aplicação de sanções"17*.

43. A responsabilidade por fato de outrem e sua conciliação com o sistema. A responsabilidade por fato de outrem não contradiz esse entendimento, porque é responsabilidade derivada da obrigação do próprio responsável, pela concepção de que existe, a cargo dele, o dever de suportar, uma vez concretizada a hipótese, sozinho ou em conjunto com o agente, as conseqüências desse fato. Assim, o curador do alienado, quando responde pelos danos que este causa (art. 932, II do CC de 2002), o faz em razão do funcionamento daquela concepção: é o ato do alienado que cria a obrigação e a responsabilidade179. Construção semelhante pode ser observada na figura da fiança. A obrigação do fiador preexiste ao vencimento da dívida principal. Sua responsabilidade, porém, só emerge depois do vencimento. E se não se trata de fiador que seja tam­ bém principal pagador ou solidário, gozando do benefício de ordem, é condição do evento de sua obrigação o insucesso ou impraticabilidade da execução prévia do afiançado180. Nessa mesma ordem de considerações, depara-se a absurda diferença estabe­ lecida por muitos juristas entre responsabilidade e garantia. A essa distinção, que é outro dos expedientes para encobrir a irremediável limitação da doutrina subjetiva, 177 Marton, ob. d t, n2 85, p.

261.

178 Marton, ob. dt., ne 88, p.

273.

179 Marton, ob. d t, n2 90, p. 277. O notável escritor húngaro adverte que não se pode explicar a disposição referida com a observação de que o curador, obrigado a certa atitude, a vigilânda, é responsável em razão de violação desse dever. Tal interpretação só se pode aceitar em legislação que admita a escusa, mediante a prova da impossibilidade de evitar o ato danoso, e não é isso o que ocorre na generalidade dos Códigos. O legislador, prossegue ele, parte, sem dúvida, da convicção de que o responsável tudo fará para evitar que a pessoa por quem responde produza dano. Mas isso não importa em fazer dessa suposição um ele­ mento de responsabilidade: "É como se o legislador lhe dissesse: considero-te responsável, pouco me importando cjue vigies ou não - em lugar de dizer: obrigo-te, para cjue vigies" (ob. e loc. dts., nota 4, p. 278). 180 Marton, ob. dt., n2 90, p.

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279; CódigoCivilde

2002, arts. 827 e 828.

Da Responsabilidade Civil

falta qualquer sentido. Mostra-o Marton, lembrando que aquele que responde como garante o faz em virtude de sua própria obrigação, como qualquer outro devedor"*1.

44. Efeitos da responsabilidade. A ideia da prevenção. Conhecidos os pressupostos da responsabilidade, é oportuno apreciar os seus efeitos, traduzidos nas sanções a que se expõe aquele que incorre em responsabilida­ de. Elas são o meio de que se vale o legislador para assegurar o respeito à norma que se empenha em fazer valer. E por isso que se consideram acessórios dessa norma, por­ que nada vale a regra despojada de sanção. Desta é inseparável, portanto, a ideia de prevenção, porque representa o esforço do legislador no sentido de evitar, de prevenir a infração182. As sanções podem ser repressivas e restitutivas. Estas visam à reconsti­ tuição da situação alterada pelo dano, aquelas visam a infligir castigo ao responsável. Essa diferença entre as duas espécies de sanções é a única que na verdade se pode admitir, porque, fundamentalmente, as sanções se identificam pela fina­ lidade comum de preservar a norma estabelecida. "A restituição é um meio mais doce, mais suave que a pena, e justamente por isso seu emprego apresenta certas vanta­ gens sobre o outro f...J"183.

45. Fundamentos da responsabilidade civil: a) princípio da prevenção; b) princípios acessórios de caráter económico-político. Com esses dados preliminares, Marton, partindo da responsabilidade moral, cuja concepção varia segundo o ponto de vista individual ou social’84, e passando à responsabilidade jurídica, estabelece os fundamentos da responsabilidade civil: a)

princípio da prevenção: Marton estranha que nunca se tenha atribuído a

merecida importância à ideia da prevenção como princípio da responsabilidade 181 Marton, ob. dt., nfl 91, p. 280. 182 Marton, ob. d t, na 92, p. 282. 183 Marton, ob. d t, n2 92, p. 289. 184 A concepção individual, profundamente egoísta, evolui, a pouco e pouco, para a concepção sodal, estimulada pela equidade; a segunda não é, pois, senão a moral individual do homem moralmente superior, pois as duas tendêndas lutam na consciência do homem. Bem diz Bergson que cada um de nós tem um eu individual e um eu social, que completam e integram a nossa personalidade.

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c iv illss, censura que endereça ao próprio Rümelin186, porque, apesar de tudo, não • fez da prevenção o seu princípio capital187. Em compensação, sua convicção é ex- J posta com pleno desassombro: "[...] a prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas também da repressão civil. Pena e reparação, profundamente diferen- ,] tes na estrutura interna, são, sem embargos, meios iguais da mesma política legislativa; J

servem, como disse muito bem Von Liszt, em derradeira análise, ao mesmo fim social, a 1 defesa da ordem jurídica, lutando contra a injustiça"m . A culpa não é elemento indis- I pensável da ideia de prevenção, que exige, contudo, o laço de causalidade entre o ] dano e o responsável189, e fica sujeita a limitações: a força maior (limite natural) e

j

a causa estranha (limite jurídico), o que é facilmente compreensível, porque exigir prevenção em relação a fatos que ninguém pode prever seria exigência absurda190; b)

ao lado da prevenção, Marton coloca motivos auxiliares ou princípi

acessórios da responsabilidade civil, de caráter econômico-político: 1) princípio i

do interesse ativo, em dupla função: a positiva, adequada a criar ou aumentar a í responsabilidade, pela consideração de que, na maioria dos casos em que o pro­ blema da responsabilidade se apresenta, é o resultado de uma atividade exercida

jj

no interesse do agente; e a negativa, decorrência lógica daquela, pois, se a presen- 1 ça do interesse influi no sentido de elevar ao máximo a exigência da prevenção,

;

a sua ausência deve, forçosamente, acarretar o efeito contrário. Delimita-se, em 9

conseqüência, o princípio do interesse ativo pela fixação da causa próxima e da i

causa estranha, aquela que pertence à esfera de interesses do agente, esta, a que |

exorbita desse plano191; 2) princípio do maior interesse social. Não se pode admitir | 185 Com efeito, não é bem assim. O elemento prevenção foi muitas vezes assinalado na responsabilidade dvil e até, por certos autores, com grande força. O que deixaram de fazer, e Marton realizou, foi destacá-lo como prindpio fundamental. Nesse caráter, na verdade, ele não se encontra em nenhum dos autores, que, entretanto, algumas vezes, com acentuado vigor, lhe denundaram a presença na origem da responsabilidade dvil. Cf. a este respeito Demogue, ob. d t, n2 317; Dabin, ob. dt., n2 524; Teisseire, ob. cit, p. 312. Marton, aliás, se refere a esses autores, sem reconhecer, entretanto, que só lhes faltou admitir francamente a prevenção como fundamento essendal e não como simples ele­ mento da responsabilidade dvil. 186 Gustave Rümelin admite a prevenção, em seu sistema, como o prindpio diretor da responsabilidade dvil; no seu Culpahaftung und Causahaftung, o ideal do legislador não é o homem prudente, o bom pai de família, mas o homem que de um relance calcula as possibilidades. Essa atitude que a lei indica, fazendo com que o agente responda pelo resultado de procedimento contrário a ela (apud Marton, ob. d t, n9 66, p. 178 e segs). 187 Marton, ob. d t, n2 108, p. 344 e segs. 188 Marton, ob. d t, n2109, p. 363. 189 Marton, ob. d t, n2 110, p. 357. 190 Marton, ob. d t, n2 112, p. 362. 191 Marton, ob. d t, n2s. 114-115, ps. 366 e segs.

Da Responsabilidade Civil

um meio de reparar que cause maior dano do que o que quer remediar. O summum jus, summa injuria é o preceito a que aqui se atende, influindo nas particularidades do problema. Delas, assume grande relevo a situação econômica das partes192; 3) principio da repartição dos danos, "exigência econômica em virtude da qual o dano, para ser suportado facilmente, deve, de acordo com planos metódicos, ser repartido entre os interessados[...]''193. A prevenção é também exigência económico-política. Marton, porém, sem deixar de o assinalar, explica por que enxerga diferença entre o seu princípio es­ sencial e esses acessórios. E que, para ele, a prevenção é "uma tendência, uma ati­ vidade do Estado, de caráter universal, desenvolvida com a finalidade de manter a ordem pública... E a ideia da prevenção que luta pela existência da sociedade [...]", não contendo os outros princípios senão meios de regular, moderar ou modificar a tática dessa luta (ob. cit., ne 113, p. 365). Herotides da Silva Lima entende também que o fundamento da responsabi­ lidade civil é quase o mesmo da responsabilidade penal: "a proteção da integridade física, do direito à saúde e à incolumidade do corpo, da classe desses direitos elementares e irredutíveis das coletividades civilizadas, sobre os quais as leis e as próprias Constituições dos Estados fortes, como o nosso, o alemão e o italiano, ocuparam-se, de expresso, com a maior solicitude e oportunidade". O douto magistrado paulista ainda acha ensejo, pouco adiante, para classificar de românticos (como se ao jurista ficasse mal ser idealista) os elaboradores da Constituição de 1891 (Revista dos Tribunais, vol. 139, ps. 8 e segs.). Já temos, aliás, ouvido mais de uma vez, a suposta ironia de classificar como românticos os autores da Constituição de 1891. A censura lhes foi uma vez endereçada precisamente com base em haverem condenado a guerra de conquista. Mas isso não espanta, pois sempre se observa que os censores ou são ignorantes ou desafetos da norma jurídica. Proferida por um jurista do valor do magistrado paulista, entristece, porque parte de autoridade. Se é certo que o fundamento da responsabilidade civil é quase o mesmo da responsabilidade penal, duvidamos, data venia, de que a proteção aos direitos elementares seja uma preocupação dos chamados Estados fortes, máxime se, por aí, se pretende estabelecer um contraste desprimoroso para as democracias. Nossa convicção irredutível é, pois, que a responsabilidade civil, no seu magnífico padrão moral, é conquista nitidamente democrática. Sem embargo dos 192 Marton, ob. cit., nfl 116, p. 375. 193 Marton, ob. cit., nQ117, p. 376.

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inequívocos ataques que desfecharam contra o individualismo, o certo é que os mais eminentes defensores das concepções solidaristas, como Josserand e Morin, por exemplo, jamais pretenderam esboçar ataque à democracia, e nem indireta- II mente fizeram a apologia do chamado Estado forte como, acreditamos, só 'por ex- -I cesso verbal, fez um juiz com o prestígio do articulista. Na ardilosa exploração que | os interessados promoveram, nenhuma culpa tiveram aqueles autores, que não M poderiam tolerar, exatamente pela profunda generosidade de suas ideias, as tor- I vas expressões do arbítrio policial, cuja brutalidade, decerto, condenam, com justa 3 indignação e horror, encarando como das mais despejadas afrontas ao interesse so- i ciai a noção primária de que alguém, pretensamente infalível, seja capaz de pensar 1 pela coletividade, até mesmo nas suas exigências mais mínimas.

46. Crítica da doutrina de Marton. O princípio da restituição. Marton esgota, com os princípios acima expostos, o seu sistema da respon-

sabilidade civil. Nós o consideramos uma preciosa contribuição para a solução g

do problema e aceitamos, ponto por ponto, a sua doutrina, que consideramos a 3 mais racional de quantas se propuseram resolver a questão dos fundamentos da responsabilidade civil194. Contudo, temos a impressão de que falta ao sistema, tão bem elaborado, jg um elemento que consideramos também fundamental na responsabilidade civil: "j o princípio da restituição, que completa o da prevenção. Não se pode dizer que i aquele está compreendido neste, pelo seu conteúdo de sanção restitutiva, por- ; que a influência da restituição, senão maior, é pelo menos igual à da prevenção. 4 Queremos dizer que a preocupação de restituir, se não prima sobre a de prevenir, ij é equivalente e paralela ao princípio da prevenção. Marton parece considerar tão-somente a prevenção e, a título de sanção, a restituição. Pode ser que, em

última análise, não se trate senão de uma questão de palavras. Mas entendemos | que a restituição está presente no problema da responsabilidade a dois títulos: no de sanção, com que aparece no sistema de Marton, e, mais importante do que 194 Marton, ob. dt., na 118, p. 381. Este princípio foi erradamente tomado como consagrador da justiça de Salomão, dizendo-se que esta não pode ser tomada como modelo de justiça. Marton refuta com muita felicidade essa objeção irônica, discreteando sobre o que pode significar justiça de Salomão. Se com isso se quer referir uma justiça que corta as dificuldades dividindo cegamente, por sistema, o direito em litígio, ela é a negação da justiça. Mas se visa à justiça em que, em lugar de se entrinchei­ rar em noções antiquadas, o julgador procura aproximar a justiça humana no texto, então não pode haver melhor forma de justiça (ob. cit, n2 122, p. 396).

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no primeiro sentido, também no de interesse social da restauração do equilíbrio violado. No sentido de sanção, a restituição é ato de execução, operação práti­ ca que decorre do estabelecimento da responsabilidade civil. No de principio .: substancial é, tanto como a prevenção, e não podendo, até por atenção ao seu significado, ser confundida com ela195, "uma condição imperiosa da vida em comum", "urna tendencia, uma atividade do Estado, de caráter universal", como elegantemente classifica Marton o principio preventivo196. Ocorre, a respeito da restituição, fenômeno semelhante ao que Marton assi­ nala para os elementos económico-políticos influentes na responsabilidade civil. Com a noção que lhe dá o notável tratadista, a restituição fica, com aqueles, relegada ao plano dos danos já ocorridos. Como princípio essencial, é, como a prevenção, elemento da conservação da ordem social. Se o consideramos assim, não há dificuldade em reconhecer a obrigação de reparar por parte dos menores, loucos e, em geral, das pessoas privadas de discernimento. Só com a ideia de prevenção e de sanção restitutiva, é preciso convir, essa responsabilidade não assentará em base segura, porque o louco, por exemplo, é insensível ao aviso e, quanto à sanção, tampouco alcançaria o legislador o menor efeito sobre ele. Assim, concebendo a sua responsabilidade como fundada no princípio da resti­ tuição, não há que cogitar da repreensão que tenha sobre ele, psicologicamente, a obrigação de reconstituir o estado anterior: o seu patrimônio compõe o dano e com isto se opera a saíísfação do interesse social da restituição. Desses dados se observa, entretanto, que, no plano temporal, a prevenção, com o caráter de intimidação, visando a evitar o dano, dá à responsabilidade ci­ vil o aspecto de meio relacionado ao futuro; enquanto a restituição lhe atribui um meio ligado ao passado, porque trata de restaurar. Ora, entre esses dois termos fica, como contemplação presente da responsabilidade civil, a manutenção do equilíbrio social, que se afere de acordo com a ordem jurídico-política vigente. Parece-nos preferível colocar, como fundamento primário da responsabilidade civil, o interesse da manutenção do equilíbrio social estabelecido, porque contém os dois elementos. 195 Com efeito, prevenção, ação ou efeito de prevenir é o aviso prévio, a precaução, a informação an­ tecipada, a disposição preparatória, ação de obstar ou impedir. De todas essas acepções, nenhuma alcança sentido mais amplo que o de simples intimidação. 196 Marton, ob. cit., n9113, p. 365.

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47. A influência da equidade. O sistema que julgamos capaz de resolver o problema da responsabilidade ',

civil197 atribui considerável papel à equidade, ao reconhecer influência à situação; | econômica das partes. Esta será objeto da prudente apreciação do juiz, na ocasião j

da regulação das perdas e danos. Por influência da situação econômica das par- § tes, não se deve entender que o rico deva sempre pagar e o pobre não deva pagar j

nunca, o que seria pura aplicação de indefensável justiça de classe, mas que, na ' atribuição do ônus de indenizar, o juiz deve "manter uma certa pressão psíquica, I suficiente, segundo o grau de desenvolvimento da sociedade em questão, para prevenir i danos, evitando, tanto quanto possível, todo abalo supérfluo à situação de riqueza da pessoa:J incumbida da reparação"m .

Essa livre apreciação do juiz, indispensável, enfim, em qualquer sistema de 4

justiça distributiva, em face de peculiaridades dos problemas sujeitos ao seu julga- 3

mento, é vivamente combatida, como faculdade perigosa, por parte de muitos au- y, tores. Desse número é Henri Mazeaud, que, em crítica ao Código Civil polonês, lhe j

censura a orientação, dizendo: "Estabelecer uma regra e decidir em seguida que essa regra |

cede, quando a equidade o exige, não é pôr a perder toda a sua utilidade? O fim essencial da '% lei é dar segurança, permitir-nos conhecer exatamente as conseqüências de nossos atos. Esse J

fim é frustrado, se a regra é suscetível de amoldar-se em certas situações, não determinadas ~ previamente que o juiz fixa em plena autonomia, em nome da equidade"199.

Essa concepção é errônea, porque se baseia num pressuposto falso, que as nor- ê

mas de interpretação das leis não admitem, pois mandam que se atenda, não à sua 'i

197 Deve ser tido em conta que essa opinião não importa a presunção de que tal problema fique, por aí, definitivamente resolvido. Como já tivemos ocasião de dizer, animado à autoridade de Pontes | de Miranda, a responsabilidade civil se fundamenta conforme a época, variando com a concepção sociológica dominante. Mas é nossa convicção - e já a repetimos algumas vezes - que a responsabi­ lidade civil, em qualquer tempo, tende a conservar o equilíbrio sodal estabeleddo. Exatamente por • isso é que, aceitando o sistema de Marton, quisemos ressalvar o valor fundamental que atribuímos à reconstituição do statu quo como preocupação determinante da responsabilidade dvil. Obra de profundo valor, aparedda simultaneamente à I a edição deste livro, ensina: "A responsabilida- ■ ; de se justifica por si mesma[...]. o que a lei tem em vista ao estabelecê-la é a reparação dos danos" (M. Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indenizar, Lisboa, 1944, p. 243, passim). 198 Petrazycki, apud Marton, ob. dt., n2 117, nota 2, p. 379. 199 Em sessão da "Sodété de Legislation Comparée", cf. Bulletin, 1934, ps. 199 e segs., apud Marton, ob. cit., n2 67, nota 1, p. 183, e n2 120, p. 385. Em compensação, Dabin sustenta que nenhum assunto é tão fecundo em aplicação dos deveres de equidade como o da reparação de danos (La philosophie de Vordre jundique positif, p. 529).

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letra, mas ao seu espírito,200 o que não é senão a prevenção ao julgador contra o risco do summum jus, summa injuria. Sem dúvida que há empenho, e irredutível, na segurança da jurisdição. Mas esse empenho, encarado de critério absolutista, leva à denegação de justiça e não pode haver jurista que considere prestigiada uma lei que, aplicada ad unguem, re­ sulte em fonte deiniquidade. Há, decerto, um choque indisfarçável entre a preocu­ pação de assegurar o direito e a tendência para melhorá-lo, forjando a sua instabili­ dade. E a missão do jurista é exatamente conciliar as duas tendências, sacrificando ao mínimo a ordem jurídica estabelecida, no interesse da justiça material201, sem permitir, contudo, que, por amor exagerado à forma em que aquela se encerra, falte precisamente à finalidade que toda ordem jurídica deve objetivar. Ademais, como adverte Marton, respondendo vantajosamente aos que censuram o critério referi­ do, "o sistema de responsabilidade agudo e sensível exigido pelo serviço da justiça material jamais poderá funcionar adequadamente sem o magistrado de senso moral elevado, com perfeita compreensão das necessidades sociais. Aquele que não consinta em dar essa liberdade ao juiz deve, por isso mesmo, renunciar à perfeição do sistema de responsabilidadef...]"202. Identifica-se, ainda, outra causa da desconfiança com que a equidade é enca­ rada por certos autores: a concepção errônea que dela fazem, considerando-a como licença para a intervenção, no julgamento do juiz, de considerações sentimentais, ao sabor dos mais extravagantes caprichos. Longe disso, a equidade é inseparável do bom direito, como já o fazia ver a definição de Celso: jus est ars boni et aequo. As necessidades da vida social e econômica, em perpétuo movimento, diz Morin, esta­ belecem, pela observação dos fatos, essa "parte contingente do direito superior às leis e aos contratos", que hoje se afirma na “ideia social da proteção dos fracos, do público ante as grandes companhias, do operário em face do patrão, de todos os deserdados contra os riscos da vida, da criança no seio da família"203. Ora, a equidade que influi no julgamento não é essa energia desordenada, mas força disciplinada, que os demais princípios que compõem o sistema condicionam e

200 Alei não é mais um imperativo despótico para o juiz, diz Morin (ob. dt., p. 163), que deve corrigi-la e completá-la, para harmonizar o direito com as necessidades da vida e as exigências da justiça. 201 Precisamente como sempre disse o grande juiz José Antônio Nogueira: o fiat justitia, floreat mundus deve substituir o bárbaro fiat justitia, pereat mundus, axioma que, a justo título, se considera mais próximo da justiça de Shylock que da justiça de Cristo (Marton, ob. cit., n° 129, p. 410). 202 Marton, ob. dt., na 110, ps. 385 e segs. 203 Morin, ob. dt., p. 163.

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limitam, além de que não entra a funcionar senão em presença da causalidade. Esta, aliás, regula também esses princípios, pois não é qualquer interesse que provoca a responsabilidade, mas o interesse causai, assim como não é entre a coletividade que o dano deve ser repartido, mas entre as pessoas que se viram envolvidas no fato, por um laço de causalidade mais ou menos estreito204.

48. Sentido da conservação da ideia da culpa. O sistema unitário da responsabilidade civil ideado por Marton conserva a

ideia da culpa205 e nem por isso se contradiz, porque a unidade não reside nos mâjm

dulos, mas está, irredutível, no seu princípio capital, que admite todas as projeções, Jí -

desde a culpa até o risco criado206 como casos de alteração do equilíbrio que se deseja ; preservar e cuja manutenção é a função essencial da responsabilidade civil, como já

vimos. Não há que duvidar, outrossim, da aplicabilidade do sistema à responsabili- I dade contratual. A identidade fundamental entre os dois aspectos, cuja discrimina­ ção se conserva, por motivos de método, já não é hoje objeto de controvérsia.

49. Convergência das diversas correntes ao fim comum de assegurar justiça ao prejudicado. Notar-se-á, muito rapidamente, que, ao tratarmos da responsabilidade civil, casamos doutrinas diversas e correntes contrárias. No que isso revele a incidência do autor, nada temos que objetar à crítica porventura inspirada na observação desse pormenor. Queremos frisar, todavia, que muitas vezes aceitamos propositadamente tendências opostas, porque servem ao nosso ideal de uma justiça distributiva. Pouco ortodoxo, sem dúvida, mas empenhado nesse objetivo e, felizmente, com o apoio de muito boas autoridades: "O problema da responsabilidade não se resolve, assim, mediante dados escassos e simplistas, mas pela contribuição de fatores múltiplos, de ordem moral e de 204 Marton, ob. cit., ns 121, p. 392. 205 Prova-o o projeto de lei sobre responsabilidade civil extracontratual, elaborado por esse autor (ob. cit., n2 124, p. 398), à guisa de conclusão ao seu estudo. 206 Orozimbo Nonato, “Reparação do dano causado por pessoa privada de discernimento", na Revista Forense, vol. 83, p. 371, cf. Gaudemet (Thèorie Générak, p. 296), que, frisando a instabilidade da teoria da res­ ponsabilidade civil, caracterizada nas grandes divergêndas doutrinárias que subsistem a respeito, conclui, entretanto, fixando uma fórmula que se pode traduzir assim: tendência à unificação no terreno prático, sem embargo da oposição de princípios.

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ordem politica[...J, é comum conciliarem-se na aplicação doutores que defendem na doutrina concepções polarmente opostas, como a da culpa subjetiva e a do risco criado"1™. De impressionante atualidade continua a apresentar-se estudo do grande ci­ vilista português Guilherme Moreira, no princípio do século, a respeito da res­ ponsabilidade civil, que apreciou com um profundo conhecimento do assunto, em todos os aspectos. Reeditando, com agudo senso de oportunidade, esse magnífico trabalho, o Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, em seu número de janeiro de 1980 (292), o fez anteceder de uma análise perfeita do atual estado do instituto, merecen­ do demorada referência exatamente pelo seu significado de informação necessária para os estudiosos e de situação no debate sobre a responsabilidade dvil. Assinala o estudo ora comentado o fenômeno moderno da socialização da res­ ponsabilidade civil, a impor indagação sobre se continua a ter significação e se po­ derá subsistir, na sua índole jurídica específicâ, no futuro próximo e previsível do desenvolvimento jurídico-social. Confrontam-se o dogmatismo da conservação e o dogmatismo do progres: so, repelindo o primeiro "qualquer mutação que atinja as suas categorias de pensa­ mento supostamente definitivas, numa incompreensão absoluta do novo que exige reco­ nhecimento", enquanto o segundo se aferra à "atitude inversa de só admitir o novo adquirendo, com recusa igualmente absoluta do que persista com sentido, não obstante a sua relativa superação". A princípio era a responsabilidade baseada na culpa, excluindo o risco ou ou­ tros modos de responsabilidade objetiva. Depois, apresentou-se o risco para base única, totalmente substitutiva da culpa. "E se hoje se verifica a instituição de sistemas de repartição e socialização dos riscos - isto é, formas sociais de absorção dos riscos e danos produzidos pelos acidentes anônimos da nossa atual realidade social tão altamente complexa, sistemas e formas que abandonaram os comuns pressupostos e efeitos da responsabilidade para tenderem a projetar-se no âmbito da segurança social - logo se proclama (e uma ou outra reforma aceita) o fim do regime da responsabilidade civil [...]". Nem em um extremo nem em outro, proclama corretamente o estudo, susten­ tando que a responsabilidade pessoal e a culpa subsistirão, mas sem prescindir da revisão exigida pelo reconhecimento e pela integração no sistema das várias formas de responsabilidade objetiva ou da socialização dos riscos, no roteiro da proposta de 207 Orozimbo Nonato, “Reparação do dano causado por pessoa privada de discernimento", na Revista Forense, voi. 83, ps. 371 e segs.

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José de Aguiar Dias

D a R espon sabilid ad *

W. Wilburg, há quase três décadas, no sentido do abandono do sistema axiomático - dedutivo em favor de um sistema móvel, que se realizaria de modo concretamente seletivo e dial ético. Exatamente o que propusemos, na 1* edição deste livro, em 1944. Baseadas, ao que parece, nas doutrinas de Starck e Trimarchi, algumas legis­ lações do Leste europeu revelam inclinação para confundir responsabilidade civil e enriquecimento ilícito. Dela nos afasta a lição do Doutor Diogo Paredes Leite de Campos, que a im­ pugna, quer mediante inserção do segundo na obrigação de indenizar, quer como função punitiva. "A função da indenização fundada sobre a responsabilidade civil é a de suprimir a diferença entre a situação do credor, tal como esta se apresenta em conseqüência do dano, e a que:, existiria sem este último fato. São, portanto, o dano e a situação do patrimônio do lesado que devem constituir o centro das atenções. Nunca o enriquecimento ou o patrimônio do autor do dano. A in­ denização é fixada em função da diferença entre a situação real e a situação hipotética do patrimônio do lesado...

Em conclusão: o montante da obrigação de indenizar ou de restituir a que estará ads- i frito o que interveio nos bens alheios poderá ultrapassar a medida do seu enriquecimento - tudo dependerá do montante do dano a reparar. Mas nunca será inferior ao montante do enriquecimento". (Enriquecimento sem causa e responsabilidade civil. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, janeiro-abril de 1982, p. 39.)

T ítu lo

II

RESPONSABLE)ADE CONTRATUAL E RESPONSABILIDADE EXTRACONTRAUAL Seção Preliminar P r in c íp io s C o m u n s a t o d o s o s C a s o s d e R e s p o n s a b ilid a d e C i v i l

50. Princípios Comuns a todos os Casos de Responsabilidade Civil Convém esclarecer, aquí, que todos os casos de responsabilidade civil obe­ decem a quatro séries de exigências comuns: a) o dano, que deve ser certo,208 po­ dendo, entretanto, ser material ou moral; b) e a relação de causalidade, a causal cúnnexion, laço ou relação direta de causa a efeito entre o fato gerador da respon­ sabilidade e o dano209 são seus pressupostos indispensáveis; c) a força maior e a exclusiva culpa da vítima têm, sobre a ação de responsabilidade civil, precisamen­ te porque suprimem esse laço de causa a efeito, o mesmo efeito preclusivo; d) as autorizações judiciárias e administrativas não constituem motivo de exoneração de responsabilidade210.

208 As cauções prestadas para garantir o dano eventual serão exceção a esta regra? Lalou sustenta a afirmativa, em face da legislação minerária francesa, que contém dispositivos que estabelecem para o pesquisador ou explorador da jazida, em caso de trabalhos que possam afetar a estabilidade das habitações, a obrigação de dar caução do dano futuro [La responsabilité civile, ne 139, p. 75). Temos dúvida em aceitar essa conclusão, porque à eventualidade do dano corresponde a eventualidade da responsabilidade, isto é, se aquele não é certo, esta também não o é, tanto que a caução, se o dano não se verifica, volta às mãos de quem a presta. Parece-nos que o caso é mais de garantia, de favoredmento ao possível prejudicado - sujeito, em outras condições, aos azares de uma demanda, em que teria de enfrentar um contendor capaz de defender-se amplamente - do que de reconhecimento de uma responsabilidade em face do dano incerto, até porque o beneficiário não a recolhe, como seria, normalmente, a conseqüência daí resultante, se de fato se tratasse de responsabilidade concretizada. 209 Causalidade é o que se exige e não mera coincidência entre o dano e o procedimento do imputado responsável. 210 Lalou, ob. cit., n2 134, p. 73. Assim acontece porqLie as autorizações administrativas são concedi­ das em termos de regulamentos que, indicando tão-somente o mínimo de precauções a exigir, não podem, naturalmente, prever todos os casos particulares. A licença para conduzir, por exemplo, é dada após a verificação das condições mínimas de prevenção contra o perigo daí resultante. Se o dano ocorre ainda assim, revela que essas precauções não bastavam. As medidas judiciais tampouco eximem da responsabilidade aquele que as utiliza, v.g., no caso de abuso do direito de demandar (cf. Lalou, ob. d t, n9s. 371-393, ps. 211 e segs.).

107

C a p ít u l o

I

O DOLO E A CULPA S u m a r io :

51. 53.

N o ç ã o d e c u lp a . E r r o e c u lp a , a l i ç ã o d e A n d r é T u n c . A c o n c e p ç ã o d e C h ir o n i s o b r e a u n id a d e d a c u lp a .

LaLOU, OS AUTORES FRANCESES, ITALIANOS E ALEMÃF.S. d e fin iç õ e s c o n h e c id a s .

56.

de M azeau d e t M azeau d .

55. A

52. D i s t i n ç ã o 54. D e f i n i ç ã o

e n t r e d o l o e c u lp a . d e c u lp a : S a v a t ie r ,

CRÍTICA DE MAZEAUD ET MAZEAUD ÀS

D e fi n i ç õ e s im p r e c is a s : i l i c i t u d e e im p u t a b ilid a d e .

58.

C r ít ic a d o seu s is te m a .

A

57. A

o p i n i ã o d e A l v i n o L im a .

g e n é r i c a : d o l o e c u l p a p r o p r i a m e n t e d i t a , i m p r u d ê n c i a , IMPERÍC1A.

60. A

con cepção

59.

C u lp a

c u lp a n o s is te m a d o

C ó d ig o C iv il b r a s il e i r o .

51. Noção de culpa. Erro e culpa, a lição de André Tunc. Adotando ponto de vista que afasta a exclusividade da culpa como fundamen­ to da responsabilidade civil, nem por isso nos sentimos dispensados de estudá-la; até porque, embora menos ampla do que geralmente se lhe reconhece, ela tem sua posição no sistema a que nos filiamos. Para nos inteirarmos da noção de culpa, cumpre partir da concepção do fato violador de uma obrigação (dever) preexistente. Esse fato constitui o ato ilícito, de que é substracturn a culpa. Esta o qualifica. A culpa, genericamente entendida, é, pois, fundo animador do ato ilícito, da injúria, ofensa ou má conduta imputável. Nesta figura encontram-se dois elementos: o objetivo, expressado na ilicitude, e o subjetivo, do mau procedimento imputável. A conduta reprovável, por sua parte, compreende duas projeções: o dolo, no qual se identifica a vontade direta de prejudicar, configura a culpa no sentido amplo; e a simples negligência (negligentia, imprudentia, ignavia) em relação ao direito alheio, que vem a ser a culpa no sentido estrito e rigorosamente técnico211. Numa noção prática, já o dissemos, a culpa representa, em relação ao domínio em que é considerada, situação contrária ao estado de graça, que, na linguagem teoló­ gica, se atribui à alma isenta de pecado. A culpa, uma vez que se configura, pode ser produtiva de resultado danoso ou inócua. Quando tem conseqüência, isto é, quando passa do plano puramente moral para a execução material, esta se apresenta sob a forma de ato ilícito. Este, por sua vez, pode ou não produzir efeito material, o dano. A responsabilidade civil só esse 211 G. P. Chìroni, La colpa nel diritto civile odierno. Colpa extracontrattuale, voi. I, 2- ed., Turim, 1903, ne 11,

ü r-

p. 38

109

José de Aguiar Dias

D a R espon sa 3 iu

que correspondem a unidades funcionais, entidades concretas na realidade,

como

do homem. Mas outras se referem a meras criações ou entidades abstratas900. ? é Hoje, a equiparação deixou de ter importância, a ponto do preceito legal n; ter tido equivalência no Código Civil de 2002, que, de certo, ao substituir o vocábu "patrão" pelo vocábulo "empregador", com isso pretendeu deixar evidente que responsabilidade é daquele que exerce a função. Se é a pessoa física, ou se é a pe soa jurídica, nenhuma influência terá a distinção na apuração da responsabilidacl Responsável será, sempre, o empregador, lato sensu, relativamente àquele preposi a quem se pode atribuir a prática do dano injusto.

900 Ob. dt., p. 11.

652

T ítu lo

V

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO Capítulo I TEORIAS. CRÍTICAS. DOUTRINA DO RISCO ADMINISTRATIVO

|

S u m á r io : 192. A

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO É MATÉRIA DE DIREITO ADMINISTRATIVO. REJEIÇÃO

UNIVERSAL DA IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO. O s SISTEMAS INGLÊS E NORTE-AMERICANO. 1 9 3 . CRÍTICA DAS DOUTRINAS DE IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO: PAUL D u EZ, ÁM ARO CAVALCANTI, GUIMARÃES M e n e g a le . 19 4 . O a r t . 15 d o C ó d ig o C iv il d e 1 9 1 6 , a t u a l a r t . 4 3 d o C ó d i g o C iv i l d f 2 0 0 2 , s su a i n t e r p r e t a ç ã o . A r t i f i c io s id a d e d a s o l u ç ã o s u b ie tiv a . F a l t a p e s s o a l e f a l t a d o s e r v iç o : |

d e lim it a ç ã o d o c a m p o d a r e s p o n s a b ilid a d e p e s s o a l d o a g e n t e . D e t in iç ã o d e " a g e n te " . 195.

A

q u e s t ã o d a s o l i d a r i e d a d e . O d / re/ to d e r e g r e s s o d o E s t a d o e o " Q u a n t u m " s o b r e q u e s e e x e r c e . 196. E v o l u ç ã o d a id e ia d a r e s p o n s a b ilid a d e d o E s t a d o . ju r is p r u d ê n c ia . 197.

A

A

d o u t r in a d a c u lp a a d m in is t r a t iv a .

l i ç ã o d e D u ez.

A

Os

e x p e d ie n te s da

t e o r ia d o r i s c o a d m in is t r a tiv o .

V o to s d o s M in is t r o s O r o z im b o N o n a t o e F il a d e l f o A z e v ed o . 198. J u s t i f ic a ç ã o p r á t ic a d a d o u t r in a d o r i s c o a d m in is t r a t iv o . 2 0 0 . F ó r m u la d o u t r i n á r i a a q u f. t e n d e a r e s p o n s a b ilid a d e , c iv il d o E s ta d o .

192. A responsabilidade civil do Estado é matéria de direito

administrativo. Rejeição universal da irresponsabilidade do Estado. Os sistemas inglês e norte-americano. O tema da responsabilidade civil do Estado tem inspirado vasta literatura, na justa medida das incertezas e variações que suscita. A causa principal dessa situação, que os juristas desejam ardentemente modificar, como o testemunha o renovado esforço dedicado a clarear o problema, está, em grande parte, no fato de se contem­ plar a responsabilidade do Estado como instituto de direito civil, pois é certo que a tal anseio não satisfaz a simples transposição, para o seu domínio, dos princípios de responsabilidade do direito privado. A responsabilidade civil do Estado é matéria de direito administrativo 901. 901 Nota do atualizador - Gustavo Teppedino advoga posição diametralmente oposta, sustentando que os que enquadram a responsabilidade do Estado no âmbito do direito administrativo assim o fazem por "mero equívoco metodológico, que reduz gradcitivamente a amplitude temática do direito civil". Com todo o respeito que devotamos ao ilustre professor, não pensamos dessa forma, preferindo a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que assim justifica a "originalidade da responsabilidade pública": "Um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, púlicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de repará-lo.

José de Aguiar Días

Da R eshW S I

É preciso não transigir com a velha ideia de que a responsabilidade civil do Estado é assunto de direito civil. Ora, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público é problema de direito administrativo, que tem suas regras espe­ ciais em quase todos os domínios do direito, não admirando que as tenha em relação à responsabilidade, que apresenta outros fundamentos e justificativas não admitidas, no direito civil. Nem se censure a inserção do tema na Constituição onde está melhor ” situado do que no Código Civil, porque este não se destina, especificamente, senão a regular relações de direito privado.

Para conforto, porém, dos que enfrentam a questão, velha controvérsia já se - í pode dar por finda. Nenhuma dúvida mais subsiste no tocante à rejeição da irres-

,

ponsabilidade absoluta do Estado. Isso é particularmente válido no direito brasileiro, em que pese a certas bem-intencionadas, mas mal informadas autoridades, lj„ pelo erro de visão de considerar que toda ação contra o Estado é um assalto aos

cofres públicos, num verdadeiro abuso de generalização. Rui Barbosa, entre todas .■> a maior figura de nossas letras jurídicas, demonstrou que a tese da irresponsabili­ dade jamais logrou entrada na jurisprudência brasileira. Nossa tradição jurídica,

;

apesar de profundamente repassada de romanismo, temperou-se continuadamen­ te com os elementos liberais que sempre contribuíram na formação do pensamento nacional, que, assim, sempre se opôs a tais manifestações dos privilégios regaiistas (A culpa civil da Administração Pública, apud Clovis Bevilaqua, parecer, na Revista Forense, vol. 62, p. 475). A própria Inglaterra, onde vigorou por anos a sistema da irresponsabilidade do

estado, acabou por avançar em seu posionamento com o Crown Proceedings Act 1947, -jj que está sendo objeto de alterações, depois de ter sido realizada uma ampla consulta ' pública no ano de 2004. Vários Statutory Instruments, como o Statutory Instrument

___________________________________________________________

Sem embargo, a responsabilidade do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis com a peculiarida- - ■ de de sua posição jurídica, e, por isso, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar às pessoas privadas. As funções estatais rendem ensejo à produção de danos mais intensos que os suscetíveis de serem gerados pelos particulares. As condições em que podem ocasioná-los também são distintas. Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestações multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão pró­ pria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato unímodo e constante com os adminis­ trados lhe propina acaretar prejuízos em escala macroscópica, o certo e que a responsabilidade estatal por danos há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamenio || dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro isuficiente para resguardo de seus insteresses e bens jurídicos. Ademais, impende observar que os administrados não têm como se evadir ou sequer minimizar os perigos de dano provenientes da ação do Estado, ao contrário do que sucede nas relações provadas. Deveras: é o próprio ¿ Poder Público quem dita os termos de sua presença no seio da coletividade e é ele quem estabelece o teor ea intensidade do seu relacionamento com os membros do corpo social" - Ob. dt. ps. 879/880.

654

LaoüiarDias

Da Responsabilidade

9005 n. 2712, que entrou em vigor em 1° de outubro de 2005, estão promovendo mo­

dificações nessa lei, com o objetivo de revogar privilégios da Coroa, especialmente em matéria processual, contida na Parte II da lei. Como recorda Lord Hope of Craighead, num julgamento ocorrido na House of Lord s

em 13 de fevereiro de 2003 (Matthews v. Ministry o f Defence), "There is no doubt

¡jiat the Crown Proceedings Act 1947 was designed to make new law. Until the coming mto force of that Act the Crown had been protected from liability by two rules which were deeply rooted in English law. These were the rule o f substantive law that the King could do no wrong, and the procedural rule that the King could not be sued in his ozon courts. The pro­ duct of these rules was not only that the Crown could not be sued in respect o f wrongs which ¡t had expressly authorised but that it was also immune from liability in respect o f wrongs committed

by Crown servants in the course of their employment".

Entretanto, o sistema inglês ainda não é idêntico ao dos demais países em que se reconhece a responsabilidade da Administração por ato de seus agentes. Há, ain­ da, algumas imunidades e uma série de dificuldades procedimentais às ações contra os funcionários. Não falta, entretanto, quem sustente as vantagens do regime atual. Argumentase que o júri será mais benevolente em relação ao autor, se a ação for dirigida dire­ tamente contra o Estado. Ora, isso prejudica o interesse público em maior escala, do que as ameaças que as restrições do sistema vigente representam para o interesse privado. Por outro lado, o sistema da irresponsabilidade do Estado, aumentando a responsabilidade do funcionário, toma-o muito mais prudente e reservado902. A estes argumentos responde-se com vantagem que: "A responsabilidade pessoal dos fun­ cionários será sempre ilusória e, então, é necessário que a coletividade suporte e indenize os danos cometidos por seus governantes. Assim se assegurará também o progresso político do país, porque sabendo o eleitor que os erros ou as faltas dos que o governam se traduzirão em encargos que ele próprio há de suportar, será mais cuidadoso na eleição dos seus candidatos e tomará mais zelo do que toma na atualidade nas questões políticas ou administrativas que interessem à marcha da Nação"903. E verdade, como assinala Bullrich, que as nações como a Inglaterra e os Estados Unidos têm religioso respeito pelas instituições e pelos seus semelhantes, isto é, pela liberdade, o que não se observa nos países em período de evolução, carentes de 902 Beryadal Keath, "By and agains the Crown", no Journal o f Comparative Legislation and International Law, 35 série, vol. 10, ps. 4 e segs. 903 Rodolfo Bullrich, La responsabilidad del Estado, Buenos Aires, 1920, p. 7, Introdução.

José de Aguiar Dias

Da

R e s p o n s a b i i ir,

disciplina geral e com educação nova e deficiente, havendo necessidade de normas severas, que permitam modelar as instituições e assegurar os princípios constitu...■ M

cionais904. O Estado não se pode considerar dispensado da norma jurídica. Queny até hoje permanece como nosso mais esclarecido autor sobre o assunto, escreveu com inexcedível sabedoria, que "[...] o único ponto de partida verdadeiro é este: o direito

é a regra de conduta e proceder, tanto dos indivíduos, como do Estado; consequentemente5 assim como sucede com os indivíduos, assim também deve o Estado, em princípio, responder pelos próprios atos - salvo se uma razão jurídica superior fizer cessar ocasionalmente a sua responsabilidade''905. Nos Estados Unidos, vigorava o sistema da responsabilidade do funcionário 4 e da irresponsabilidade do poder público, legado pelo direito inglês, até o advento do Federal Tort Claims Act (FTCA), que estabeleceu uma série de hipóteses em que o governo abdica de sua imunidade. Para se ter ideia de quanto afastado se encontra o sistema legal americano do nosso, basta dizer que o Federal Tort Claims Act não se aplica relativamente às condutas exclusivamente governamentais, isto é, incapazes



de serem conduzidas por uma pessoa privada.

193. Crítica das doutrinas de irresponsabilidade do Estado: Paul Duez, Amaro Cavalcanti, Guimarães Menegale. A irresponsabilidade do Estado906, é possível dizê-lo com absoluta segurança, é doutrina destinada a desaparecer. Como há, apesar de tudo, quem se obstine em defendê-la, aproveitemos, da lúcida exposição de Guimarães Menegale, síntese ab­ solutamente fiel de seus argumentos: "2e, o Estado, por ser uma pessoa moral, ou un ficção legal, não tem vontade efetiva; 2a, como o Estado, pessoa jurídica, age por intermédio t seus funcionários, não se entende que queira praticar atos ilícitos. Se os representantes legai

os praticam, é a eles, e não ao Estado, que a responsabilidade cabe; 3S, não se supondo que os ^ funcionários sejam autorizados a agir fora da lei, quando o fazem, subentende-se que agem fora de sua qualidade e não há atribuir responsabilidade ao Estado"907. 904 Ob. e loc. cits. 905 Amaro Cavalcanti, Responsabilidade civil do Estado, Rio, 1905, p. XI. 906 Para um perfeito conhecimento dos argumentos da corrente que a sustenta, ver Amaro Cavalcanti, Responsabilidade civil do Estado, Rio, 1905, ps. 106 e segs. A atualidade desse trabalho nada sofreu nos longos anos que decorreram de sua publicação. Continua a informar os nossos juristas e a ter máxima utilidade no estudo do problema. 907 Direito Administrativo e Ciência da Administração, Rio, 1939, t. 2° p. 355.

656

-

¡ ¿ guiak D ias

Da Responsabilidade Civil

É o mesmo autor quem, invocando a autoridade excelsa de Amaro Cavalcanti, oferece refutação definitiva àquelas proposições: "Ia, a teoria da ficção legal, aliás abandonada, não fundamenta a irresponsabilidade do Estado,

cuja vontade autônoma se pressupõe; 2-, é aplicável ao Estado o princípio geral da

culp“ in eligendo e in vigilando; 3-, se o Estado é sujeito de direitos, também o é de obriga­ ções906■A esses conceitos, que reputamos exatos, nada temos que objetar. Apenas acrescenta­ remos que, do nosso ponto de vista, para o qual o mecanismo da responsabilidade civil visa, issencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano, a ideia ia culpa não é elemento necessário no reconhecimento da obrigação de reparação. Assim, como afirma Paul Duez, com quem nosso acordo é completo, “o poder público pode, às vezes, ser declarado responsável independentemente de culpa do serviço público"909.

194. O art. 15 do Código Civil de 1916, atual art. 43 do Código Civil de 2002, e sua interpretação. Artificiosidade da solução subjetiva. Falta pessoal e falta do serviço: delimitação do campo da responsabilidade pessoal do agente. Definição de "agente". Sustentava-se, todavia, que, em face do Código Civil de 1916, era na culpa que se baseava a responsabilidade do Estado, em todas as suas hipóteses. Já na vigência do Código Civil de 2002, vem a doutrina admitindo, não sem críticas importantes, uma divisão na regência dessa responsabilidade: para os atos comissivos, aplicar-se-ia apenas o art. 37, § 6Qda Constituição de 1988, que reza: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos da; nos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou cubpa"; para os atos omissivos, teria aplicação o art. 43 do Código Civil de 2002, segundo o qual: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por partes destes, culpa ou dolo". Os atos omissivos ainda se dividiriram em omissos genéricos e específicos, exigindo-se para os primeiros a prova da culpa da Administração, e, em relação aos segundos, admitindo-se a responsabilidade objetiva, já que estaríamos diante 908 Ob. e loc. dts. 909 La responsabilité de la puissance publique (en dehors du contrat). Paris, 1937, Introdução, p. Vm.

Jo s é de Aguiar Dias

de hipótese em que teria havido violação de "dever individualizado de agir", a qye Celso Antônio Bandeira de Mello acrescenta outra condicionante, qual seja a de que só responderá o Estado se houver demonstração de que evento danoso poderia ser por ele impedido. Com essa dicotomía de regência, conforme estejamos diante de atos comissivos ou omissivos, não concordam os professores Almiro do Couto e Silva, Toshio Mukai Amoldo Wald e Gustavo Tepedino, entre outros. Do primeiro extraímos a observa­ ção de "ser inaceitável adotar um conceito puramente naturalístico de causa, baseado no raciocínio de que a omissão nunca pode ser causa exatamente porque é o "não ser", o nada. Na filosofia e no direito, porém, causa tanto pode ser um comportamento comissivo como omissivo", além do que “a ação, no sentido jurídico, é um conceito diferente da ação huma­ na que interessa à filosofia e mesmo às outras ciências. O direito é uma ciência normativa, possuindo conceitos específicos. No plano da filosofia, a omissão não constitui uma ação; mas muitas hipóteses de reparação delitual têm sua fonte no fato de que uma pessoa não fez o que deveria ter feito"910.

D e T e p e d in o ,

o c o n f r o n t o d ir e t o r e l a t i v a m e n t e a o a r g u m e n t o p o s t o :

" Argumenta-se [...] que “a omissão pode ser uma condição para que outro evento cause o dano, mas ela mesma (omissão) não pode produzir o efeito danoso. A omissão poderá ter condicionado sua ocorrência, mas não o causou". Daqui decorreria que, "no caso de com­ portamento omissivo, a responsabilidade do Estado é subjetiva, atraindo a teoria da culpa ' anônima ou falta de serviço".

O argumento impressiona por sua argúcia, mas não colhe. Não é dado ao intérprete res- 5 tringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando do legislador constituinte [...]. A Constituição federal, ao introduzir a responsabiliade objetiva para os atos da adminis­ tração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base em outros princípios axiológicos e normativos (dentre os quais se destacam o da isonomia e o da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade o art. 15 (do Código Civil de 1916, atual art. i3 do Código Civil de 2002), que se torna, assim, revogado, ou, mais tec­ nicamente, não recepcionado pelo sistema constitucional"911. 910 Almiro do Couto e Silva, A Responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro, Revista de Direito Administrativo, n. 202, out./dez., 1995, apud Danielle Armoni, A Responsabiliade do Estado pela demora na prestação jurisdidonal, ps. 46/47. 911 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 2a edição atualizada, ps. 190-191.

658

.(¿AfflliAR Dias

Da Responsabilidade Civil

A exclusão de texto contido no revogado art. 15 do Código Civil de 1916, segun­ do o qual a responsabilidade do Estado se daria quando o funcionário estivesse "proce¿tendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei", foi salutar, porque afastou a ideia de que a responsabiliade só ocorreria diante da culpa do agente. A substituição do vocábulo funcionário por agente foi explicada por vários au•; tores, entre eles José da Silva Pacheco, que em parecer publicado na RT 635, p. 103, / assim se pronunciou: "A substituição do vocábulo “'funcionário" pelo vocábulo ",agente" ¥ atende sugestão de Miguel Seabra Fagundes no sentido de que "no que concerne a responsa• bilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, pelos danos que seus "agentes" causem &terceiros, temos que seria próprio substituir a expressão “'funcionários “ (até aqui, aliás, en­ tendida lucidamente pela jurisprudência como abrangente de quaisquer servidores e não dos P. estritamente caracterizados como "funcionários"), com propriedade, por "quaisquer agentes públicos". Com isso, incorporar-se-ia ao texto, afastando-se controvérsias acaso suscetíveis, a lição dos tribunais, de sorte a ficar assente que do gari e do praça de pré912ao Presidente da ' República, todo e qualquer servidor estatal compromete, quando agindo nessa qualidade, a responsabilidade civil por dano a terceiros, da entidade a que serve" (O direito administra­ tivo na futura Constituição, Revista de Direito Administrativo, 168:5, n. 4). Sérgio Cavalieri confirma a utilidade da troca, trazendo ainda valiosa contri­ buição para compreensão dos efeitos dessa mudança. Diz ele: "O exame desse disposi­ tivo revela ter sido expurgado do texto constitucional o termo funcionário, que tanto questio­ namento ensejou no regime anterior. O termo não era apropriado, porque “funcionário", em seu sentido técnico, é somente aquele que ocupa cargo público, sujeito ao regime estatutário. Já então prevalecia o entendimento de ter sido o termo empregado em sentido amplo, para in­ dicar servidor ou agente público, isto é, todo aquele que era incumbido da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório. A Constituição atual, por conseguin­ te, ao utilizar o vocábulo agente, deu guarida a esse entendimento doutrinário, deixando claro que a responsabilidade do Estado subsistirá ainda que se trate de ato praticado por servidor contratado, funcionário de fato ou temporário, qualquer que seja a forma de sua escolha ou in­ vestidura. [...] Nesse terreno a única questão que ainda enseja alguma dificuldade é a que diz respeito à relação que deve existir entre o ato do agente e o serviço público. Terá esse ato que ser praticado durante o serviço, ou bastará que seja em razão dele? De acordo com a essência de vários julgados o mínimo necessário para determinar a responsabilidade do Estado é que o cargo tenha influído como causa ocasional do ato, ou que a condição de funcionário tenha sido a oportunidade para a prática do ato ilícito. Sempre que a condição do agente do Estado tiver 912 Nota do atualizador - Praça-de pré é o soldado raso, o de menor patente na hierarquia militar.

659

Jo sé de Aguiar Dias

D a R espo n s ,

contribuído de algum modo para a prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe pro_ porcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que o exercício da função constitua a causa eficiente do evento danoso; basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato"913. A artifiriosidade da teoria da culpa como fundamento único da responsabilida­ de civil se mostrava também aqui, já que não era possível falar em culpa do Estado; Agora, está claro que o Estado responde, isto é, fica estabelecido o seu dever de re­

parar, sem se indagar se agiu levianamente na escolha ou se não exerceu a necessária 1 vigilância sobre o agente. Mais: não altera a questão o fato de provar o Estado que o agente foi nomeado após rigorosíssimo concurso de provas e que, submetido a um chefe exigente, não se descuidou a Administração um só momento da vigilância que devia exercer e que o fato só ocorreu no campo estreito da indispensável autonomia em que atua o homem. Contra o entendimento dominante a respeito do artigo 15 do Código Civil de 1916, atual art. 43 do Código Civil de 2002, julgou-se possível sustentar que, ao im­ por que o agente agisse nessa qualidade, o dispositivo estabelecia que o Estado só responderia quando aquele não exorbitasse de suas funções. Ora, o agente se consi­ dera como exercendo, em representação, e no setor a ele designado, as funções que o Estado exerceria, se não fosse pessoa moral e se fosse capaz de estar, a um tempo, em todas as atribuições em que se faz representar. Assim, a locução nessa qualidade ' nada quer expressar senão essa situação, em que o Estado atua, por intermédio do agente, a quem, certamente, fica livre certa margem onde manifestar sua condição de criatura humana, sujeita a contingências que possibilitam o ato abusivo. E o que esclarece Menegale, quando, depois de caracterizar a qualidade de representante, lhe delimita o campo de ação: "[...] o ato danoso de um indivíduo que usurpou o poder é ato ilegal, pelo qual o Estado, em tese, não responde. E ato jurídico inexistente, consoan­ te a teoria moderna do direito administrativo que, de resto, a faz derivar do direito civil. Ordinariamente, distingüem-se nos atos dos funcionários públicos aqueles que são praticados em razão de sua condição humana, sob a influência de sentimentos, ambições, ou paixões pessoais, capazes de os animarem em qualquer situação, independentemente, portanto, de sua qualidade de funcionários; e os que, mesmo se misturados de impulsos íntimos, eles pra­ ticarem necessariamente na situação de serviço, em relação de dependência com as funções 913 Aut. e ob. citados, p. 244. Nota do atualizador - À essa lição só acrescentamos que o agente não obri­ ga o Estado apenas pela prática de atos ilícitos, mas também pelos atos lícitos praticados, desde que, especiais e anormais, sejam danosos ao particular.

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£>a Responsabilidade Civil

I Jy f • qu e

exerce. Com esse critério, não se dirá que, em dada hipótese, o Estado não é responsá-

. - vel pelo ato de seu funcionário porque exorbitou, desde que o ato é inerente à qualidade de ; representante"91i. O ensinamento de Menegale é prestigiado pelos melhores autores, que reco■: nhecem a necessidade da distinção, nos quadros da doutrina subjetiva clássica. Jèze oferece, com base na jurisprudência francesa, indicações para identificação da falta pessoal, que, segando sua classificação, ocorre: a) quando revela intenção má; b) quando há violação de uma lei penal, constituindo culpa delitual grave; c) quando, ■embora não delitual, a culpa do funcionário excede os riscos ordinários da função, ; implica erro grosseiro na apreciação dos fatos ou da extensão dos seus poderes915. Barthélemy observa que a circunstância de praticar o funcionário ato culposo em obediência a ordem do superior hierárquico influi na falta pessoal, acarretando, por vezes, a sua assimilação à falta do serviço, solução em que a jurisprudência leva em conta o grau de subordinação e de inteligência e instrução do subalterno916. A caracterização exata encontra-se ainda em Menegale-. "Caracteriza-se a falta pessoal quando o ato do funcionário não se pode confundir com a execução, mesmo irregular, de um ato de função. Logo, se o ato, mesmo ilícito, é inerente à função, a falta é do serviço"917. Da concepção da responsabilidade do Estado por ato de seus agentes surge, naturalmente, a noção da responsabilidade do agente. E o que recordam os autores: "A responsabilidade do funcionário público é o substractum da responsabilidade do Estado; onde, de fato, não houver responsabilidade direta do funcionário, não pode haver responsabi­ lidade indireta do Estado"91s. Convém que se esclareça a extensão que se dava ao vocábulo "funcionário", que não difere da que hoje damos ao vocábulo "agente". Nota Lalou919 que a expres­ são é vaga, variando segundo a matéria com que se relacione. O que se deve ter em 914 Ob. d t , p. 359. Não pretendemos, ao insistir pela responsabilidade do Estado, disfarçar ou atenuar a responsabilidade do agente, convém advertir. Só o seu estabelecimento pode “[...] evitar o abuso de poder da burocracia e assegurar garantias efetivas aos cidadãos. Não é lícito dizer que se vive em um Estado de direito, se não se consegue fazer efetiva a responsabilidade do funcionário" (Gascon y Marin, Tratado de Derecho Administrativo, 1928,1.1, p. 324). 915 Revue de Droit Publique, 1909, p. 263. 916 L'influence de L'ordre hiérarchique sur la responsabilité des agentes, em Revue de Droit Public, 1914, p. 537. Cf. Duez, ob. Cit, p. 154. 917 Ob. d t p. 361. Exemplifica, recorrendo a Barthélemy: “Um professor é acusado de haver proferido em aula expressões obscenas e ultrajes ao Exército: faltas pessoais. Ele ensina que dois e dois são cinco: falta ao serviço" (ob. d t loc. Cit.). Cf. Watkins, The State as a party litigant, ps. 109 e segs. 918 Menegale, ob. dt., p. 360, apoiado em Sabatini. 919 Ob. d t, n9 1.390, p. 659.

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D a R esponse

vista, porém, quando enfrentamos o tema da responsabilidade, é que a definição,: i: de "funcionário" deve ser a mais ampla possível, a fim de abranger todos aqueles que, qualquer que seja a forma de sua escolha e quaisquer que sejam as suas fun. 1

ções, colaborem na gestão da coisa pública. Assim, pouco importa a sua categoria?;; ~í E é sem influencia, para o efeito que nos interessa, que seja ou não remunerado, 0 "funcionário" é um órgão920 da administração. Menegale, ao propósito, distingue: % "Órgãos e funcionarios, escrevemos, por amor à exatidão. De fato, em acepção genérica, são todos órgãos: como veremos, porém, para o efeito de fixação da responsabilidade civil, é van- ¡ tajoso discernir órgãos e funcionarios, acordemente com o método dos tratadistas, assim, £ entendendo por órgãos os individuos ou corpos, cujos atos não são passíveis de revisão, pois que exercitados por expoentes do poder soberano do Estado, e qualificando de funcionários os sujeitos à hierarquia, delegados indiretos - já lhes chamaram - daquela soberania" 921. Em Js relação ao Estado, o funcionário não é empregado, não vende os serviços, nem aluga o trabalho. Entre a administração e o funcionário não há contrato: o que há é uma M incorporação. Em perfeita antítese do sistema inglês, a doutrina brasileira, que se

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inspira na fonte franco-italiana, tem por princípio fundamental a responsabilidade do Estado a cobrir a responsabilidade do agente em relação ao particular lesado., ,i Diga-se o mesmo, se substituirmos "funcionário" por "agente". A Carta Constitucional de 1988 não permite interpretações extravagantes: as pessoas jurídicas de direito público - aqui compreendido, por evidente, o Estado - e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão . pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.

920 Nota do atualizador - sustenta-se o abandono da teoria organidsta na apuração da responsabilidade-/-H do Estado, substituída que teria sido pela responsabilidade pelo fato de outrem (v.g. DanieUe Annoni, :: Responsabilidade do Estado pela deinora na prestação jurisdidonal, p. 55). Essa tese, embora muito difundida recentemente, não tem consistênda, a nosso ver, já que o agente não é terceiro em relação ,j;; à administração, até mesmo porque sua relação com aquela não é contratual. O agente age em consequênda e por força da sua espedal qualidade. Não pode, assim, a sua situação ser equiparada à do empregado, pelo qual responde o patrão, porque, como agente, não recebe o encargo de agir do seu superior, mas da própria lei em virtude do qual passou a integrar o serviço público; nem pode a situação do agente ser equiparada à situação do filho, pelo qual responde o pai, porque aqui é ainda mais gritante a autonomia de ação de um relativamente ao outro, que apenas se limita a procurar ; 4 exercer o seu dever de vigilânda e guarda. 921 Ob. dt„ p. 360.

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Da Responsabilidade Civil

195 . A questão da solidariedade. O direito de regresso do Estado e o quantum sobre que se exerce. Surge, aqui, problema que merece discussão: o da coexistência das responsa­ bilidades do Estado e dos seus agentes. É sabido que as falhas do agente se distin­ guem em faltas pessoais e faltas do serviço, noção que deixamos já esboçada, quan­ do quisemos precisar a significação da expressão “nessa qualidade", usada no art. 15 do Código Civil de 1916 e repetida no art. 43 do Código Civil de 2002, em vigor. O caso, agora, é outro: o de falta pessoal do agente derivada da falta da administração, dando lugar à obrigação solidária de reparar. Duguit propõe a questão do regresso do Estado em relação ao agente por quem pagou, levantando a indagação sobre o quantum que lhe é lícito reclamar ao agente. Sua solução manda repartir o encargo de acordo com a gravidade da participação culposa de cada um no evento danoso, j Henoch D.

Aguiar objeta: "A conclusão -parece errônea, porque, ainda quando para chegar

« ela, se parta da noção de seguro pelo risco social, seus benefícios não alcançam senão as vítimas do dano e não a seus autores responsáveis; e porque se afasta, sem motivo justificado, do princípio da responsabilidade subjetiva. Com efeito: todo dano proveniente do mau funcio­ namento de um serviço público se origina sempre, como se disse, da culpa atual do funcioná­ rio encarregado de prestá-lo, ou da de outro que atuou no passado e que esteve encarregado ífe organizá-lo. Por isso, quando é possível a individuação do responsável e o Estado paga a importância do dano causado por ele, paga uma dívida a que estava obrigado, não em razão de culpa, mas em virtude da lei que a impõe, por motivos estranhos a uma figura jurídica, de que, em razão do seu próprio caráter, não pode ser sujeito" 922. Conclui, defendendo a solução que outorga ao Estado o direito de repetir a totalidade da soma paga, o que está consagrado implicitamente no art. 43 do nosso Código Civil de 2002.

196. Evolução da ideia da responsabilidade do Estado. A lição de Duez. A evolução da ideia da responsabilidade do Estado se processou em três fases, nitidamente caracterizadas pelo regime político dominante em cada uma: I a. Fase da irresponsabilidade, noção de fundo essencialmente absolutista. Paul Duez assinala, por exemplo, que, já vigente a Constituição do ano VIII, os particula­ res não tinham à sua disposição senão procedimento fundado na responsabilidade pecuniária pessoal dos agentes perante os tribunais judiciários. Acrescenta que a 522 Ob. cit. p. 453.

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Da R e s P O N « *

autorização para a demanda era manejada como processo govemamentaJ e que, quentemente, como hoje, o funcionário era insolvável923. 2~. Fase civilística, de fundo individualista, a que se filia ainda, segundo a maia. ' ria dos nossos autores, o sistema brasileiro, até porque regula no Código Civ responsabilidade do Estado.

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3a. Fase do direito público, onde se afirma a predominância do direito social, a

que deu impulso e sistematização o notável trabalho da jurisprudencia do ConselM 1 A - s de Estado francés, cuja ação, na autorizada análise de Paul Duez, se pode caracter;-. zar por estas duas proposições: “l 1) A responsabilidade da administração se desenvolve, a título principal, no quadro jurídico da culpa, para resultar em teoria autônoma, da "falta do serviço público", cujos traeos o Conselho de Estado cada dia mais acentua e precisa. 2‘-¡ Secundariamente, uma concepção original da responsabilidade fundada no risco se projeta ousada e sucessivamente em diversas direções”911. A absoluta irresponsabilidade do Estado está, como já acentuamos, definiti­ vamente prescrita como doutrina. As exceções que ainda hoje se apresentam são explicáveis por motivos outros (principalmente o espirito de refinado civismo dos cidadãos da Inglaterra e dos Estados Unidos que não os de mera resistência político-doutrinária às doutrinas assentadas). As ideias civilistas, ainda dominantes em várias legislações e defendidas prin­ cipalmente pelo espirito conservador dos tribunais, têm em seu ativo o mérito inapreciável de haver aberto "uma brecha no axioma da irresponsabilidade da administração pública e permitido a substituição, pela responsabilidade do patrimônio administrativo, mais , substancial, da responsabilidade pessoal do agente, as mais das vezes ilusória"925. Longe está esta doutrina, porém, de constituir solução satisfatória. Como o mau funcionamento do serviço público nem sempre se identifica com a falta de determi­ nado agente, a aplicação de tal doutrina resulta em negação de responsabilidade,, sempre que não seja possível estabelecer a culpa do agente, muito embora se defron­ te caso autêntico de defeito do serviço926. Dada a incapacidade técnica de tal sistema, para resolver os casos de res­ ponsabilidade do Estado, em que o espírito ou talvez a intuição dos juizes sentia a necessidade de impor a obrigação de reparar, apelou-se para expedientes que a 923 Paul Duez, ob. dt., p. 1. 924 Paul Duez, ob. e loc. dts. 925 Paul Duez, ob. dt., p. 9. 926 Duez, ob. e loc. dts.

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^{¿iência jurídica

JJa Responsabilidade Civil

tem tolerado em larga margem, notadamente em matéria de respon-

jabilidade civil. Paul Duez assinala três deles, todos tecnicamente censuráveis: l s) Violência aos textos. Na França, deformou-se o artigo 1.384 do Código Civil francês ? e, sem dúvida, a acomodação foi mais brutal que a operada com o art. 15 do nosso Código Civil de 1916 que pelo menos reconhecia, expressamente, a responsabilidar de do Estado, dependente do ato ilícito do funcionário. 2S) Forçada interpretação da : intenção dos redatores do Código Civil francês, sob pretexto de que os arts. 1.382 e segs. foram redigidos em termos muito amplos, o que se contesta, tanto porque os

TWSíHIP

Codificadores quiseram, manifestamente, estabelecer tão-somente regras de direito privado, como porque legislavam em tempos onde ainda estava em pleno vigor o dogma da irresponsabilidade do Estado. 35) Errado conceito sobre a natureza jurí­ dica das relações existentes entre a administração pública e seus agentes. O Estado,

na verdade, não está para o funcionário assim como o preponente para o preposto, o patrão para o empregado. Não seria acertado compreender as relações do funcioná­ rio com o Estado como contratuais, e hoje ninguém mais incorre em tal equívoco927. A teoria da falta do serviço público, elaborada na França pelo Conselho de Estado como concepção autônoma, se caracteriza, segundo o insigne Paul Duez, pelos seguintes pontos essenciais: l 9) A responsabilidade do serviço público é uma i responsabilidade primária. A administração não é declarada responsável em con­ seqüência do jogo dos dados preponente-preposto, patrão-empregado etc., mas absorve a penalidade do agente, que se toma simples peça na empresa adminis­ trativa, em cujo corpo se funde. 2a) A falta do serviço público não depende de falta do agente. E suficiente estabelecer a má condição do serviço, o funcionamento defeituoso, a que se possa atribuir o dano. Aplicação típica desse critério é uma célebre decisão do Conselho de Estado, tomada a 3 de fevereiro de 1911. Um in­ divíduo de nome Anguet se apresentou em uma agência postal alguns minutos antes do fechamento, de forma que este se deu quando ele se encontrava ainda aí. Terminado o serviço que o trouxera à agência e procurando sair, foi convidado a retirar-se pela sala de triagem. Aí ocorreu um incidente entre ele e dois carteiros, que o expulsaram violentamente, daí resultando um movimento infeliz, em que fraturou uma perna. Houve ação contra o Estado, proposta pelo prejudicado. De acordo com o critério civilista, sendo manifesta a culpa dos carteiros (aliás conde­ nados penalmente pelas lesões infligidas ao autor), o juiz teria baseado a respon­ sabilidade do Estado nesse fato de seus agentes. Não foi o que fez o Conselho de 927 Duez, ob. dt., p. 10.

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Estado: estabeleceu a existencia da falta do serviço público, demonstrando o Sea mau funcionamento e apontando as faltas anónimas que o revelavam. Verifico! que alguém, para apressar a hora do fechamento, adiantou o relógio da repartição coisa que não poderia suceder em serviço bem organizado. Assinalou a existénn? de um ressalto na porta, causa imediata do acidente. Ora, numa agencia mate­ rialmente bem aparelhada, tal defeito não deveria apresentar-se. Portanto, havia falta do serviço, sem indagar quem teria adiantado o relógio, quem ordenara o estabelecimento do ressalto ou quem o tolerava. O Conselho de Estado fixava, en­ tão, que, não obstante a responsabilidade pessoal dos agentes autores da violência contra a vítima, o acidente deveria ser imputado ao mau funcionamento do serviço público. 32) É preciso, entretanto, notar que o que dá lugar à responsabilidade é a falta, não o fato de serviço. Distinção útil, no sentido de que a teoria não pode ser assimilada à doutrina do risco. 4a) Nem todo defeito do serviço acarreta a respon­ sabilidade: requer-se, para que esta se aperfeiçoe, o caráter de defectibilidade, cuja apreciação varia segundo o serviço, o lugar, as circunstâncias928.

197. A doutrina da culpa administrativa. A teoria do risco administrativo. Votos dos Ministros Orozimbo Nonato e Filadelfo Azevedo. Na culpa administrativa, portanto, decorrendo a responsabilidade da falta anô­ nima do serviço público e não se cogitando de culpa do funcionário, é sem utilidade a distinção entre culpa pessoal e culpa profissional, asserção que é válida também para a doutrina do risco social. No sistema em que a responsabilidade só se confi­ gura em face da culpa de determinado agente do poder público, essa distinção é gj necessária, porque a falta pessoal, ainda quando praticada no exercício do cargo, só empenha a responsabilidade do agente, ao passo que a falta do serviço acarreta a responsabilidade do Estado, como inerente à função. De três ordens são os fatos identificáveis como faltas do serviço público, conforme resultem: de mau funcionamento do serviço, do não funcionamento do serviço, do tardio funcionamento do serviço. Na primeira categoria, estão os atos positivos culposos da administração. Na segunda, os fatos conseqüentes à inação administra­ tiva, quando o serviço estava obrigado a agir, embora a inércia não constitua rigoro­ samente uma ilegalidade. Na terceira, as conseqüências da lentidão administrativa.

D a Responsabilidade Civil

Sustentamos que a ação de responsabilidade do Estado deve se basear na dou­ trina objetiva, também chamada do risco administrativo, cujo alcance foi nitidamente esboçado

em luminosos votos dos Ministros Orozimbo Nonato e Filadelfo Azevedo.

A opinião do Ministro Orozimbo Nonato, em profissão de fé objetivista, que marca, iniludivelmente, novo rumo na orientação dos nossos juizes a respeito da responsabilidade do Estado, foi expressa, ao que nos parece, pela primeira vez, no julgamento de uma ação de ressarcimento de danos resultantes de deterioração de mercadoria em virtude de longa permanência na Alfândega. Provou-se que a mer­ cadoria era de procedência nacional e estava, assim, livre de direitos, com a demons­ tração de sua identidade por autoridades consulares e aduaneiras e, não obstante, não obteve despacho livre, porque o conferente da Alfândega, tendo, a respeito, to­ mado o parecer de um terceiro, concluiu que não se tratava de premier jus 929 e sim de margarina de porco; que o inspetor, em face da impugnação, não só negou o despacho livre como impôs multa, por se tratar de mercadoria diferente daquela a que se referia o certificado de exportação; que, em conseqüência, ficou a mercadoria retida, através de demoras e vicissitudes das reclamações administrativas, que tive­ ram remate na decisão do Conselho de Contribuintes, de que se achava perempto o recurso; que a mercadoria, enfim, se deteriorou e foi posta em leilão; que, entre­ tanto, afinal, se apurou regularmente que nem houve substituição da mercadoria, sendo ela a mesma a que se referia o certificado de exportação da Alfândega de Livramento, e nem estava errada a classificação recebida, e que a enquadrava entre os sebos de qualquer qualidade a que se refere a Tarifa. Passando ao exame dos argumentos da sentença, S. Ex§ mostrou que, ao con­ trário do que pareceu ao juiz, a deterioração da mercadoria se deveu ao ato dos funcionários aduaneiros. O nexo de causalidade, a causai connexion, entre o ato dos serventuários da Alfândega e o dano, foi nitidamente estabelecido. A deterioração foi conseqüência necessária de tal ato, que determinou a falta de conservação da mercadoria, facilmente alterável, por largo tempo, em recipientes fechados. Quanto à responsabilidade, reconheceu que o juiz não está isolado na opinião da culpa administrativa930. Lino de Morais Leme dizia que o nosso Código, seguindo a esteira de Sourdat, Aubry et Rau, Massé, Giorgi e outros, reconhece a responsa929 Nota do atualizador - Premier Jus (Oleo Stock) é-o produto obtido ao se manter em baixa temperatura (não maior do que 60° C) a gordura fresca (killing fresch) de coração, rim e mesentério, coletada no momento do abate de animais bovinos que gozem de boa saúde e estejam adequados ao consumo humano. 930 Voto na Apelação n2 7.127, em 10.08.42, Diário da Justiça de 02.02.43.

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Dias

D a R e sp o n sa ®

bilidade do Estado, quando ocorrem fatos ilícitos, porque dos termos do art. 15 ade

O que convém estabelecer, para prevenir, o excesso prejudicial ao erário, são as suas cláusulas de salvaguarda: a) a força maior exonera o Estado de responsabilidade; b) a culpa da vitima constitui causa de isenção total ou parcial; c) o daño eventual, incerto, inexistente afortori ou não apreciável não acarreta a responsabilidade; d) para que provoque a reparação, é preciso que o dano seja direto; e) desconhecimento do dano moral",ss. A crítica de Hauriou ao sistema do risco atribui-lhe também o defeito de adotar ponto de vista anacrônico, pois que a doutrina, algum tempo fascinada pela teo­ ria do risco, regressa às ideias clássicas986. E Duez quem reproduz a objeção, para destruí-la. E preciso não confundir o ponto de vista legislativo com o direito positi­ vo. Realmente, à luz do art. 1.382 do Código Civil francês, é difícil defender a ideia do risco, mas em outros terrenos a doutrina objetiva não recuou: estabelecimentos perigosos, incômodos e insalubres, minas, navegação aérea etc. Ao contrário do que, iludidos, supõem seus adversários, a doutrina do risco não se retraiu porque sofres­ se uma derrota, mas exatamente em virtude do bom êxito registrado na legislação. Havendo recolhido esse triunfo, os partidários do risco se detiveram prudentemen­ te, não querendo impor o risco como princípio universal da responsabilidade987. No seu Direito Administrativo Brasileiro, 1966, p. 531, Hely Lopes Meireles alude aos que sustentam a adoção, pela nossa Constituição, da teoria do risco inte­ gral, declarando-se energicamente contrário a esse entendimento e preconizando a do risco administrativo. Sua opinião foi invocada, para admissão da influência da culpa da vítima, na composição do dano a ser reparado pelas pessoas jurídicas de direito público (RTJ, vol. 55, p. 49). A opinião do exímio Seabra Fagundes é no sentido de que a Constituição ado­ tou o princípio do risco criado (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2a ed., p. 218). Ela não importa, entretanto, adesão ao princípio do risco integral, pois as expressões não são sinônimas e as conseqüências que o grande tra­ tadista tira daí não comportam essa conclusão. Escrevendo sobre o tema da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de di­ reito público, o insigne jurista Alcino Pinto Falcão demonstrou, com a sua conhecida força de argumentação: a) a superioridade do nosso direito relativo ao problema, em

985 Duez, ob. e loc. cits. Não vamos tão longe, no que toca ao dano moral. Apenas admitimos a neces­ sidade de restiingir o seu reconhecimento, principalmente em presença da indenização do dano patrimonial. 986 Ob. d t, p. 66. 987 Ob. e loc. dts.

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Da Responsabilidade Civil

: confronto com o de outros países, como se vê de nossa legislação, a partir do inciso 29 do art. 179 da Constituição do Império, da Lei de Responsabilidade dos Ministros

e Conselheiros de Estado, de 15 de outubro de 1827, da atribuição de foros de cidade a responsabilidade do Estado, com a criação da Justiça Federal, pela República, e in­ serindo-se firmemente nas Constituições Federais, com variação apenas em termos de definição, nunca de aceitação; b) a inferioridade, nesse ponto, do direito anglo-saxão, apesar das conquistas no sentido da responsabilidade que, na justa observa­ ção do eminente Seabra Fagundes, está longe ainda de alcançar o relevo que merece; c) a inferioridade do direito suíço em paralelo ao brasileiro, sendo, pois, de aplaudir a rejeição, pela nossa jurisprudência, desse exemplo para solução do problema; d) a ausência de influência, sobre o nosso, do direito português, em que a responsabili­ dade civil não teve, sequer, o influxo da jurisprudência progressista, como em nosso caso; e) a luminosa construção do Conselho de Estado francês, inaugurando a fase do direito público, no tratamento da questão da responsabilidade do Estado; f) a posição dos direitos alemão, austríaco e italiano, também salientadora da superio­ ridade do direito brasileiro, realçada pelo saudoso Carlos Maximiliano, ao noticiar que nossa lei “é adiantadíssima neste particular"; g) a refutação completa à posição de Hely Lopes Meireles, contrária a Mário Mazagão e Otávio de Barros, por ser inexato dizer que a doutrina do risco é radical, uma vez que circunstâncias diversas podem excluir ou reduzir a obrigação de indenizar; h) a impropriedade de pleitear repara­ ção que não sejam oriundas de atos da Administração (Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça da Guanabara, vol. 22, p.15). Esse artigo é de leitura obrigatória para quem queixa inteirar-se do problema da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público entre nós. Além da informação sobre o direito estrangeiro, contém interessante exposição doutrinária sobre o assunto. O risco é o fundamento da responsabilidade civil do Estado, apenas exigindo nexo causai entre o dano e o ato, ainda que regular, do agente do poder público (Martinho Garcez Neto, Prática da responsabilidade civil, p. 167). Para Caio Tácito, o sistema que encontra ressonância na jurisprudência brasi­ leira é o da culpa administrativa, reservando-se o princípio do risco aos casos excep­ cionais consagrados em lei (RDA, vol. 55, p.262). A Constituição de 1988, em seu art. 37, § 6Q, sufragou o princípio do risco ad­ ministrativo como regedor da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público interno, como já constava das Constituições anteriores, a partir da de 1946 e o estendeu às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. 701

José de Aguiar Dias

D a R bsponsabo©^^

A jurisprudência específica sobre o tema não deixa dúvidas acerca da opção do legislador pela teoria do risco administrativo. Assim o STF, no RE 238453, em que foi relator o Ministro Moreira Alves, jul­ gado em 112/11/20(32, apreciando responsabilidade civil de Município, quando dis­ se que o acórdão contra o qual fora interposto o extraordinário, "embora aludindo à responsabilidade objetiva do Estado nos moldes da teoria do risco integral, em verdude orientou-se pela teoria do risco administrativo, sustentando a inexistência de culpa exclusiva da vítima, e sendo certo que, no caso, não havia caso fortuito ou de força maior". Ainda o STF, no RE 2304010 Agr/RJ, julgado em 23/8/2002, relator o Ministro Carlos Velloso, quando se reafirmou que "a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, é abrandada ou excluída pela culpa da vítima" .Sem discrepância, manifestou-se o TJRJ no sentido de que "é de curial sabença que o ordenamento constitucional (art. 37, § 6o) não adotou a teoria do risco inte­ gral91“, mas sim a do risco administrativo, e por isso possui a empresa prestadora de serviço público, no caso a demandada, a faculdade de alforriar-se do dever de indenizar" (Quinta Câmara Cível, AC 2003.001.08320, relator desembargador Humberto de Mendonça Manes, julgada em 29/4/2003).

988 Nota do atualizador - Para demonstrar a fatuidade da adjetivação em certas situações, Aguiar Dias pro­ duziu esse saboroso comentário: "[...] Que é risco integral? Esta a indagação a que obriga a boa interpreta­ ção, porque há quem sustente que o risco a que se deve ater o intérprete não é risco. Nós entendemos que a definição de risco integral só pode referir-se à atividade do Estado, exercida mediante o desempenho, por seus agentes, da parcela dessa atividade que lhes é atribuída. Fatos estranhos ao serviço não empe­ nham a responsabilidade do Estado, por faltar-lhes a relação de causalidade, essencial à configuração da responsabilidade civil. Se atentarmos para esse aspecto do problema e o tivermos como indispensável à aplicação do princípio do risco, podemos definí-lo como integral, embora para a definição bastasse o substantivo, porque o adjetivo, como acontece com a democracia, por exemplo, só provoca equívoco".

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C a p ít u l o

II

RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA ORDEM INTERNACIONAL Sumário:

201. O

A in t e r v e n ç ã o 202. N a t u r e z a j u r í d i c a DA AÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO ESTADO NO PLANO INTERNACIONAL. 203. O ABUSO DOS FORTES, NA PRETENSA INSUFICIÊNCIA DA COMPENSAÇÃO POR EXPROPRIAÇÕES. A QUESTÃO DAS CONCESSÕES. A LIÇÃO E sta d o

responde

na

ordem

in t e r n a c io n a l

com o

um a

u n id a d e .

d ip l o m á t ic a c o m o r e s u l t a n t e d o e s g o t a m e n t o d o s r e c u r s o s i n t e r n o s .

de

B a r b o s a L im a S o b r in h o .

201 Estado responde na ordem internacional como uma unidade. A intervenção diplomática como resultante do esgotamento dos recursos internos. O Estado responde na ordem internacional como uma unidade. Pode ser responsabilizado até pela legislação ofensiva dos direitos internacionais reco­ nhecidos aos estrangeiros, residentes ou não no país. Em princípio, é satisfató­ ria a fórmula da igualdade de tratamento. Convém, porém, interpretá-la razo­ avelmente. O Estado não encontra nenhuma restrição no seu modo de tratar os estrangeiros. O que se impõe é a observância de certos princípios que limitam sua onipotência sobre os estrangeiros e não há, quanto a esse ponto, nenhuma relação com o tratamento dispensado pelo Estado aos próprios súditos989. Esta teoria é sem dúvida preferível à

de Podestá Costa990, em face da aceitação

universal de princípios limitativos dos direitos das nações, no interesse da paz mundial991. Daí decorre que se toma cada vez menos necessário o recurso à inter989 Raul Fernandes, "Responsabilidade do Estado por dano irrogado ao estrangeiro", na Revista Forense, vol. 55, p. 121. 990 L. A. Podestá Costa condensa em livro a doutrina sustentada em trabalhos anteriores e que se resume na defesa da posição assumida pela generalidade dos países americanos com relação às reclamações apresentadas pelas nações da Europa pelos danos sofridos pelos seus súditos em conseqüência de movimentos revolucionários, endêmicos em certa parte da América. Expõe com muita clareza e penetrante senso crítico os argumentos em que baseia sua tese de irresponsabi­ lidade, e os sistematiza em um projeto de regulamento internacional, inspirado nos princípios da comunidade da fortuna (La responsabilidad dei Estado por daños irogados a la persona o bienes de estrangeros en luchas civiles, Havana, 1939). 991 Reconhecendo a existênda de uma lei superior, o armamentismo e o orgulho nacionalistas têm impe­ dido, entretanto, um mais perfeito ordenamento jurídico controlador das atividades do Estado em relação aos outros países. De forma que, progredindo em relação aos danos causados aos estrangei­ ros em território do Estado ou por seus agentes, o direito internacional continua no plano platônico,

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Jose de Aguiar Dias - Da responsabilidade civil

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