Livro de Histórias de Natal

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73-206

LIVRO DE HISTÓRIAS DE NATAL

– coletadas por Ineke Verschuren –

LIVRO DE HISTÓRIAS DE NATAL – coletadas por Ineke Verschuren –

Título original: “The Christmas Story Book”. Tradução: Ruth Salles

ÍNDICE ADVENTO Porque Deus criou o Homem – Dan Lindholm O Contrato de Casamento de Maria e José – Proto-evangelho de Tiago A Busca pelo Rei secreto – Eberhard Kurras A Lenda do Dia de Santa Luzia – Selma Lagerlöf André – Gerhard Klein O cego Pedro – Gerhard Klein O Cavaleiro da Estrela – Jakob Streit O Nascimento de João Batista – Evangelho de Lucas A Anunciação a Maria – Evangelho de Lucas O NASCIMENTO DA CRIANÇA O Nascimento de Jesus em Belém – Evangelho de Lucas A Flauta do Pastorzinho – Dan Lindholm Jonas, o Pastor no Estábulo – Georg Dreissig O Poço da Estrela – Elizabeth Goudge Os Pastores – Ruth Sawyer (a mais antiga lenda da Espanha) A Lenda da primeira Árvore de Natal – Elisabeth Goudge A NOITE DE NATAL Stefan Vasilivich, o Salteador – Jeanna Oterdahl

NATAL EM TODO O MUNDO O Pinheirinho - Hans Christian Andersen Uma História de Natal das Montanhas – C. E. Pothast-Gimberg A primeira Árvore de Natal – Jakob Streit O Trolo que queria ser humano – Jeanna Oterdahl O último Sonho do velho Carvalho – Hans Christian Andersen A Senhora Holle e o Soprador de Vidro – Karl Paetow O Mineiro e sua Mulher – Karl Paetow

A Carruagem da Senhora – Karl Paetow Alice e suas Pombas – Anônimo A Rosa de Natal – Selma Lagerlöf O Ouro de Bernardino – Ruth Sawyer A Manjedoura do Bo’bossu – Ruth Sawyer O Padre João e os Trolos – Anônimo O pequeno Anjo – Leonid Andreiev O Hóspede – N. S. Leskov Tamara, o Anjo mouro – Hans Berghuis Uma história de Natal – Maxim Gorki

DO NATAL À EPIFANIA A Adoração dos Magos – Evangelho de Mateus A pequena Vendedora de Fósforos – Hans Christian Andersen O Cardo – Elizabeth Klein Véspera do Ano Novo – Dan Lindholm O Grão de Trigo milagroso – Nienke van Hichtum As três Dádivas – Jane T. Clement As Luzinhas que se apagaram – Karl Paetow A Viagem dos Três Reis – Ruth Sawyer Babushka – Conto russo O Rei secreto – Georg Dreissig A história dos outros Homens Sábios –Henry van Dyke A Canção do Sonho de Olaf Asteson – Canção popular norueguesa

ADVENTO

PORQUE DEUS CRIOU O HOMEM (Dan Lindholm)

Deus criou o mundo e tudo o que ele contém, do mais insignificante verme da terra até a coroa da Criação: o homem. Os anjos contemplaram e admiraram tudo. Mas uma coisa, em especial, lhes pareceu incompreensível: Por que Deus criara o homem? No entanto, embora pensassem muito, aquilo continuava sendo um enigma. Eles achavam que Deus não precisava de homens na Terra, já que no céu havia tantos anjos. Depois de discutirem bastante, concordaram em indagar do próprio Deus. Um dos menores anjos criou coragem, pôs-se diante do trono do Senhor e perguntou: “Pai celeste, sua casa está cheia de anjos grandes e pequenos. Por que então o homem foi criado?” Quando Deus Pai ouviu aquilo, exclamou: “Venham todos aqui, seres do exército celeste!” Então ele se curvou até a Terra, colheu uma rosa vermelha que acabara de desabrochar e disse aos anjos: “Quem sabe me dizer o que tenho na mão?” Mas nenhum dos inúmeros anjos sabia o que Deus segurava na mão. Ficaram em silêncio em volta de seu trono e não responderam. Deus Pai então disse: “Criei o homem para que haja no mundo uma criatura que saiba o que Deus Pai criou.”

O CONTRATO DE CASAMENTO DE JOSÉ E MARIA (do Protoevangelho de Tiago)

Depois que Joaquim e Ana esperaram por longo tempo pelo nascimento de um filho, e Joaquim, envergonhado, se retirou para o deserto, um anjo do Senhor veio a Ana e disse: “Ana, Ana, o Senhor ouviu sua prece. Você vai conceber e dar à luz uma criança, e o mundo inteiro falará dela.” E Ana respondeu: “Glória ao Senhor meu Deus! Se eu der à luz uma criança, seja menino ou menina, eu a trarei como dádiva ao Senhor meu Deus, para que o sirva por todos os dias de sua vida.” E eis que chegaram dois mensageiros, que disseram a Ana: “Joaquim, seu marido, está chegando com o rebanho; pois um anjo do Senhor veio a ele e lhe disse: “Joaquim, Joaquim, o Senhor Deus ouviu sua prece. Desça! Sua mulher Ana vai conceber.” E Joaquim desceu, chamou seus pastores e disse: “Tragam-me dez cordeiros sem mácula; eles serão para o Senhor meu Deus”. E tragam-me doze novilhas de leite, para os sacerdotes e os anciãos, e cem cabritos para todo o povo. E Joaquim veio com seu rebanho, e Ana estava no portão e, ao vê-lo chegar, correu ao seu encontro e atirou-se ao seu pescoço, dizendo: “Agora sei que o Senhor Deus me abençoou enormemente; pois veja, a viúva não é mais viúva, e eu que era estéril vou conceber.” E Joaquim descansou no primeiro dia em sua casa. E, quando o tempo se cumpriu, nasceu uma menina, e Ana lhe deu o nome de Maria. Quando Maria chegou aos três anos de idade, seus pais a levaram ao templo do Senhor, para cumprir a promessa que haviam feito. Quando ela completou doze anos, houve um concelho de sacerdotes, e eles disseram: “Maria completou doze anos no templo do Senhor. Que devemos fazer agora com ela?” E eles disseram ao sumo-sacerdote: “Fique no altar do Senhor; entre e ore por ela, e aquilo que o Senhor lhe revelar, nós faremos.” E o sumo-sacerdote foi ao Santo dos Santos e orou por ela. E eis que um anjo do Senhor subitamente lhe apareceu e disse: “Saia e reúna os viúvos do povoado, os quais devem trazer um bastão, e Maria será esposa daquele a quem o Senhor mostrar um sinal.”

E os arautos saíram e se espalharam por toda a terra ao redor da Judeia; a trombeta soou, e todos atenderam. E José largou seu machado e também foi ao seu encontro. E, quando se reuniram, pegaram os bastões e se dirigiram ao sumo-sacerdote. Este pegou todos os bastões, entrou no templo e orou. Ao terminar a oração, pegou os bastões, saiu novamente e os deu aos viúvos: mas não havia sinal algum neles. José recebeu o último bastão, e eis que saiu do bastão uma pomba que voou sobre a cabeça de José. E o sacerdote disse a José: “José, coube a você a boa sorte de receber a virgem do Senhor; tome-a a seus cuidados.” E José, temeroso, tomou-a a seus cuidados.

A BUSCA PELO REI SECRETO (Eberhard Kurras)

Há tempos não muito distantes, existia um país que era o maior do mundo, porque havia conquistado quase todos os outros países. Ele se tornara não só muito famoso como também muito rico, e seus habitantes tinham de admitir que praticamente nada prejudicava sua boa sorte. Um dia, uma doença muito estranha surgiu naquele país. A princípio atacou só poucas pessoas, depois se alastrou cada vez mais e, finalmente, tornou-se uma epidemia. O sintoma era um tipo curioso de paralisia. As pessoas que sucumbiam à doença, não conseguiam mais se mover, pouco depois não podiam mais falar e, finalmente, não podiam mais pensar. Os habitantes ficaram profundamente perplexos porque esse mal lhes viera no tempo de sua maior prosperidade. Como a doença se espalhava e tomou conta das pessoas mais importantes, o rei finalmente convocou seus conselheiros e os consultou sobre o que devia ser feito em tal situação. Mas os conselheiros não podiam pensar em nada além do que os médicos já haviam tentado. Por fim propuseram que o rei mandasse pelo reino afora uma proclamação pedindo que se apresentasse aquele que soubesse o que se devia fazer.

O rei assim fez e, passado algum tempo, um pastor muito velho apareceu no palácio e deu ao rei um conselho inesperado, dizendo: “Nesta situação extrema, só uma coisa pode ajudar Sua Majestade. Mande sua filha ao Rei Secreto e ele lhe dará o que é necessário.” O rei não gostou nem um pouco do que lhe foi dito. Ele não queria mandar sua própria filha, sozinha, à presença de um rei desconhecido, especialmente a um rei que também era o Rei Secreto. Mas, quando ele mesmo ficou doente, decidiu afinal seguir o conselho do pastor. E assim a jovem princesa partiu. Ela não sabia onde morava o Rei Secreto e nem sabia o caminho, mas tinha o ardente desejo de encontrá-lo e de ajudar o povo. Ela vagou da manhã à noite sem encontrá-lo e, como não tinha tido êxito, resolveu não procurar alojamento para a noite, mas ficar ao ar livre, a fim de não perder a visão de algum sinal. Assim, subiu ao alto de uma colina e passou a noite ali. Ela então viu, no infinito céu de um azul profundo, formar-se uma abóbada acima dela. Ela nunca vira o céu daquela maneira. Contemplou-o firmemente por muito tempo, entregue à sublime visão. Sentiu-se cada vez mais livre e maior e sentiu que podia compreender muitos mistérios do mundo. E então adormeceu profundamente. Quando acordou na manhã seguinte, ela reparou, para seu próprio espanto, que estava envolta num maravilhoso manto azul escuro. Levantou-se e pôs-se a caminho. Encontrou muitas pessoas que precisavam de ajuda, algumas a amaldiçoavam. A filha do rei fez tudo que era pedido, sem se queixar ou se zangar. Chegou perto dela uma mulher que mal tinha o que vestir e que implorou por alguma roupa quente. A filha do rei deu sua própria roupa, pois ainda lhe restava o manto azul. No entanto, ao se olhar depois, viu que uma túnica nova a envolvia, a qual brilhava no mais lindo tom vermelho. Ao seguir adiante no dia seguinte, encontrou muitos obstáculos. Os caminhos se tornaram cada vez mais árduos, e ela começou a perder as forças. Só mesmo sua perseverança a mantinha constante em sua meta. Chegou a uma campina num lugar elevado, com árvores frondosas cheias de frutos brilhantes. Exausta, ela se sentou sob a árvore mais copada, mas enquanto ficou ali pensando “Ah, se minhas forças fossem iguais à minha determinação!”, a imensa árvore começou a sacudir e sacudir, e caíram dois lindos sapatos dourados e quentes. Ao calçar esses sapatos,

a filha do rei sentiu suas pernas se moverem com uma força que nunca sentira antes. E então ela foi capaz de continuar andando. No quarto dia, o caminho desceu e aos poucos foi dar dentro da terra. Primeiro cercou-a uma escuridão assustadora, depois foi clareando e por fim ela se viu numa luz leve e indescritível. Parecia que estava chegando ao coração da terra. No meio daquele espaço havia um trono onde estava sentado um jovem rei brilhante como um suave sol. Ao seu redor estavam os espíritos da Natureza, os guias da humanidade e os anjos mais elevados. A filha do rei percebeu então que tinha alcançado o fim de sua viagem. O rei no trono olhou para a jovem e viu que ela vestia o manto azul, a túnica vermelha e os sapatos dourados. Ele então falou com ela e lhe disse: “Vejo que você é digna de receber o dom da cura e de levá-la para a humanidade.” E ele lhe deu uma tigela dourada cheia de uma água reluzente e mandou que bebesse. E ele lhe disse que a levasse ao povo e contasse a respeito do Rei Secreto. Quem acreditasse nela tinha a permissão de beber aquela água e se curar da doença. A filha do rei pegou a tigela e viajou de volta à terra dos homens. Quando contou ao povo quem ela havia encontrado, a maioria não acreditou que existisse um Rei Secreto. Mas quem acreditou bebeu da tigela dourada e se curou da misteriosa doença. Dessa maneira, muitos receberam uma nova vida. Muitos mais chegarão a isso quando abrirem seus corações para a notícia de que existe um Rei Secreto que guarda e concede a água da vida. Ele reside entre nós e espera.

A LENDA DO DIA DE SANTA LUZIA (Selma Lagerlöf)

Há muitos séculos, vivia ao sul da Varmlândia uma velha senhora rica e gananciosa, chamada Lady Rangela. Ela possuía um castelo, ou melhor, uma fortificada mansão na entrada estreita de uma longa baía que se escoava do lago Väner. Ela construíra uma ponte sobre essa entrada estreita, e essa ponte podia ser

levantada tal como as pontes levadiças sobre valas. Na ponte, Lady Rangela mantinha um guarda forte que abaixaria a ponte para os viajantes que concordassem em pagar o pedágio que ela pedia, mas para aqueles que eram muito pobres ou que, por outra razão, se recusavam a pagar, a ponte se mantinha suspensa. E como ali não havia serviço de barcas, esses viajantes tinham de contornar toda a baía, dando uma volta de várias léguas. Quando Lady Rangela começou a exigir pedágio dos viajantes dessa maneira, isso causou muito descontentamento e, com certeza, os fazendeiros resolutos que eram seus vizinhos a teriam forçado, há muito tempo, a lhes dar passagem livre, se ela não tivesse um poderoso amigo e protetor em Lorde Eskil de Börtsholm, cujos domínios tinham limites com os dela. Esse Lorde Eskil, que morava num verdadeiro castelo com muralhas e torres, que era tão rico que suas terras abrangiam as dimensões de um condado, que tinha um séquito de sessenta cavaleiros armados quando saía pelo país e, além disso, era altamente considerado como conselheiro do rei, não era apenas um bom amigo de Lady Rangela, mas ela conseguira tornálo seu genro, e assim era natural que ninguém ousasse interferir nas atividades da avarenta mulher. Ano após ano, Lady Rangela continuou a agir sem oposição, até que uma coisa aconteceu que lhe causou graves apreensões. Subitamente sua pobre filha, esposa de Lorde Eskil, morreu, e Lady Rangela disse consigo mesma que um homem como Lorde Eskil, com oito filhos ainda menores e uma família como a de um rei, logo se casaria de novo, principalmente não sendo ele muito velho. Mas, se a nova esposa fosse hostil à Lady Rangela, isto lhe seria muito prejudicial, pois era quase mais importante para ela estar em bons termos com a senhora de Börtsholm do que com o próprio lorde, já que Lorde Eskil, tendo muitos negócios para resolver, estava frequentemente viajando. E, quando ele estava fora, cabia à sua esposa manter a ordem na vida do castelo e em seus domínios. Lady Rangela ponderou sobre o assunto cuidadosamente e, depois do funeral, foi um dia até Börtsholm e procurou Lorde Eskil em seus aposentos particulares. Ela dirigiu a conversa ao assunto dos oito filhos e dos cuidados que eles necessitavam, falou dos inúmeros criados que tinham de ser supervisionados, alimentados e vestidos, dos grandes banquetes, frequentados muitas vezes por reis e príncipes, dos grandes rendimentos com os rebanhos, campos, áreas de caça, pesca, colmeias, jardins, de tudo o que era de responsabilidade da casa grande; na

verdade, de tudo que sua falecida esposa tivera de administrar e, desse modo, fazendo surgir uma imagem alarmante das grandes dificuldades que cresciam diante dele depois da morte de sua esposa. Lorde Eskil escutou com o respeito devido a uma sogra, mas com alguma desconfiança. Ele achava que tudo isso podia significar que Lady Rangela se oferecia para tomar a seu cargo o funcionamento de Börtsholm, e ele confessava a si mesmo que aquela velha senhora, com sua papada e seu nariz adunco, sua voz áspera e sua ganância rude, não seria uma companhia muito agradável em sua casa. “Meu caro Lorde Eskil,” – continuou Lady Rangela, que talvez soubesse bem o efeito de sua fala – “sei que o senhor tem a oportunidade de fazer um casamento muito vantajoso, mas sei também que o senhor é bastante rico para considerar o bem-estar de seus filhos depois do dote e da herança que virão com esse casamento, e assim eu gostaria de sugerir que o senhor escolha uma das jovens primas de minha filha como sucessora dela.” A fisionomia de Lorde Eskil desanuviou-se visivelmente ao ouvir que sua sogra estava recomendando um relacionamento com uma jovem, e ela, com maior segurança, passou a aconselhá-lo a se casar com Luzia, a filha de seu irmão, o grande juiz Sten Folkesson. Luzia completaria justamente dezenove anos no dia de Santa Luzia. Até então, ela fora criada pelas piedosas freiras do convento de Riseberga, e fora educada não somente em boas maneiras, hábitos e severa piedade, mas também aprendera, na grande propriedade das freiras, a gerir um estabelecimento senhorial. “Se juventude e pobreza não são desvantagens para ela,” – disse Lady Rangela – “O senhor deveria escolhê-la. Sei que minha falecida filha confiaria a ela, de coração tranquilo, o cuidado de seus filhos. Minha filha não teria a necessidade de retornar da sepultura, como a senhora Dyrit de Örehus, se o senhor lhes der sua prima como madrasta.” Lorde Eskil, que nunca tivera tempo de pensar em seus próprios interesses, ficou muito grato a Lady Rangela por sugerir uma companheira que lhe era tão conveniente. Como garantia, ele pediu uma semana para pensar no caso, mas já no segundo dia deu plenos poderes a Lady Rangela para tomar o assunto a seu cargo. Depois de passado o tempo conveniente, as preparações foram feitas, e o

casamento foi celebrado, de modo que a jovem pôde entrar em Börtsholm no começo da primavera, alguns meses depois de completar seus dezoito anos. Quando Lady Rangela considerou o quanto sua sobrinha lhe devia, pois se tornara senhora de tão rico e esplêndido castelo, ela se sentiu ainda mais garantida do que quando sua própria filha exercia o domínio. Em sua alegria, aumentou o pedágio em sua ponte e proibiu terminantemente os vizinhos de ajudar os viajantes a atravessar o estreito de barco, de modo que ninguém se livrava de dever a ela. Ora, depois que Lady Luzia já estava morando em Börtsholm há alguns meses, aconteceu que, numa linda manhã de primavera, alguns peregrinos doentes que iam a caminho da Fonte da Santíssima Trindade, na aldeia de Sätra em Aästmanland, pediram permissão para passar pela ponte. Essas pessoas, que iam em peregrinação na esperança de recuperar a saúde, estavam acostumadas a ter sua viagem facilitada e ajudada por todos que moravam ao longo do caminho e, frequentemente, eles mais recebiam dinheiro do que gastavam. Apesar disso, os guardas da ponte de Lady Rangela, tinham ordens rígidas de não mostrar qualquer indulgência, ainda mais se tratando desse tipo de viajantes, pois ela suspeitava que eles não estavam tão doentes quanto demonstravam, e que apenas passeavam pela região por simples indolência. Quando os doentes viram que a passagem lhes era recusada, fizeram ouvir uma lamentação extraordinária. Os mancos e aleijados e perguntavam como alguém podia ser tão duro de coração a ponto de forçá-los a aumentar sua peregrinação pelo menos por mais um dia inteiro. Os cegos caíam de joelhos e tentavam sentir qual o caminho até os guardas da ponte, a fim de beijar suas mãos e, enquanto isso, os amigos e parentes dos doentes que os estavam ajudando em sua viagem, viravam do avesso bolsos e carteiras para mostrar aos guardas que estavam vazios. Mas os guardas ficaram ali impassíveis, e o desespero daqueles infelizes não tinha limites, quando, para sua sorte, a proprietária de Börtsholm, junto com seus enteados, vinha vindo pelo estreito, trazida por um barco a remo. Ao ouvir o barulho, apressou-se por saber qual a causa daquela comoção e, assim que descobriu, exclamou: “Isso pode ser resolvido facilmente. As crianças descem por pouco tempo a fim de visitar sua avó, Lady Rangela, e enquanto isso os viajantes doentes são levados pela água no barco a remo.”

Os guardas, tanto quanto as crianças, que sabiam que era perigoso contrariar Lady Rangela no que dizia respeito ao seu precioso pedágio da ponte, tentaram avisar a jovem senhora por meio de gestos e olhares. Ela, porém, não percebeu nada, ou não quis perceber nada, talvez. Essa jovem senhora era, em tudo, o oposto de Lady Rangela. Desde sua mais tenra infância ela havia amado e respeitado a donzela siciliana canonizada, Luzia, sua santa padroeira, e a trazia no coração, fielmente, como seu exemplo. Em troca, a santa cobrira seu ser de luz e calor, e isso se mostrava em sua aparência, que era de transparência e delicadeza bruxuleante, de modo que a pessoa até receava tocá-la. Com muitas palavras amigas para aquelas pessoas doentes, ela agora os tinha atravessado no barco pelo estreito, e quando o último pôs o pé na outra margem, ela os deixou, enquanto todos a cobriam de tantas bênçãos que, se tais bênçãos pudessem ser pesadas, teriam afundado o barco antes mesmo que ele começasse a ser remado de volta pelo estreito. Certamente, ela iria, daí por diante, precisar de bênçãos e de bons votos, pois sua tia, Lady Rangela, começou a temer não ser mais apoiada pela sobrinha, e se arrependeu amargamente de tê-la feito esposa de Lorde Eskil. Ela que, tão levianamente elevara a pobre donzela, decidiu fazer-lhe tanto mal que iria derrubála de sua alta posição e reduzi-la à sua anterior insignificância. No entanto, a fim de estar apta a combater o melhor possível sua sobrinha, ela disfarçou suas más intenções e visitou-a muitas vezes em Börtsholm. Lá, ela fez o possível para semear discórdia entre o povo do castelo e a jovem senhora, para que esta se cansasse de sua posição. Mas, para seu maior espanto, nisso ela falhou completamente. Isso foi parcialmente porque, apesar de sua pouca idade, Lady Luzia sabia como manter a casa em esplêndida ordem, mas a verdadeira razão era que, tanto as crianças quanto os criados, pareciam notar que a nova castelã estava sob uma poderosa proteção celeste, que punia seus opositores e dava vantagens inesperadas àqueles que a serviam bem e com boa vontade. Lady Rangela viu que nada poderia conseguir dessa maneira, mas não queria perder as esperanças antes de fazer uma tentativa com Lorde Eskil. Naquele verão, no entanto, ele ficou principalmente na corte real, mantido lá por negociações longas e difíceis. Se ele ficava em casa por poucos dias, seu tempo era dedicado aos administradores e aos caçadores. Ele raramente dava atenção aos habitantes

femininos de Börtsholm e, mesmo quando Lady Rangela vinha de visita, ele se mantinha afastado, e ela nunca conseguia vê-lo sozinha. Num belo dia de verão, quando Lorde Eskil estava em Börtsholm, e estava justamente sentado em seu quarto particular em consulta com seu palafreneiro, ecoaram no castelo gritos tão altos, que ele interrompeu sua conversa e foi correndo ver o que acontecia. Encontrou a sogra, Lady Rangela, montada em seu cavalo diante dos portões do castelo, berrando mais que os guinchos de uma coruja. “São seus pobres filhos, Lorde Eskil,” – gritou ela – “eles estão correndo o risco de se afogarem. Esta manhã eles foram até minha praia num barco a remo, mas na volta o barco deve ter ficado cheio d’água. Eu vi de minha casa como a coisa ia mal com eles e cavalguei até aqui especialmente para avisá-lo. E também digo, embora sua esposa seja filha de meu próprio irmão, que foi um erro dela deixar as crianças saírem num barco tão frágil. Isso realmente parece coisa feita por uma madrasta. Lorde Eskil logo perguntou em que direção os filhos tinham ido e correu para o ponto de desembarque seguido pelo palafreneiro. No entanto, não foram muito longe e já viram Lady Luzia com todas as crianças subindo o caminho em ladeira que chegava do lago até Börtsholm. Dessa vez, a jovem castelã não tinha ido com os meninos em sua excursão, mas tinha ficado em casa e cuidado de algumas obrigações. Mas foi como se ela tivesse recebido um aviso de sua poderosa protetora celestial, que zelava por ela, pois subitamente ela deixou o castelo e procurou os meninos. Ela viu que eles tentavam chamar sua atenção da costa gritando e sacudindo os braços, e então correu para eles em seu próprio barco e conseguiu na hora certa salvá-los do barco que naufragava e passá-los para seu barco. Quando Lady Luzia e seus enteados vinham subindo o caminho da costa, ela estava tão entretida perguntando-lhes como tudo acontecera, e eles estavam tão ocupados falando do assunto, que nem repararam que Lorde Eskil vinha ao seu encontro. Mas, justamente por ele ter ficado um tanto desconfiado por causa da insinuação de Lady Rangela da malignidade de uma madrasta, ele rapidamente fez um sinal ao palafreneiro, e ambos se esconderam atrás de uma roseira brava, que cobria quase totalmente a colina junto à costa onde ficava Börtsholm.

De modo que Lorde Eskil pôde ouvir as crianças contarem a Lady Luzia que eles, aos saírem de casa, tinham tomado um bom barco, mas enquanto visitavam Lady Rangela seu barco fora trocado por outro velho. Só descobriram isso quando já estavam longe e a água começou a entrar de todos os lados, e certamente teriam se afogado se sua querida mãe Lady Luzia não tivesse vindo tão depressa resgatá-los. Lady Luzia dava a impressão de ter agora uma suspeita de qual seria a verdade a respeito da troca dos barcos, pois ficou mortalmente pálida no meio da subida, seus olhos se encheram de lágrimas, e comprimiu com as mãos o coração. As crianças a rodearam, tranquilizando-a. Disseram-lhe que haviam escapado do perigo incólumes, mas a jovem ficou imóvel, sem forças. Os dois enteados mais velhos, dois garotos fortes de quatorze e quinze anos, juntaram as mãos formando uma cadeirinha, e carregaram-na pelo resto da ladeira acima, enquanto os menores riam e batiam palmas. Enquanto o pequeno grupo seguia triunfantemente seu caminho por entre as roseiras de volta a Börtsholm, Lorde Eskil continuou mergulhado em pensamentos contemplando a mulher e as crianças. A jovem lhe pareceu tão encantadora e estranhamente feliz ao passar por perto dele carregada, e talvez seu desejo fosse que a idade e a dignidade lhe permitissem tomá-la nos braços e entrar assim com ela no castelo. Talvez Lorde Eskil também pensasse, naquele momento, quão pouca felicidade havia e quantas aflições se acumulavam sobre ele no serviço de seu alto soberano, enquanto talvez paz e alegria esperassem por ele em sua própria família. Pelo menos naquele dia ele não se fechou em seus aposentos, mas passou o tempo conversando com sua esposa e apreciando os filhos em suas brincadeiras. Lady Rangela, no entanto, viu tudo aquilo com grande mal-estar e foi embora de Börtsholm tão depressa quanto lhe permitiam os bons costumes. Mas, como ninguém ousou suspeitar que ela causara perigo às vidas das crianças a fim de fazer com que Lady Luzia caísse em desgraça diante de seu lorde e senhor, as relações de amizade não foram rompidas, e ela se sentiu capaz de continuar com seus esforços de derrubar a jovem castelã de sua elevada posição. Por longo tempo, todas as tentativas da velha senhora pareciam destinadas ao fracasso, pois o coração bondoso de Lady Luzia e seu comportamento irrepreensível junto com a ajuda de sua santa padroeira celestial tornavam-na

inacessível a todos os seus ataques. Mas, na época do outono, para grande alegria de Lady Rangela, sua sobrinha se incumbiu de uma coisa que certamente Lorde Eskil não aprovaria. Naquele ano, a colheita em Börtsholm foi tão abundante que excedeu de longe o ano anterior e muitos outros anos de que as pessoas se lembravam. Tanto a caça quanto a pesca renderam duas vezes mais que o comum. As colmeias inundaram de mel e cera, e os campos de lúpulo estavam carregados de lúpulo. As vacas davam leite em abundância, a lã dos carneiros era longa como grama, os porcos estavam tão gordos que mal podiam andar. Todos que viviam no castelo repararam na riqueza dessa bênção, e não hesitavam em dizer que isso era por causa de Lady Luzia. Mas, enquanto todo mundo em Börtsholm se ocupava com a produção do ano e fazia cálculos a respeito, apareceu um número enorme de pessoas em extremo sofrimento, todas chegando da costa leste ou nordeste do grande Lago Väner. Com muitas lágrimas e gestos de lamento elas tornavam a contar como a região de onde vieram tinha sido invadida por um exército de saqueadores, que passava incendiando e roubando. Eram soldados tão malvados que tocaram fogo no trigo ainda não colhido e tinham afugentado todo o gado. Os habitantes que escaparam com vida teriam agora de passar o inverno sem um teto sobre suas cabeças e sem provisões. Alguns saíram a mendigar, outros ficaram escondidos no mato, e ainda outros vagavam pelas cinzas e pelas ruínas, incapazes de realizar qualquer trabalho e apenas lamentando suas perdas. Quando Lady Luzia ouviu essas histórias ficou triste ao ver todas as provisões de Börtsholm. Por fim, pensar nas pessoas passando fome do outro lado do lago tornou-se algo tão esmagador, que ela mal conseguia pôr algum alimento na boca. Todo dia ela pensava nas histórias que tinha ouvido no convento, sobre mulheres e homens santos que permitiram a si mesmos ser despojados até das roupas para ajudar os pobres e necessitados. Lembrava-se, especialmente, de sua própria santa padroeira, Santa Luzia de Siracusa, que de tanta compaixão por um jovem pagão, que se apaixonara por ela por causa de seus belos olhos, chegou a tirá-los de suas órbitas e a entregá-los a ele, cega e sangrando, para curá-lo de seu amor pela virgem cristã que não podia ser sua. A jovem, ao se lembrar disso, ficou extremamente atormentada, e sentiu grande desprezo por si própria, por ter sabido de tanta desgraça sem fazer uma séria tentativa para minorá-la.

Enquanto ela estava tão abalada por esses pensamentos, chegou uma mensagem de Lorde Eskil avisando que ele tinha de viajar até a Noruega numa missão do rei, e não chegaria em casa de volta antes do Natal. Mas, quando voltasse viria acompanhado não só por seus sessenta cavaleiros, mas também por uma grande comitiva de parentes e amigos, e queria avisar Lady Luzia para se preparar para um período longo de hospitalidade. No mesmo dia em que Lady Luzia soube que seu marido não retornaria no outono, pôs-se em campo para diminuir o sofrimento que tanto a torturava. Ordenou ao seu pessoal que trouxesse para a costa muitas provisões armazenadas em Börtsholm. Assim, barcos e barcaças foram carregados com mantimentos de inverno do castelo, para grande espanto de seus moradores. Em seguida, Lady Luzia, acompanhada dos enteados, criadas e criados, embarcaram num bom navio. Enquanto deixava para trás apenas alguns velhos guardas em Börtsholm, a quem ela confiou os cuidados do castelo, ela seguiu com todas as suas provisões, cruzando o grande lago que se estendia diante dela, tão vasto quanto o mar. Desde os antigos tempos, muitas histórias foram contadas sobre essa viagem de Lady Luzia. Assim, conta-se que a parte da costa do Lago Väner onde o inimigo tinha feito o pior, estava quase deserta quando Lady Luzia chegou, e ela procurou tristemente por algum sinal de vida ou de movimento, mas nem uma fumacinha saía de alguma chaminé, nenhum galo cantava, nenhuma vaca mugia. Apesar de tudo, ainda havia um velho sacerdote chamado Master Kolbjörn morando em sua paróquia. Ele não tinha seguido seu rebanho, que fugira de suas casas arruinadas, porque ele tinha a sacristia e a igreja cheia de feridos. Ficara com eles, tratando de suas feridas e repartindo com eles o que ele podia chamar de seu, sem contar com alimento ou descanso para si mesmo. De modo que ele estava tão fraco que sentiu estar perto da morte. Num dos mais escuros dias do outono, quando nuvens pesadas rolavam sobre o lago, quando a água rolava em ondas escuras até a costa e a obscuridade da Natureza aumentava o desespero e a desgraça, Master Kolbjörn, que não podia mais celebrar a missa, foi puxar a corda do sino de sua igreja para pedir a bênção de Deus nesse extremo de aflição. E eis que, ao soarem as primeiras badaladas, uma frota de barcos e barcaças vinha chegando à terra. De um dos navios, desceu uma mulher jovem com um rosto luminoso. À sua frente, seguiam oito crianças lindas, e atrás vinham vários criados

trazendo toda espécie de provisões: vitelas e carneiros assados, tábuas longas carregadas de pães, barris de cerveja e sacos de farinha. O socorro havia chegado no último instante, como que por milagre. Perto da igreja de Master Kolbjörn, num promontório que caía direto no lago e era chamado Saxudden (o Scissor Point) havia um antigo sítio. Tinha sido incendiado e saqueado, mas seu dono, já com setenta anos, gostava tanto dele que não quisera deixá-lo. Com ele, haviam ficado sua velha esposa, um pequeno neto e uma neta. Eles tinham conseguido sobreviver graças à pesca, mas uma noite uma tempestade levara embora seus utensílios de trabalho e, desde então, eles se sentaram entre as ruínas esperando morrer de fome. Enquanto assim esperavam, o sitiante pensou em seu cachorro, que ficara ali com eles pacientemente, enfraquecendo. Seu dono pegou um porrete e, com suas últimas forças, bateu no cachorro para enxotá-lo, pois ele não queria que o cachorro morresse ali por eles. Mas, com o golpe, o cachorro uivou alto e fugiu. Passou a noite toda rodeando o sítio e uivando. Lá longe no lago ele foi ouvido e, antes do nascer do dia, Lady Luzia foi guiada para aquele local pelo barulho e, assim, levou auxílio. Mais longe dali, havia uma pequena casa cercada por um muro, onde moravam santas mulheres. Elas haviam jurado a Deus nunca sair dali. Os soldados tiveram alguma consideração por aquelas irmãs piedosas e não as prejudicaram nem à sua casa, embora tivessem levado toda a sua provisão de inverno. A única coisa que as irmãs tiveram permissão para conservar foi um pombal cheio de pombas, e estas foram então sendo matadas até que só sobrou uma. Mas essa pomba era muito dócil, e as piedosas mulheres gostavam tanto dela que não quiseram prolongar suas próprias vidas comendo-a. Assim, abriram o pombal para lhe dar liberdade. A pomba branca, primeiro, subiu alto no céu, mas depois desceu e pousou no cume do telhado. Quando Lady Luzia estava costeando a terra procurando alguém que precisasse de ajuda, viu a pomba e achou que, onde havia uma pomba, também devia haver gente. Assim, ela desembarcou e deu às piedosas mulheres o tanto de alimento necessário para viver durante o inverno. Seguindo ao longo da costa do Lago Väner mais para o sul, tinha havido uma pequena cidade comercial que também tinha sido saqueada e reduzida a cinzas. A única coisa que restou foi um ancoradouro onde as embarcações costumavam ser amarradas. Sob as pilastras, um homem chamado Lasse, o mercador, tinha se escondido com sua mulher quando a cidade foi destruída, e enquanto toda a luta se

passava em cima, a mulher tivera um filho, mas desde então ficara tão doente que não podia fugir, e seu marido ficou com ela. Mas agora suas dificuldades eram tantas, que o dia inteiro e todos os dias a mulher implorava ao marido que pensasse nele e a deixasse com seu destino. Isso ele não faria, de modo que uma noite ela tentou fugir furtivamente de seu esconderijo e deslizar para dentro d’água, pois achou que logo que ela e a criança morressem, ele fugiria e, assim, salvaria sua vida. Mas a criança chorou alto na água fria, e o homem acordou. Ele trouxe os dois de volta, mas a criança tivera tanto medo que gritou a noite toda. Seu grito foi ouvido longe na água, e trouxe um socorrista da frota de Lady Luzia que estava passando pela margem do lago procurando constantemente os necessitados de ajuda. Enquanto tinha bens para dar, Lady Luzia navegava ao longo da costa do Lago Väner e, nessa viagem, sentia o coração tão feliz e leve como nunca. Pois assim como não há nada mais difícil do que ficar inativo quando se sabe de uma grave desgraça alheia, também a maior felicidade e o mais doce repouso nos vêm quando podemos ajudar o outro, mesmo que seja uma pequena ajuda. Assim, ela sentia esse alívio e essa alegria, sem prever que algum mal podia estar reservado para ela quando, na véspera do dia de Santa Luzia, ela chegou tarde da noite em Börtsholm. Ao jantar, que consistiu de nada além de algumas conchas de leite, ela conversou com seus companheiros sobre a linda viagem que fizeram juntos, e todos concordaram que nunca tinham vivido dias tão felizes. “Mas agora temos trabalho duro pela frente.” – ela continuou – “Não podemos celebrar o dia de Santa Luzia festejando como nos anos anteriores. Temos de começar a fazer cerveja, assar pão, preparar carne, sem restrição, a fim de termos a festa de Natal pronta para quando Lorde Eskil chegar em casa.” Isso a jovem lady podia dizer sem a menor ansiedade, pois sabia que seus estábulos, celeiros e armazéns estavam cheios de boas dádivas de Deus, apesar de não haver nada pronto no momento para alimentar as pessoas. Embora a viagem tivesse sido tão feliz, todos que tomaram parte nela estavam muito cansados e foram dormir cedo. Mal Lady Luzia fechou os olhos num leve cochilo, ouviu o som de cascos de cavalos, o retinir de armas, e altos chamados diante do castelo. Os portões então se abriram rangendo nos gonzos, e as pedras do pátio fizeram soar passos apressados.

Lady Luzia concluiu que Lorde Eskil chegara com seus cavaleiros. Pulou da cama depressa para ir ao seu encontro. Após se vestir às pressas, chegou às escadas que davam para o pátio. Mas ao pisar no primeiro degrau, viu que Lorde Eskil já vinha chegando a meio caminho de seu quarto. Um portador de tocha vinha à sua frente e, com essa luz, Lady Luzia achou que a fisionomia de Lorde Eskil mostrava que ele estava muito zangado. Por um momento, ela pensou que era a luz avermelhada da tocha que dava à sua face uma aparência tão sombria e ameaçadora, mas quando viu que as crianças e os criados, com olhares deprimidos e infelizes, recuavam diante dele, ela percebeu que seu marido viera para casa cheio de cólera, pronto para fazer justiça e punição. Estando Lady Luzia olhando para Lorde Eskil, ele a viu, e ela, reparando que ele sorria ferozmente, sentiu mais medo ainda. “Você está chegando agora, nobre senhora, para me regalar com uma refeição de boas-vindas?” – ele caçoou – “Mas hoje seus esforços são em vão, porque eu e meus homens jantamos com sua parenta Lady Rangela. Mas, amanhã,” – ele continuou, e então a ira tomou conta dele de tal modo que ele deu uma pancada no corrimão com sua mão – “esperamos que, em homenagem à sua padroeira santa Luzia, você nos servirá um desjejum tão bom e digno desta casa, e não se esqueça de pôr diante de mim, ao primeiro cantar do galo, minha bebida matinal.” A jovem castelã não pôde replicar a isso com palavra alguma. Exatamente como no verão passado, quando ela começou a compreender que Lady Rangela estava trabalhando para sua ruína, ela ficou quieta, com as mãos no coração e os olhos cheios de lágrimas. Agora, ela só podia concluir que lady Rangela chamara Lorde Eskil para casa mais cedo e lhe contara o que ela havia feito com suas provisões. Lorde Eskil subiu mais alguns degraus sem se comover com o medo da esposa. Ele se curvou sobre ela e disse com uma voz terrível: “Pela Cruz de Nosso Salvador, Lady Luzia, preste atenção, se eu não apreciar o desjejum, você se arrependerá por todos os dias de sua vida!” Com isso, ele pôs sua mão pesadamente no ombro da esposa e a empurrou à sua frente para dentro do quarto. Enquanto entrava no quarto, pareceu a Lady Luzia que alguma coisa que, de modo inexplicável, tinha sido escondida dela, agora subitamente se havia revelado.

Ela descobriu que agira arbitrariamente e irrefletidamente e que Lorde Eskil podia ter uma boa razão para estar zangado com ela, que tinha assim usado o que era dele sem pedir licença. Agora, que estavam sozinhos, ela tentou dizer-lhe isso penitentemente, e implorar seu perdão por sua imatura falta de reflexão, mas ele não permitiu que ela falasse. “Vá deitar-se, Lady Luzia,” – ele disse – “e só se levante na hora certa! Se a bebida matinal e a refeição oferecida não estiverem do meu agrado, você terá de andar por uma estrada que exigirá de você toda a sua força.” Ela teve de se contentar com essa resposta, embora ela só aumentasse sua ansiedade, e podemos compreender que nessa noite inteira ela não pregou olho. Ela se deitou e ficou pensando sobre o que o marido lhe tinha dito e, quanto mais ponderava suas palavras, mais clara lhe parecia a ameaça que pesava sobre ela. Para ter certeza, ele não a condenaria até ver por si mesmo se ela agira tão erradamente quanto Lady Rangela havia afirmado. Mas, se ela fosse incapaz de agradá-lo como ele desejava, o mais certo é que um terrível castigo a esperava. O menor deles seria que ela seria declarada indigna de continuar sendo sua esposa, e seria mandada de volta para a casa de seus pais: mas, pelas últimas palavras que ele dissera, ela supunha que ele a faria passar por uma fileira de homens que a açoitariam como fariam com uma ladra comum. Quando, por fim, ela chegou a essa convicção – pois esse era o caso, já que Lady Rangela tinha levado Lorde Eskil a sentir uma fúria alucinada – ela começou a tremer, com os dentes batendo, e achou que ia morrer. Viu que precisava usar as horas da noite para encontrar algum socorro, mas o grande horror a paralisava tanto que ela ficou deitada sem conseguir se mover. “Como será possível para mim alimentar meu senhor e seus sessenta homens amanhã cedo?” – ela pensou, em seu desespero – “Eu só posso ficar quieta deitada até que a infelicidade me alcance.” A única coisa que ela podia fazer para se libertar seria mandar, sem cessar, preces ardentes para Santa Luzia de Siracusa. “Oh, Santa Luzia, minha mãe-guardiã,” – ela rezou – “amanhã é o dia do aniversário de sua morte como mártir e de sua entrada no Paraíso. Lembre-se de como é obscuro, difícil e frio viver aqui na Terra. Venha até mim esta noite e deixeme ir com você. Venha e feche meus olhos no sono da morte. Você sabe que só dessa maneira poderei escapar da desonra e do castigo ignóbil.”

Enquanto ela assim invocava a ajuda de Santa Luzia, as horas da noite se passaram e a terrível manhã se aproximou. Muito antes do que ela esperava, o primeiro galo cantou; os homens que cuidavam das vacas passaram pelo pátio, e os cavalos nas cocheiras se movimentavam com estardalhaço. “Agora Lorde Eskil vai acordar.” – ela pensou – “Agora ele me vai ordenar que lhe traga o desjejum, e eu terei de confessar que agi tão tolamente que não tenho nem cerveja nem alimento algum para aquecer para ele.” Naquele momento de grande perigo para a jovem castelã, sua celestial amiga Santa Luzia não pôde reprimir seu desejo de ajudar sua protegida que, afinal, só errara por causa de sua grande compaixão. O corpo terreno da santa, que havia descansado durante séculos nas câmaras mortuárias estreitas das catacumbas de Siracusa, de repente se encheu de vida espiritual, e a santa tornou a assumir sua beleza terrena e o uso das pernas, envolveu-se num manto entrelaçado de luzes de estrelas e tornou a voltar ao mundo onde ela havia antes sofrido e amado. Poucos momentos depois, o espantado guarda da torre sobre o portão de Börtsholm viu a maravilha noturna de uma bola de fogo passando ao longe, no sul. Ela voou através do espaço tão rapidamente que os olhos mal podiam segui-la. E ela veio direto a Börtsholm, quase tocou no guarda e desapareceu. Mas nesse globo de fogo, assim pareceu ao guarda, uma bela jovem era trazida, as pontas de seus pés mal o tocavam e seus braços se erguiam como se, durante todo o tempo, ela dançasse na carruagem resplandecente. Quase no mesmo momento, Lady Luzia, deitada, mas acordada, tremendo e com muito medo, viu uma luz bruxuleando através de uma fenda na porta do quarto. Então, a porta se abriu imediatamente e, para seu espanto e alegria, uma bela jovem, com uma roupa tão branca como a luz das estrelas, entrou no quarto. Seu longo cabelo negro estava preso com uma guirlanda, mas não uma guirlanda de folhas e flores, mas cintilando como estrelinhas que iluminavam todo o aposento. No entanto, para Lady Luzia, esse brilho não era nada em comparação com os olhos da encantadora estranha, que não só brilhavam com a mais clara luz, mas também enviavam uma compaixão e um amor celestiais. Em sua mão, a estranha jovem trazia uma grande jarra de cobre, da qual fluía o suave aroma de um nobre suco de uva, e com essa jarra ela deslizou para dentro do quarto de Lorde Eskil, despejou um pouco do vinho num cálice e o ofereceu a ele, para que o bebesse.

Lorde Eskil, que dormira bem, despertou quando um raio de luz bateu em suas pálpebras, e ele pôs a taça nos lábios. Ainda não muito bem acordado, ele dificilmente reparou no milagre, mas sentiu que o vinho oferecido era muito bom, e o tomou até a última gota. Mas esse vinho, que não podia ser senão o nobre malvasia, célebre vinho do sul e coroa de todos os vinhos, induzia de tal modo ao sono, que Lorde Eskil, assim que o tomou, caiu no sono novamente. No mesmo momento, a santa e bela jovem deslizou para fora do quarto, deixando Lady Luzia trêmula de espanto e de esperança. No entanto, a distinta benfeitora não parou depois de servir apenas Lorde Eskil. Na escura e fria manhã de inverno, ela andou pelas sombrias salas do castelo sueco e serviu um pouco da alegria do vinho do sul a todos os soldados sonolentos. Todos que beberam acharam que haviam provado uma bênção celestial. Na mesma hora, todos caíram no sono e sonharam com campos de sol e eterno verão. Assim que a maravilhosa aparição desapareceu, também desapareceram completamente o medo e o desamparo que pesaram durante toda a noite sobre Lady Luzia. Ela se vestiu prontamente e chamou todo o pessoal da casa para trabalhar. Toda aquela longa manhã de inverno, eles estiveram ocupados preparando a festa de boas-vindas de Lorde Eskil. Pequenos novilhos, porcos, gansos e galinhas, foram rapidamente preparados. Massa de pão era posta para crescer, o fogo era aceso sob o que estava sendo tostado e sob o fogão de assar, o carvão era atiçado, nabos eram descascados e bolos de mel eram feitos para a sobremesa. As mesas no salão dos banquetes eram cobertas com toalhas, as preciosas velas de cera eram desempacotadas e tiradas dos fundos baús, e eram espalhadas pelos bancos tapeçarias e almofadas de pena azuis. Enquanto todos esses preparos eram feitos, o lorde do castelo e seus homens dormiam. Quando, finalmente, Lorde Eskil despertou, viu pela altura do sol que já era meio-dia. Ele ficou admirado não só de ter dormido tanto, mas também por ter passado todo o aborrecimento que tanto o afligira na noite anterior. Nos sonhos, sua esposa lhe aparecera com muita doçura e gentileza, e ele se espantou por ter sido tentado a condená-la a um duro e vergonhoso castigo. “Talvez a coisa não tenha sido tão ruim como Lady Rangela descreveu.” – ele pensou – “É claro que não posso conservá-la como esposa se ela esbanjou todas as

minhas provisões e será suficiente mandá-la de volta a seus pais sem algum outro castigo.” Quando ele saiu de seu quarto, seus oito filhos o encontraram e o conduziram para a sala do banquete. Seus homens já estavam lá, sentados nos bancos, esperando por ele impacientemente, para que a festa pudesse começar, pois as mesas defronte estavam cheias de toda espécie de magníficos alimentos. Sem demonstrar o menor medo, Lady Luzia sentou-se ao lado de seu marido; ela não estava totalmente livre da ansiedade, pois embora tenha podido produzir uma refeição em tempo, estava praticamente sem cerveja e hidromel, que não podiam ser preparados tão depressa. E duvidava que Lorde Eskil ficasse com boa aparência depois de um desjejum sem cerveja de um ou outro tipo. Então, ela notou na mesa a grande jarra de cobre que a santa jovem havia trazido. Estava cheia até a beira com o vinho cheiroso. Ela tornou a sentir a maior alegria com a proteção de sua compassiva santa, e serviu um pouco de vinho para Lorde Eskil, enquanto contava a ele como aquele vinho viera a Börtsholm. Ele a ouviu com o maior assombro. Quando Lorde Eskil provou o vinho, que desta vez não induzia ao sono, mas tinha um efeito refrescante e dignificante, Lady Luzia tomou coragem e lhe contou a respeito de sua viagem. No princípio, Lorde Eskil ouviu com muita gravidade, mas quando ela lhe falou do sacerdote Master Kolbjörn, ele exclamou: “Master Kolbjörn é um bom amigo meu, Lady Luzia, estou sinceramente feliz por você ter podido ajudá-lo.” Da mesma maneira foi dito que o fazendeiro em Saxudden tinha sido companheiro de Lorde Eskil em muitas campanhas, e que uma das mulheres piedosas era sua parenta; e que Lasse, o mercador da cidade comercial costumava obter para ele roupas e armas de terra estranha. Muito antes de Lady Luzia acabar de contar sua história, Lorde Eskil não só estava pronto para perdoá-la, mas estava sinceramente grato a ela por ter socorrido tantos amigos seus. Mas o medo que Lady Luzia sentira durante a noite voltou, e foi com voz trêmula que ela finalmente disse: “Agora, meu querido Lorde, parece-me que agi muito mal doando seus bens, sem lhe ter pedido antes. Mas imploro que considere minha pouca idade e inexperiência e me perdoe devido a isso.” Quando Lady Luzia disse isso, Lorde Eskil viu que sua mulher era tão virtuosa que um dos anjos do céu tinha tomado forma terrena a fim de ajudá-la. No

entanto, ele, um lorde sempre considerado sábio e cheio de discernimento, havia suspeitado de sua esposa e esteve a ponto de dar vazão à sua cólera nela! Sentiu tanta vergonha no coração que abaixou os olhos e não foi capaz de dizer uma só palavra. Ao vê-lo assim, quieto e de cabeça baixa, o medo voltou à Lady Luzia, e ela teve vontade de fugir de seu lugar chorando. Mas então, invisível para todos, a compassiva Santa Luzia entrou, curvou-se sobre a jovem e sussurrou em seus ouvidos o que ela deveria dizer agora. Essas palavras eram as que Lady Luzia queria dizer, mas sem o encorajamento celestial ela não se atrevera devido à sua própria timidez. “Eu queria pedir-lhe mais uma coisa, meu querido lorde e marido:” – disse ela – “e é que você passe mais tempo em casa. Assim, eu nunca seria tentada a agir contra a sua vontade, e eu poderia expandir todo o amor que sinto por você, de modo que jamais alguém se meteria entre nós dois.” Quando essas palavras foram ditas, elas foram direto ao coração de Lorde Eskil. Ele ergueu a cabeça, e a grande alegria que sentiu levou embora sua vergonha. Ele estava prestes a dar à sua esposa a mais amorosa resposta, quando chegou apressado ao salão do banquete um dos comissários de Lady Rangela. Precipitadamente, ele contou que ela se pusera a caminho de manhã bem cedo para vir a Börtsholm, a fim de estar presente ao castigo que seria dado a Lady Luzia. Mas, no caminho, ela se encontrou com vários fazendeiros que a odiavam há muito tempo, por causa do pedágio da ponte. Na obscura madrugada, eles a viram só com um servo, e então o afugentaram e, derrubando Lady Rangela de seu cavalo, mataram-na desonrosamente. Agora, como comissário de Lady Rangela, ele estava em busca dos assassinos e pedia a Lorde Eskil que cedesse homens para tomar parte na busca. Lorde Eskil levantou-se e falou com voz forte e severa: “Parece-me que seria mais correto responder agora ao pedido de minha esposa, mas antes vou resolver o caso de Lady Rangela. E eu afirmo que, no que me diz respeito, ela pode ficar onde está, sem ser vingada, e nem vou ceder meus homens para vingá-la, pois acredito firmemente que suas próprias ações causaram sua morte.” Após dizer isso, ele se voltou para Lady Luzia, e lhe falou tão suavemente, que todos se admiraram com a delicadeza de seu tom de voz.

“E agora direi à minha querida castelã, que eu a perdoo sinceramente, assim como espero que ela perdoará minha veemência. E por ser seu desejo, farei uma petição ao rei: que ele escolha outra pessoa para ser seu conselheiro, pois agora quero servir duas nobres damas. Uma é minha esposa, e a outra é Santa Luzia de Siracusa, para a qual farei altares em todas as igrejas e capelas de minha terra, suplicando a ela que conserve viva e ardente dentro de nós – que sofremos o frio do norte – a cintilante estrela-guia da alma, chamada compaixão.” No dia treze de dezembro, de madrugada, quando o frio e a obscuridade preponderam sobre Varmlândia, ainda em minha infância Santa Luzia de Siracusa entrava em todas as casas espalhadas entre as montanhas da Noruega e o Rio Gullspang que corre para o lago Väner. Ela ainda vestia, pelo menos para os olhos da criança pequena, uma roupa branca com a luz das estrelas, tinha no cabelo uma grinalda verde brilhando com flores de luz, e sempre acordava os que dormiam com o perfume da bebida de sua jarra de cobre. Naqueles dias, não havia nunca visão mais bela que aquela, quando a porta se abria e ela entrava na escuridão do quarto. E desejo que ela jamais deixe de aparecer nos lares da Varmlândia. Porque ela é a luz que vence a escuridão, ela é a lenda que vence o esquecimento, ela é o calor do coração, que torna as terras geladas lindas e ensolaradas no meio do rigoroso inverno.

ANDRÉ (Gerhard Klein)

Nós nos entendemos muito bem desde o primeiro dia em que cheguei como administrador no estado da Baixa Baviera, no último dia da guerra. Eu tinha só um operário alemão, o velho José, motorista de trator. Os outros eram uma verdadeira mistura de nações europeias. Para as florestas eu tinha dois franceses, excelentes guardas-florestais vindos das Ardenas; um sérvio lidava com os cavalos; uma grande família polonesa cuidava do estábulo; e para lidar com os nabos e o feno vieram alguns prisioneiros de guerra russos, cedidos a nós pela fábrica de açúcar. Entre eles estavam André e sua Babushka, mulher para todo serviço. Imagino como estarão agora nas amplas pradarias do Canadá. Talvez elas façam com que se lembrem das vastas estepes de sua terra natal, que tiveram de abandonar. A primeira vez que vi os olhos de um azul claro de André foi quando fui encontrá-lo na estrumeira. Ninguém remexia e erguia o esterco tão bem e tão cuidadosamente quanto ele. Era como se o esterco fosse algo precioso, a ser coberto com terra e transformado numa boa composteira. Esse trabalho era seu orgulho. Ele ficava descalço na esfumaçante estrumeira, trabalhando com firmeza e constância, não como os outros que, subitamente, começavam a apressar o trabalho ao verem o patrão se aproximar. Uma palavra de elogio fazia com que me olhasse com respeito, e seu olhar ia direto ao meu coração: bondade e tristeza, paz e equanimidade, tudo era transmitido por esse seu olhar. Mas ele apenas cumprimentava com a cabeça, amigavelmente, e retomava seu trabalho. Raramente falava. Quando isso acontecia, eu me surpreendia com sua fluência no alemão. Aconteceu que tive a possibilidade de dar ao velho casal um pequeno quarto só para eles, pois reparei que sofriam com a intimidade de viver junto com todos os outros. Eles mantinham esse quarto meticulosamente limpo. Num canto havia uma pequena cruz, como todos os russos usam em geral no peito. Essa cruz ficava pendurada num pedaço de papelão coberto com papel branco, e na frente sempre havia flores numa velha lata de conserva.

Eu sabia que André era o único homem honesto em toda aquela propriedade. Nos tempos

de

escassez,

todo

mundo

roubava o

necessário,

e

era um

aborrecimento ter de trancar com cadeado o maior número possível de coisas. André só se desviava de sua estrita honestidade numa questão, e isso ele fazia com minha permissão. Por causa dos frequentes ataques aéreos, a eletricidade muitas vezes faltava, e velas precisavam estar à mão no estábulo. André, que ajudava com os cavalos, e especialmente com os potrinhos sendo paridos, sabia onde eu guardava as velas. Elas eram usadas só rapidamente. Eu adivinhava porque e deixava. Nós chegamos a conversar pela primeira vez no último outono, quando estávamos

colhendo

beterrabas.

Estávamos

sendo

pressionados

pelo

frio

enregelante que ameaçava vir sobre nós. Todo mundo tinha de dar uma ajuda. Os poloneses estavam fora. A noite ia chegando, e o povo parecia estranhamente enfeitiçado. Mantinham uma conversa agitada, olhando para o céu, primeiro até pensei que estivessem com medo de aviões voando baixo, que às vezes atiravam em quem trabalhava nos campos. Somente André e sua Babushka continuavam trabalhando diligentemente, suas facas faiscando, enquanto as folhas caíam num monte e as raízes de beterraba no outro. É impossível para mim esclarecer a maravilhosa maneira de falar de André. Quando cheguei perto dele, ele olhou para o lado, deu uma piscada de olho indicando os poloneses, depois bateu na testa: “Senhor, não se preocupe, esses são estúpidos e ímpios. Eles acham que o sol vai girar no céu e que a Mãe de Deus vai aparecer, e que esse é o sinal de que a guerra vai acabar. Mas que adianta a guerra acabar se o povo continua mau? Uma nova guerra logo vem. As pessoas olham para fora. Elas deviam olhar para dentro. Seria bem melhor.” E ele continuava com afinco seu trabalho. Segui meu caminho pensando. Que homem! Que diferente daqueles russos treinados em lógica, que estiveram no Exército Vermelho e com quem conversei tantas vezes. Mas André muitas vezes foi capaz de me ajudar sem palavras, com um gesto, um cumprimento, com um olhar ou um aceno da cabeça, quando eu passava pelo terreno da fazenda com minhas obrigações. Uma vez tive de ir à cidade comprar sementes na cooperativa. Eu queria adquirir alguma coisa boa para André, mas não encontrava nada. Então, numa loja

de artigos de segunda mão, vi um ícone russo. Talvez um soldado o tivesse mandado para casa. Comprei-o e pus no bolso. Eu estava muito feliz na volta para casa. Estava mesmo satisfeito com a figura de Elias subindo aos céus numa carruagem de fogo e lançando seu manto sobre Eliseu, que estava arando o campo embaixo. Quando cheguei, André veio rapidamente pegar o cavalo para desarreá-lo. Eu tirei o ícone do bolso e disse: “Trouxe isto para vocês. Espero que os dois gostem.” Eu o desembrulhou, empalideceu, fez o sinal da cruz reverentemente e desapareceu. Eu fiquei ali perplexo, sentado na sela. Por fim, eu mesmo desarreei o cavalo. No entanto, logo depois, André reapareceu meio sem graça, pegou minha mãe e a beijou, enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ele nem podia falar. Naquela noite deixei um pacote de velas no estábulo. Todas sumiram no dia seguinte. Chegou o Advento. O dia de São Nicolau caiu num domingo. Por vários dias vi Babushka lavando e limpando. Ela havia trazido para o pátio a pequena mesa e os dois bancos e os esfregara até deixar bem limpos. Encheu os colchões com palha fresca. Alguma coisa estava sendo preparada. No sábado, depois do trabalho terminado, ambos vieram a mim, ficaram timidamente na porta e finalmente André conseguiu dizer: “Sua excelência, o administrador, não se ofenderia, mas daria a honra de comparecer ao festival de São Nicolau?” Eu aceitei e dei um jeito de fazê-los receber uma grande forma de pão branco que, contrariando os regulamentos, assávamos para nosso povo, e disse a André que levaria uma garrafa de vinho que eu recebera de presente. Mas eu tinha um pedido. Ele me contaria como chegara aqui. Ele concordou, e estava radiante de felicidade, assim como sua mulher. Nunca esquecerei aquela noite de inverno. Num canto, cercado por verdes ramos, o ícone brilhava à luz de muitas velas. Sobre a mesa estava esticada uma camisa branca – o pobre casal não tinha outra coisa. O pão estava num prato de estanho e, em vez de copos, havia canecas. Eu mal ousei entrar, pois a atmosfera festiva no pequeno quarto era muito solene. Após uma longa oração russa, nós nos sentamos.

Então, ele começou a contar sua história. Falou sobre a longínqua aldeia na floresta, sobre a cabana de seu avô, para a qual ele fugira depois da revolução, sobre a guerra chegando cada vez mais perto. Eles queriam ficar onde estavam. Que poderia acontecer com pobres camponeses? Os judeus da aldeia, que tinham uma pequena congregação e uma sinagoga, haviam fugido. Somente o rabi, o velho Abraão, não quis ir embora. A sepultura de seus ancestrais e filhos estavam ali, e ali ele queria morrer. “A cabana ficava fora da passagem da estrada, mas os alemães podiam acabar chegando ali. Nós o obrigamos a se esconder na floresta, onde tínhamos depósitos de víveres debaixo da terra. Nós tornamos um deles habitável para ele, e lhe levávamos sempre alimentos. Achávamos que a guerra acabaria logo e que ele poderia voltar para sua casa. Muitas vezes ouvíamos o rabi rezar alto quando estávamos na floresta. “Mas ele foi ficando aos poucos mais triste e fraco. Uma vez lhe perguntei qual a razão. Ele disse: ‘Como posso viver sem servir ao meu Deus? Se eu apenas pudesse celebrar dignamente o Sabbath de novo..., mas não posso.’ Vi que todo o seu coração estava voltado para isso. Então lhe disse que os dias estavam escurecendo mais cedo e que não apareciam mais alemães na aldeia. Disse-lhe que podia vir para minha cabana na floresta assim que anoitecesse. Que poderia eu preparar para ele? “Ele pediu sete velas, uma forma de pão e algum vinho. “Foi assim que aconteceu. Eu tinha a refeição pronta num quarto dos fundos, tudo como está aqui. As velas estavam acesas e nosso santo Elias pendurado num canto como aqui. Então ele veio com sua barba branca. Parecia o próprio Abraão quando convidou o anjo do Senhor para comer com ele. E abriu as venezianas da janela que tínhamos fechado tão cuidadosamente. “E ele perguntou, reprovando-nos: ‘O santo profeta, que sempre caminha pela terra para preparar a vinda do Messias, como poderá ver que aqui o santo Sabbath está sendo celebrado? Ponha outro prato e outra caneca para ele, pois assim ele percebe que o estamos esperando. E não feche a porta.’ “Não podíamos contrariá-lo. E ele começou a cantar, seu corpo balançando para cá e para lá, seus olhos fechados, e a fisionomia enlevada. “Implorei a Deus e a todos os santos que nos protegessem. Embora ele não fosse cristão, com certeza não era pecado ajudá-lo, antes da morte, a servir a Deus

de sua própria maneira. Então nos sentamos diante da mesa, e ele nos contou sobre tempos muito antigos. “De repente ouvimos o barulho de veículos e tiros. Percebemos na hora que os alemães estavam chegando para inspecionar a aldeia. “O velho nada percebeu. Começou a cantar de novo. Houve uma batida na porta. Ficamos petrificados. Soaram passos pesados pela entrada da cabana. A porta do quarto onde estávamos se abriu, e entrou um soldado de meia idade, com a barba cheia de gelo. Ele segurava o fuzil na posição de atirar. O velho Abraão, com muita cortesia, fez um amplo gesto indicando a cadeira vazia e o lugar arrumado diante da mesa. Nossos corações ficaram quietos. Que aconteceria? “Oh, os anjos estavam ali. O alemão encostou o fuzil na parede. Olhou firme para as velas e para o ícone. Sentou-se, bebeu o copo de vinho (um oficial me havia dado a garrafa) e comeu do pão. Fez o sinal da cruz, limpou a boca, curvouse diante do velho e saiu, fechando a porta, e tudo se aquietou. As velas se iam derretendo. O velho rezou em voz alta. Era, sem dúvida, um salmo. Nós o levamos para sua casinha subterrânea. “Patrão, ficamos tão felizes quando o senhor nos trouxe o ícone! Estamos tão gratos! Agora temos de novo o anjo para nos proteger.” Quando depois ainda conversei com André, soube que alguém os havia traído e que os alemães vieram outra vez e o forçaram a conduzi-lo pela floresta. Lá eles encontraram morto o velho Abraão. Sua face tinha um brilho de bem-aventurança. “Mas eles nos levaram, e é por isso que estamos aqui.” Nossas velas também já se derretiam. Consegui contar a André e sua mulher que eu, na realidade, era um sacerdote por profissão e que desejava pronunciar uma bênção para o velho Abraão e para todo o nosso mundo doente e ferido. Fui embora daquela mesinha cambaleante do quarto como se ela fosse um altar. Voltei pela propriedade toda coberta de neve. A lua brilhava alto sobre a floresta. Olhei para trás, para a minúscula janela do quarto e pensei no cantor, que não foi capaz de suportar o sofrimento e a escuridão da Primeira Guerra Mundial e que morreu nela, um cantor que conhecia as sombras e a dor tão profundamente quanto qualquer outro – Georg Trakl, que nos legou esta canção que agora canto para mim mesmo.

CANÇÃO DE UMA NOITE DE INVERNO. Cai na janela a neve escorregando, e o sino vespertino está soando. Tenho meus aposentos arrumados e a mesa posta para os convidados. Um peregrino, o andar já vacilante, ouço bater à porta nesse instante; floresce em ouro a árvore da graça, da terra a seiva sobe e nela passa. - Caminhante, entra agora, e tua dor deixa à soleira da porta. Traz o amor e vê bem como brilham com pureza o pão e o vinho sobre nossa mesa.

O CEGO PEDRO (Gerhard Klein)

Depois de longa viagem por amplas planícies, densas florestas, grandes rios que correm para o norte, cheguei à solitária propriedade rural no leste da Prússia. A tarde caía, e eu estava apreensivo. Aqui no leste tudo era diferente. Os vastos espaços parecem nos impelir sem cessar. A manhã de domingo nos trouxe uma rápida volta por cavalariças, estábulos e celeiros. Dirigir uma charrete até a igreja me proporcionou conhecer extensos campos e pastagens daquela fazenda. Subitamente minha atenção se desviou das amáveis explicações do proprietário. À nossa frente, na estrada, apareceram três vultos escuros, notáveis mesmo a um olhar de relance. À esquerda vinha um homem alto e magro gesticulando constantemente, à direita um homem andando

meio de lado, apoiado num cajado, mancando da perna esquerda, e no meio um velho gordo e muito ágil. Os três usavam o casacão preto dos domingos. “Agora você pode conhecer nossos três santos reis” – disse o dono da propriedade. Nós oferecemos a eles um lugar no banco de trás e os levamos até a igreja. A conversa animada dos três silenciou na presença de seu patrão e senhor. Como percebi depois, eu teria muito a fazer com eles. O primeiro, o homem alto, era nosso mestre no preparo do adubo. O que havia de maravilhoso nesses estados grandes da Prússia oriental era que todo indivíduo, mesmo os que tinham grandes dificuldades, podiam ser integrados na vida da fazenda. José era surdo-mudo, mas conseguia ler nos lábios muito bem. O fazendeiro acertou em cheio pondo-o encarregado do esterco e da compostagem. Você o veria então atravessar os campos com uma caixinha de madeira debaixo do braço, um grosso bastão com uma ponteira de ferro e uma cruzeta no topo, que ele usava como vara de medir. Se você fosse encontrá-lo num daqueles montes de esterco espalhados pelos campos, com grande dignidade ele lhe mostraria as fundas cavidades que ele abrira nos montes a intervalos exatos. Depois ele pegaria os preparados de dentro da caixa e, com gestos extremamente vivos, tentaria explicar que agora vem a casca do carvalho, depois o dente-de-leão e a mil-folhas, e assim erva após erva, até que ele pegava o pote de valeriana que ele aspergia no topo da compostagem. Eu podia ver que José sentia profundamente a importância de sua tarefa. Se, por acaso, ele via que um de nossos prisioneiros russos não estava revolvendo direito os montes de esterco, ficava quase zangado, tirava dele o forcado e mostrava como devia fazer. Isso ele podia fazer de maneira exemplar com as longas fileiras de montes atrás das cocheiras e dos estábulos. Esses montes eram bem misturados com terra e depois cobertos, parecendo elevações de sepulturas. Quando os vaqueiros empurravam o esterco e o tiravam do lugar, outra das tarefas de José era arrumar tudo de novo. Então sempre haveria alguma discussão meio séria e meio brincalhona entre o vaqueiro e o rei do adubo, José. O último tinha ficado com uma perna dura na primeira Guerra Mundial. Ele era praticamente casado com Liese, um cavalo muito velho que ainda podia fazer trabalhos leves, pois não gostávamos de entregar um animal fiel, que trabalhou por longo tempo, a um matador de cavalos, e nem lhe negávamos sua forragem. Os

dois distribuíam o leite e descarregavam pequenas carroças de terra onde José não a queria. Mas, para mim, o mais importante do trio era o terceiro. Ele era idoso. Ninguém sabia sua idade. Eu achei que ele tinha mais de noventa. O cego Pedro tinha nascido na fazenda. Morava numa cabana isolada na orla da floresta. Durante o dia inteiro ele andava por ali afora, achando seu caminho sem problema, pois conhecia cada pedra, cada árvore, cada cerca. Era respeitado por todos. Tinha a fama de saber mais que os outros todos, principalmente conseguia ouvir coisas que ninguém ouvia. Eu aprendi muito com ele. Ele podia aparecer subitamente a meu lado no caminho de casa, na noite em que eu planejava o trabalho do dia seguinte. “Bem, inspetor,” – ele disse uma vez – “Que é que o senhor pensa fazer amanhã?” Era um calmo anoitecer de inverno, não muito frio, nublado. “Acho que vou entrar na floresta com nossos quarenta russos e desenraizar alguns tocos de árvore, pois o povo está precisando de lenha.” “Bem,” – ele disse – “não vai dar certo.” Era um aviso para levar em consideração e planejar outro trabalho. Durante a noite, uma terrível tempestade irrompeu. No dia seguinte, todos os caminhos, inundados, estavam cobertos de neve. Embora a neve não estivesse muito profunda nos campos, em alguns pontos o vento a havia acumulado em montes, e foi preciso manter todos os russos removendo a neve com a pá, a fim de livrar os caminhos. Tivemos de fazer isso para o exército. Numa outra ocasião, lembro-me de que estávamos todos confortavelmente sentados no café, quando o chefe dos lavradores veio afobado contar a novidade: “Os cavalos quebraram o cercado e invadiram o campo dos nabos.” Eu tinha um dos meus homens montado num cavalo de carruagem, que estava no estábulo. Fiz com que ele juntasse todas as mãos disponíveis e fomos recolher os cavalos. Tentamos cercá-los, mas eles nos faziam de bobos e corriam para outro canto. Ficamos sem fôlego, e a escuridão da noite já descia. De repente reparei que eles arrebitavam as orelhas e olhavam numa só direção. Podíamos ver, como uma silhueta contra o céu do crepúsculo, um pequeno vulto. Era o cego Pedro, chamando os cavalos com certa autoridade, mas sem gritar muito alto, usando palavras que soavam como encantamentos. E os cavalos o seguiram, sossegadamente, de volta ao terreiro da fazenda.

Um pouco antes de minha chegada àquela propriedade rural, a mulher de Pedro tinha morrido, e eu me preocupei, pensando como ele se arranjaria sozinho. Às vezes eu lhe mandava uma das garotas polonesas para ajudá-lo na arrumação, mas ele punha quase tudo em ordem sozinho. Certa manhã, ele veio buscar seu leite e disse: “Inspetor, eu agora preciso de mais leite.” “É bom, Pedro, que você esteja tomando leite. Leite faz bem para todos.” Ele olhou para mim bem confuso, se é que se pode dizer isso de um cego. “Mas, Inspetor, eu preciso do leite para o mingau. Para beber, o gim é bom. Mas agora há mais gente comigo. E, quando o senhor for à cidade, compre um par de sapatos para um menino de seis ou sete anos, e um bom material para costurar; tenho uma porção de roupas velhas para reformar.” Então ele desdobrou o lenço, tirou algumas moedas e me deixou ali de pé. Mais tarde encontrei-o de novo e, aos poucos, consegui saber o que acontecera. Ele estava sentado calmamente em seu quarto, fumando cachimbo. A noite havia caído quando ele ouviu um barulho na porta. Ele chamou, ninguém respondeu; ele abriu a porta, e sentiu que estava deitada na soleira uma mulher. Ele a fez entrar, e havia um menino com ela. Todas as pessoas mais velhas ali do leste sabiam falar um pouco de polonês, porque todos os anos operários poloneses costumavam vir trabalhar na colheita. Por isso, ele conseguiu saber da mulher que, por causa dos guerrilheiros, tinha havido uma expedição punitiva em sua aldeia. Ela e seu filho eram os únicos sobreviventes; todos os homens, mulheres crianças e velhos tinham sido massacrados, e a aldeia fora incendiada. Aterrorizada ao máximo, ela fugira sempre na direção do oeste. Aqui e ali, pessoas penalizadas tinham dado a ela e seu filho algo para comer. Eu mesmo fui ver a mulher, já que estava a meu cargo tudo que acontecia na propriedade. Ela era chamada de Maryusha, ou Mariazinha. O menino tinha olhos grandes e amedrontados. Naturalmente, o cego Pedro se responsabilizou logo pelo caso e disse a ela que podiam ficar com ele. Ela dificilmente falava, mas se dispôs a trabalhar, cheia de gratidão, de modo que, de uma hora para a outra, havia de novo uma família na casa. Ela era capaz de trabalhar metade dos dias para nós, e assim ganhar o necessário para si mesma e a criança. Um relacionamento maravilhoso, quase terno, surgiu entre Marek, o menino, e o velho. Corria sempre atrás dele como um cachorrinho e lhe trazia todo tipo de coisas. O velho tateava cada coisa e contava ao menino que espécie de flor, pedra ou animal era. Ao cair

da tarde, eles se sentavam juntos, e o velho ensinava o menino. Às vezes eu continuava ali e ouvia. O cego Pedro era uma daquelas raras pessoas que sabia toda a Bíblia de cor. E como suas narrativas eram cheias de vida! Às vezes contava sagas antigas e contos de fadas, e também falava de anões e ninfas. Quando ele falava de anões, descrevendo exatamente qual a sua aparência e como eles viviam e que eles realmente tinham um rei, eu não podia deixar de pensar que ele os conhecia, que ele realmente podia vê-los. De tempos em tempos, o velho Pedro prevenia muito seriamente o pequeno Marek para nunca ir à Lagoa Negra. Marek teve de lhe prometer que nunca faria isso. O velho Pedro então lhe falava de uma ninfa que morava naquela lagoa. Especialmente quando era lua cheia ela aparecia, mas era preciso ter cuidado com ela. Ele descrevia como ela era linda e como a pessoa tinha a fantástica sensação de conhecê-la muito bem. Então me ocorreu que, em toda a fazenda, eu nunca encontrara Pedro na Lagoa Negra, embora ele andasse por todos os outros lugares. Eu perguntei a alguns de nossos trabalhadores idosos, o ferreiro e o consertador de rodas, se eles sabiam de alguma coisa a esse respeito; mas as pessoas da fazenda eram muito reticentes, especialmente quando se tratava de um recém-chegado como eu. Apesar de tudo, consegui ficar sabendo por suas alusões que a Lagoa Negra tinha tomado parte na vida de Pedro de uma forma especial. Calculei que bem podia ter sido quando ele costumava caçar ou pescar em terreno alheio. Eu nunca conseguira saber, por ele mesmo, como ele ficara cego. Mas parecia haver uma conexão com essa lagoa. Uma vez, durante o Advento, fui de novo à sua pequena casa. Olhei através da janela baixa, e vi os três sentados à luz de vela, enquanto o velho ensinava ao menino uma canção do Advento. Posso ainda ouvir a voz fraca do velho e a voz forte do menino cantando. Mais tarde, pesquisei a canção, e gostaria de expor aqui os primeiros e últimos versos. “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tu que do alto trono celeste desceste ao mundo para cuidar de nossa sorte, ajuda-nos a viver honradamente e a morrer bem-aventuradamente em ti.

Que possamos amar-te e louvar-te aqui, hoje, e lá, eternamente.” Naquela noite eu não entrei, mas fui silenciosamente para casa, tocado pela paz que emanava daquela pobre cabana no meio de toda a confusão da horrível guerra. E agora chego à noite sobre a qual quero realmente falar. Tinha sido um dia de inverno muito sossegado, com o sol da tarde brilhando amarelo em meio às nuvens. As bétulas estavam cheias de gelo, suas hastes prateadas drapejando nos delgados ramos. Tínhamos limpado os fossos e tornado seu solo em compostagem. Eu me retirara para meu quarto mais cedo que comumente, pois as noites de inverno são, para o homem que lida no campo, a recompensa pelo trabalho duro do ano. Subitamente ouvi, não uma batida na porta, mas sim uma pancada atroadora. Chamados meio sufocados e gritos: “Senhor Inspetor! Senhor Inspetor!” Era Mariazinha, com lágrimas escorrendo pelo rosto, o cabelo despenteado, gritando: “Marek embora, Pedro embora, todo mundo embora, não saber para onde!” Ela passara o dia inteiro na casa da fazenda ajudando a fazer bolos de Natal. Naturalmente a situação era incomum. Alguma coisa podia ter acontecido com o velho, ele podia ter desmaiado ou quebrado uma perna, mas se o menino também tinha desaparecido, o caso era sério. Então, todo mundo foi reunido, os russos vieram da carvoeira, lanternas a postos, um trenó foi atrelado, e lá fomos nós em busca. Espalhamo-nos em todas as direções. Chamamos, nenhuma resposta. Procuramos rastros na neve, e nada se viu. A mãe ficava cada vez mais desvairada. De repente, não sei como, pensei na Lagoa Negra. Então, nós nos pusemos a caminho pela mata onde ficava a lagoa e logo vimos o brilho de uma fogueira. Isso era bem digno de nota no meio da noite. Chegamos cada vez mais perto e ficamos como que petrificados. Tínhamos imaginado os fatos mais terríveis, morrendo de medo de que algo horroroso tivesse acontecido. E agora estávamos diante de uma coisa com que nunca sonhamos, e não sabíamos se ríamos ou se chorávamos. Na Mata, havia uma daquelas cabanas de casca de árvore usada como abrigo pelos lenhadores, com um buraco no telhado para sair a fumaça e, no chão, uma lareira para o fogo. Ali, diante de um fogo que resplandecia alegremente, estava sentado o velho Pedro num toro de madeira, tendo arregaçadas as mangas da

camisa e, no joelho, um grande fardo que vinha a ser o garoto enrolado no longo casacão do velho. Dentro da cabana, as roupas do menino estavam estendidas para secar numa pilha de madeira. “Chiu,” – disse Pedro – “Marek dormiu. Foi bom o senhor ter chegado, Inspetor, porque Ele estava aqui até agorinha mesmo.” “Ele? Quem você chama de Ele?” – perguntei, um tanto confuso. “Quem?” – ele disse indignado – “Ora, Ele, é claro.” Balancei a cabeça. Na verdade, não era hora de uma conversa contraditória. Peguei o menino nos braços e dei a Pedro meu casaco. Fomos para o trenó e nos dirigimos para a casa da fazenda. Na manhã seguinte, o menino estava bem e feliz, mas o cego Pedro, não. Pois tivemos de levá-lo para o hospital, com pneumonia. Tão frequentemente quanto podiam, seus dois amigos reis iam visitá-lo, sentavam-se em silêncio, rezando ao lado do velho, que estava ali deitado com febre alta. Assim que a crise passou, tive licença de falar com o cego Pedro. Parecia tão simples o modo como ele contara a história. Pedro ficara sentado sozinho no quarto, o menino tinha saído, e Pedro achou que ele estava com sua mãe. Então, Pedro ouviu seu nome sendo chamado várias vezes, insistentemente, de fora: “Pedro, Pedro, a criança!” Ele pulou de onde estava, escutou de novo; de novo o mesmo chamado insistente, e dessa vez ele pareceu ouvir: “Traga uma corda com você.” Ele vestiu seu casaco, pegou a corda, pois sabia onde encontrar tudo em sua casa, e saiu. Sentia nitidamente alguém a seu lado chamando-o. Enquanto ele andava (e naturalmente ele sabia andar bem no escuro), ouvia os passos a seu lado e confiava no companheiro que o estava conduzindo. Aos poucos, ele percebeu que estavam indo para uma parte da propriedade onde há muito tempo ele não ia, mas sentiu que os passos a seu lado eram um guia confiável. Subitamente ouviu uma voz fraca chamando: “Seu Pedro, seu Pedro!” Era a voz do menino. Ele descobriu que Marek estava na Lagoa Negra. Pedro chegou até a margem, jogou a corda várias vezes em vão, até que, finalmente, o menino foi capaz de segurar a corda, e então ele o puxou devagar para fora. Na verdade, você não deve contar a um menino sobre a mais bela ninfa que é visível na lua cheia, e depois proibi-lo de ir lá vê-la. Marek tinha ido à lagoa, tinha caído através do gelo, tinha conseguido agarrar num galho na margem, mas não

era bastante forte para se puxar para fora. O cego ficou ali no gelo, com o menino ensopado e não conseguia carregá-lo para casa. Novamente ele ouviu a voz a seu lado dizendo: “Vamos para a cabana.” Então ele soube o que fazer. Ele tinha seu cachimbo e seu isqueiro no bolso. Na cabana ele acendeu o fogo da lareira, tirou a roupa molhada de Marek, envolveu-o em seu casaco, tal como eu o havia encontrado. Por longo tempo, “Ele” ficou sentado ao lado. Conversaram muito, e ele lhe disse que muita coisa estava em ordem novamente. Ora, como somos estúpidos às vezes. Eu tive de perguntar a Pedro ainda: “Quem era ele?” Mas Pedro estava um tanto modificado, não mais tão autoritário e zombeteiro como era. Com certo ar de censura, ele replicou: “Mas meu caro Inspetor, ele era Ele, é claro.” Pedro não morreu naquela época. Ele viveu ainda algum tempo com o menino e sua jovem mãe em sua cabana. Então, a tempestade da guerra do Leste veio e dispersou todos nós. Mas, às vezes, quando fico pensando em toda a insolúvel confusão do mundo, em quem nos pode ajudar, quem pode mudar tudo, então ouço a voz límpida e honesta do velho dizendo: “Meu caro Inspetor, Ele, é claro.”

O CAVALEIRO DA ESTRELA (Jakob Streit)

Nuvens escuras, chuvosas, cobriam o céu naquela noite. O vento forte açoitava em rajadas a chuva contra o solo. Era época de Advento. De tempos em tempos, quando as nuvens se rasgavam em farrapos, um tênue vislumbre de luz mostrava por um momento o contorno fantasmagórico das colinas próximas e das montanhas escuras ao longe. Por uma trilha estreita, que seguia em curva atravessando a solitária charneca entre Crossmolina e Bangor Erris no Condado de Mayo, um cavaleiro, apanhado pela noite, lutava para seguir seu caminho apesar do vendaval, da chuva e da escuridão, tentando manter-se na trilha que,

frequentemente, se perdia em meio a negros pântanos, que poderiam facilmente engolir cavalo e cavaleiro. Ao vagar em volta procurando a trilha e tentando evitar os pântanos, ele sentiu que suas forças estavam quase no fim, e então soltou as rédeas e confiou no cavalo para evitar os lugares perigosos e achar o caminho de volta à trilha. A chuva gelada e a saraiva batiam em seu rosto, e suas mãos estavam entorpecidas de frio. Era quase meia-noite. Se ele não tivesse perdido o rumo teria chegado a Bangor Erris há horas. Em sua exaustão, um pensamento passou por sua mente: “Se eu morrer nestes pântanos, ninguém encontraria meu corpo. Eu desapareceria da face da terra; um cavaleiro submerso montado em seu cavalo como um herói dos tempos antigos.” Uma estranha e penosa indiferença o invadiu, enquanto o cavalo resfolegava e continuava buscando o caminho. Subitamente, quando uma cortina de nuvens se repartiu ligeiramente, ele pensou ter visto uma trilha em desvio subindo uma colina. Olhando para cima, vislumbrou uma luz difusa que só podia provir de uma habitação. O cavalo teve a sensação de um abrigo, porque, sem ser guiado, seguiu o desvio. Ao chegarem mais perto da luz, o cavaleiro ouviu, por entre o bramido da tempestade, o latido de um cachorro. Então, percebeu que era uma pequena cabana com teto de palha. A luz vinha da janela. “Graças a Deus!” – pronunciou o cavaleiro – “Onde há uma luz, há pessoas, calor e um alojamento seco.” O cachorro não parecia ser um cão de guarda nesse lugar solitário. Quando o cavaleiro parou o cavalo e desmontou, o cachorro farejou feliz rodeando suas botas. Um pequeno portão de madeira tinha sido aberto pela força do vento com a chuva. O cavaleiro entrou, enquanto o cavalo se dirigiu para um monte de feno que estava no pátio. Na obscuridade da noite, a porta escura sobressaía das paredes brancas da casinha. O cavaleiro foi até a porta e bateu. Por um momento ele pensou ouvir vozes abafadas. A porta de madeira rangeu ao se abrir e, na luz que vinha de dentro, a figura sombria de um rendeiro bloqueava a entrada. O cavaleiro pediu: “Deixe-me entrar e dê-me pousada por esta noite. Perdi o caminho para Bangor Erris na tempestade.” Para espanto do cavaleiro, o rendeiro não se moveu. Com a cabeça um pouco inclinada para a frente, ele olhou o estranho de cima abaixo, reparando em sua rica vestimenta. Por um instante, só se ouviu o ruído da chuva. Então a figura se

moveu, como quem já vai fechar a porta, e disse numa voz reprimida: “Senhor, não posso. Minha casa não tem espaço sobrando, está repleta. Não posso hospedar um cavalheiro nobre como o senhor em minha pobre moradia. Se o senhor seguir descendo a ravina, e lá virar à esquerda ao longo da trilha, chegará à estalagem de Belderg em duas horas. Boa viagem.” Nisso, a porta foi fechada, e o cavaleiro ouviu o ferrolho sendo passado, e ele foi deixado no frio e na escuridão. Sua mão caiu sem energia, e subitamente ele sentiu o calor do focinho do cachorro, que obviamente o tomou por amigo, já que seu dono falara com ele. O cavaleiro foi invadido pelo desapontamento em sua exaustão. Se ele fosse cavalgar agora, perderia as forças, nunca iria sobreviver àquela noite. Ele pensou, sentindo-se indignado: “Como esse rendeiro poderia recusar hospitalidade a alguém que perdeu seu caminho neste mau tempo? Ele devia saber o perigo dos pântanos nesta noite tempestuosa. Não, eu não vou consentir em ser mandado embora!” Enraivecido, ele apalpou a arma que trazia sob a capa. “Não, vou tentar falar com ele de novo, mesmo que eu tenha de arranjar minha cama nas cinzas; essas paredes vão salvar minha vida.” Virando ao contrário seu chicote de cavalgar, bateu com o cabo na beirada de carvalho da porta. Dentro se ouviu um grito de mulher. A porta foi subitamente aberta e, mais uma vez, a sombria figura barrou a entrada. Uma voz zangada falou com quem o perturbava: “Eu lhe digo que é impossível. Tenho minhas razões para não receber ninguém em minha casa especialmente nesta noite.” O estranho lhe respondeu com severa dignidade: “O senhor prefere ter em sua consciência o peso da morte de um homem nesta noite? Dê-me o menor canto no chão de sua cabana, e eu estarei satisfeito. Eu lhe peço em nome da Santa Virgem e de Santa Brígida. Deixe-me entrar.” Alguma coisa na maneira do estranho pedir abrandou a zanga do rendeiro. Seus braços, com que ele barrava a entrada pela porta, ficaram caídos. Ele lutava consigo mesmo. As palavras lhe saíram de modo hesitante. “Você pediu em nome da Virgem. Agora, ouça. Minha mulher está nas dores do primeiro parto. Uma vizinha está com ela. Nós só temos um quarto e uma cama. Logo a criança nascerá. Então, entre em nome da Virgem. Atrás da casa há um abrigo para minhas duas vacas. Eu porei seu cavalo lá.”

A seguir, o rendeiro deixou que o estranho entrasse no cômodo aquecido e ligeiramente iluminado e lhe mostrou um pequeno banco baixo junto ao fogão. O cavaleiro pôde perceber, na pouca luz, a cama num canto afastado e uma mulher vestida de preto curvada sobre ela. Ele pensou ter ouvido um gemido abafado, mas voltou-se para o fogo de carvão, sentou-se no banco e aqueceu as mãos. No ar morno, sentiu como suas roupas estavam frias e úmidas. Quando o rendeiro voltou e acenou para ele, o estranho murmurou: “Vou pegar algumas roupas secas em meu alforje.” Mas o sitiante pegou no fogão uma jarra de leite e disse: “Primeiro, tome um pouco de leite quente. Isso lhe fará bem.” E o cavaleiro, que estava gelado, sentou-se de novo e bebeu com avidez, sentindo que uma vida nova fluía para dentro dele. Ele se encostou na parede e tentou não ouvir o sussurro e o gemido ao fundo. Sentindo novas forças nas pernas, reparou que suas botas estavam cheias d’água. Ficou de pé sem fazer barulho, a fim de ir trocar sua roupa pela roupa seca que trouxera consigo. Ele saiu. Lá fora um vento forte tinha espalhado as nuvens. O vendaval e a chuva tinham passado. O cavaleiro foi ao abrigo nos fundos da casa e encontrou seu cavalo deitado no chão seco. Ele soltou o alforje de couro e trocou suas roupas da melhor forma que pôde, encostando-se nas costas de seu cavalo. Voltando para a casa e estando já com a mão no trinco, ele se virou e olhou para o céu onde as estrelas estavam visíveis e a meia lua estava a ponto de se pôr atrás dos montes. Subitamente o cavaleiro pensou: “Sob que estrela o filho do rendeiro virá ao mundo?” Pois ele se ocupara, durante toda a sua vida, com o estudo das estrelas. Ao observar o céu que estava mais claro, notou como ficavam certas estrelas em relação à lua e se sobressaltou. Lá dentro da casa soou um grito. Ele abriu a porta ligeiramente e chamou com urgência: “Rendeiro, venha aqui fora. Tenho algo importante para lhe dizer.” Surpreso, o homem pôs a cabeça para fora e respondeu: “Entre, podemos conversar em voz baixa.” “Sua mulher gritou. A criança já nasceu?” “Não, ela está tendo uma hora difícil, mas logo nascerá. Pois aumentaram as dores.” O estranho pegou o rendeiro pelo casaco e puxou-o para fora, de modo que a porta se fechou atrás deles, e então ele exclamou: “Rendeiro, se você se preocupa

com o destino do recém-nascido, tente atrasar o nascimento. Que a parteira faça o que puder para que a criança ainda demore mais uma hora para nascer.” O rendeiro soltou-se das mãos do estranho e deu uns passos para trás: “Que acontece com o senhor? Perdeu o bom senso? Minha mulher já sofreu bastante, e o senhor quer que nós não a ajudemos? Temos de aumentar sua agonia?” O cavaleiro concluiu que ele havia pedido muito para um homem simples. Como lhe explicar o que ele sabia sobre as estrelas? Ele murmurou: “As estrelas desse nascimento são malignas, e a lua mostra infortúnio. Pobre criança!” Nesse momento, ouviu-se um novo grito de dor dentro da casa. O rendeiro entrou depressa. Por um momento, o cavaleiro olhou as estrelas e murmurou para si mesmo: “Se pelo menos a lua estivesse abaixo do horizonte.” Quando ele voltou para dentro estava tudo quieto. Com uma olhadela apressada ele pensou ter visto o rendeiro passar a mão com delicadeza na testa da mulher. Voltando para o banco junto ao fogão viu que alguém lhe deixara ali um prato com duas batatas quentes. Nunca antes, em sua vida, uma refeição noturna fora para ele tão gostosa quanto aquelas batatas meio assadas. Ele se encostou na parede suavemente e esticou as pernas. Queria permanecer acordado, para não perder o momento do nascimento e ir observar as estrelas de novo. Mas o esforço excessivo da cavalgada no gelo e agora o calor agradável e o crepitar da lenha, que o rendeiro havia posto no fogo teceram um manto de sono em volta dele. Sua cabeça, que estava encostada na parede, caiu então sobre o ombro. Ele começou a cochilar. Ainda, em dado momento, chegou a ouvir o grito estridente de um bebê. Meio dormindo, ele murmurou as palavras “Já nasceu”. Duas ou três vezes sacudiu a cabeça como se fosse se levantar, mas imediatamente caiu num sono profundo. A luz da manhã começou a entrar pela pequena janela, ajudando a lamparina de óleo a clarear o interior da cabana, e o cavaleiro acordou. Suas pernas, uma estendida em cima do banco e a outra no chão, pareceram desconjuntadas. Uma criança chorando o tempo todo acabou de acordá-lo. Ele juntou as pernas e olhou em volta. O rendeiro, sentado na cama da mulher, viu seus movimentos. Foi então até ele e disse, bem contente: “Um menininho saudável, senhor.” Sem lhe dar parabéns, o estranho perguntou abruptamente: ”A lua já se tinha posto?”

“O senhor me inquietou na noite passada. Sim, mal a criança nasceu, eu fui lá fora. Só metade da lua estava acima do monte. Foi pouco tempo depois que o senhor adormeceu. Mas o principal é que a mãe e a criança passam bem.” O estranho olhou para um lado. Havia sombras em seus olhos e uma profunda ruga apareceu em sua testa. O rendeiro notou sua palidez. Subitamente, o cavalheiro ficou de pé, saiu e pouco depois voltou com seu alforje. Deste, ele tirou um pequeno saco de couro. Ao abri-lo, o rendeiro viu de relance uns frascos e um lacre. A mãe tinha posto a criança ao peito, mas seus olhos estavam curiosamente fixos no estranho, e a mulher de preto estava atenta no que ele estava fazendo, como se suspeitasse de alguma feitiçaria maligna. Então, o estranho tirou uma folha de papel de seu pequeno caderninho de notas e começou a escrever nela minuciosamente. Ao terminar, pediu ao rendeiro uma noz. Por acaso, um vizinho tinha trazido algumas. O cavaleiro abriu uma das nozes com seu canivete, separando as duas metades. Comeu o recheio e limpou bem as duas cascas com sua faca. Depois dobrou a folha de papel e pôs em uma das cascas. Pegou uma tira vermelha de linho como as usadas em sinetes, ligou as duas pontas e as prendeu na outra metade da casca. De um pequeno frasco, ele pegou um pouco de cola e grudou as duas cascas da noz, secando-a em seguida no fogo. Por fim, disse: “Vocês estão curiosos por saber o que estou fazendo. Estou deixando esta noz para seu filho. Guardem-na com cuidado! Quando ele completar sete anos e perder o primeiro dente de leite, vocês devem dizer-lhe que use sempre a noz pendurada em volta do pescoço. Ele não pode entrar dentro d’água com ela, nem abri-la antes de completar vinte e um anos. Então ele pode abri-la e ler o que está escrito dentro. Será um grande conforto para ele.” O pequenino, a quem a mãe deu o nome de Liam, tinha adormecido tranquilamente depois de mamar na mãe. O rendeiro olhou seriamente nos olhos do cavaleiro e disse: “Você entrou em nome da Santa Virgem. Com certeza há palavras de bênção na casca da noz. Eu farei exatamente como o senhor está dizendo, pois vejo que seu coração está interessado no destino de nosso filho. Sinto que um anjo bom o mandou a nós por meio da tempestade. Nós lhe agradecemos. Agora tome um pouco de leite e coma um pouco de mingau, pois o senhor tem ainda uma longa viagem para fazer.” O cavaleiro se viu obrigado a aceitar o bondoso convite. Ele teria preferido se pôr a caminho logo, a fim de não precisar ficar conversando, mas não quis ferir os

sentimentos de seu feliz hospedeiro. Ele viu que a alegria de ser pai era maior no rendeiro que a sombra que pairava sobre o futuro deles, que ele havia captado. Silenciosamente, comeu o mingau e tomou o leite. O rendeiro, que já havia dado alimento e água ao cavalo do estranho, insistiu em acompanhá-lo até lá fora segurando o cavalo para que ele montasse. O vento cessara completamente. As nuvens escuras se haviam recuado para uma montanha distante. O sol baixo de dezembro espalhava pelo panorama sua luminosidade avermelhada. O cavaleiro trotava pela vereda que dava na trilha através da charneca. Os perigosos pântanos refletiam o flamejante rubor das nuvens. Algumas gaivotas levantaram voo, assustadas. Ao olhar para trás, o cavaleiro pôde ver a pequena cabana branca, uma fumaça azulada saindo da chaminé em espirais, uma imagem de paz e felicidade. Ele parou seu cavalo e olhou em volta admirando aquela região rural, mas intimamente ele trazia a dor da previsão que obscurecia a alegria da cena. Mas logo ele se viu galopando a caminho de Bangor Erris. Passaram-se meses. Com todas as exigências de suas ocupações, sua experiência daquela noite de tempestade empalideceu e, aos poucos, mergulhou no esquecimento, assim como acontece em nossas vidas, quando muitas coisas acabam ficando no fundo esquecidas. Passaram-se anos. Liam estava crescendo. Havia agora mais crianças na família. Quando seu pai estava construindo um puxado da casa para os filhos, Liam, que era o mais velho, trazia pedras e mais pedras para a construção. Ele ajudava a cobrir o teto com sapê e gostava, principalmente, quando a casa era caiada de novo na primavera, para a Páscoa. Liam se animava ajudando a pintar, por cima dos cinzentos remendos de inverno, a caiação branca, brilhante. Quando ele ainda era pequeno, perguntou uma vez a seu pai: “As pessoas não podem ser caiadas? Assim eu não teria que lavar mais.” Um dia, com seis anos de idade, seu pai lhe disse: “Liam, no próximo sábado vamos nos levantar cedo. Você pode me ajudar a levar o porco ao mercado para vendê-lo. Com o dinheiro, poderei pagar o arrendamento da terra ao senhorio.” Liam não entendeu o que seu pai disse. Era a primeira vez que ele ia a uma cidade e viu com seus próprios olhos que havia outras casas no mundo. E, pela primeira vez, viu uma igreja com um sino na torre. Na praça do mercado, havia uma porção de gente, e lá os animais estavam amarrados. Liam observou toda a atividade do mercado com grande interesse e

ficou admirado quando seu pai entregou o porco a outra pessoa e recebeu em troca uns pequenos disquinhos duros que não se podia comer. Então foram a uma casa que seu pai chamou de Seção de Pagamento, onde ele entregou alguns dos disquinhos. Depois disso foram a outra casa cheia de coisas bonitas. Estavam em prateleiras ou empilhadas no chão. O pai trocou alguns pequenos disquinhos por um pouco de azeite e velas. Por fim, no caminho de casa, Liam estava tão cansado que não conseguia ir a pé com seu pai, e este teve de carregá-lo nos ombros na última parte do caminho. Depois dessa visita ao mercado, Liam pensou muitas vezes que havia muitas coisas no mundo que ele não conhecia. Seu pai, uma vez, levou-o a uma colina, de onde eles viram as velas de grandes barcos no mar, e ele lhe contou a respeito de muitas outras coisas. Liam sentiu que gostaria de viajar e ver o mundo, quando crescesse. Uma noite, a pequena família estava sentada ao redor da mesa toscamente arrumada, comendo sua refeição de batatas. Cada criança também recebia uma fatia de pão duro. Quando Liam mordeu sua fatia com força, fez um movimento súbito, sentiu algo em sua boca e segurou com o dedo indicador e o polegar o primeiro dente que ele havia perdido. Seus olhos se encheram de lágrimas. “Agora minha boca está toda quebrada” – ele se lamentou. Sua mãe confortou-o, dizendo: “Você vai ganhar um dente maior e melhor, e para que ele surja corretamente e faça você ficar maior e mais forte, seu pai lhe vai dar uma coisa.” Liam ficou admirado, e seu pai levantou-se e tirou uma pedra solta da cornija da lareira. Apalpou o buraco e tirou lá de dentro, como que por mágica, uma noz redonda com uma tira vermelha. Quando seu pai pôs a pedra no lugar, Liam viu que nela estava rabiscada uma cruz pequena, na qual ele não tinha reparado antes. “Ouça, Liam,” – disse o pai solenemente – “vou pendurar esta noz em volta de seu pescoço. Você precisa usá-la sempre, dia e noite. Cuidado para não quebrála, e conserve-a longe da água. Ela lhe dará sorte.” Liam ficou muito impressionado. Seu pai estava tão solene ao amarrar a tira vermelha em volta de seu pescoço... Sim, com certeza ele tomaria muito cuidado para que nada acontecesse com a noz.

Algum tempo depois, seu pai lhe disse: “Agora você está bastante grande para sua mãe lhe ensinar algumas letras, para que você saiba ler e escrever. Você gostaria?” “São aquelas coisinhas que a gente vê no livro de orações da mãe? Sim, eu gosto delas, porque ao lado delas há lindas gravuras.” Sete anos mais tarde, Liam crescera e se tornara um garoto esperto e forte, capaz de ajudar o pai em toda espécie de trabalho. Os dois juntos renovaram o telhado de sapé da cabana. O pai de Liam se orgulhava de ver seu filho mais velho guiar o arado com firmeza. Juntos, construíram um estábulo para as vacas. Havia agora três vacas e dois porcos nele, e umas vinte ovelhas pastavam nos montes. Liam dormia em cima do quarto, debaixo do telhado de sapé, onde ele e seu pai tinham feito um chão com algumas pranchas de madeira. Toda noite quando ele ia dormir em sua cama de palha, ele pegava a noz nas mãos, como sua mãe lhe ensinara, e dizia suas orações. Depois, muitas vezes ele brincava um pouquinho com a noz com todo o cuidado e tateava suas reentrâncias. Às vezes ele volteava a tira até que ela ficava mais justa no pescoço. Ultimamente, ele sempre ficava curioso por saber de onde vinha aquela noz. Quando seu pai um dia tirou a noz de seu pescoço, para ver se ainda estava bem colada, Liam perguntou: “Pai, eu nunca vou poder abrir a noz?” Com um olhar estranhamente sério, o pai respondeu: “Oh, sim, quando você completar vinte e um anos, portanto daqui a sete, aí você poderá abri-la.” “Pai, quem nos deu esta noz?” “O Cavaleiro da Estrela.” Liam viu que seu pai não queria dizer mais nada, porque se levantou e saiu da casa. Liam, contudo, pendurou de novo a misteriosa noz no pescoço. No último verão, um professor ambulante chegou à casa do rendeiro. Tais professores costumavam dar uma volta pelo país. Este era um soldado em licença. Ele ensinou a Liam e a seus irmãos e irmãs, não só Matemática, mas também leitura e escrita, e também cantava canções com eles e lhes contava muitas histórias e lendas dos tempos antigos. Quando Liam ficava sozinho com o professor, gostava de perguntar sobre o mundo e sobre seu povo. Quando o professor ambulante foi embora, Liam tinha-se tornado mais maduro e sério, e cresceu seu desejo de sair e ver o mundo.

Era uma tarde quente de outono. Liam tinha quase dezenove anos. Depois do trabalho pesado nos campos, ele subiu a um pequeno lago na colina, onde ele, seus irmãos e sua irmã muitas vezes tomavam banho. Ele sempre tirava do pescoço a fita com a noz e a colocava sobre uma pedra especial. Dessa vez ele estava sozinho. Tirou a camisa e as calças, deixou-as na urze e andou para a água. O fundo turfoso do lago formou um espelho claro, pois a superfície da água estava bem calma e lisa. Liam viu a si próprio no reflexo. “Isso sou eu?” O corpo branco ensolarado brilhava claramente no reflexo. Devagar, ele abriu os braços e fez vários gestos, achando divertido observar os movimentos do menino-água no espelho, que imitava o que ele fazia. Pequenas nuvens brancas brincavam em volta de seu cabelo louro arruivado. Liam se ajoelhou. Queria olhar de perto seu rosto e seus olhos. A noz pendurada em seu pescoço tocou a superfície lisa da água e causou pequenas ondulações, e seu rosto dentro d’água ficou tão deformado que ele riu. Com um súbito pulo, mergulhou na figura deformada de si próprio e nadou com fortes braçadas na quente água turfosa. Ele se esquecera de tirar a tira com a noz. Após um banho rápido, deitou-se na urze e fechou os olhos. Abelhas zumbiam e havia um cheirinho de mel. Uma ligeira cócega no joelho fez com que ele abrisse os olhos. Uma borboleta estava dançando em volta, iluminada, e ficou quieta enquanto suspendia as asas ao sol. Liam ficou imóvel. A visitante colorida então levantou voo e ficou esvoaçando sobre a noz bem diante dos olhos de Liam. As asas da borboleta tinham beiradas negras e sinais de um vermelho-sangue. O jovem, gentilmente, estendeu o dedo para a borboleta tentando atraí-la para sua mão. Ela, porém, esvoaçou em torno de sua cabeça e desapareceu. Liam pegou a noz e girou-a pela tira com fizera tantas vezes. Talvez ele a apertasse mais que antes, ou talvez a cola se tivesse dissolvido um pouco na água. Subitamente ele estava segurando as duas metades da casca, e uma bolinha de papel rolou para fora em seu peito. Ele não tinha a intenção de abrir a noz. Será que ele deveria juntar de novo as duas metades e pôr a cola para secar no sol? Ele hesitou e olhou em volta a lagoa em meio à urze. Tudo estava calmo como antes. “Quando você completar vinte e um anos, você pode abrir a noz e ler o recado” – ele ouviu mentalmente a voz solene de seu pai. Ele tornou a pegar a noz. O sangue subiu à sua cabeça. Ele podia sentir seu pulso batendo com força no pescoço e na têmpora.

“Não pude evitar a abertura da noz. Talvez tenha sido a vontade de Deus. Talvez eu deva saber hoje qual o segredo da noz.” Com os dedos trêmulos, ele começou a desdobrar o papel que trazia letras claras. Ele se ergueu e ficou de joelhos. Mais uma vez deu uma olhada rápida em volta. Então começou a ler. Ficou pálido. O horror se estampou em seu semblante. Seus olhos se arregalaram. O papel escorregou de seus dedos trêmulos e flutuou como uma mariposa até o chão. Um grito escapou de seu peito. Ele se lançou para a frente e meteu os dedos na urze, como que procurando apoio na terra, e então seu corpo se sacudiu com soluços. Meio sufocado e ofegante, ele disse: “Não! Não!” e mergulhou a cabeça na urze. Ele ficou de pé como se um arrepio de frio passasse por seu corpo Uma nuvem cobrira o sol. A brisa fresca da tarde punha ondulações cruzadas na lagoa. Mais uma vez ele se curvou sobre o papel amarelado e releu as palavras terríveis. Você nasceu sob estrelas de condenação. Saiba que ao completar vinte e um anos você será enforcado por um crime do qual você é inocente. Estas linhas são para confortá-lo na noite anterior à sua morte. Sua inocência é sabida por um homem e por Deus. C.B.

Liam murmurou sem emitir um som: “O Cavaleiro da Estrela.” Então ele ergueu do chão as duas metades da noz que estavam na urze. Dobrou o papel numa bola e pôs, com o fim enlaçado da fita dentro da casca da noz e juntou as duas metades. Depois ajoelhou um instante. Pensou em rezar, mas não conseguia achar as palavras. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. Só uma parte do Pai Nosso é que vieram a seus lábios: “Seja feita a Tua vontade!” O vento ficou mais forte. A pele de Liam refrescou. Suas mãos se relaxaram devagar. As cascas da noz ficaram juntas de novo, penduradas em seu pescoço como antes. Depois que ele se vestiu, apertou a noz sob sua camisa, de modo que o calor de sua mão endurecesse a cola. Não, ele ainda não podia voltar para casa. Começou a andar a esmo sobre a urze. O sol poente dourava a terra e as colinas. Liam nunca experimentara até então como a beleza do brilho do mundo podia causar dor ao coração e, de certa forma, ele se alegrou quando começou a

escurecer. Ele vagava sem pensar aonde estava indo. De repente, ele estava de novo junto ao lago que agora estava escuro como breu, um abismo de esquecimento. Ele deu uns passos até a beirada, que começou a se esboroar sob seus pés. “Ah, se eu pudesse me extinguir na escuridão como o lago, ou se eu pudesse afundar nas profundezas.” Nisso, ele reparou em dois pontos brilhantes no espelho escuro. Estrelas? Sim, lá no alto duas estrelas brilhavam no céu e, aos poucos, apareceram outras. Então, Liam falou com as estrelas como uma criança: “Estrelas, que foi que eu fiz para vocês me punirem assim?” Subitamente, ele concluiu que seus pais não deveriam saber nada do que ele tinha sabido naquele dia. “Eu vou, e vou morrer longe de casa.” Era noite alta quando Liam chegou em casa. Sua mãe ainda estava de pé. Ela ficou preocupada porque ele não voltava. Ele disse que tinha adormecido junto da lagoa. Sua mãe disse ansiosamente: “A noite esfriou. Você vai pegar um resfriado. Olhe, tome meu cobertor quente. Embrulhe-se nele. Durma bem.” Liam não a contrariou. Ele não podia recusar a bondade de sua mãe. Depois que ela o alimentou com leite quente, ele subiu depressa para sua cama sob o telhado. Com sua mão direita ele segurou a casca da morte e ouviu então a batida de seu coração com sua forte canção de vida. Durante as próximas semanas, sua mãe reparou que ele havia mudado. Ele se tornara sério e quieto, dificilmente rindo e brincando com seus irmãos e sua irmã. Mas seu pai elogiava o bom trabalho do rapaz. Sim, ele podia ser bemsucedido no mundo em qualquer lugar. Era a tarde do aniversário de dezenove anos de Liam. Seus irmãos e sua irmã já dormiam. O pai, a mãe e o mais velho sentavam-se junto ao fogo da lã para cardar. De repente, Liam perguntou: “Pai, você uma vez me contou alguma coisa sobre o Cavaleiro da Estrela, que me deu a noz quando ele ficou aqui na noite em que eu nasci. Que tal sua aparência? Ele era um homem bom?” “Sim, agora já faz muito tempo, e eu lhe posso contar sobre ele agora.” E então o pai de Liam contou-lhe tudo o que acontecera naquela noite de tempestade.

“E aqui no banco em que você está sentado o cavalheiro passou a noite. Se ele era bom? Quando ele se sentou junto ao fogo, ele acordou e abriu os olhos. Eram olhos escuros e brilhantes. Eram olhos sérios, mas bondosos. Creio que ele era capaz de amar muito as pessoas. Ele também nos quis ajudar. Sua voz e seu coração estavam comovidos ao me dar a noz. Quando ele foi embora, encontrei uma moeda de ouro, que ele deixou debaixo da jarra de leite, junto ao fogão. Com esse dinheiro compramos três ovelhas, e hoje elas são vinte. Um sábio cavalheiro, um bom cavalheiro. Embora eu não tenha conseguido entender sua conversa sobre as estrelas, ele falou no assunto com muita seriedade.” Na noite seguinte, em seu sótão na cama de palha, Liam custou muito a dormir. Virava de um lado para o outro de modo que os caibros rangiam. Quando afinal adormeceu, murmurava alto em seu sono e balbuciava palavras ininteligíveis. Seu pai acordou, subiu a escada até a cama do filho, pôs a mão nele e perguntou: “Que foi que houve? Você está doente? Seu sono está muito agitado. Vai acordar seus irmãos.” “Eu estou bem, meu pai. Foi apenas um pesadelo. Nada mais.” “Liam, pense em nosso bezerro, que acabou de nascer, assim você terá sonhos melhores.” Quando o pai tornou a descer, Liam sentiu que tinha de deixar sua casa e ir embora. “Meus irmãos menores já trabalham bem. A vergonha de ter um filho publicamente enforcado não deverá cair sobre meus bons pais. Eu devo partir logo.” Depois dessa decisão, veio-lhe uma grande paz. No dia seguinte ele falaria com seus pais sobre o assunto. Na manhã seguinte, bem cedo, quando ele subia com seu pai ao campo mais alto, criou coragem e disse: “Hoje estamos colhendo as últimas batatas, e durante o longo inverno não haverá trabalho que meus irmãos não possam fazer. De modo que, meu pai, deixe-me sair pelo mundo para procurar trabalho e ganhar a vida. Quando eu juntar algum dinheiro, venho pagar o arrendamento da terra para vocês.” O pai ficou quieto, surpreso, olhou para seu filho de alto abaixo e pensou na resposta que daria. “Liam, eu não quero que você vá embora. Sua mãe gosta tanto de você. Mas você tem razão. Um dia isso tem de acontecer, e este ano a colheita foi bem pobre.

Você vai se dar bem no mundo, mas espere até o Natal, que não está tão longe, e converse com sua mãe.” Ele conversou naquela mesma tarde. A decisão de Liam não surpreendeu tanto sua mãe, embora sua voz estivesse triste quando ela disse: “Eu esperava por isso, Liam. Acho que essas ideias lhe deram noites agitadas. Apenas prometa que você vai voltar.” “Sim, mãe. Se Deus quiser, eu vou voltar.” Durante o período seguinte, Liam dobrou sua ajuda. Renovou o telhado do estábulo, trouxe vime do riacho e fez um cercado entrelaçado para os carneiros. Debulhou grãos com seu pai. Entalhou brinquedos para seus irmãos e, para sua irmãzinha, uma pequena boneca com cabelo de lã branca. Na véspera de Natal, o dia estava claro e frio quando a família subiu a ladeira da colina até a ravina próxima para assistir a missa da meia-noite. Liam carregou sua irmãzinha bem embrulhada num saco de batatas que ele pendurou no ombro. O pai e a mãe cada um levava um dos dois meninos pela mão. Patrick, o segundo mais velho, ia na frente, com um longo cajado e uma lanterna como guia. Liam imaginou a saudade que sentiria de todos eles. “Eles nunca devem ficar sabendo de minha vergonha e de minha desgraça, quando eu estiver morrendo na forca. Preciso ir para longe, para muito longe, e tenho de mudar de nome. Assim, eles jamais receberão essas notícias más.” Quando eles alcançaram a ravina entre as colinas, faltava pouco e eles podiam ver outras luzes no vale, encaminhando-se para a igreja. Eles chegaram à igreja quando os sinos soavam, e se ajoelharam nos bancos com o resto da congregação. Incenso, luz de vela, cantos e o som dos sinos e, no pequeno altar lateral, as figuras do presépio. Liam não fez uma oração pedindo para si mesmo: seu destino estava marcado, mas rezou pelos membros de sua família, para que as estrelas fossem boas para eles. Uma semana mais tarde, no Ano Novo, Liam partiu com um cajado no ombro. Amarrada a ele havia uma trouxa com roupas e algum alimento. Ele seguiu pela mesma trilha que trouxera o Cavaleiro da Estrela à sua casa, há dezenove anos. Ele se voltou várias vezes para acenar adeus à sua família, até que ele deu a volta numa colina e sua casa desapareceu. Por esse caminho, Liam deixou o norte do Condado de Mayo e andou para o leste até chegar ao Condado de Sligo. Como trabalhador errante, ele usou suas mãos para todo tipo de trabalho. Uma vez, ele

ajudou por três semanas a cortar turfa numa fazenda. Depois, achou um trabalho temporário com um ferreiro. Um dia, um proprietário de terras desmontou naquela ferraria, porque seu cavalo perdera uma ferradura no caminho. Enquanto o ferreiro punha a ferradura no magnífico cavalo, Liam segurou sua cabeça enquanto o nobre senhor observava o trabalho sentado num banco. Ele reparou como Liam acalmava o cavalo afagando seu pescoço e sua crina, e como o cavalo, ao contrário do que costumava, manteve a pata quieta. “Um bom rapaz” – pensou o lorde, e perguntou ao ferreiro: “Este é seu novo aprendiz?” “Não” – replicou o ferreiro – “meu aprendiz foi ver a família por duas semanas, e eu empreguei este rapaz por esse período.” Ao pagar o ferreiro, enquanto Liam segurava as rédeas do cavalo, o nobre senhor lhe perguntou de repente: “Que você vai fazer quando o aprendiz voltar?” “Meu senhor, eu vou procurar outro trabalho.” “Pois então me procure. Meu jardineiro está ficando velho e poderia usar seus braços fortes. O ferreiro lhe dirá como me encontrar. Até logo!” Com isso, o lorde montou e saiu cavalgando. O ferreiro ficou surpreso e disse a Liam: “Você tem sorte. Esse era o Lorde Stanford. Ele é um inglês rico, mas que não tem tanto orgulho que o impeça de falar com um ferreiro e com um rapaz irlandês do campo.” Foi assim que, ao deixar o ferreiro, Liam se dirigiu à moradia de Lorde Stanford, que era dono de muitas terras, e começou a trabalhar para ele. Nos jardins do castelo estava começando o plantio da primavera. Quando Liam foi levado até o velho jardineiro, reparou que havia uns rapazes ajudantes trabalhando com muita falta de cuidado. O velho jardineiro pediu a Liam que os ajudasse a deixar prontos para o plantio os canteiros de flores diante do castelo. Liam notou que, assim que o jardineiro chefe se distanciava um pouco, os garotos começavam a brincar, atirando pedras uns nos outros e sentando-se no muro. No fim, só ele trabalhava. Naturalmente, os outros o chamavam, mas ele respondia: “Eu trabalho como costumo trabalhar em casa.” Aos poucos, o jardineiro chefe viu que o novo ajudante dava conta, rapidamente e com segurança, de todas as tarefas impostas a ele. Logo lhe foram dados trabalhos mais difíceis, e ele aprendeu a enxertar árvores e rosas. Liam começou a gostar de seu novo trabalho cada vez mais, e fazia o máximo para

agradar seu mestre. No ano seguinte, ele foi considerado segundo jardineiro, e os outros garotos, que trabalhavam há muito mais tempo, foram considerados abaixo dele. É claro que os garotos o invejavam e tentaram mais de uma vez desacreditálo perante o jardineiro chefe. Uma vez eles declararam que Liam não lhes havia dito para regar as sementes que estavam brotando e que haviam secado. De outra vez, o telheiro do jardim pegou fogo, e eles disseram que foi descuido de Liam. Mas este nunca foi acusado injustamente pelo jardineiro chefe, que percebeu as artimanhas dos garotos. Assim se passou o segundo verão de Liam nas terras de Lorde Stanford, e até mesmo os garotos pareciam acostumados ao fato de Liam estar acima deles, pois apesar do trabalho pesado, tinha sempre uma atitude amistosa. Liam já havia economizado mais dinheiro do que o necessário para pagar o arrendamento do pai. Então achou que, lá para o fim do verão, e antes que seu destino o agarrasse, ele podia cumprir a promessa feita à mãe e ir até em casa uma vez. Estava também ansioso por ver sua família e levar-lhe presentes com o dinheiro que recebera. Que vontade ele tinha de caminhar pela sossegada ravina de sua terra com os riachos borbulhantes, e tomar um último banho na pequena lagoa em meio à urze florescente. Ele estava totalmente convencido de que a profecia a seu respeito se cumpriria, embora não soubesse que tipo de crime lhe seria atribuído. Não havia muito tempo a perder, pois o mês de setembro estava chegando ao fim. Sendo assim, ele pediu a folga de uma quinzena para visitar a família. O palafreneiro chefe, com quem Liam tinha boa intimidade e que às vezes o levava em suas cavalgadas, estava pronto para lhe emprestar um cavalo a fim de que sua viagem fosse menos penosa. Liam já adquirira presentes para seus pais, seus irmãos e sua irmã, e os empacotara num velho alforje que o palafreneiro chefe também lhe emprestara. Antes de Liam partir – seu cavalo estava selado no pátio – ele foi se despedir do

jardineiro

chefe.

Então,

o

mais

preguiçoso

daqueles

garotos

rastejou

furtivamente até o cavalo, abriu a beirada do alforje sem ser visto, meteu seu braço lá dentro, fechou de novo a beirada depressa e desapareceu. “Hoje consigo ir até a estalagem de Dromore” – disse Liam ao palafreneiro chefe ao partir – “e amanhã chego a Ballina.” Nesse momento, Liam não pensava em sua noz nem no destino que pesava sobre ele. Sua alma estava cheia da pura alegria de ir à sua casa.

Um dia depois de sua partida, a esposa de Lorde Stanford descobriu que um valioso broche de ouro com pedras preciosas estava faltando em sua caixa de joias e, chamando o porteiro do vestíbulo, perguntou-lhe se vira alguém por ali. Ora, esse servo era unha-e-carne com o maldoso garoto jardineiro. Primeiro o porteiro do vestíbulo deu de ombros, depois disse: “Ó senhora, acabo de lembrar que ontem, o rapaz jardineiro Liam, antes de partir cavalgando, esteve aqui por

dentro.

Quando ele

me

viu,

desceu

depressa a escada

furtivamente. Logo depois, ouvi seu cavalo trotando pelo caminho afora.” Tudo isso foi contado ao lorde, e ele ordenou a seu jovem sobrinho, que estava morando ali por uns tempos, que corresse atrás do suposto ladrão com dois guardas montados e o trouxessem preso. Eles partiram em seguida nos cavalos mais velozes. Na segunda noite de sua viagem, quando Liam, já tarde, subia ao quarto da estalagem de Ballina, ouviu o som de cascos de cavalos lá fora. Logo depois, bateram à sua porta. O estalajadeiro estava ali com uma lanterna e, atrás dele, na meia escuridão, estavam três homens. Antes que Liam percebesse, os três entraram no quarto, e ele, espantado, viu rostos muito conhecidos. O jovem nobre disse rispidamente: “Entregue o broche de ouro que você roubou de Lady Stanford!” Liam empalideceu, deu dois passos para trás e respondeu, hesitante e cheio de surpresa: “Um broche de ouro? Nada sei sobre isso. Aqui está meu alforje.” O nobre ordenou que o alforje fosse esvaziado, e todo o seu conteúdo foi derrubado no chão, todas as coisas que Liam tinha embrulhado cuidadosamente para sua família. No monte da pilha brilhava o broche de ouro. Tudo então aconteceu como fora previsto. Liam foi preso e levado ao estábulo, onde os dois guardas armados ficaram tomando conta dele. O rapaz nobre dormiu em seu quarto. Liam ficou preso numa argola no duro chão de pedra e não conseguiu dormir. Sim, era o que tinha de acontecer, e ninguém acreditou que ele nada soubesse do broche de ouro. Na manhã seguinte, ele foi amarrado ao seu cavalo e levado para a prisão da cidade de Sligo. Tudo foi tirado dele, menos a noz da desgraça pendurada em seu pescoço, sob a camisa. Depois de duas semanas, ele foi levado perante o magistrado do primeiro interrogatório. Liam tentou manter sua inocência, mas os fatos falavam contra ele. Ele sabia que a penalidade para um roubo dessa natureza era a morte. Assim era a

lei naquele tempo. Ele tinha uma suspeita sobre o modo como o broche tinha ido parar em seu alforje, mas aquele magistrado não levou isso em consideração, principalmente porque a evidência das palavras do porteiro do vestíbulo do castelo era definitiva. O julgamento público estava marcado para três dias antes do aniversário de vinte e um anos de Liam. O juiz viria de Dublin para pronunciar a sentença de morte. Liam esperou pelo dia em dolorosa resignação. Era bom que seus pais nunca saberiam de nada. Ele não lutou contra seu destino, mas tinha o desgosto de não ter podido rever a mãe, o pai os irmãos e a irmã, nem mesmo sua amada ravina, e era essa a tristeza que ele tinha em sua estreita cela. O dia do julgamento chegou. Vieram curiosos de todo lado. Estavam lá alguns dos servos do castelo, incluindo o tal porteiro do vestíbulo e os garotos do jardineiro. Uma das criadas disse: “É nisso que dá tornar favorito muito depressa um vagabundo desconhecido e colocá-lo acima dos outros. Ele nem consegue dizer quem são seus pais e nem sabe onde nasceu, o desonesto.” Quando Liam foi levado à corte, o juiz tinha acabado de condenar à morte outro prisioneiro. Quando esse ladrão de cavalos passou, Liam viu seus olhos arregalados de medo, e achou estranho que ele mesmo não sentisse nenhum medo da proximidade da morte. Foi-lhe indicado um banco ao lado da tribuna. Depois de ler todos os papéis, o juiz, com a peruca branca e a toga preta, olhou dura e demoradamente para o acusado. Liam suportou seu olhar sem se perturbar. Os homens que haviam achado o broche em seu alforje foram chamados como testemunhas. Quando o juiz perguntou que explicação ele tinha a dar sobre o fato, Liam não respondeu. Então o velho jardineiro foi chamado como testemunha de defesa, e ele atestou sua honestidade e confiabilidade. Mais uma vez o juiz pediu a Liam que respondesse. As boas palavras do velho jardineiro lhe deram coragem. Ele se levantou e deu uns passos para diante do juiz. Em sua presença, ele sentiu um olhar caloroso e humano surgido da compaixão. Os olhos do juiz também lhe deram coragem. Parecia que uma voz interior murmurava: “Conte-lhe seu segredo.” Então, o juiz disse: “Acusado, toda a evidência está contra você. Dê sua última palavra antes que eu pronuncie a sentença.” “Meu senhor, eu conheço qual é sua sentença. Três dias depois do meu aniversário de vinte e um anos, eu serei levado à forca.”

O juiz se recostou na cadeira, surpreso: “Você consegue ler os pensamentos de um homem? Daqui a três dias, chega de Dublin o carrasco. E isso somente eu sabia. Ele vai executar dois enforcamentos, e um deles é o seu. Acusado, como você sabe tudo isso?” No tribunal o silêncio era tal que se podia ouvir o zumbido de uma mosca. Subitamente, Liam tirou de seu pescoço a fita com a noz, pegou o papel que havia dentro e o pôs diante do juiz depois de alisá-lo, para que pudesse ser lido. Ele perdera todo o acanhamento e agora falava com voz nítida que todos pudessem ouvir. “Este papel foi escrito por um homem que entendia de estrelas. Ele recebeu abrigo em nossa casa na noite em que eu nasci. Ele deu esta noz a meu pai. Quando eu completasse sete anos, deveria usá-la em volta do pescoço. Há dois anos, quando eu tomava um banho na lagoa, a noz se abriu, e eu li que seria enforcado ao completar vinte e um anos, mas sendo inocente. Isso depois de três dias.” O juiz tinha pegado o papel com as duas mãos. Ao lê-lo, tornou-se pálido. pois reconheceu sua própria letra e a assinatura de suas próprias iniciais. Um silêncio intenso reinava no tribunal. Lentamente, o juiz abaixou o papel amarelado e curvou a cabeça enquanto mergulhava em recordações, em imagens daquela terrível noite de tempestade, a casa isolada, o rendeiro e as estrelas. Nisso, ele olhou profundamente nos olhos de Liam e perguntou devagar e mansamente: “Você ou seu pai sabem quem escreveu este papel?” “Não, meu senhor. Meu pai chamou-o de Cavaleiro-da-Estrela e, às vezes, de Cavaleiro-da-Tempestade, porque uma terrível tempestade levou-o à nossa casa naquela noite.” O juiz ergueu a cabeça e falou alto para que todos pudessem ouvir: “Acusado, eu lhe vou dizer quem escreveu este papel. Fui eu mesmo.” Pelo tribunal passou uma tomada de respiração, e suspiros, palavras sufocadas de compaixão. O juiz então voltou-se para o tribunal e para os funcionários da corte: “Vinte anos atrás houve dias atormentados. Soldados faziam saques por todo o país. Operações militares dividiram dois grupos líderes. Eu tinha uma mensagem urgente para levar de Dublin para o norte, a fim de impedir o norte de tomar o partido errado. Também tinha de passar num castelo em Belmullet, pertencente a meus

parentes, os Binghams. Naquela noite tempestuosa, encontrei abrigo na casa onde nasceu o acusado.” O juiz parou por um momento, pois diante do povo todo, como ele revelaria o segredo que estava baseado na astrologia? Ele falou baixo, de modo que só os mais próximos pudessem ouvir o que dizia. “A influência dos astros no destino humano era um assunto estudado e aprendido por meus ancestrais, e eu herdei seu conhecimento. Na noite em que você nasceu, as estrelas do destino estavam numa posição especialmente ruim em relação à lua, e eu sabia que isso ia levar a uma fatal catástrofe em três vezes sete anos. Eu também pude notar que isso tinha a ver com posses ou com dinheiro, ou roubo ou prejuízo, que levariam à forca. Qualquer demora em seu nascimento teria melhorado a conjuntura astral, mas isso era impossível de conseguir. Eu estava exausto e então escrevi esta nota de madrugada, a fim de lhe dar conforto quando a desgraça caísse sobre você. Agora vejo que você nasceu isento do poder da morte. A boa sorte fez com que eu fosse seu juiz.” O sangue de Liam começou a disparar e a martelar. Ele se sentiu tonto, pensando: “Eu serei libertado, eu vou viver, viver!” O juiz subitamente ficou de pé, olhou para a multidão ali reunida e proclamou: “Eu anuncio o julgamento. Não pode haver apelo contra ele na lei. O acusado é inocente. Ele deve ser libertado. Outro deve ser encontrado, que o prejudicou com esta ação horrível.” Nisso, o juiz notou uma movimentação desusada e agitada no fundo do tribunal. Um homem estava tentando abrir a porta à força para escapar. O juiz deu uma ordem: “Ninguém pode deixar o tribunal. Que o homem que estava tentando sair venha até aqui!” O guarda do tribunal estava justamente levando até o juiz o porteiro do vestíbulo do castelo. Diante do olhar nítido do juiz, o homem não pôde negar sua culpa. Ele confessou que tomou parte no complô armado pelo garoto que trabalhava no jardim e que o estimulou a isso. E apontou para o garoto que se escondia atrás de uma pilastra. Os dois foram levados para a cela de Liam e, mais tarde, foram condenados a trabalhos forçados nas Índias Ocidentais. Quando o juiz deu fim ao julgamento, Liam caiu a seus pés e deixou as lágrimas rolarem. O juiz ergueu e abraçou aquele que fora tão dolorosamente

testado e disse: “Dê lembranças minhas a seu pai e sua mãe. Agradeça àquele que domina as estrelas. Ele deu um bom desvio à estrela fatal.” As notícias voaram como vento até o castelo de Lorde Stanford. Quando o velho jardineiro e Liam entraram no jardim um ao lado do outro, o lorde e a lady Stanford e todo o pessoal do castelo foram dar as boas vindas ao prisioneiro libertado. Não foi de admirar que Liam não só se tenha tornado jardineiro chefe, mas foi também promovido pelo lorde a administrador de suas terras. Antes que isso acontecesse, foi permitido a Liam viajar até sua terra natal e ver seus pais, irmãos e irmãs. Assim ele pôde celebrar seu aniversário na sossegada ravina e na casa caiada. A história de seu destino nunca foi esquecida na província de Connaught, onde é contada até hoje.

O NASCIMENTO DE JOÃO BATISTA (Do Evangelho de Lucas)

Durante o reinado de Herodes, Rei da Judeia, havia um sacerdote, da classe de Abias, cujo nome era Zacarias. Sua mulher descendia de Aarão, e era chamada Isabel. Ambos eram justos diante de Deus, nunca deixando de guardar todos os mandamentos e preceitos do Senhor, mas não tinham filhos porque Isabel era estéril e ambos de idade avançada. Então aconteceu que, exercendo ele as funções de sacerdote no turno de sua classe, coube-lhe por sorte, conforme o costume sacerdotal, entrar no Santuário do Senhor e queimar o incenso, enquanto toda a assembleia do povo ficava orando do lado de fora na hora do incenso. E lhe apareceu um anjo do Senhor de pé, à direita do altar do incenso. Ao vê-lo, Zacarias se perturbou, e o temor tomou conta dele. Mas o anjo lhe disse: “Não tenha medo, Zacarias, porque sua súplica foi ouvida. Sua mulher Isabel vai dar à luz um filho, e você lhe dará o nome de João. Você terá júbilo e muita felicidade, e muitos se alegrarão porque ele será grande

aos olhos de Deus. Ele não tomará vinho nem bebida forte e estará cheio do Espírito Santo mesmo no ventre de sua mãe, e converterá muitos filhos de Israel ao Senhor seu Deus. Ele caminhará à sua frente, no espírito e poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os rebeldes à compreensão do que é correto, preparando para o Senhor um povo que já está pronto.” Zacarias perguntou ao anjo: “Como terei certeza disso, se eu mesmo já sou velho e minha mulher é de idade avançada?” O anjo lhe respondeu: “ “Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus e fui enviado para falar com você e lhe dar esta boa nova. Mas eis que agora você ficará mudo e não terá o poder de falar até que isto aconteça, pois você não acreditou em minhas palavras, que se cumprirão no tempo oportuno.” As pessoas estavam esperando Zacarias, admiradas com sua demora no Santuário. Quando ele saiu, não tinha o poder de falar, e todos acharam que ele tinha tido lá uma visão. Depois disso, sua mulher Isabel concebeu e se escondeu por cinco meses, dizendo: “Isto fez o Senhor por mim, quando me olhou para tirar meu opróbrio perante os homens!” Quando o tempo de Isabel se cumpriu, ela deu à luz um filho. Então, seus vizinhos e sua família, ouvindo dizer que o Senhor havia mostrado sua grande misericórdia, rejubilaram-se com ela. No oitavo dia, foram circuncidar o menino e lhe teriam dado o nome de Zacarias, como seu pai, mas sua mãe disse: “Não, ele precisa ser chamado João.” E todos disseram a ela: “A ninguém de sua família foi dado esse nome.” Fizeram sinais ao pai para saber que nome ele desejava dar ao filho. Ele pediu uma tabuinha e nela escreveu: “Seu nome é João.” E todos ficaram espantados. No mesmo instante sua boca se abriu e, quando sua língua se desatou, ele falou louvando a Deus. O temor se apoderou de todos os vizinhos, e muito se falou sobre essas coisas em toda a região montanhosa da Judeia. Todos que as ouviam guardavam-nas no coração e diziam: “Que será dessa criança?” Pois na verdade a mão de Deus estava com ela. Seu pai Zacarias, repleto do Espírito Santo, profetizou:

“Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo, e suscitou-nos um poderoso Salvador da casa de Davi, seu servo, como anunciou desde o princípio pela boca de seus santos profetas.” O menino cresceu e se fortaleceu em espírito.

A ANUNCIAÇÃO A MARIA (Do Evangelho de Lucas)

No sexto mês o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Aproximando-se dela, ele disse: “Salve, cheia de graça! O Senhor está consigo.” Ela ficou muito perturbada com o que ele disse, e pôs-se a considerar que saudação seria essa. E o anjo lhe disse: “Não tenha medo, Maria, porque você caiu nas graças de Deus. Eis que você conceberá e dará à luz um filho ao qual deve ser dado o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. E ele reinará sobre a casa de Jacó para sempre, e seu reinado não terá fim. Maria disse ao anjo: “Como se dará isso, se eu não conheço varão algum?” O anjo respondeu: O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo vai cobri-la com sua sombra. Por isso, o menino que nascer será chamado santo, Filho de Deus. Também Isabel sua prima concebeu um filho em sua velhice, e já está no sexto mês, embora fosse considerada estéril, porque nada do que Deus diz é impossível a Ele.

Maria replicou: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo sua palavra.” E o anjo se retirou.

O NASCIMENTO DA CRIANÇA

O NASCIMENTO DE JESUS EM BELÉM (Do Evangelho de Lucas)

Naqueles dias, foi expedido um decreto de César Augusto, para que todos os habitantes da terra fossem recenseados. O primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um em sua própria cidade. Portanto, José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Belém – porque ele pertencia à casa e família de Davi – para ser alistado com Maria, sua esposa, que estava grávida. E aconteceu que, enquanto eles estavam ali, completaram-se os dias para a criança nascer, e Maria deu à luz seu filho primogênito. Ela o envolveu com faixas e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem. Naquela região, havia pastores que ficavam nos campos, guardando seus rebanhos durante a noite. E um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor brilhou à sua volta, e eles se encheram de temor. O anjo lhes disse: “Não tenham medo. Eis que lhes trago novas de grande alegria, que será para todo o povo. Hoje, na cidade de Davi lhes nasceu um Salvador, que é Cristo o Senhor. E este é o sinal que lhes dou: Vocês encontrarão um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura.” E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus, dizendo: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade.” Quando os anjos se retiraram deles e foram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: “Vamos a Belém ver o que aconteceu lá, que o Senhor nos revelou.” Eles foram às pressas e encontraram Maria e José com o bebê recém-nascido, que estava deitado na manjedoura. Ao verem isto, divulgaram o que lhe fora dito a respeito daquela criança. E todos que ouviram se admiraram do que os pastores

contaram. Maria, porém, guardava todas essas coisas e as meditava em seu coração. E os pastores voltaram dando glória e louvor a Deus, pois tudo o que tinham ouvido e visto era justamente o que lhes tinha sido anunciado.

A FLAUTA DO PASTORZINHO (Dan Lindholm)

Na noite em que nasceu o Salvador, um pobre pastorzinho subia os morros perto de Belém, procurando uma de suas ovelhas. Por causa disso, ele não estava com aqueles pastores que conhecemos do Evangelho. Esse menino só servia a um rigoroso patrão – talvez um dos estalajadeiros de Belém. O patrão batia nele se ele chegasse em casa com alguma ovelha faltando. Por isso, mal reparava nas coisas maravilhosas que aconteciam ao seu redor. Não percebeu que o vento se acalmou, que os passarinhos começaram a cantar, nem viu que, de repente, todas as estrelas dobraram seu brilho. Seu caminho ia subindo o morro, ele procurou atrás de cada moita, até que por fim chegou ao topo. Dali ele podia avistar todos os campos até a cidade de Belém. Estando ele de pé lá no alto, aconteceu que os céus se abriram, e a noite se tornou tão clara quanto o dia. Apareceu um grande exército de anjos, e uma canção de louvor desceu sobre a Terra. Até os dias de hoje, pouquíssimas pessoas entenderam a magnitude do que aconteceu naquela noite. Assim, também se pode compreender que o pobre pastorzinho não tenha entendido de imediato a mensagem. Ele estava pensando na ovelha perdida e queria continuar a procurar por ela. Subitamente, um anjo parou diante dele e disse: “Não se preocupe com sua ovelhinha. Neste momento nasceu o maior pastor. Corra depressa a Belém onde o Menino Jesus, o Redentor do mundo está deitado na manjedoura. “Eu não posso apresentar-me diante do Redentor do mundo sem ter um presente para lhe dar.” – disse o menino.

“Olhe, tome esta flauta e toque uma canção para a Criancinha.” – disse o anjo, que deu a ele uma flauta e desapareceu. A flauta tinha sete tons e quando o menino a pôs nos lábios, ela tocou como que sozinha. Agradecido e feliz, o menino correu pelo morro abaixo. Mas, quando foi saltar um riachinho, tropeçou e caiu entre as pedras. A flauta escapou de sua mão, e ele não conseguiu deixar de dizer uma palavra comum entre os pastores. Não era uma palavra bonita. Quando ele recuperou a flauta, ela havia perdido um de seus tons. Mas ainda sobraram seis. Agora não adiantava chorar e, tendo o caminho melhorado, o pastorzinho continuou a correr o mais depressa que pôde. De repente, parou. Bem diante dele apareceu um lobo grande, o próprio devorador de ovelhas, que arreganhou para ele os dentes. O menino gritou com raiva: “Fora daqui, já!” – e jogou, quase sem querer, a flauta em cima do lobo, que fugiu. Quando achou de novo a flauta, ela só tinha cinco tons. Finalmente, o pastorzinho chegou à campina, onde estava o rebanho. Todos os animais descansavam, e reinava um profundo silêncio. Só havia uma ovelha balindo e correndo por ali. O menino quis trazê-la para junto do rebanho, correu atrás dela e, vendo que ela se afastava. jogou em suas pernas o que tinha na mão Era a flauta, que perdeu então mais um tom. Onde estavam, porém, os outros pastores? É claro que o menino não sabia que eles já estavam de joelhos no estábulo, diante da Criancinha. Pensou que estivessem diante de uma caneca de cerveja, e que ele, sendo o mais moço, foi deixado para guardar o rebanho. Contrariado, chutou uma bilha d’água que estava junto do fogo. E, então, foi como se uma força invisível tirasse a flauta de suas mãos e, quando ele a pegou de novo, ela só tinha três tons. Agora, ele correu para Belém. Tudo correu bem até que ele tentou passar pela porta da cidade. De repente, ele se viu cercado de um bando de garotos de rua, que queriam tomar-lhe a flauta. Mas ele não queria dá-la e caiu de socos e bofetadas em cima dos garotos. é verdade que ele conseguira segurar a flauta, mas de novo se perdera um tom. Apesar de tudo, ele conseguiu chegar diante do estábulo. Lá no alto, acima do telhado brilhava uma estrela maravilhosa e deitado na manjedoura estava o Salvador do mundo. Contudo, quando ele ia entrando, aconteceu que a flauta perdeu mais um tom. Pois, ao passar pela porta, avançou para ele o cachorro bravo do

estalajadeiro. Ele não sabia como se defender, a não ser com o que tinha na mão e que era a flauta. De modo que ele parou na porta e não teve coragem de ir até a manjedoura. Estava com muita vergonha de ter sobrado tão pouco de seu presente. Em sua ingenuidade, ele não sabia que, para toda gente, o caminho até o Salvador do mundo é assim, dessa maneira. Mas a Mãe da Criança acenou para ele, e o pequeno pastor saiu devagar de seu cantinho e tocou a flauta com o último tom que sobrara. E foi um som lindo, maravilhoso. A Criança e todos que estavam no estábulo ouviram: Maria e José, o boi e o burrinho. O Menino Jesus estendeu sua mãozinha divina e tocou na flauta. E – vejam só – no mesmo instante, a flauta fez soar de novo seus sete tons, com o som maravilhoso que tinha quando era tocada no céu.

JONAS, O PASTOR NO ESTÁBULO (de Georg Dreissig) Jonas, o pastor, estava bem embrulhado em seu cobertor na palha e dormia. O verão se acabara havia tempos, e o rebanho havia comido todo o pasto das campinas. Já no outono, quando as tempestades devastavam o restolho sobrado, ele reunira as ovelhas e procurara refúgio com o estalajadeiro, pois este, atrás da estalagem “A Coroa”, tinha uma espécie de gruta estreita. Era onde ele guardava sua vaca, e costumava deixar que todos se espremessem lá dentro: a vaca, Jonas e seu rebanho. Não havia lugar para ninguém mais, mas o pastor não ligava nem um pouco por ficar espremido com suas queridas ovelhas. A vaca tinha boa vontade, sonhando talvez com a vinda da primavera, quando ela teria a gruta toda só para ela de novo, mas nesse meio tempo gostava do calor dos companheiros lanudos. O vento gelado e agudo do inverno soprava sem parar nas largas frestas da parede de madeira que fechava a entrada da gruta, mas logo seu frio perdia o poder nesse lugar pobre que abrigava homem e animais. De repente, o pastor despertou de seu sono, esfregou os olhos e olhou em volta espantado, reparando em cada detalhe o lugar que ele conhecia tão bem,

como se ele se tivesse tornado estranho no sonho: os muros desiguais de pedra que fechavam a gruta de três lados e formavam o teto, que estava preto de tanta fogueira que fora acesa ali; a parede de madeira desigual, na qual a porta se prendia em suas frouxas dobradiças e, embora não houvesse janela, as frestas na parede eram tão largas que, por elas, você podia ver o que se passava no pátio. Ele sentia a palha que cobria de leve a terra nua, e a manjedoura, que continha o feno para a vaca e os carneiros. “Sim, sim,” – ele murmurou por fim – “é nosso estábulo, apenas nosso estábulo.” E ele sacudia a cabeça sem acreditar. Onde Jonas pensava estar? O pastor pôs a mão pensativamente na cabeça de uma das ovelhas e começou a contar seu drama. Há quem pense ser tolice conversar com animais, porque eles não entendem nossas palavras, mas Jonas sabia mais, e naturalmente suas ovelhas também sabiam mais. Elas voltaram sua cabeça calmamente para ele e escutaram o som da voz profundamente calorosa, que lhe dava o sentimento de segurança e proteção. “Imaginem,” – contou Jonas – “eu estava num palácio, num palácio de ouro. Havia um quarto tão maravilhoso como eu nunca tinha visto igual: as paredes eram de puro ouro, o teto era como o céu, cheio de estrelas, o tapete como um jardim onde cresciam rosas e lírios. Ao mesmo tempo, a mais linda música estava sendo tocada pelos melhores músicos. No meio do quarto havia uma cama de quatro colunas com um dossel e o mais macio dos travesseiros. E, imaginem, eu dormi nessa cama de penas tão suave e confortavelmente como em asas de anjos. Subitamente eu ouvi um grito forte: ‘O Rei está chegando! Abram caminho.’ Um servo veio correndo e me disse, não, me pediu para sair do palácio e abrir caminho para

o Rei. ‘Ó Jonas’ – ele disse – ‘você fará isso pelo Rei, não?’ Então eu me

sentei, mas quando meus pés tocaram o chão, acordei. E agora desapareceu o palácio, e estou de novo aqui com vocês.” As ovelhas olhavam serenamente para o pastor com seus olhos escuros. Será que entenderam? Será que conseguiriam imaginar o belo quarto no palácio de ouro? Jonas passou mais uma vez a mão nos olhos. Mas o sonho não podia ser apagado. Ele permaneceu, e foi assim porque um anjo de Deus tinha feito o pastor sonhar por uma boa razão. Lá fora, o vento estava soprando sua melodia gelada. Jonas apertou mais o cobertor em volta dos ombros. Não, esta gruta certamente

não era um palácio. Mas era bom e quente estar ali entre as ovelhas com seus casacos de lã. “Nós temos sorte,” – Jonas afirmou – “temos sorte de poder estar juntos aqui. O inverno é um hospedeiro severo. É melhor ficar fora do seu caminho.” Então, ele espiou cuidadosamente pelas frestas da parede de madeira, porque ouviu vozes no pátio; a voz do estalajadeiro, um tanto barulhenta, mas não hostil, e a voz cansada de um velho. Jonas não viu nenhum deles, pois o sol já se havia posto; o mundo estava cinzento, e nada se distinguia direito. No entanto, subitamente, ele viu uma luz se aproximando, e o estalajadeiro batia na porta meio fechada, chamando suavemente, mas com insistência: “Jonas, Jonas, você está acordado?” “Sim, estou.” – respondeu o pastor abrindo a porta. O ar frio entrando lhe causou um arrepio. “Ó Jonas, meu bom amigo,” – disse-lhe o estalajadeiro – imagine, chegou mais gente. Não encontraram alojamento porque as casas estão lotadas. Eles estão cansados e fracos. Eu simplesmente não consigo mandá-los embora. Jonas, só por esta noite, leve suas ovelhas de novo para os campos. Elas têm um casaco quente e não vão congelar. Abra espaço para esta boa gente.” O pastor já não sentia mais o ar frio do inverno. Ele ouvira o estalajadeiro espantado. Seu sonho estava ali brilhando outra vez diante dele. “Bom estalajadeiro” – ele perguntou por fim respeitosamente – “é o rei que está procurando alojamento?” O estalajadeiro olhou para ele admirado, e balançou a cabeça duvidosamente, dizendo: “Que coisas confusas você diz às vezes, Jonas. O rei no meu estábulo! Não, não, são gente pobre, um velho e uma mulher jovem que espera um bebê.” Isso era exatamente o que o servo perguntara no sonho, o pastor se lembrava, mas tudo o que ele disse ao estalajadeiro foi: “Já vamos sair.” Então ele se voltou para as ovelhas e as chamou: “Venham, minhas queridas, temos de sair. Gente pobre necessita de nosso palácio.” Nem um pouco apressadas, mas com boa vontade, as ovelhas seguiram o chamado. Jonas pegou seu longo cajado de pastor e caminhou na frente do rebanho. Ele olhou bem para os estranhos ao passar por eles. Era verdade, o estalajadeiro tinha razão, não era um rei pedindo para entrar. Jonas viu um velho com sua barba se agitando ao vento e o rosto encovado vermelho de frio. E, num

burrinho magro, vinha sentada uma jovem com um manto de capuz, cujos olhos tristes e cansados olhavam de um rosto pálido. Não, era mesmo simplesmente gente pobre com uma terrível necessidade de abrigo. “Venham para os campos, minhas queridas! – chamou Jonas suas ovelhas, caminhando mais resolutamente pela neve. O frio não iria acabar com ele. Logo fora dos portões da cidade, fogueiras estavam ardendo, uma, duas, três, e havia outros pastores que tiveram de deixar lugares melhores que Jonas por causa do número enorme de gente que procurava alojamento. Eles se esquentavam em volta das fogueiras, e se alegravam com uma porção de guloseimas que alguns tinham trazido. Jonas foi muito bem recebido, e tanto conversaram e cantaram que ele logo esqueceu tudo sobre seu sonho, o estábulo e a gente pobre. Era tarde quando os homens se deitaram aconchegando-se entre as ovelhas. Logo estavam imersos num profundo sono de modo que não repararam na profunda e pacífica quietude que, de repente, dominou as redondezas. Só as ovelhas ergueram a cabeça e olharam firme e constantemente para o céu onde as estrelas brilhavam com muito mais claridade. Que será que elas viam? Primeiro, nada havia lá além daquela paz maravilhosa das estrelas. Mas, de repente, o céu pareceu abrir-se, e uma luz dourada inundava o mundo, uma luz diante da qual toda escuridão se retrai. Ao mesmo tempo, o ar se encheu de um canto muito doce. Os pastores acordaram e ficaram perplexos diante daquela claridade. Eles ouviram a notícia do nascimento da Criança divina, e o hino dos coros angélicos soou em seus corações: “Glória a Deus nas Alturas, e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.” Os pastores pularam e não sentiam mais frio nem cansaço. Eles queriam ver a Criança que era a causa de todo esse júbilo. A música celestial levou-os à cidade e ao estábulo. Vocês acham que Jonas reconheceu o estábulo, a gruta com muros escuros e a porta de madeira na frente? Oh, não, tudo parecia tão diferente, pois estava transformado pelo nascimento da criança divina. As paredes da gruta não estavam mais pretas, mas brilhavam como ouro, e o teto era uma abóbada como um céu estrelado, enquanto o chão era um tapete de rosas e lírios. Bem no meio sentava-se uma rainha ao lado de um berço dourado, e no berço, num travesseiro dourado estava deitado um pequeno bebê tão lindo e feliz que o coração dos pastores vibrou de tanta alegria.

Por muito, muito tempo, eles se ajoelharam diante da manjedoura. Primeiro ficaram bem quietos, depois rezaram e então cantaram suas canções de pastores, e deram para a criança divina o que eles tinham trazido. Quando os homens finalmente se levantaram e se despediram, Jonas não conseguiu deixar de pegar a mãozinha do bebê e beijá-la. E então ele ouviu claramente a criança dizer: “Muito obrigado, querido Jonas, por abrir espaço para mim.” O pastor ficou bastante confuso. Será que ele tinha ouvido as palavras, ou teria sonhado? Ele não sabia, o que não é de admirar. Quando o céu desce à terra e conseguimos vê-lo com nossos olhos, acho que não sabemos se estamos acordados ou sonhando. Por fim, Jonas teve uma vaga ideia de onde ficava o palácio dourado que ele tinha visto primeiro em seu sonho e depois, com seus próprios olhos naquela noite sagrada. Pois alguns dias mais tarde, quando o estalajadeiro lhe disse que já vagara lugar na gruta, e ele voltou com suas ovelhas para o abrigo no estábulo, as paredes estavam pretas e a porta de madeira estava desigual como sempre. Mas na manjedoura, sim, na manjedoura havia um travesseiro dourado. O pastor esfregou os olhos, bem confuso. Um travesseiro dourado? Oh, não, não era travesseiro, era o feno que brilhava num tom dourado, tão dourado como a própria criança celeste que havia deitado ali. Jonas nunca falou no assunto, e ninguém mais viu o ouro, só ele e talvez as ovelhas; elas, no entanto, guardaram o segredo tão bem quanto seu pastor. Algumas vezes, porém, quando Jonas estava deitado na palha dormindo, bem embrulhado em seu cobertor, via a criança de novo e a ouvia dizer: “Muito obrigado, querido Jonas, por abrir espaço para mim.”

O POÇO DA ESTRELA (Elisabeth Goudge)

No caminho de Belém há um poço chamado Poço da Estrela. Conta a lenda que os três sábios reis magos, em sua viagem em direção ao presépio, perderam de vista a estrela que os estava guiando. Parando no poço para dar água a seus camelos, encontraram de novo a estrela lá no fundo, refletida na água.

-IDavi estava sentado de pernas cruzadas num canto do quarto, separado das outras crianças, apertando os dedos do pé com suas mãos magras e morenas. Ele desejava ser rico, já crescido e forte, com os bolsos cheios de ouro, com milhares de camelos e dezenas de milhares de ovelhas. Mas ele não era rico. Era apenas um pequeno pastor maltrapilho, que nada tinha de seu no mundo a não ser a flauta de pastor pendurada no pescoço, a pequena flauta na qual ele tocava para si mesmo ou para as ovelhas o dia inteiro, e que lhe era tão cara quanto a própria vida. No momento ele estava muito infeliz. Suspirando, ele ergueu as mãos e as pôs no estômago, empurrando-o para dentro e sentindo um vazio com grande preocupação. Quando será que todos iam morrer de fome, e descansar por fim no seio de Abraão? Ele tinha certeza de que era um lugar muito bom e próprio para os avós e pessoas desse tipo, que estavam cansados de uma longa vida e prontos para se unir a seus antepassados; mas dificilmente seria o lugar de um menino que vivera só poucos anos neste mundo, que tinha visto poucas primaveras pintando de púrpura e vermelho as colinas com anêmonas, e só poucos verões com o sol girando majestosamente no céu. Ah, se fosse verão agora, em vez de uma noite fria de começo de inverno! Ah, se a mãe pudesse acender um fogo para esquentá-los, um fogo claro que pintasse de laranja e rosa a escura casinha de um aposento só, e afugentasse as sombras assustadoras. Mas ali não havia luz além da mortiça chama de uma lamparina com o óleo já no fim, posta no chão perto de sua mãe, onde ela se

curvava ao lado do marido doente, agitando-se sem cessar de um lado para o outro em sua aflição e esquecida das queixas de quatro crianças com fome e com frio menores que Davi, que estavam todas juntas em sua cama de esteira. Davi pensava que, se ele fosse rico, então não teria sido importante o fato de que as tempestades tivessem destruído a cevada, que a videira não tivesse dado uvas, ou que seu pai, o carpinteiro daquela pequena aldeia no alto da colina, não pudesse mais trabalhar. Nada disso teria importância se ele fosse rico e pudesse comprar comida e vinho e óleo e unguentos curativos; eles então seriam felizes, com comida no estômago, com o pai curado, e uma luz reconfortante nessa horrível escuridão do inverno. Como poderia ele ser rico? De repente, Davi se lembrou do poço dos desejos, lá embaixo, na estrada para Belém. Era um poço de água clara e brilhante, e diziam que quem ficasse junto dele à meia-noite e rezasse de coração puro ao Senhor Deus Jeová, teria seu desejo realizado. A dificuldade, naturalmente, era estar puro em seu coração. Diziam que, se você estivesse puro e seu pedido fosse aceito, você veria o desejo do seu coração espelhado na água do poço; o rosto de alguém que você amava, talvez, ou o ouro que salvaria seu lar da ruína, ou mesmo, assim murmuravam, a face do próprio Deus... Mas nenhum dos conhecidos de Davi tinha visto já alguma coisa, embora desejassem e rezassem vezes e vezes. Apesar disso, ele se ergueu de um pulo e, sem fazer barulho, arrastou-se pelas sombras até a porta. Ele não sabia se seu coração estava puro ou não, mas lhe daria o benefício da dúvida e desceria até o poço. Ele abriu a porta sorrateiramente e mergulhou na grande noite escura e fria. Num instante sentiu um medo terrível. Ao seu redor, estava a nua colina sob as estrelas, numa espera e numa solidão impressionantes, e bem lá embaixo os terraços de oliveiras, mergulhados numa sombra escura como breu. Mas o céu brilhava, tão enfeitado com miríades de estrelas, que parecia que o peso delas faria o céu cair e esmagar a terra em átomos. A solidão, a escuridão, o frio e o grande céu lá no alto amoleciam o coração de Davi e faziam seus joelhos tremerem de medo. Ele nunca saíra sozinho tão tarde da noite e não tinha coragem, faminto e gelado como estava, de descer a colina e atravessar a sombra das oliveiras até a estrada branca, onde diziam que havia ladrões emboscados e assassinos que lhe cortariam a garganta de um golpe e por puro prazer.

Então ele se lembrou de que justamente no topo de uma colina próxima as ovelhas de um rebanho se recolhiam num aprisco, e seus pastores com elas. Seu próprio primo Eli, que ensinava Davi a ser um pastor, estaria com eles, e Eli com certeza poderia deixar suas ovelhas com os outros pastores por um curto espaço de tempo e iria com Davi até o poço... Pelo menos, Davi pediria a ele. E começou a correr, uma pequena sombra passageira sob as estrelas, e corria depressa porque estava com medo... Pois ele achava que havia alguma coisa muito estranha naquela noite. A terra estava tão quieta, esperando por alguma coisa, e no alto o grande céu palpitava e flamejava. Enquanto corria, várias vezes ele podia jurar ter ouvido vozes triunfantes clamando “Glória a Deus! Glória a Deus!”, como se as próprias colinas estivessem cantando e o som esvoaçante de grandes asas estivesse soando sobre sua cabeça. Mas, quando ele parava para ouvir, não havia nada; só o frágil eco de uma flauta de pastor e o sussurro do vento nas colinas. Ele ficou feliz ao ver à sua frente o outeiro rochoso atrás do qual as ovelhas se abrigavam. “Eli,” – ele gritou chegando com três pulos – “você está aí? Jacó? Tobias? É Davi!” Mas não houve resposta dos pastores amigos, apesar de um suave balido de ovelhas; só aquela estranha quietude com a música triunfante por trás, que era ouvida, mas não era ouvida. Com seu coração batendo forte, Davi deu a volta e chegou à pequena cova no outeiro que era o aprisco das ovelhas, e seus olhos mergulhavam na escuridão para descobrir o vulto de seus amigos. Mas eles não estavam ali; ninguém estava ali a não ser um estranho alto com um manto, que estava sentado numa pedra entre as ovelhas e se apoiava num cajado de pastor... E as ovelhas, que conheciam seus próprios pastores e fugiriam de medo de um estranho cuja voz eles não conheciam, se ajuntaram à volta dele como se sentissem confiança e amor... Davi parou ali totalmente perplexo. “Boa noite para você!” – disse o estranho amavelmente – “Está uma noite linda.” Davi se aproximou com cuidado, esfregando o nariz de tanto espanto. Quem seria aquele estranho? As ovelhas pareciam conhecê-lo, e ele parecia conhecer Davi. Mas Davi não conhecia um homem com as costas tão eretas e com tão bela cabeça e uma voz profunda e sonora. Era um homem importante, sem dúvida; talvez um soldado, mas não um pastor.

“Boa noite,” – Davi respondeu educadamente, chegando mais perto – “Está uma linda noite, mas dá frio nas pernas.” “Pois então, venha para debaixo do meu manto” – disse o estranho, erguendo-o de modo que de repente parecia estender em volta de Davi grandes asas. O medo de Davi sumiu na hora, ele deu um passo e se aconchegou do lado do estranho, debaixo de seu manto, quente, protegido e sentindo uma felicidade sublime. “Mas onde estão os outros?” – ele perguntou – “Eli, Jacó e Tobias?” “Foram a Belém,” – disse o estranho – “foram a uma festa de nascimento.” “Uma festa de nascimento, e não me levaram?” – exclamou Davi bem indignado – “Que grosseria desses egoístas!” “É que eles estavam com muita pressa, porque foi tudo bem inesperado.” – explicou o estranho. “Então suponho que não tinham presentes para levar...” – disse Davi – “Eles vão ficar constrangidos sem presentes... Bem feito, por não me levarem.” “Eles levaram o que tinham,” – comentou o estranho – “um cajado de pastor, uma manta, um pão.” Davi bufou de desdém, depois bufou de indignação. “Eles não deviam ter ido.” – ele replicou, e na verdade era um terrível crime para os pastores abandonar suas ovelhas, com ladrões rondando nas sombras embaixo e já prontos para se apoderar delas. “Eles fizeram bem em ir.” – disse o estranho – “Eu fiquei no lugar deles.” “Mas o senhor é um só,” – objetou Davi – “e é necessária mais gente para enfrentar ladrões.” “Acho que sou equivalente a qualquer número de ladrões,” – sorriu o estranho. Ele fazia uma afirmação, não estava se gabando; e Davi se emocionou com a calma confiança de sua voz, com a força do braço que o envolvia e do joelho ao qual ele se apoiava. “Já lutou muito, meu grande senhor?” – murmurou Davi com um temor respeitoso. “Bastante,” – respondeu o estranho. “Lutou contra os bárbaros?” – murmurou Davi de novo. “Lutei contra o diabo e seus anjos” – respondeu o estranho, indiferentemente.

Davi por um momento ficou sem fala, mas conseguiu olhar para cima, e viu o rosto daquele homem que não se aterrorizava nem com ladrões nem com diabos. Ao vê-lo, não conseguiu tirar os olhos dele, pois nunca vira um rosto como aquele, ao mesmo tempo delicado e forte, cheio de poder e de ternura, claro como o céu da manhã e, no entanto, com as sombras de um mistério. Davi achou que se passou uma eternidade antes de conseguir falar de novo. “Quem é o senhor, grande cavalheiro?” – ele sussurrou por fim – “O senhor não é pastor.” “Sou um soldado,” – respondeu o estranho – “e meu nome é Micael... E você?” “Davi,” – murmurou o menino, e subitamente ele fechou os olhos, porque ficou ofuscado com o rosto acima dele... Se aquele homem era um soldado, devia ser um verdadeiro rei entre os soldados. “Diga-me aonde você vai, Davi.” – disse o estranho. Agora, que cada um tinha dito seu nome ao outro, Davi sentiu que eram amigos há muito tempo, e não lhe foi difícil contar sua história. Ele contou tudo; a doença de seu pai, as lágrimas de sua mãe, a fome dos filhos e a casa fria onde não havia fogo e o óleo da lamparina estava se acabando; sua vontade de ser rico para poder ajudar a todos, e a fonte dos desejos que realizaria o desejo daquele que tivesse coração puro. “Mas eu não pretendia descer até a estrada sozinho, o senhor sabe,” – ele terminou – “pois pensei que Eli iria comigo, e agora ele foi àquela festa de nascimento.” “Então você terá de ir sozinho.” – disse Micael. “Será que

as ovelhas não

ficariam bem sozinhas?”

– sugeriu Davi

delicadamente. “Certamente que não” – respondeu Micael com firmeza. “É claro que não estou com medo,” – gabou-se Davi e se aconchegou um pouco mais ao forte joelho do estranho. “É claro que não,” – concordou Micael, com entusiasmo – “Já reparei que os Davis são sempre corajosos. Como o rei Davi lutando com o leão e o urso quando ele era um simples pastorzinho como você.” “Mas o Senhor Deus Jeová o guiava e protegia,” – disse Davi. “E o Senhor Deus vai proteger você,” – disse Micael.

“Eu não sinto que Ele esteja me protegendo,” – objetou Davi. “Mas você ainda não se pôs a caminho,” – disse Micael e riu – “Como pode o Senhor Deus protegê-lo, quando ainda não há nada do que protegê-lo? Ou guiá-lo se você ainda não está na estrada? Vá agora mesmo, e depressa.” E, com um movimento gentil, mas implacável, retirou seu joelho debaixo das mãos postas de Davi, e ergueu seu manto de modo que este deslizou para trás com um movimento suave e farfalhante, como se grandes asas se abrissem de encontro ao céu... E o vento do inverno soprou frio enregelando o menino, que ficou, maltrapilho e descalço na escuridão da noite. “Adeus,” – disse a voz profunda de Micael – “toque sua flauta, se sentir medo, pois a música é a voz da confiança que o homem tem na proteção divina, e o dom da coragem é a voz de Deus respondendo.” Davi deu alguns passos adiante e de novo foi tomado pelo terror. Tornou a ver a erma colina e as sombras lá embaixo onde os ladrões se emboscavam. Ele olhou para trás, pronto para se abrigar de volta sob o forte braço de Micael e o calor de seu manto... Mas não conseguiu revê-lo nitidamente, viu só uma forma obscura que podia ser um homem ou uma sombra... No entanto, sentiu que Micael o estava observando, Micael, o soldado que não temia nem ladrões nem o diabo e seus anjos; então, subitamente, seu coração se tornou valente, e ele se virou para a frente e correu colina abaixo em direção ao vale.

- II – Apesar de tudo, o percurso foi muito inconfortável. Descendo a colina, ele cortou os pés nas pedras afiadas, caiu duas vezes e ralou os joelhos, e passando pelas oliveiras ele via ladrões se escondendo atrás de cada árvore. Às vezes ele ficava tão assustado que seus joelhos dobravam e ele suava de medo, mas outras vezes ele se lembrava do aviso de Micael e parava um minuto para tirar suaves notas de sua preciosa flauta, e aí ele ficava corajoso de novo e corria pelas sombras como se ele fosse aquele outro Davi enfrentando o leão e o urso... Mas, de qualquer modo, foi um percurso muito inconfortável, e ele deu graças quando, com um pulo final, chegou à estrada e viu a água do poço brilhando a pouca distância.

Ele se encostou no parapeito de pedra e olhou para ele seriamente... Água... Nessa terra, em que os meses de verão eram de seca e de um calor abrasador, a água era a coisa mais preciosa do mundo, a fonte de todo crescimento e purificação, a cura da doença, a preservação da própria vida. Não era de admirar que os homens viessem à água para rezar por um desejo, à água, confortadora e senhora da vida. “Eu o conforto, eu o conforto, meu povo.” Parecia a ele ouvir vozes no vento por entre as oliveiras, como se as próprias árvores cantassem, vozes que cantavam não para os ouvidos, mas para a alma. “Ele alimentará seu rebanho como um pastor: ele ajuntará os cordeirinhos com os braços e os carregará junto ao peito. Maravilhoso! Conselheiro! O poderoso Deus! O eterno Pai! O Príncipe da Paz!” Davi pensou que, certamente, se o Senhor Deus Jeová cuidava tanto dos cordeirinhos, também cuidaria de seu pai doente e de sua mãe que chorava e de seus irmãozinhos que passavam fome e, cobrindo o rosto com seus dedos morenos, rezou para o Senhor Deus para que ele pudesse ter ouro para comprar alimento e vinho e óleo para sua casa no alto da colina. E ele rezou com tanto fervor que esqueceu seus medos e o vento frio que atravessava seus farrapos; só viu o escuro de seus olhos fechados e só ouviu o sussurro de seu pedido desesperado. Então, suspirando um pouco tal como se fosse uma criança acordando de seu sono, ele deu uma espiada ansiosa na água do poço por entre seus dedos. Será que seu desejo seria atendido? Será que ele rezou de coração puro? Havia alguma coisa cintilando no poço? Ele tirou as mãos do rosto e se debruçou mais, com o sangue pulsando em seus ouvidos como um tambor. Sim, era ouro! Círculos de ouro na superfície da água, como se as estrelas tivessem pingado do céu. Com um grito de alegria ele se debruçou mais, com seu rosto bem em cima da água, como se ele tocasse com os lábios aquelas imaginadas peças de ouro, que prometiam cumprir seu desejo... Mas num instante seu grito de alegria virou um grito de terror, pois junto com aqueles pontos de ouro cintilando ele viu o reflexo do rosto de um homem escuro e barbado, com dentes e olhos brilhando, o rosto de um forasteiro. Então o Senhor Deus não o havia protegido. Então os ladrões o haviam apanhado. Ele olhou para a água com o maior pavor, deu a volta com um grito, pondo as mãos na garganta para protegê-la da faca do ladrão.

“Não grite assim, meu filho. Eu não vou machucá-lo.” O homem estendeu a mão e acalmou Davi com uma pequena batida em seu ombro. “Eu só olhei por cima de seu ombro para ver o que você estava olhando tão intensamente.” A voz

profunda,

bondosa,

estranhamente

atraente

com seu sotaque

estrangeiro, afugentou todo o medo de Davi... Aquele não era um ladrão... Sua respiração ficou mais calma, e ele enxugou o suor de medo de sua testa com suas mangas maltrapilhas, enquanto olhava, de olhos arregalados, a esplêndida figura daquele forasteiro diante dele. Ele era alto, não tanto quanto aquele outro estranho que ficou tomando conta das ovelhas na colina, e usava uma túnica púrpura com um cinto dourado. Na cabeça trazia um turbante verde ornamentado com peças de ouro que se sacudiam batendo umas nas outras em volta de sua face de nariz aquilino. Davi teve uma dor aguda de desapontamento, ao descobrir que o que ele vira na água era apenas o reflexo daqueles enfeites de ouro, e não a resposta de Deus à sua oração, e o espanto varreu todos os outros pensamentos de sua mente. Pois aquele caminho iluminado pelas estrelas, que dava no poço, que num instante atrás estava vazio, agora estava cheio. Enquanto Davi rezava, com os ouvidos alheios a qualquer som, uma resplendente caravana surgira durante a noite. Havia homens negros carregando tochas, camelos ricamente ajaezados e mais duas figuras esplêndidas de homens de fisionomia séria, mais ricamente vestidos que seu amigo. A luz das tochas brilhava em cores douradas, vermelhas, verde-esmeralda e azul-marinho, e o perfume de especiarias vinha no vento. Essa caravana devia ter pertencido a Salomão, pensou Davi, a Salomão em toda a sua glória... Certamente aqueles homens eram reis. Mas os camelos estavam com sede, e o primeiro rei, delicadamente, afastou Davi do poço para que eles pudessem beber. Contudo, ele conservou sua mão sobre o ombro de Davi e olhou para baixo, por cima dele, com um carinho régio. “E por que você estava olhando dentro do poço com tanto interesse, meu filho?” – ele perguntou. “Por causa do desejo do meu coração, grande senhor,” – suspirou Davi, nervoso, apertando sua roupinha esfarrapada com os dedos que tremiam de frio. “ Ah, então é um poço dos desejos?” – perguntou o estranho.

Davi respondeu: “Dizem que, se você rezar a Deus fazendo um pedido, estando com seu coração bem puro, e se Deus ouvir sua oração, você terá uma visão de seu desejo na água.” “E você viu o seu?” Davi balançou a cabeça e explicou: “O senhor chegou, e foi o senhor que eu vi.” Um dos outros reis, um velho de barbas brancas, num manto verde-mar, estava ouvindo sua conversa sorrindo. “Nós três perdemos uma estrela, meu filho,” – ele disse a Davi – Será que podemos achá-la no poço?” Davi pensou que fosse uma brincadeira, pois o que três senhores tão importantes podiam querer com uma estrela? Mas, quando ele olhou para cima naqueles velhos olhos voltados para os seus, ele viu preocupação e espanto. “Se seu coração estiver puro, grande senhor.” Uma sombra passou pela face do velho, e ele se voltou para o terceiro rei, um homem mais moço de pele sem barba e de olhos claros e alegres. “Gaspar,” – ele disse – você é jovem e puro de coração; olhe você.” Gaspar riu, seus dentes brancos brilhando em seu rosto moreno. “Ora, isso é uma lenda do povo,” – ele caçoou – “nós perdemos a estrela vinte vezes na noite e vinte vezes nós a achamos de novo. Por que procurarmos por ela agora num poço?” “Mas reze,” – disse o velho severamente – “reze e olhe.” Obedientemente, Gaspar andou até o poço, com seu manto vermelho ondeando à sua volta, e a espada curva que ele usava batendo do seu lado, dobrou a cabeça em oração e se debruçou na beira do poço. Só consigo ver uma parte do céu,” – ele murmurou – E cada estrela é igual à outra em sua glória. Não. Sim.” – ele parou e de repente deu um grito de triunfo – “Achei-a, Melquior! Ela brilha no meio do poço como o cubo de uma roda ou o centro de um escudo.” Ele ficou ereto, ergueu de volta a cabeça e estendeu os braços para o céu. “Ali! Ali!” – ele gritou, e Davi e os reis mais velhos, olhando, viram uma grande estrela brilhando sobre suas cabeças, uma estrela mais poderosa e mais gloriosa que suas estrelas irmãs, que a rodeavam como cavaleiros ao redor de um trono... E, enquanto eles olhavam, ela subitamente se moveu, passando pelo céu como um cometa.

“Olhem! Olhem!” – gritou Davi – “Um meteoro!” E ele dançou no meio da estrada para seguir seu voo. “Olhem! Está brilhando sobre Belém!” Os três reis estavam atrás dele, olhando para onde ele apontava, e viram no fim do caminho, levemente visível sob a luz das estrelas, esguios ciprestes crescendo acima dos telhados de uma pequena cidade sobre uma colina e, acima dela, a resplendente estrela. Gaspar, jovem e agitado, de súbito virou-se e começou a chamar os servos para que trouxessem os camelos, mas os dois reis mais velhos ainda ficaram parados, olhando. “Seja louvado o Senhor Deus,” – disse o velho rei tremulamente, e ele curvou a cabeça e cruzou as mãos sobre o peito. “Belém,” – disse o rei que era amigo de Davi – “o fim de nossa jornada.” Sua voz exprimia um infinito cansaço e, pela primeira vez, ocorreu a Davi que aqueles grandes senhores tinham vindo de muito, muito longe. Suas belas roupas estavam sujas da viagem, e seus rostos mostravam uma grande fadiga. Com certeza eles deviam ser meio lunáticos; nenhum homem bom da cabeça, ele pensou, viria de tão longe para visitar um lugarzinho tão sem importância como Belém; nem estariam tão apreensivos por terem perdido de vista uma estrela. No entanto, Davi gostou deles e não queria ficar sem sua companhia. “Eu vou levá-los a Belém” – ele exclamou, e se pôs a caminho com largas passadas, como se fosse muito difícil e perigoso guiá-los pelo curto caminho que levava a uma cidade visível a olho nu. “Então,” – riu o rei seu amigo – “você vai puxar meu camelo e será o líder da caravana. Davi se moveu agitado de um pé para o outro. Ele nunca havia dirigido um camelo, pois só homens ricos tinham camelos. Ele não se conteve e deu um gritinho agudo de alegria, enquanto um daqueles animais enfeitados veio para a frente e se ajoelhou diante dele; um gritinho que acabou de repente quando o camelo virou a cabeça e o olhou vagarosamente e com desdém, levantando seu beiço superior e mostrando seus dentes com tanto desprezo que Davi ficou vermelho até a raiz do cabelo e só se recuperou depois de sentado na almofada dourada diante de seu amigo, seguro pelo seu braço, balançando para cima em direção às estrelas quando o camelo ficou de pé novamente.

- III – Foi um dos melhores momentos daquela noite maravilhosa, quando Davi se viu gingando perto dos ciprestes de Belém, dirigindo uma caravana. Ele ficou tão feliz que pôs a flauta nos lábios e tocou a alegre melodia que os pastores tocavam nas colinas desde a aurora do mundo, e era uma melodia tão contagiosa que os homens que vinham atrás começaram a cantarolá-la enquanto balançavam sob as estrelas. “Faz bem cantar durante uma viagem, grande senhor,” – disse Davi, quando parou de tocar – “pois a música é a voz da confiança do homem na proteção de Deus, assim como o dom da coragem é a voz de Deus respondendo.” “Você vai levando aí uma criança sábia, Baltasar,” – disse o velho Melquior, que vinha logo atrás em seu camelo. “Não fui eu quem inventou essas palavras.” – respondeu Davi, honestamente – “Foi um homem lá no alto da colina que me disse. Um homem que veio cuidar das ovelhas, para que Eli e os outros pastores pudessem ir com seus presentes a uma festa de nascimento em Belém.” “Então esta noite todo mundo está levando presentes a Belém?” – perguntou Baltasar delicadamente – “Homens do deserto com seus mistérios, pastores das colinas com suas simplicidades e um menino com o dom da música.” “Quer dizer que todos estão indo ao mesmo lugar?” – perguntou Davi seriamente – “Vocês também vão à festa do nascimento? E eu estou indo com vocês? Eu também?” “Um rei nasceu,” – disse Baltasar – “Nós vamos adorá-lo.” Um rei? O mundo parecia cheio de reis nessa noite, e reis fazendo as coisas mais inesperadas, também, guardando ovelhas no monte, transitando pela estrada principal, sujos e cansados da viagem. Nessa maravilhosa noite cheia de confusão, nada o surpreendia nem mesmo a notícia de que a festa de nascimento era a de um rei; mas ficou desolado ao perceber que ele mesmo não estava apto para ir... Pois como poderia entrar num grande palácio com as roupas em trapos e de pés descalços e sujos? Não deixariam que ele entrasse. Poriam cães atrás dele. O desapontamento desceu sobre ele em ondas de desgosto. Cerrou os dentes para

não chorar, mas mesmo assim duas lágrimas grandes escaparam traçando dois sulcos em seu rostinho sujo. Ele nem se deu conta da chegada a Belém, pois tinha conservado a cabeça abaixada com receio de que Baltasar pudesse ver suas lágrimas. Subitamente, olhando para cima, ele viu os brancos muros da pequena cidade justo ali à sua frente, os ciprestes tais como espadas apontadas para o céu e aquela estrela brilhando logo acima deles, tão clara como uma lanterna pendurada do céu por um cordão. Os portões da cidade estavam bem abertos, e eles entraram sem impedimento, o que surpreendeu Davi até que ele se lembrou de que era a época do recenseamento, e Belém devia estar cheia de gente que tinha vindo para se registrar. Nessa noite, eles não precisavam temer ladrões, pois nos muros havia vários camponeses fortes com facas nos cintos e agilidade nos punhos. Os visitantes ainda estavam andando por ali, pois enquanto eles subiam a rua principal da pequena cidade da colina, Davi podia ver linhas de luz brilhando sob as portas e ouvir risos e vozes atrás deles... E o que ele achou uma coisa boa é que, em qualquer outra época, a chegada dessa estranha caravana na calada da noite podia ter causado algum distúrbio... O Senhor Deus, ele pensou, tinha arranjado as coisas de modo bem conveniente para eles. “Em que direção estamos indo?” – perguntou, agitado, ao seu rei. “Na direção da estrela,” – respondeu Baltasar. Davi olhou para cima e viu que a estrela se movia agora para a direita, e eles também, obedientemente desviaram para a direita e subiram uma estreita ruela onde casas tinham sido construídas sobre grutas de calcário. Cada casa era a moradia de uma família pobre que recolhia seus animais na gruta embaixo e morava naquele quartinho em cima alcançado por alguns degraus de pedra. “O rei não pode estar aqui!” – disse Davi com desagrado, enquanto a caravana, numa fila só, seguia seu caminho por aqueles refúgios na ruela – “Só gente pobre mora aqui.” “Olhe!” – exclamou Baltasar, e Davi, olhando, viu que a estrela estava bem baixa, sobre uma casinha no fim da ruela, e que um clarão de luz passava por seu telhado. “A estrela está cometendo um erro” – afirmou Davi – “se ela acha que um rei pode nascer num lugar destes.”

Mas ninguém ligava para ele. Uma grande reverência parecia ter envolvido os três reis e uma gratidão muito profunda para expressar em palavras. Em silêncio, a caravana parou fora da casinha no alto da ruela e, em silêncio, os servos rodearam os camelos para que eles se ajoelhassem, e ajudaram seus senhores a descer deles. Davi foi posto no chão por um robusto núbio, cuja face negra brilhava à luz da tocha como ébano e que ficou de pé ao lado observando, como se a reverência que envolveu os reis se comunicasse a ele e como se a cena se estampasse em sua memória para sempre... A luz da tocha e da estrela acentuavam as ricas cores das roupagens dos reis, clareando seus rostos morenos, embora uma luz interior os iluminasse; houve um movimento entre os servos, enquanto três se adiantaram trazendo três cofres de ouro, com perfume de especiarias e tão ricamente adornado com joias, que a luz parecia brilhar nelas como pontos de fogo. Os cofres foram respeitosamente entregues nas mãos dos reis... Eram os presentes do nascimento, pensou Davi, as riquezas citadas por Baltasar, e ele olhou às pressas para a pequena casa construída sobre o estábulo, sem acreditar que tal riqueza pudesse entrar por uma portinha tão humilde. Mas a porta no alto dos degraus de pedra estava fechada, e nenhuma luz brilhava por baixo ou vinha da janela. Só uma luz havia ali. A que se via através da mal encaixada porta que fechava a gruta embaixo, e foi para essa que Melquior se voltou, batendo de leve na madeira velha e curvando a cabeça para ouvir a resposta. “Mas isso é o estábulo!” – murmurou Davi – “Ele não poderia estar aí!” Mas ninguém lhe respondeu, pois a porta se abriu, e os três reis, com seus longos dedos escuros curvados sobre seus presentes, passaram para o interior iluminado, e a porta se fechou suavemente atrás deles, deixando Davi de fora na noite, com os estranhos servos negros e os arrogantes camelos. Mas sua curiosidade era muito forte para que ele sentisse medo. Havia um buraco na porta embaixo e, ajoelhando, ele espremeu seu rostinho sujo na madeira e espiou por ali. É claro que não havia rei algum ali; ele tinha dito que não podia haver, e não havia; olhando para lá dos reis, ele viu que ali só havia o estábulo com animais e umas pessoas, gente pobre como ele. Os animais, um burrinho com as costelas ressaltando na pele, e um velho boi, cujos ombros traziam a marca da canga que carregou por duros anos a fio, estavam presos à parede da gruta com correntes de

ferro, mas ambos voltaram as cabeças sonolentas para a manjedoura cheia de feno e para um homem de barba grisalha que segurava uma lanterna e uma mulher com o rosto pálido e cansado, envolta num manto azul, que estava no chão recostada na parede... Mas, embora ela estivesse tão cansada, sorria para os homens que se ajoelhavam juntos na dura terra da gruta, e seu sorriso era o mais amoroso e acolhedor que Davi jamais vira. E, quando ele viu para quem ela estava sorrindo, reconheceu Eli, Jacó e Tobias, ajoelhados, com a cabeça inclinada e as mãos juntas em atitude de adoração. E diante deles, no duro chão e em frente à manjedoura, eles tinham posto seus presentes: o cajado de pastor de Eli, que fora de seu pai, o agasalho de Jacó, feito com lã de cordeirinhos ao qual ele dava muito valor, e a forma de pão de Tobias, que ele sempre comia no meio da noite quando guardava as ovelhas, nunca repartindo com os outros por mais que pedissem. E, ao lado desses homens humildes, ajoelhavam-se os reis em sua glória, e ao lado dos presentes simples estavam os três cofres perfumados, como se não houvesse barreira entre ricos e pobres, e nenhuma diferença em valor entre lã e pão, ouro e joias. Mas que havia naquela manjedoura que todos se debruçavam sobre ela? Davi olhou melhor pelo buraco e viu, com espanto, que havia um bebê ali, um pequeno bebê recém-nascido envolto em faixas. Davi não costumava se interessar nem um pouco por bebês, no entanto aquele o atingiu com tamanha reverência, que ele fechou os olhos e inclinou a cabeça, como se ele tivesse ficado ofuscado pela visão de um rei com olhos resplendentes sentado num trono cercado por um arco-íris. Quer dizer que esse era o rei, esse pequeno bebê deitado numa manjedoura de pedra rude, num estábulo... O que chocava Davi é que de todos os extraordinários locais onde

ele

vira reis naquela noite,

este

era o mais

extraordinário de todos... E então ele sentiu grande alegria. Na viagem até ali, ele tinha chorado porque achou que um menino descalço e sujo não poderia comparecer à festa de nascimento de um rei, mas certamente ele poderia ir a uma festa de nascimento num estábulo. Ele ficou de pé, tirou o pó dos joelhos, puxou para baixo seus trapos, pôs a mão no trinco da porta e deslizou para dentro furtivamente. Parando na sombra da porta, Davi refletiu que não tinha presente para dar. Nada possuía de seu a não ser sua querida flauta de pastor, que ele não daria de modo algum, pois ele a amava tal como amava sua própria vida. Silencioso como

um ratinho, ele já ia se virar para sair de novo, quando subitamente a mãe com o manto azul, que devia ter sabido o tempo todo que ele estava ali, ergueu sua face e sorriu para ele, um sorriso resplandecente, cheio de promessas, e ao mesmo tempo o homem com a barba grisalha abaixou um pouco a lanterna, de modo que parecia que toda a manjedoura estava envolta pela luz, com aquele bebê no centro da luz como o próprio sol. E, de repente, Davi não conseguia mais ficar na sombra, assim como não poderia ficar numa casa abafada quando o sol brilhava. Nenhum sacrifício era grande demais, nem mesmo o sacrifício da pequena flauta de pastor, que era tão cara para ele como sua vida, se ele pudesse ficar naquela luz. Ele correu para frente, empurrando rudemente para conseguir um lugarzinho entre Baltasar e Tobias, e depositou alegremente sua flauta de pastor no chão diante da manjedoura, entre o cofre cheio de pedras preciosas de Baltasar e a humilde forma de pão de Tobias... Ele era muito pequeno para compreender, ao se ajoelhar e cobrir o rosto com as mãos, que aquelas dádivas de aniversário, que estavam ali enfileiradas, simbolizavam tudo o que um homem necessita para sua vida na terra; um agasalho como abrigo, uma forma de pão como alimento, um cajado de pastor para o trabalho, e um instrumento musical para dar coragem ao tocá-lo; e as outras dádivas de ouro e joias e especiarias simbolizavam as ricas qualidades da realeza, do sacerdócio e da sabedoria, que estavam além da compreensão humana. “Homens sábios do deserto com seus mistérios,” Baltasar tinha dito. “Pastores das colinas com suas simplicidades e um menino pequeno com o dom da música.” ... Mas Davi, espiando por entre os dedos o bebê na manjedoura não pensou em nada, só sentiu, e o que seu espírito vivenciou foi exatamente o que seu corpo sentiu quando ele dançou pelas colinas no primeiro dia do ano de luz e calor do sol; o calor foi despejado dentro dele, e a saúde, a força e a própria vida. Ele tirou as mãos do rosto e contemplou vezes e vezes a criancinha, e todo o seu ser emanava adoração.

- IV – E então, aquilo tudo se passou, e Davi se encontrou fora de Belém, andando na poeira atrás de Eli, Jacó e Tobias, com os pés doloridos, exausto e impaciente. “Onde está o meu camelo?” – ele perguntou com importância – “Ao ir para Belém, eu era o líder de uma caravana e tinha comigo três grandes senhores, com servos e tochas”. “Bem, agora eles não estão mais com você,” – disse Eli – “Os grandes senhores ainda estão em Belém... E, quando Jacó, Tobias e eu vimos você lá no estábulo, tivemos pressa de levá-lo para casa, para sua mãe, seu malandro.” “Não quero a mãe,” – resmungou Davi – “Quero meu camelo.” Eli olhou sobre o ombro o mal-humorado garoto que vinha nos seus calcanhares. Seria o mesmo que havia ajoelhado no estábulo, embevecido em adoração? Que rápida pode ser a queda do êxtase! “Cale a boca, meu filho,” – pediu ele – “e apresse o passo que preciso voltar para minhas ovelhas.” “Ora!” – disse Davi rudemente e, de propósito, ficou para trás. E ficou para trás com tanta determinação que, quando chegou ao poço, viu que estava sozinho de novo. O poço! Ao vê-lo, lembrou-se de sua desesperada promessa. Dessa aventura noturna, ele não ganhara nada. Lá no alto da colina ficava a casinha com seu pai doente, sua mãe chorando e seus irmãos e irmãs menores com fome, e ele voltaria para casa nem um pouco mais rico que quando saíra... Mais pobre, de fato, pois não tinha mais sua flauta de pastor, seu maior tesouro, que ele dera, num momento que agora lhe parecia momento de loucura... Agora ele não tinha nada, nada no mundo. Ele se deixou cair no chão, na grama junto ao poço, e chorou como se seu coração se quebrasse. O total amortecimento da hora antes da madrugada pesava sobre ele como uma mortalha, e o frio o entorpecia da cabeça aos pés. Sentiu-se mergulhar cada vez mais em algum mar negro da miséria, e só quando chegou ao fundo é que o conforto lhe veio. Seus soluços cessaram, e ele ficou de novo consciente da terra, debaixo da grama onde ele estava, terra dura e fria, mas que o sustentava com uma força viva. Ele pensou nos terraços das oliveiras logo acima e nas grandes e nuas colinas que subiam, e aí ele se lembrou das vozes que ouvira cantando no vento lá no alto,

e cantando embaixo entre as árvores, e de repente achou que ouvia vozes na grama, vozes leves que eram como as vozes de todas as coisas que cresciam, grãos e flores e grama. “Aqueles que semeiam em lágrimas, colhem em alegria,” – elas sussurravam – “Aquele que sai e chora levando preciosa semente, volta feliz, trazendo consigo os feixes da colheita.” (*) Ele se levantou, com a coragem refeita, debruçou no poço, a água prateada agora com a luz da madrugada. Ele não rezou para ser rico, nem procurou na água a imagem do seu desejo, ele simplesmente entrou no poço para se lavar. Pois não queria aparecer diante de sua mãe com o rosto sujo e marcado de lágrimas... Se ele não podia voltar para casa com os bolsos cheios de ouro e milhares de camelos e dezenas de milhares de ovelhas, então pelo menos chegaria com o rosto animado para confortar a todos. Como todo garoto pequeno, Davi tomava um banho barulhento, e decerto foi o som de seu mergulho que o impediu de ouvir os passos de um camelo na estrada; nem a superfície da água, agitada por seu banho, lhe mostrou o reflexo do homem de pé atrás dele; era preciso que a água ficasse quieta e lisa para que ele visse a face morena com os enfeites dourados balançando. Quando ele viu, piscou os olhos por um momento sem acreditar, e se virou com um grito de alegria. “Então! Pensou que eu me esqueci de você, meu filho?” – disse Baltasar sorrindo – “Eu não esqueceria um excelente líder da caravana. Quando você deixou o estábulo, eu o segui o mais depressa que pude. Olhe só o que eu tenho para você.” Ele entregou a Davi um saquinho, e o garoto, abrindo-o, viu à primeira luz da madrugada o brilho de moedas de ouro... muitas moedas de ouro, que bastariam para adquirir remédios e unguentos curativos para seu pai, e alimento e calor para todos por um longo tempo... Ele não tinha palavras para expressar sua gratidão, mas o rosto que ele mostrou a Baltasar, com olhos arregalados e a boca aberta, já era por si só uma exclamação de louvor. Baltasar riu e bateu em seu ombro. “Quando vi você dar sua flauta de pastor ao pequeno rei,” – ele disse – “eu não quis que você voltasse para casa de mãos vazias... Acho até que foi o pequeno rei que pôs essa ideia em minha cabeça... Agora, preciso voltar para o meu país, e você para sua casa, mas nós não vamos nos esquecer um do outro. Adeus, meu filho!”

Enquanto subia por entre as sombras das oliveiras, Davi nem teve medo de ladrões, pois estava feliz demais. Ele achou que as árvores estavam cantando de novo, e que o vento da madrugada as acompanhava. “Console-se, console-se, meu povo,” – elas cantavam. E, quando ele saiu da região das árvores e viu o caminho das colinas com as cores rosa e lilás da madrugada, parecia que as próprias colinas estavam exclamando “Glória a Deus!”

.............................................................................................................. (*) – do Salmo 126 de Davi.

OS PASTORES (a mais antiga lenda da Espanha – Ruth Sawyer)

Para vocês, que comemoram o Natal e outras datas sagradas, aqui está uma história natalina sobre Deus, sobre o bem. Ela começa quando o mundo foi criado. No princípio, Deus tinha dois arcanjos favoritos: um se chamava Lúcifer, que significa Luz, e o outro era Micael, que significa Força. Eles dirigiam os exércitos celestes; um ficava à direita e outro à esquerda do trono de Deus. Eram seus mensageiros principais. O arcanjo Micael servia a Deus com todo o seu coração e sua alma angélica. Não havia tarefa que fosse grande demais para ele executar, nem que durasse mil anos. Já o arcanjo Lúcifer não gostava de servir nenhum poder que fosse mais alto que ele mesmo. E como cada mil anos era como se fosse um só, ele começou a servir com amargura e com ciúmes de Deus. Chegou a época em que Deus tinha de criar o Universo. Ele fez o sol, a lua, as estrelas. Fez a terra e a água e as separou. Fez árvores, flores e ervas que cresciam; fez criaturas para andar pela terra e comer plantas; fez aves para o ar e peixes para as águas. E, depois que tudo isso foi criado, ele fez um homem e lhe

deu o nome de Adão, e uma mulher que ele chamou Eva. Levou seis dias celestes para criar esse Universo; e no fim ele estava cansado e descansou. Enquanto a Criação decorria e Deus estava tremendamente ocupado, Lúcifer vagou furtivamente pelo Céu. Ele falou com um anjo, com outro, murmurando, murmurando. Falou com querubins e serafins, com todos que lhe podiam dar atenção. E o que ele murmurava era: “Por que Deus deve ser o regente supremo? Por que só ele deve criar e dizer o que deve ser criado? Nós somos poderosos. Também merecemos reinar. Que vocês acham?” Assim ele murmurou durante os seis dias da Criação. E, quando Deus descansou, Lúcifer comandou um exército de anjos rebeldes contra Deus; eles brandiram espadas flamejantes e sitiaram o trono de Deus. Mas o arcanjo Micael também brandiu sua espada flamejante; ele comandou os anjos leais a Deus, para que defendessem o Céu. O exército de Lúcifer foi desbaratado, e seus capitães foram postos diante do trono de Deus como prisioneiros. E Deus disse: “Eu não posso tirar suas vidas, pois vocês são seres celestiais. Mas vocês não serão mais considerados como exércitos de luz, mas sim exércitos das trevas. Você, Lúcifer, ficará com o nome de Satã. Você e os que se rebelaram devem procurar um reino em outro lugar. Mas minha lei é que deixem em paz a Terra, que eu acabei de criar. Não prejudiquem meu trabalho.” Assim Deus falou. Assim Lúcifer foi banido com seus seguidores; e daí por diante foi conhecido como Satã. Ele estabeleceu um reino debaixo da Terra e o chamou de Inferno. Mas, como Deus lhe havia ordenado que não tocasse na Terra, ele logo ambicionou a Terra para si mesmo. Mandou espíritos para tentar e maltratar os que nasciam na Terra. E assim aconteceu que o povo da Terra conheceu afinal o poder do mal assim como o do bem; eles sentiram o longo alcance das trevas mesmo quando erguiam os olhos para a Face da Luz. E agora os anos tornaram-se milhões. A Terra foi povoada em seus quatro cantos; e Deus olhou para ela e ficou triste. Ele chamou o arcanjo Micael e lhe disse: “O poder de Satã sobre a Terra tornou-se grande. Meus anjos não podem mais predominar. A destruição, a ganância, o ódio reinam em meu povo na Terra que criei. Seus corações se tornaram escuros com o mal, seus olhos não veem mais a luz. Preciso mandar à Terra meu próprio espírito, para que o mal seja derrotado. Ele será concebido no Céu e nascido na Terra, ninguém menos que meu próprio Filho amado.” Assim Deus falou.

A Terra tinha sido dividida em países, alguns grandes e poderosos, outros pequenos e fracos. E os poderosos avançavam com seus exércitos e dominavam os fracos. Um dos países dominados se chamava Judeia. Em suas colinas, suas oliveiras, seus pastos e seus rios, os homens tinham construído uma pequena cidade chamada Belém – a cidade do Rei Davi. E os conquistadores romanos ordenaram que, da tribo de Jessé, todos tinham de vir e pagar tributo a César. Além da cidade, nas altas pastagens, muitos pastores tomavam conta de suas ovelhas. E aconteceu que Deus escolheu Belém para ser o lugar onde ia nascer seu Filho; e que devia ser na época do ano em que se pagaria o tributo. E Deus escolheu os pastores para receberem a notícia desse nascimento, porque eram pessoas simples em sua fé e tinham coração puro. E foram mandados anjos para que cantassem dando a boa notícia. Já era de noite. No alto, nas pastagens, os pastores acenderam fogueiras para se manter aquecidos, e também para espantar lobos e ladrões. Todos os pastores adormeceram, menos Estêvão, o garoto. Ele viu o anjo, ouviu a notícia e, na mesma hora, acordou os que estavam dormindo: “Acordem! Agora mesmo um anjo apareceu cantando! Acordem, acordem todos! Acho que esta noite vai ser muito importante para nós!” Nessa hora, Satã estava no portão do Inferno, perturbado por uma sensação de destruição iminente. E, olhando na direção da Terra, viu o anjo aparecer. Então ficou mais perturbado e amedrontado. Convocou seu exército e ordenou que ficassem de prontidão. “Hoje, acho que vamos de novo desafiar o poder de Deus sobre o Universo. Vamos lutar pela posse da Terra. Vou até lá agora. Venham quando eu atingir o chão. Rapidamente, Satã alcançou a Terra vestido como um andarilho segurando um cajado, com um chapéu de abas largas na cabeça e um manto nos ombros que se arrastava no chão. Atravessou a Terra assim como um relâmpago cruza o céu. Ora estava aqui, ora estava lá e assim chegou às altas pastagens da Judeia e ficou junto a uma das fogueiras onde os pastores estavam. O anjo veio de novo e clamou: “Não tenham medo! Pois hoje, na cidade de Davi, nasceu para todos o Salvador, o Messias!” Satã cobriu o rosto e perguntou: “Que significa essa mensagem?” Os pastores responderam: “Não sabemos.” “Quem é esse Salvador, esse Messias?”

“Não sabemos.” Satã deixou cair seu manto, e seus olhos brilhavam como fogo: “Eu ordeno que vocês saibam!” Então Benedito, o pastor mais velho, perguntou: “Em nome de Deus, quem é você?” E Satã respondeu: “Eu sou um viajante andarilho. Já tive um poderoso reino que me foi tomado. Estou aqui para recuperá-lo.” Seria esse o Salvador que os anjos cantavam? Os pastores se ajuntaram e olharam. Mas todos sentiram muito medo. Aquele andarilho era só escuridão; nele só havia mal, e nenhum bem. Ele era alguém que havia negado o nome de Deus. Juntos os pastores gritaram: “Vá embora já!” Eles brandiram lenha da fogueira e agitaram formando cruzes de fogo entre eles e Satã. Enquanto conversavam uns com os outros depois disso, Estêvão, o garoto, tinha ido longe procurar umas ovelhas desgarradas. Satã o viu e exclamou: “Você ouviu o anjo cantar. Onde é essa cidade de Davi?” “Eu não sei.” “Quem é esse Messias?” “Você está falando de Matias?” – o garoto estava tonto de medo – “Do irmão de minha mãe, um pastor sábio e amigo? Ele está doente, e eu estou cuidando de suas ovelhas.” “Idiota! Estúpido! Bobo!” A voz de Satã subiu como um redemoinho. “Na sua grande estupidez você pecou contra mim, e isso é mais terrível que pecar contra Deus. Por isso, você vai morrer!” O menino tentou abrir a boca para pedir misericórdia. Mas, antes que falasse, antes que a mão de Satã pudesse matá-lo, do vasto espaço do Universo desceu entre os dois alguém com uma espada de fogo, e da vasta cúpula do Céu ouviu-se uma voz dizendo: “Você não pode matar um inocente!” Era a voz do arcanjo Micael. Ali estava ele, em sua armadura brilhante, ao lado de Estêvão, protegendo-o com sua espada. E disse ainda: “Como você se atreve a desobedecer a lei de Deus!” “Eu me atrevo a mais do que isso;” – zombou Satã – “pois a Terra não é mais de Deus, mas sim minha. Meus subordinados a regem. Mas esta noite eu vou lutar por ela com você. Vou livrá-la de você pela lei da espada e dos poderosos exércitos.”

Ele bateu com o pé no chão, e a terra fendeu. De suas entranhas saíram fileiras de diabos brandindo espadas de lâmina dupla, forjadas no fogo do Inferno. Então Micael, com sua espada, criou uma escada, tal como a escada de Jacó, que foi construída entre a Terra e o Céu. Por esse caminho brilhante vieram fileiras de guerreiros celestes. Pelo céu afora se ouviu o grito “Combate!” Então, a batalha entre os exércitos das trevas e os da luz foi tão forte como nunca houve desde o começo da Criação. E a espada de Micael prendeu Satã no chão de modo que ele não se podia levantar; e o exército de Micael pôs o de Satã em fuga, de modo que a crosta da Terra se abriu e o engoliu em chamas. E, quando a Terra se livrou deles, Micael disse a Satã: “Você perguntou a muitas pessoas esta noite quem é o Salvador, o Messias. E eu lhe respondo que ele é o Filho de Deus e do Homem. Ele é Paz. Ele é Amor. Sobre ele seu mal não consegue prevalecer. Pois ele é o maior depois de Deus.” A face do arcanjo Micael brilhou com a luz da conquista celeste, que era só bondade e força. E Satã, rastejando com seus pés, olhou para cima com ódio e disse: “Fui derrotado agora. Mas espere outros mil anos ou dois mil anos!” Enquanto isso, o menino Estêvão observava. E, quando Satã rastejou para o Inferno, Micael ordenou a Estêvão que conduzisse os pastores a Belém, para que pudessem olhar o rosto do Salvador e adorá-lo. E, quando o menino se juntou aos pastores em volta das fogueiras, o anjo voltou pela terceira vez com uma multidão de seres celestes, louvando a Deus e cantando aleluias! E acima de tudo brilhava uma estrela de magnitude nunca vista. Mas, de muitos que cuidavam de seu rebanho naquela noite, só poucos prestaram atenção. Eles se envolveram em seus mantos e seguiram o menino Estêvão. Este ia apontando a beira da estrada, guardada por fileiras de anjos em armaduras luminosas. Mas ninguém os via a não ser o menino. Contudo, reinava grande alegria em todos os corações, de tal modo que todos os pastores sentiam necessidade de cantar. Benedito, o mais velho, deu os primeiros versos: A estrela mostrará onde o Salvador está. André então tomou fôlego e cantou: Todos cantando, seja quem for, porque nasceu o Salvador!

Miguel também ergueu a voz: Boa vontade toda gente sentirá eternamente! Carlos devolveu a canção com alegria: Que haja amor e paz serena em nações grandes e pequenas. O próprio Estêvão deu as últimas palavras da canção quando iam chegando ao estábulo: Cada pastor está cantando, o mundo todo se alegrando. Glória! Glória, cantarei a nosso Salvador e Rei. A grande estrela iluminou todo o caminho que dava no estábulo. Lá eles encontraram uma jovem muito linda e, na manjedoura a seu lado, uma criança recém-nascida. Benedito perguntou à jovem: ”Qual é seu nome?” “Eu me chamo Maria.” “E a criancinha?” “Chama-se Jesus.” Benedito se ajoelhou: “Bebê Jesus, os anjos nos mandaram adorá-lo. Trouxemos nossos presentes de pastores pobres. Aqui está um franguinho para você.” Benedito o pôs na palha ao lado da criança, depois se levantou e chamou: “André, agora é sua vez.” André se ajoelhou: “Eu, André, trago-lhe um cordeirinho.” Pôs ao lado do franguinho, levantou-se e disse: “Miguel, dê seu presente.” Miguel ajoelhou-se: “Eu lhe trouxe uma cestinha de figos, pequenino. Carlos, agora é sua vez.” Carlos ajoelhou-se com umas flautinhas de pastor na mão. “Eu mesmo fiz estas flautinhas. Quando você crescer, poderá tocá-las. João, e você?” João se ajoelhou: “Aqui está este queijo, um bom queijo de leite de cabra.” Cada pastor se ajoelhou e deu seu presente até que chegou a vez de Estêvão: “Ah, bebê Jesus, eu pouco tenho para lhe dar. Mas aqui estão as fitas do meu chapéu. Você gosta delas, não? E agora eu lhe faço esta oração: Abençoe a todos os pastores. Ajude-nos a ensinar as pessoas o amor por coisas simples que

estão em nossos corações. Ajude-nos a ver sempre a estrela que lembra seu nascimento.” Depois de feita esta oração e depois que todos deram seus presentes, os pastores saíram pela noite afora, cantando.

A LENDA DA PRIMEIRA ÁRVORE DE NATAL (de Elizabeth Goudge)

Naqueles dias, havia árvores dentro e em volta de Belém. Havia espirradeira e amendoeira nos jardins, parreiras e oliveiras nos terraços da encosta, carvalhos, amoreiras, figueiras e limoeiros. Não cresciam de modo a formar bosques ou florestas intrincadas, mas formavam um véu de beleza na secura da terra e faziam com que os moradores do lugar sentissem a diferença entre a morte e a vida. Acima de todos ficava o pequeno abeto, no alto da colina, onde as ovelhas se abrigavam. Esse pinheirinho observava a primavera passar para verão e o verão para o outono. Gostava de ver as flores e os frutos, e o verde das folhas das amoreiras e o prateado das oliveiras. Ele agitava os braços de contentamento quando via os limões pendurados entre as folhas como pequenos sóis amarelos, os lindos cachos de uvas, as amoras e os figos, que serviam de alimento para seu povo. Porque ele sempre pensava no povo daquela terra como seu povo, simplesmente porque o amava. Ele ficava no alto da encosta olhando para todos abaixo dele, desde muito, muito tempo. Ele sabia tudo sobre as pessoas, porque os moradores de Belém gostavam de subir a colina e se sentar sob seus galhos e conversar, e ele ouvia e se lembrava de tudo o que diziam. E, quando alguém estava triste, vinha e se sentava sozinho a seus pés, e ele ouvia seus lamentos. E ouvia também os pastores conversando, quando estavam tomando conta das ovelhas. Assim, ele aprendia não só o que havia de alegria e tristeza do povo, mas também o que acontecia em toda aquela nação. Os velhos falavam sobre a história passada de Israel, e nos dias do Sabbah ele ouvia os sábios repetindo uns para os outros as palavras dos profetas e falando em voz baixa sobre o Redentor, o Messias

que viria, o Milagroso, o Conselheiro, o Príncipe da Paz. Às vezes ouvia um dos meninos pastores cantando alto os salmos do menino pastor Davi; e era isso de que mais gostava, porque no encanto das palavras e na doçura da música ele achou grande consolo para sua dor. Pois ele sofria muito por causa de sua inutilidade para o povo que amava. As outras árvores davam tanto, mas ele não tinha flor nem frutos, só seus cones que ele ás vezes derrubava nas cabeças das pessoas, com esperança de que fossem usados, pois sabia que eram bons para fazer fogo; mas raramente alguém se abaixava para pegá-los. Ele nem tinha beleza, porque era uma árvore muito velha, incrivelmente retorcida por todas as tempestades de inverno que sofrera; pelo que via, ele não era bom para ninguém; exceto talvez para as ovelhas, que gostavam de se esfregar nele para se coçar... E talvez, muito raramente, para os que se sentassem

entre

suas

raízes

tortas,

pois



ele

murmurava

suavemente,

desvendando o tesouro da sabedoria das árvores. Mas será que ouviam? Sentavam-se quietos, encostados em seu tronco, com os olhos meio fechados por causa do sol, ou então com os cotovelos nos joelhos e o rosto nas mãos, olhando ao longe. E ele lhes contava muitas coisas. Mas, se ouviam, não demostravam. Contudo, ele perseverava, sem nunca desanimar, embalando-os em suas raízes enquanto falava, do jeito que a mãe embala o filho nos braços. Todas as árvores possuem uma sabedoria muito mais elevada que a que se pode alcançar neste mundo, mas os pinheiros são mais sábios que todas as outras, e este, especialmente, tinha um conhecimento do bem e do mal, que lhe viera não só por ter olhado, ouvido e relembrado a vida toda, mas pela sabedoria de seus ancestrais, desde o primeiro pinheiro que crescera no jardim que o Senhor Deus plantara a leste do Éden e que era tão lindo. O primeiro pinheiro não era de modo algum como seus descendentes. Era a mais bela árvore do jardim. Na primavera, suas flores eram mais lindas que as da amendoeira, suas folhas eram pura prata como as da oliveira, porém maiores e com a forma de mãos com uma palma na outra como em oração, e sua fruta era de um ouro mais brilhante que a fruta do limoeiro. Com certeza foi na sabedoria e na beleza do primeiro pinheiro que o rei Salomão estava pensando quando disse que palavras ditas na hora certa eram como maçãs de ouro com enfeites de prata. Mas o Senhor Deus havia proibido que o homem e a mulher que viviam no jardim comessem aquelas maçãs douradas, pois ainda não estavam prontos para a

sabedoria delas. O pinheiro sabia disso e, sempre que eles se aproximavam, fazia o possível para esconder as maçãs douradas debaixo das folhas prateadas, assim as criaturas mortais não se sentiam tentadas. E ele também conversava com os dois sussurrando suavemente, quando eles se sentavam a seus pés por entre suas raízes confortáveis, explicando-lhes que, sendo seres humanos e não deuses, eles não podiam conhecer o mal a não ser que o praticassem, assim deviam evitar esse conhecimento e se contentar apenas com o bem. Amem a Deus, ele lhes disse, sejam filhos humildes e obedientes para que tudo lhes corra bem. Mas eles não prestaram atenção ao pinheiro. Queriam ser deuses arrogantes, mandando nos outros, em vez de ser filhos amorosos fazendo humildemente o que lhes era dito. De modo que comeram o fruto da árvore. Não foi culpa do pinheiro, mas ele sentiu como se fosse. Seu sofrimento foi tal que seu coração quebrou e sua seiva secou. Suas frutas douradas se tornaram duros cones marrons, e suas folhas prateadas viraram agulhas secas. Ele morreu de dor no jardim, seus cones caindo no chão... Havia, porém, sementes nos cones, e os passarinhos e o vento levaram essas sementes para fora do jardim, e os filhos do pinheiro se enraizaram e cresceram pelo mundo inteiro. Só que nunca foram tão belos quanto seu primeiro ancestral. Eles cresciam nas nuas encostas, batidos pelo vento e pelos relâmpagos, lamentando o pecado do mundo, sem folhas nem flores, nem frutos. Contudo, conservavam sua profunda e celestial sabedoria, e, sempre que conseguiam, juntavam homens, mulheres e crianças à sua volta, e lhes contavam das coisas que sabiam. Esses descendentes de Adão e Eva também não lhes davam atenção, mas começaram a ter um amor especial por pinheiros, e em quase todos os países do mundo surgiu a crença de que se houvesse um pinheiro perto de sua casa a família teria sorte. Eram árvores que transmitiam um conforto. Nunca a tempestade as derrubava, e nunca mudavam com o passar das estações. Todos em Belém se sentiam assim em relação ao pinheiro da colina. Ele não sabia disso. Ele mal percebia que, quando as pessoas sofriam, vinham se acomodar entre suas raízes, e elas não sabiam que era porque o pinheiro escolhera participar de suas dores e tristezas; elas sentiam nele uma sombra reconfortante. Um Deus que fosse eterno, imutável e que, ao mesmo tempo, compartilhasse tudo com as pessoas, esse era o paradoxo que todas queriam, conscientemente ou não. E era isso que o pinheiro queria desesperadamente para elas enquanto os

anos passavam. Ele via que era a única coisa que podia salvá-las. O amor e a obediência que elas tinham desprezado no jardim talvez respeitassem com um Deus assim. Se esse Deus também fosse obediente e amoroso, então, quando elas se empenhassem em ser como Ele (pois sempre parecia que as ridículas criaturas humanas queriam competir com Deus), elas não se destruiriam, como fizeram no jardim. Se isso pudesse acontecer, pensava o pinheiro, ele ficaria tão feliz que suas agulhas se transformariam de novo em folhas prateadas e seus cones virariam frutos dourados. “O deserto se alegrará e dará flores como rosas”, ele as tinha ouvido dizer quando se sentavam a seus pés e conversavam sobre a vinda do Redentor de Israel. Ele tinha certeza de que alguma coisa assim lhe aconteceria. E dito e feito. Era pleno inverno, noite alta, e o mundo estava em profunda quietude. Os pastores estavam com os olhos pesados de sono, e o pinheiro estava acordado, guardando as ovelhas para eles. Ele fazia isso frequentemente, acordando os pastores com um murmúrio de aviso quando havia algum perigo ameaçador. Mas nessa noite nada ameaçava. Uma grande serenidade e um poderoso amor se apossaram dele, pelas estrelas brilhando como anjos e pelo céu e, também, pelos homens e animais que dormiam debaixo dele. Sentiu que gostaria de estender seus galhos para o céu e puxar as estrelas para a terra. “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra.” Quem estava cantando? O pinheiro olhou para baixo a seus pés, onde o pequeno Rubem, o menino pastor, que o deliciava cantando as canções de Davi e tocando sua flauta, estava enrolado como um arganaz entre suas raízes... Mas Rubem estava dormindo a sono solto. Além disso, não era uma voz só que cantava, eram muitas e cantavam ao longe. Contudo, a música estava chegando mais perto, ora mais forte, ora menos, como o barulho do sopro do vento. Mas não havia vento com tal beleza de som, uma beleza que penetrava no pinheiro de alto abaixo e que o deixava numa serenidade ainda mais profunda. “Põe-te de pé, resplandece, porque a tua luz é chegada e a glória do Senhor raia sobre ti.” Eram as próprias estrelas que estavam cantando, e elas desciam sobre a Terra. O pinheiro deu um grito de triunfo e estendeu seus braços para elas, e então o canto ondulava sobre ele com um som glorioso, e ele, ofuscado por tanta glória, não sentia mais nada e, por um momento, pareceu que não existia. Quando ele voltou a si, estava tudo quieto e silencioso de novo. As estrelas estavam no céu e os pastores tinham ido embora. Mas ele sabia aonde tinham ido,

pois durante o tempo em que ele parecia ter parado de existir, ouvira novas de grande alegria... Sim, eles tinham ido embora – todos, menos Rubem. Por que Rubem não fora também? O pinheiro olhou para Rubem, e Rubem olhou para o pinheiro com os olhos arregalados de admiração, com um rubor no rosto e a boca aberta, pulando e soltando um assobio de tão extasiado, como uma criança que está diante de algo maravilhoso. O pinheiro podia ver o menino como que através de mil velas e, por um momento ou dois, não percebeu que a luz estava em si mesmo. As estrelas deixaram luz nele, e suas agulhas estavam como folhas prateadas e seus cones como frutos dourados. E ele ficou ali imerso em luz, como um pequeno deus na aurora do mundo. “Leve-me!” – ele gritou para Rubem. “Leve-me!” Será que a criança entenderia? Ninguém o entendia quando ele falava. Mas Rubem, sim; ele era jovem o bastante. E alcançou e quebrou um galho brilhante do pinheiro com todos os seus raminhos e correu dali com ele pela encosta abaixo. Correu tão depressa que chegou perto dos outros pastores. E, quando eles entregaram seus presentes ao Menino, ele se ajoelhou e entregou o seu galho de pinheiro. Enfiou-o de pé num jarro ao lado da manjedoura, todo brilhando em prata e ouro, e o Menino olhou-o e riu. Era a primeira árvore de Natal. Na manhã seguinte, o pinheiro estava comum, como sempre fora, mas não se sentia mais comum, pois seu sofrimento havia passado... Pois aconteceu que o Senhor Deus visitou e redimiu seu povo... O pinheiro gritou alto em alegria e estendeu seus galhos para cima, para o claro céu azul. “Um dia abençoado nasceu para nós” – ele exclamou. “Vinde, ó povos, adorai o Senhor; pois neste dia uma grande luz desceu sobre a Terra.” E, além da alegria irresistível por essa grande luz, ele sentia uma razão particular para tanta felicidade. Ele viu o futuro do pinheiro, seus filhos e descendentes. Eles cresceriam duros e secos nas encostas, na primavera, no verão e no outono, quando outras árvores davam folhas, flores e frutos; mas no inverno, no aniversário do Filho de Deus, quando as outras árvores se desfolhavam todas, era ele que ficaria junto à manjedoura, vestido de prata e ouro, levando alegria aos corações das criancinhas e paz e boa vontade entre os homens.

A NOITE DE NATAL

STEFAN VASILIVICH, O SALTEADOR (Jeanna Oterdahl)

O vento norte soprava na planície, varrendo à sua frente as nuvens de fina neve, levando seus flocos pelo ar como lâminas. O rio, que serpenteava por ali, congelou de um modo a se unir com a terra como uma coisa só. Por entre as rajadas do vento se ouvia de leve o sino da igreja. As freiras da abadia de São Micael faziam tanger o sino porque era véspera de Natal, e era tão alegre o seu som que era como se ele soubesse que anunciava o mais belo dos dias. Ao longo do caminho coberto de neve que seguia o curso do rio, um caminhante solitário andava com dificuldade, com as costas curvas como se lutasse contra a força do vento; e, sempre que lhe chegava aos ouvidos o som do sino, ele mostrava um sorriso maligno e apressava o passo. “Você fez um bocado em seu tempo, Stefan Vasilivich, mas agora acho que vai superar a si próprio” – ele disse em voz alta, e riu de novo. “Até hoje, você se contentava em aterrorizar o povo das aldeias e tornar as estradas perigosas. Seu nome adquiriu horrível fama, sem dúvida alguma. A menor criança sabe que não há nada pior do que passar pelo caminho em que você pisa. Você é esperto, sabe andar em silêncio e consegue as melhores coisas. Os camponeses lhe têm ódio e o consideram como uma praga, porque você rouba seus bezerros, toca fogo em fazendas e arromba os esconderijos de seu dinheiro. Mas isso não basta: tudo isso será esquecido com o passar dos anos. Esta noite Vasilivich vai realizar a maior façanha de um salteador, que o tornará famoso como um herói ou como um santo.” O vento fez bater em seu rosto selvagem uma chuva de granizo aguda como navalha, mas isso para ele não era nada. Com seu chapéu abaixado na testa, ele andava com dificuldade, mas sem parar. Já podia ver as luzes da abadia de São Micael brilharem através da escuridão e da tempestade de neve.

Quando eu era ainda uma criança, – pensou Stefan Vasilivich – eu tinha o mesmo caráter obstinado que tenho agora. Para mim não fazia sentido compaixão e fragilidade. “Veja bem!” – disse meu pai uma vez – “Vai acabar aparecendo alguém para amansá-lo.” “Que ideia, Pai! Já passei fome e frio, não há prisão que me segure. Gostaria de encontrar alguém que consiga me amansar.” E Stefan Vasilivich tornou a rir com aquele riso satisfeito e maligno, que foi levado pelo vento pela neve afora. Ao chegar mais perto da abadia, ele passou a andar mais devagar e seus olhos brilharam. Terminada a oração de vésperas, as freiras foram, aos pares, da capela para o refeitório. Sozinha, bem atrás, caminhava a mais nova das irmãs. Ela era pequena e esbelta e tinha grandes olhos castanhos escondidos sob a touca. Seus olhos ainda refletiam os brilho das velas da capela, e seus lábios se moviam suavemente como se ela ainda cantasse. A irmã Ecaterina tinha apenas quinze anos; era a filhotinha do convento, o passarinho cantor, e todas a amavam. E, por ser ainda como uma criança, era perdoada quando às vezes se esquecia de algumas obrigações. Naquele momento, estava tão mergulhada em seus próprios pensamentos, que andava mais devagar e se esquecia de que devia seguir as outras. Ela parou então na neve, bem no meio do pátio da abadia. Seu coração estava tão cheio de alegria pela Criança que havia chegado ao mundo naquela noite, que ela nem sentiu o frio cortante da neve que cobria sua roupa leve e passava pelo seu rosto. Irmã Ecaterina, de mãos postas, rezou a Deus pedindo que lhe desse a oportunidade de servir o Menino Jesus. Ficando ali imersa em oração, sem reparar que as outras já há muito tempo tinham entrado na sala aquecida do refeitório, foi de repente perturbada por uma batida leve na porta de entrada do convento. Ela esqueceu que não era tarefa sua abrir a porta para estranhos, e correu até lá. Seu coração bateu apressado, na esperança de que talvez Deus já tivesse ouvido sua oração e que, naquela mesma noite, ia pôr à prova seu amor pelo Menino Jesus. Enquanto corria, imaginava quem poderia estar lá fora, talvez uma criança ou um homem muito velho, porque a batida parecia vacilante e fraca. Sem hesitar e

sem considerar para quem poderia estar abrindo a entrada, ela retirou a pesada tranca e acenou para o homem que estava lá fora para que entrasse. Se a freirinha, com seus grandes olhos brilhantes, soubesse que o homem diante dela era Stefan Vasilivich, o assassino e ladrão de quem ela tinha ouvido falar tantas vezes com medo e horror, certamente cairia na neve aterrorizada, sem coragem de se mover ou falar. Mas como irmã Ecaterina poderia imaginar que aquele velho de barba grisalha e chapéu de abas largas não fosse apenas um peregrino exausto? Quando ele pediu, em nome de Deus e de São Micael, um abrigo sobre sua cabeça e um pedaço de pão, ela só se sentiu feliz por Deus ter ouvido sua oração tão depressa. Com seu rosto repleto de alegria, conduziu o homem para o refeitório, onde estavam as freiras sentadas ao redor da longa mesa. “Irmã” – disse a abadessa, que estava sentada à cabeceira, ao lado de Elisabeth, a irmã cega – “você se esqueceu de que hoje é sua vez de distribuir o pão? Você também se esqueceu de que não é sua a obrigação de abrir a porta a estranhos? Irmã, irmã, quando será que você vai ser finalmente igual às outras?” Mas a pequena irmã Ecaterina, que era filha de um príncipe e irmã de um príncipe, ajoelhou-se no chão de pedra e pediu perdão tão humildemente, que a abadessa não teve coragem de castigá-la. Depois que as irmãs cantaram o hino de ação de graças, a irmã Ecaterina distribuiu o perfumado pão fresco de Natal e deu o melhor pedaço ao peregrino de barba grisalha. Stefan Vasilivich riu silenciosamente diante do salmo e da simples refeição, e seu coração malvado se rejubilou antecipadamente. Pois ele sabia que o convento era rico em ícones enfeitados de ouro e pérolas e possuía vasos sagrados com joias de muitas cores, embora as freiras vivessem em grande pobreza e abstinência. Depois que acabaram de jantar e que o hino foi cantado, a irmã Ecaterina pediu permissão para lavar os pés do peregrino, e a abadessa ficou feliz com sua vontade de servir a Deus. Mas Stefan Vasilivich não cabia em si de contente por ter representado tão bem seu papel, e passou os olhos cautelosamente de uma freira para a outra, imaginando seu terror quando chegasse a hora. Enquanto se ajoelhava no frio chão de pedra e desatava as botas de Stefan Vasilivich, a filhinha do príncipe disse:

“Se o senhor é, na verdade, tão piedoso como eu acredito que seja, a água em que eu lavar seus pés ficará mais pura e transparente do que agora,” e seu espírito infantil se alegrou com as próprias palavras. E, vejam só, depois que irmã Ecaterina passou algum tempo lavando os pés do peregrino com todo o cuidado, como se estivesse cumprindo uma tarefa importante, a água realmente ficou mais pura, tão pura como se tivesse sido tirada de uma fonte, e a freirinha gritou alto de tanta alegria. Mas, no coração cruel de Stefan Vasilivich, que só abrigava sentimentos maus, cresceu um espanto imenso. Que poderes estranhos havia naquele lugar? Ele achou que estava na hora de arrancar a barba branca e de jogar fora o chapéu de peregrino, mas nem conseguia se levantar. Continuou sentado, paralisado, olhando para a água clara que manteve a sua pureza e tornara seus pés mais brancos que a neve. Irmã Ecaterina se aproximou da abadessa, ajoelhou-se diante de sua cadeira e, trêmula de alegria, disse: “Madre piedosa, nosso hóspede é realmente um homem muito santo. Permita-me lavar os olhos de nossa pobre irmã cega com a água na qual lavei os pés do peregrino. Quem sabe Deus faz um milagre através da piedade do peregrino.” A abadessa deu sua permissão, e irmã Ecaterina, cheia de esperança, encheu uma tigela com a água e foi até a freira cega. Irmã Elizabeth não via a luz do dia há trinta anos e balançou a cabeça tristemente. Ela havia rezado tanto para receber de volta o dom da visão, que agora já aceitava pacificamente sua total escuridão, e não se revoltava mais com ela. “Querida criança” – ela disse – “é da vontade de Deus que eu viva no escuro até entrar finalmente na luz eterna, onde até os cegos podem ver.” “Irmã Elizabeth” – suplicou a freirinha – “Deixe-me apenas tentar.” E a freira cega sorriu, pois ninguém conseguia contrariar a irmã Ecaterina. E, vejam só, quando as primeiras gotas da água correram sobre aqueles olhos cegos, foi removido o véu que os tinha fechado por trinta anos. Quanto mais a freirinha os lavava, mais claro ficava tudo para irmã Elizabeth, até que finalmente esta ficou de pé e olhou ao seu redor de mãos postas e com os olhos radiantes de poder ver. E todas as irmãs que estavam no refeitório começaram a cantar um hino de louvor, enquanto Ecaterina, a filha do príncipe, jogou-se de joelhos diante do peregrino e beijou seus pés com lágrimas.

Então o estranho saltou e gritou tão alto quanto um homem cheio de angústia na alma. “Quem és tu, ó Deus?” – ele exclamou, arrancando a barba grisalha e jogando longe seu manto de peregrino – “Quem és tu, ó Todo-poderoso, que me conquistaste? Vocês, freiras, saibam que eu sou Stefan Vasilivich, o ladrão e assassino. Jamais acreditei em Deus ou no Diabo. Enchi de terror cidades e aldeias. Nenhuma pancada conseguiu me derrubar, nenhuma prisão conseguiu me manter dentro. Saibam, irmãs que esta noite vim aqui para roubar e matar.” E ele tornou a gritar como se sentisse a maior dor. “Quem és Tu, ó Todo-poderoso? Bastonadas e pancadas só me fortaleceram. Nenhuma tortura me dobrou. Mas esta noite Tu me atingiste com o flagelo da brandura, como se fizesses um milagre através da fé desta menina. Glória a teu nome por toda a eternidade!” Quando Stefan Vasilivich pronunciou estas palavras, caiu de joelhos. Todas as irmãs começaram a cantar um hino de louvor a Deus, e a voz de irmã Ecaterina soava mais alto que todas as outras.

O NATAL NO MUNDO TODO

O PINHEIRINHO DE NATAL (Hans Christian Andersen)

Lá na floresta, havia um lindo pinheirinho de Natal. Ele tinha um bom espaço para crescer, bastante ar em volta e toda a luz do sol que quisesse, e ao seu redor havia uma porção de companheiros maiores, todos da raça dos pinheiros. O pinheirinho estava, porém, ansioso por crescer logo. Não prestava atenção ao calor do sol ou à frescura do ar, e nem reparava nas crianças da aldeia, que passavam tagarelando em busca de morangos; às vezes chegavam ali com uma jarrinha cheia

de morangos, e então se sentavam ao pé do pinheirinho e diziam: “Oh, que arvorezinha boa!” E nada disso o pinheirinho gostava de ouvir. No ano seguinte, ele havia crescido um pouquinho; passado mais um ano, seu tronco se tornara ainda mais grosso; pois podemos saber a idade de um pinheiro pelo número de anéis que há dentro de seu tronco. “Oh, como seria bom se eu fosse uma árvore alta como as outras” – suspirava o pinheirinho – “Eu poderia então espalhar meus galhos em volta e olhar o vasto mundo lá de cima. Os passarinhos viriam fazer ninho em meus ramos. E, sempre que ventasse, eu poderia balançar tanto quanto as outras.” Ele não achava graça na luz do sol ou nos passarinhos ou nas nuvens rosadas que, de manhã cedo e ao entardecer, flutuavam por cima dele. Quando o inverno chegava e a neve deixava tudo branco, muitas vezes vinha uma lebre pulando sobre a arvorezinha – ah, como era divertido! ... Mas dois invernos se passaram e, no terceiro, a árvore tinha crescido tanto que a lebre só podia correr ao seu redor. Sim, crescer, crescer, ficar alta e velha, seria a melhor coisa do mundo, pensava a árvore. No outono, sempre vinham os lenhadores e cortavam algumas das árvores mais altas. Isso costumava acontecer todo ano; e o pinheirinho, que agora estava de bom tamanho, estremecia ao ver as grandes árvores racharem e caírem ao chão; seus galhos eram cortados, e elas pareciam nuas e magras – nem dava para reconhecê-las – e eram levadas para carroças puxadas por cavalos para fora da floresta. Para onde tinham ido? Que fora feito delas? Na primavera, quando a andorinha e a cegonha chegaram, a árvore lhes perguntou: “Vocês sabem para onde elas foram? Para onde foram levadas? Vocês viram alguma coisa?” A andorinha não sabia de nada, mas a cegonha respondeu: “Acho que eu sei. Passei por uma porção de navios novos quando voei daqui até o Egito; Eles tinham esplêndidos mastros, e esses mastros eram elas. Senti seu cheiro de pinheiros, e elas lhe mandaram lembranças. Oh, como estavam retas e altas!” “Ah, eu queria ser grande assim para ir pelo mar afora! Aliás, que espécie de coisa é o mar? Como ele é?” “Isso eu levaria muito tempo explicando” – disse a cegonha, e foi embora.
Livro de Histórias de Natal

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