Narrativas míticas e ritual em jogos eletrônicos

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Narrativas míticas e ritual em jogos eletrônicos1 Durval RAMOS2 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR

RESUMO O jogar videogame foi, por décadas, tratado como algo infantil e de pouco valor cultural. Contudo, a recente evolução tecnológica que permitiu a criação de narrativas mais elaboradas expôs ainda uma complexidade que vai além da própria estrutura da história. Na verdade, a narrativa e o próprio ato de jogar estão entrelaçados da mesma forma que o mito depende do rito para acontecer. Assim, analisamos a partir desse viés antropológico as estruturas mitológicas que se escondem por trás do jogar videogame. PALAVRAS-CHAVE: jogo eletrônico; mito; rito; estado da arte INTRODUÇÃO O mito voltou à moda — ainda que diferente daquela forma clássica que nos foi apresentada nos tempos de escola. Seja em conversas entre amigos ou em discussões de internet, ele se transformou em uma espécie de adjetivo que torna algo grandioso. Ao usálo, o indivíduo tira algo do universo comum para colocá-lo em um campo superior. O mito passou a ser sinônimo de épico. Esse sentido, ainda que ligeiramente novo, ainda está ligado à ideia que nos apresentado durante anos, de que o mito está ligado ao fantástico. Ele imediatamente nos remete aos gregos, egípcios e aos nórdicos — povos que existiram há muito tempo, mas cujo panteão ainda povoa o imaginário da nossa cultura de uma forma ou de outra. O mito está relacionado aos grandes feitos e às origens do mundo (Eliade, 2000). Contudo, ele se expande para muito além disso e continua a produzir novos deuses, lendas e heróis, ainda que fora da conotação religiosa de outrora. Se o mito é uma narrativa, como aponta Rocha (2012), ele ainda está presente dentro da cultura. Os mitos permanecem vivos e sendo gerados continuamente em diferentes meios e em variadas formas. Basta ir a uma banca de revistas e folhear qualquer revista em quadrinhos para ver que Superman e Capitão América em pouco diferem de Siegfried e Hércules. Os mitos da sociedade constituem modelos para essa sociedade em determinada época. A imagem mítica mostra a forma pela qual a energia cósmica se manifesta no tempo: à medida que mudam os tempos, mudam os modos de manifestação. (CAMPBELL, 2008, p.17) 1 2

Trabalho submetido ao programa de Mestrado em Comunicação da UFPR Aluno estudante do programa de Mestrado da UFPR, email: [email protected].

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Essa definição que Campbell dá ao mito hoje, ainda que sob um viés mais antropológico, vai de encontro à visão semiológica de Barthes (2013) sobre essa mesma estrutura. Para ele, o mito nada mais é que um modo de significação e, portanto, existindo a partir do modo como a sociedade dá sentido àquilo à sua volta e àquilo que produz. Essa noção é o ponto de partida que precisamos para olhar para o nosso objeto: os jogos eletrônicos. Rocha (2012) destaca que o mito é comumente atrelado a algo antigo, vindo de um passado remoto, ao passo em que o videogame traz consigo a imagem de modernidade, do atual e do futurista. São duas imagens quase antagônicas que coexistem e entender como essa tensão ocorre é um desafio interessante tanto para salientar como a narrativa mítica segue viva quanto para compreender como ela se manifesta neste meio em específico. Afinal, os jogos eletrônicos há tempos não são mais os brinquedos que se acreditava nos anos 1990. Segundo Ranhel (2009), os games deixaram de ser apenas estruturas em que os jogadores agiam para que o jogo acontecesse — como acontecia em jogos como Tetris, Pong e Enduro — e passaram a apresentar narrativas mais elaboradas. Se, há pouco menos de três décadas, a história de um jogo se resumia ao herói que passa de fase em fase pulando buracos para resgatar a princesa, os games mais recentes justificam essas ações com tramas mais complexas e que em nada devem ao cinema, ao ponto de, em alguns casos, servirem de inspiração para adaptações cinematográficas. Dessa forma, estudar essas narrativas é compreender melhor o tipo de conteúdo que é produzido por essa indústria e que é consumida pelo público de maneira massiva. Em 2017, o mercado de jogos faturou mais de US$ 108 bilhões3 — mais que o dobro do que o cinema hollywoodiano, cujo faturamento girou em torno de US$ 40 bi no mesmo período4. É claro que essas cifras não representam o todo da dimensão desses mercados, mas estudar os processos narrativos utilizados é entender a complexidade do meio e as possibilidades que ele oferece na hora de contar histórias e de como o indivíduo se relaciona com elas. Outro ponto é que, ao longo de toda a sua história, o game é associado à ideia do vício. Este trabalho não pretende questionar essa possibilidade — uma vez que esse estudo compete muito mais à Psicologia do que à Comunicação —, mas levantar uma outra

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Números levantados pelo instituto de pesquisa SuperData Research. Disponível em https://www.gamesindustry.biz/articles/2018-01-31-games-industry-generated-usd108-4bn-in-revenues-in-2017. Acessado em 08/04/2018. 4 https://www.hollywoodreporter.com/news/2017-box-office-global-revenue-hits-record-40b-as-movie-attendanceplummets-us-1070879. Acessado em 08/04/2018

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hipótese: e se o ato de jogar realmente estiver relacionado a um caráter quase religioso para o indivíduo? Não seriam essas narrativas, portanto, parte de um processo ritualístico que levam o jogador a um espaço e tempo sagrados (ELIADE, 2000)? Essa é a premissa básica proposta por Huizinga (2017) ao fazer uma análise antropológica da função do jogo — no caso, o jogo brincadeira, ou seja, no sentido mais amplo do termo. Para o autor, o jogo tem um certo ritual de atitudes e gestos que faz com que todo jogo signifique algo para quem participa dele. É exatamente a partir dessas reflexões e questionamentos que se baseia a hipótese deste trabalho: os jogos eletrônicos conseguem ser também a porta de entrada do indivíduo para o mundo das narrativas mitológicas da mesma forma que os jogos e brincadeiras analógicos. Assim como uma tribo ancestral que participava de uma cerimônia para alcançar as suas divindades ou mesmo as religiões modernas usam seus cultos e missas para se religar às histórias sagradas, o ato de jogar é também uma forma de o indivíduo viver o mito, reatualizá-lo. Em outras palavras, o jogar é ritualístico. Essa relação não é exclusiva dos jogos eletrônicos. Para Camargo, a mesma lógica se aplica à publicidade. (...) a experiência mítica proporcionada pela publicidade, mesmo que residual, dentro da oceânica e, por vezes, abissal cultura midiática, passa a ser uma experiência plena, em que o consumo e o fantástico são elementos componentes do mito reatualizado. (CAMARGO, 2016, n. p)

No entanto, o próprio autor pontua que o filme publicitário tem suas limitações e não poder ser totalmente comparável ao ritual por não ser capaz de fazer com que o indivíduo se entregue verdadeiramente ao mito, uma vez que ele ainda é passivo à narrativa mítica. No videogame, por outro lado, o jogador entra no mundo do fantástico e participa de forma ativa no mito, mesmo que mediado por um joystick e uma TV. A principal característica do jogo eletrônico é a interação que o meio oferece e isso afeta a relação do jogador com a narrativa, como aponta Juul (apud MELLO; MASTROCOLA, 2016, p.4). Para ele, o jogador se sente emocionalmente ligado ao resultado das ações dentro do jogo, uma vez que as ações dos personagens são as suas. Só que a análise dessa relação da narrativa mítica e das características do jogo eletrônico é algo que só vai ser aprofundada na etapa final do programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Federal. Este artigo é apenas um projeto para uma pesquisa ainda em desenvolvimento e que, neste primeiro momento, vai se concentrar na revisão bibliográfica dos temas aqui tratados. Assim, enquanto o estudo principal vai se concentrar

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na relação de mito, narrativa e games, este texto vai explorar os conceitos de mito e como ele se entrecruza com o videogame. O MITO ELETRÔNICO Os jogos eletrônicos sempre flertaram com o mito, principalmente no seu sentido mais clássico e tradicional. Os temas mitológicos foram repetidos à exaustão em diferentes games ao longo dos últimos anos. A série God of War transformou deuses gregos em heróis e vilões, os rituais e mitos escatológicos presentes na mitologia nórdica são o ponto de partida da trama de Hellblade: Senua’s Sacrifice e até mesmo as crenças e tradições do povo Inupiat, do Ártico, são representadas em Never Alone (Kisima Ingitchuna). Isso sem falar de elfos, anões, goblins, dragões e outras criaturas fantásticas do folclore europeu que tanto apareceram nos jogos. Assim como na literatura e no cinema, a mitologia ainda serve de inspiração também nos videogames. Contudo, o mito não se resume apenas a essas histórias antigas e segue vivo, ressurgindo em nossa produção cultural em diferentes formas. Para Handerson (2016), os mitos antigos não desapareceram, mas se adaptaram à modernidade e seus símbolos permanecem dentro de contextos que se encaixem àquela sociedade — e fazendo com que a sua população continue sendo afetada por aquela simbologia. Isso porque o mito não está restrito ao passado, mas atuante no presente sob diferentes formas da própria religião. Se Rocha (2012) diz que o mito é uma narrativa, Barthes vai além e o descreve como uma fala de natureza quase parasitária, podendo habitar todo e qualquer tipo de linguagem. Esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser formada por escritas ou representações: o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica. (BARTHES, 2013, p. 200)

Dessa forma, fica claro que os mitos também se manifestam nos jogos eletrônicos, uma vez que eles possuem uma linguagem própria, baseada na interação do indivíduo com o jogo para realizar sua narrativa (GASI, 2013). Para o autor francês, o mito deixa de ser apenas uma história antiga ou um princípio religioso, mas um processo de significação — e, portanto, pode estar presente em todo o tipo de fala. E se essa visão semiológica nos permite compreender o papel quase onipresente do mito, a sua função dentro da sociedade passa a ser objeto de estudo de mitólogos como Eliade (2000) e Campbell (2007), que vão procurar paralelos entre a estruturação mitológica dos povos antigos com a produção cultural contemporânea para entender como eles ainda nos influenciam.

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Nesse sentido, o primeiro ponto de convergência está exatamente no fato de as histórias ainda se apoiarem em estruturas ancestrais, como defende Campbell. Essas estruturas são o que Jung (2016, p. 83) vai chamar de arquétipo: imagens primordiais que fazem parte do inconsciente coletivo da sociedade e presentes nos sonhos, nas neuroses e em seus mitos. “O arquétipo é uma tendência a formar essas mesmas representações de um motivo (...) sem perder a sua configuração original”. Com isso, os mesmos símbolos são repetidos em diferentes meios com novas roupagens uma vez que partem de uma mesma fonte. É por essa razão que as narrativas míticas vão trazer similaridades em sua estrutura. O monomito de Campbell (2007) deixa isso claro ao mostrar como praticamente todas as histórias seguem a mesma estrutura, uma vez que se baseia em imagens e símbolos que são comuns a esse imaginário coletivo. De acordo com Contrera (1996, p. 19), esse imaginário cultural se apresenta como um “território de conteúdos universais, de arquétipos da cultura que se reatualizam constantemente”. Nos jogos, essa reatualização do mito é comum. A própria estrutura do monomito é bastante presente, sobretudo em jogos de aventura. Em alguns casos, a jornada do herói se apresenta de maneira quase literal, como o chamado da aventura descrito por Campbell (2007) nos jogos da série The Legend of Zelda. A própria enciclopédia oficial da série, Hyrule Historia (2013, p. 9), descreve: “As cenas de abertura de Zelda geralmente mostram Link5 acordando. Essa é uma maneira de transmitir a noção de uma pessoa normal despertando para o desconhecido e embarcando em uma jornada do herói?”6 Essa é apenas uma das diversas imagens arquetípicas que são repetidas dentro da estrutura do mito. E existem dezenas de outros que aparecem que bastante frequência. Dentro do próprio The Legend of Zelda, por exemplo, as figuras da deusa-mãe, da princesa prometida, do herói escolhido e do monstro-tirano que deseja tomar para si a bênção divina são recorrentes e aparecem em praticamente todos os jogos. Mas por quê? Os arquétipos mitológicos o ajudarão a refletir sobre o conhecimento dessa dimensão transpessoal, trans-histórica do seu ser e da sua experiência, pois são símbolos eternos que vivem em todas as mitologias do mundo, os modelos que sempre deram apoio à vida humana. (CAMPBELL, 2008, p. 45-46)

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Link é o protagonista da série, um personagem que não fala e que age mais como um avatar do jogador que como um personagem ativo dentro da narrativa. 6 Tradução nossa.

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Além disso, o próprio Campbell (2007, p. 15-16) afirma que os símbolos da mitologia são “produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador da sua fonte”. E, por mais que essas imagens nos pareçam distantes à primeira vista, elas ainda nos envolvem em sua narrativa. Eliade (2000, p. 159) compara esse fascínio mítico que antes se via nas antigas religiões com as histórias em quadrinhos atuais. Para o autor, “o mito do Superman satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se um dia um ‘personagem excepcional’, um ‘herói’”. Essa projeção e identificação se repetem também no jogo eletrônico com ainda mais intensidade, uma vez que o jogador participa ativamente da narrativa a partir dessa linguagem interativa inerente ao meio. Salen e Zimmerman (2012, p. 50) descrevem essa característica como interação lúdica significativa, que corresponde à relação entre a ação do jogador e a resposta do sistema para a criação de um significado, o que acontece por meio do jogar. E, como vimos anteriormente, o mito nada mais é do que um processo de significação a partir de uma fala. Dessa forma, jogar é dar forma ao mito. Vivendo o jogo Contudo, o mito isolado pouco representa para nós. Como destacado anteriormente, é a partir da reatualização dessas imagens arquetípicas que ele permanece vivo — o que acontece por meio do rito. Assim como o próprio mito, o rito também carrega uma imagem bastante consolidada do ritual tribal, da roda em torno do fogo, dos cantos e da forte carga religiosa. No entanto, ele é muito mais do que isso. Campbell (2008, p. 21) o descreve como “a simples representação do mito; ao participar de um rito, participa-se diretamente do mito”. Isso deixa clara a ideia de que o rito nada mais é do que a vivência do mito em si. Já Contrera (1996, p. 56) vai reforçar que ritual estabelece um ritmo sincronizado e se estabelece por meio de uma repetição cuja função é “pontuar, estabelecer um ritmo, garantindo a eficácia dessa pontuação, usando procedimentos que nos remetem à dimensão arquetípica da cultura”. Já Eliade (2000, p.18) vai um pouco além e defende que o rito não está relacionado apenas a essas definições. Para o autor, essa reatualização ritualística é um retorno ao tempo primordial e às origens das coisas, permitindo que o indivíduo possa reviver os feitos de deuses, heróis e ancestrais. “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem”.

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Dentro dessa definição, vale destacar o valor desse tempo primordial; sagrado. Durante o ritual, o tempo profano — aquele que você pode acompanhar pelo andar de seu relógio — é deixado de lado e o indivíduo é levado para uma realidade onde essa passagem cronológica se dá sob outras regras. O tempo mítico das origens é um tempo ‘forte’, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais. Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, ‘contemporânea’, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses e Heróis. (Idem, p.21)

Assim, o rito funcionaria quase como uma porta de entrada para esse universo mágico e fantástico do mito. Embora não de maneira literal, o ritual transporta o indivíduo para um tempo e espaço sagrados em que aquela força arquetípica se manifesta com mais força. E, nesse caso, não há regras que vão estabelecer o que é ou não rito. Como vimos, o único critério estabelecido é que ele permita essa realização e reatualização do mito. Uma breve relação entre a narrativa e o jogar Diante dessas ideias, surge a necessidade de apontar intersecções entre esses elementos antropológicos com a linguagem do videogame. Como vimos antes, há um contraste entre a percepção existente sobre o mito — sempre antigo e remetendo a um passado distante — e a modernidade que acompanha o viés tecnológico do jogo eletrônico. E é no mito que esses conceitos quase antagônicos se encontram. Nesse sentido, a narrativa cumpre um papel fundamental. É por meio dela que o velho e o novo se encontram. Mais do que isso, é por ela que o jogador entra em contato direto com o mito. Jogos são estruturas das quais o jogador age, experimenta, vivencia situações. Narrativas descrevem ações passadas. Jogos são um agora, um fazer acontecer no momento em que são jogados. Narrativas baseiam-se em fatos que já ocorreram, suas relações de causa e consequência. Há várias diferenças entre narrativa tradicional e o jogo; contudo, quando ambas as atividades migram para os computadores, começa a ver uma fusão, uma mescla entre elas. (RANHEL, 2009, p.17)

Essa relação do jogar com a narrativa é algo que fica ainda mais clara a partir da divisão que Michael Nitsche (apud MELLO; MASTROCOLA, 2016, p.4) vão fazer ao definirem a experiência jogo-jogador em cinco pontos: 1) o plano das regras, composto pela parte técnica, com suas regras e lógica; 2) o plano mediado, definido por aquilo que é mostrado em imagens; 3) o plano ficcional, que depende da imaginação do jogadores e que, segundo os autores, vai definir a imersão dentro daquela realidade; 4) o plano de jogar, em que a ação do indivíduo no joystick vai se materializar em ações do personagem e, por fim, 5) o plano social, formado pela interação com outros jogadores.

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Embora essa distinção pareça bastante clara sob esse ponto de vista, na prática, ela não é sentida. Para o jogador, por exemplo, o plano mediado e o ficcional são uma única coisa: a história do jogo, que também está muito conectada ao plano do jogar em si. “A história de um jogo trabalha em uníssono com o gameplay e quanto mais uma narrativa é contada se hibridizando ao gameplay, mais imersiva poderá ser a experiência do jogador ao universo do game” (Idem, p. 32). É nessa hibridização que o rito acontece. A imersão é o objetivo principal de todo jogo e, para isso, ele precisa criar a sensação de que o jogador entrou em outro universo espaço-temporal (GOMES, 2009, p. 74), uma outra realidade. Isso, por si só, já caracterizaria o rito descrito por Eliade (2000). Entretanto, o jogo eletrônico conta com outros elementos que fazem com que essa ritualização seja diferente daquela que o cinema, a literatura e outros meios seriam capazes de oferecer. Como a base da linguagem do videogame é o interagir — o plano do jogar, como vimos —, o indivíduo se torna atuante nessa narrativa mítica (BEATRIZ, MARTINS, ALVES, 2009). Nesteriuk (2009, p. 28) vai defender que essa participação do jogador vai muito além de apertar botões e executar ações. Para ele, a própria narrativa é aberta e, assim, quem joga é também uma espécie de coautor que completa uma obra ainda em desenvolvimento. Dessa forma, o indivíduo não só viveria o mito, como ainda criaria o seu próprio. (...) assim sendo, é muito pouco provável achar dois jogadores diferentes com mesmo jogo jogado; da mesma forma que um mesmo jogador dificilmente conseguirá, ainda que partindo das mesmas condições iniciais, repetir o jogo jogado em duas (ou mais) sessões diferentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Utilizando-se do linguajar oriundo dos próprios videogames, todas essas ponderações iniciais servem apenas de start para uma análise muito mais aprofundada sobre as relações mitológicas existentes no jogo eletrônico que deve ser apresentada na dissertação final deste programa de Mestrado. Compreender quais mitos se manifestam na narrativa proposta pelos games e como a parte interativa ou lúdica dialoga com essa estrutura é um dos objetivos dessa análise futura. Ainda assim, mesmo sem esse mergulho que será feito em etapas futuras, a simples definição da ideia de mito, rito e das próprias características do videogame já nos faz pensar na potencialidade existente no meio. Para um meio que por décadas viveu sendo tratado como uma espécie de entretenimento menor ou mesmo vazio, logo se vê o universo de sentidos que se escondem a cada apertar de botões.

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Deste modo, estudar a relação do mito com o jogar não é apenas compreender melhor a forma como a narrativa é construída — e, consequentemente, que narrativas são apresentadas ao público a cada novo jogo lançado —, mas também entender o jogar como um processo de significação; como algo que difere o jogar de outros meios; justificando porque determinada história (ou mito) só pode se realizar quando o indivíduo é transportado para um outro tempo e espaço onde ele é atuante e não apenas espectador. Se o jogo eletrônico ainda está associado com o vídeo, evidenciar suas relações mitológicas é destacar o viés quase religioso que ele carrega. E isso é algo que aparece não apenas nas horas e horas que muitos jogadores dedicam ao meio, mas na própria devoção que eles demonstram àquele universo. Em alguns casos, o mito sai do videogame e passa a significar outros elementos da vida do indivíduo — a ponto de, em alguns casos, se transformar em uma tatuagem, por exemplo, o que nos remete novamente à ideia tribal. Assim, todo esse breve estudo serve apenas de introdução para uma pesquisa que deve se aprofundar no mundo mitológico dos videogames. Ainda que eles não nos falem mais de deuses ou de uma moral para nortear nossa sociedade, há neles uma tentativa de nos permitir viver aquilo que vai além de nossa vida mundana. E que buscamos realiza-la exatamente no rito que começa com o Start.

REFERÊNCIAS BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2013. BEATRIZ, I.; MARTINS, J., ALVES, L. A crescente presença da narrativa nos jogos eletrônicos. In: VIII Simpósio Brasileiro de jogos e entretenimento digital - Sbgames, 2009, Rio de Janeiro. Anais Sbgames, 2009. Disponível em: http://www.professorcarlosoliveira.com/MDV/BancoDados/Cursos/CursosUNITAU/NTIC/pages/c ult2_09.pdf. Acessado em 18/04/2018 CAMARGO, H. W. Mito e filme publicitário: Estruturas de significação. Londrina: EDUEL, 2016. Paginação irregular CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007. _____________. Mito e Transformação. São Paulo: Ágora, 2008. CONTRERA, M. S. O Mito na Mídia: A Presença de Conteúdos Arcaicos nos Meios de Comunicação. São Paulo: Annablume, 1996 ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000. GASI, F. Videogames e mitologia: A poética do imaginário e dos mitos gregos nos jogos eletrônicos. Nova Iguaçu, RJ: Marsupial Editora, 2013.

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GOMES, R. Shenmue e o dilema narrativo. In SANTAELLA, L; FEITOZA, M. (Org.). Mapa do jogo: A diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009. HANDERSON, J. L. Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2016. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2017. HYRULE Historia. Milwaukie: Dark Horse, 2013. JUNG, C. G. Chegando ao Inconsciente. In: _______. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2016. MELLO, F. C.; MASTROCOLA, V. M. Game cultura: Comunicação, entretenimento e educação. São Paulo: Cengage Learning, 2016. NESTERIUK, S. Reflexões acerca do videogame: algumas de suas aplicações e potencialidades. In SANTAELLA, L; FEITOZA, M. (Org.). Mapa do jogo: A diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009. SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Regras do jogo: Fundamento do Design de Jogos. São Paulo: Blucher, 2012. 1 v. RANHEL, J. O conceito de jogo e os jogos computacionais. In SANTAELLA, L; FEITOZA, M. (Org.). Mapa do jogo: A diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009. ROCHA, E. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 2012.

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