Quinn Taylor Evans - O legado de Merlin 1 Filha do fogo

490 Pages • 77,714 Words • PDF • 935.1 KB
Uploaded at 2021-09-24 08:14

This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button.


Sinopse Primeiro livro da sжrie Legado de Merlin Elas sсo filhas do destino, ligadas por uma heranуa de magia e amor, envolta nas brumas da lenda… Escзcia, 1066

A chama e a espada A magia flui atravжs das eras no sangue de Vivian de Amesbury, ] filha secreta de Merlin, perseguida por uma maldiусo que a impede de conhecer o amor. Dotada de uma segunda visсo, Vivian vislumbra um guerreiro normando cruzando um paьs devastado por batalhas, fazendo-a tremer de medo… e de desejo! Rorke FitzWarren vai a Amesbury procurar a cжlebre curandeira que tem poderes para salvar seu soberano, Guilherme, duque da Normandia, dos ferimentos adquiridos em combate. Embora o destino tenha feito de Rorke e Vivian inimigos, surge entre ambos uma paixсo tсo intensa e frрgil quanto uma chama ardente Я mercЖ do vento… e de forуas misteriosas. Numa busca que o leva a um mundo alжm das brumas, Rorke parte Я procura da lendрria espada que lhe possibilita reivindicar o coraусo de Vivian para si… e para sempre! Quinn Taylor Evans ж o pseudЗnimo de Carla Simpson, que combina o estilo dos romances de жpoca com personagens como dragшes e feiticeiros, transportando o leitor

Я antiga Grс-Bretanha dos druidas, guerreiros e batalhas entre o bem e o mal.

Quin Taylor Evans Livro 1 - FILHA DO FOGO TRADUК├O Gabriela Machado Copyright (c) 1996 by Carla Simpson Originalmente publicado em 1996 pela Kensington Publishing Corp. PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP. NY, NY - USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra sсo fictьcios. Qualquer semelhanуa com pessoas vivas ou mortas terр sido mera coincidЖncia. T═TULO ORIGINAL: Daughther of Fire EDITORA: Leonice Pomponio ASSISTENTE EDITORIAL: Patrьcia Chaves EDIК├O/TEXTO Traduусo: Gabriela Machado Copidesque: Maiza Bernardello Revisсo: Claudia Morato

ARTE: MЗnica Maldonado ILUSTRAК├O Hankins + Tegenborg, Ltd. COMERCIAL/MARKETING Daniella Tucci PRODUК├O GR┴FICA SЗnia Sassi PAGINAК├O Dany Editora Ltda. (c) 2006 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 8║ andar - CEP 05424-010 - Sсo Paulo - SP www.novacultural.com.br Impressсo e acabamento: RR Donnelley Moore Tel.: (55 11)2148-3500

A LENDA - Merlin estр morto! O rumor espalhou-se por entre o povo e nobres e plebeus choraram de dor. - O mрgico, o feiticeiro, o fazedor de reis estр morto. E, da remota fortaleza do castelo, dos campos em que cuidavam de seus rebanhos, dos barcos com linhas lanуadas em рguas escuras e das forjas incandescentes, os homens olharam para as colinas em busca do brilho da pira funerрria do mago druida. Mas, em vez disso, viram apenas o brilho de uma estrela enorme cruzar o cжu da meia-noite, como uma jзia reluzente suspensa entre o cжu e a terra. Um sinal, alguns disseram, conforme a estrela riscava o cжu, um poderoso farol que ilumina o caminho, o olho de um dragсo que enxerga alжm das brumas do tempo… E, mesmo enquanto as notьcias da morte de Merlin alcanуavam as praias mais distantes do reino, outra histзria era murmurada em torno das fogueiras e Я beira d’рgua,

como uma promessa sussurrada ao vento frio da noite. - Ele nсo estр morto, mas apenas adormecido… adormecido na bruma. Prзlogo

Abadia de Amesbury

Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. No alto da torre da abadia em ruьnas, a invocaусo antiga ressoava como um murmЩrio entre as frias e Щmidas paredes de pedras. Uma Щnica vela queimava, a chama tornava-se mais forte a cada palavra proferida. Em seu poleiro no canto da torre, um pequeno falcсo bateu as asas, os olhos dourados fixos na chama. Vivian inclinou-se sobre a vela, a luz dourada banhandolhe as feiушes pрlidas, contraьdas, as delicadas sobrancelhas levemente arqueadas, as maусs do rosto salientes a luzir como fogo derretido na torrente flamejante de cabelos soltos, que caьam em uma suave cascata por suas costas. De olhos fechados, ela repetia a antiga invocaусo.

A brilhante luz azul mesclava-se ao ouro reluzente em mutantes padrшes espiralados pelas paredes de pedra, conforme a chama refletia o grande cristal que ela segurava suspenso diante da vela, criando uma tapeуaria faiscante que cintilava e tremulava como se as paredes e teto, de repente, tivessem se tornado um cжu noturno cheio de estrelas. Entсo, de sЩbito, como se obedecesse a seu comando, a luz engoliu a si mesma, os desenhos no teto se concentraram num Щnico ponto reluzente atж que tudo que restava era a chama que agora queimava dentro do cristal. - Revele a mim um tempo que ainda nсo ж tempo, um dia que ainda nсo ж dia - Vivian de Amesbury murmurou. A chama tremulou mais e mais forte a cada palavra. Quinhentos anos tinham se passado desde que uma visсo aparecera pela Щltima vez no antigo cristal azul. Entсo, Я medida que Vivian abriu os olhos, uma nova visсo se revelou lentamente. Dois grandes exжrcitos empenhados numa feroz batalha de fogo, morte e destruiусo, e corpos espalhados por uma imensa planьcie escura.

Seu coraусo condoeu-se ao ver o Alce Saxсo sucumbindo Я forуa da Serpente. Soube, entсo, com certeza, que o exжrcito do rei Harold cairia diante do exжrcito de Guilherme da Normandia. Compreendeu tambжm que ela era impotente para evitar o inevitрvel, pois o que vira estava no futuro, mas jр tinha sido escrito no grande livro da vida desde o princьpio dos tempos. Lрgrimas de angЩstia deslizaram por suas faces. Ela nсo queria testemunhar mais morte e destruiусo e apertou os olhos, fechando-os, tentando bloquear as imagens trрgicas e desoladoras. Porжm, um poder mais forte do que o seu prзprio a compeliu a fitar mais uma vez o cristal. O dom com que nascera era ao mesmo tempo uma maldiусo e uma bЖnусo, e ela teria de contemplar tudo, nсo importava o quсo doloroso ou apavorante fosse. Viu que o destino de seu povo estava em suas mсos. As chamas de morte e destruiусo pareceram queimar lentamente atж que as cinzas e a fumaуa da batalha se

dissiparam e outra profecia se revelou. Do meio das chamas incandescentes, uma criatura magnьfica ergueu a cabeуa, um ser gerado no fogo e sangue da destruiусo. Era esguia, forte, poderosa, e, ao mesmo tempo, feroz e aterradora. Um grande pрssaro predador com penas chamejantes em tons de amarelo, laranja e vermelho, lentamente desdobrou as asas num esplendor de graуa e majestade, em meio a uma escuridсo crescente. E, do centro do cristal, ouviu-se um sussurro: Cuidado com a fж que nсo tem coraусo e com a espada que nсo tem alma. Como se a criatura soubesse que era observada, virou a cabeуa. O sangue derramado na guerra manchava seu bico, os olhos queimavam como se estivessem em chamas. Entсo, uma nova emoусo, muito diferente da primeira, envolveu Vivian. A criatura que se erguia das cinzas e das chamas como a mьtica FЖnix tomou as feiушes de um homem. Capьtulo I

Abadia de Amesbury, Outubro de 1066

- Guerreiros inimigos! E o grito de alarme ecoou no ar frio da manhс e foi ouvido na torre da abadia. Em seu poleiro, o crocitar aflito do falcсo juntou-se ao alarme. O gato Nicodemos, que dormia ao lado do braseiro, saltou para o chсo e correu para baixo da mesa de madeira. Cuidado, Vivian! O aviso ecoou como um murmЩrio ao longo das paredes da estufa onde cultivavam vegetais e as ervas medicinais para suas poушes. Com o coraусo aos saltos, Vivian de Amesbury correu para a janela estreita e avistou o jovem Tom, filho do ferreiro da vila, no pрtio lр embaixo. Tom jр cruzava o riacho e descia pela estrada, espalhando o alarme. A distРncia, Vivian viu os guerreiros montados emergindo da floresta pela antiga estrada romana. As armaduras de batalha

eram de um tom acinzentado sob o cжu de final de outono, e a bandeira que carregavam ostentava uma enorme serpente num campo negro. O medo fez o coraусo dela contrair-se. Vira a serpente quando consultara o cristal. Agora, a profecia se concretizava. A Inglaterra saxс estava perdida. Onde estariam seus protetores, o monge, Poladouras e sua velha ama Megwin? Precisava encontrр-los, afinal, poderiam nсo ter ouvido o alerta sobre os guerreiros inimigos que agora rumavam para a abadia. Como se o cristal pudesse sentir-lhe o medo, cintilou e reluziu em seu pescoуo, emitindo uma luz repentina. Ela correu para os degraus de pedra que conduziam Я capela, logo abaixo. Precisava avisar Poladouras e Meg. O medo crescia em seu peito, o que fez com que descesse correndo a espiral ьngreme dos degraus de pedra. Vivian, contudo, conhecia aqueles degraus desde que era um bebЖ, жpoca em que ela e Meg passaram a viver com Poladouras.

Tinham chegado ali em meio a uma jornada incerta. Por sorte, tinham sido recebidas pelo bom monge no pior inverno de que se tinha notьcia em Amesbury. Depois que o inverno findara, as duas continuaram na abadia. Conforme ela crescia e aprendia as prрticas de cura com a velha Meg, as manhсs eram passadas na enorme estufa de plantas, entretida com o preparo das antigas poушes medicinais. As tardes transcorriam ao lado de Poladouras, aprendendo idiomas, matemрtica e ciЖncias, conhecimentos que o monge adquirira em suas viagens pelos impжrios do Leste. A vida era tranqЧila e pacata na abadia, as poucas necessidades preenchidas pela pequena horta que Meg e Vivian tinham plantado. A lс e as fibras de algodсo eram fornecidas pelos aldeшes por gratidсo pela orientaусo espiritual de Poladouras e pelos tЗnicos curativos de Vivian. Os aldeшes eram pessoas simples, que mal proviam a prзpria subsistЖncia, mas viviam em uma paz quase idьlica. E, como nсo tinham nada de valor, Vivian estava segura

de que nсo precisavam temer os invasores normandos. Jр a abadia de Amesbury caьra em ruьna desde que fora abandonada pelos monges. Somente Poladouras ficara. Por que, entсo, pensou aflita, os guerreiros normandos rumavam para lр? O que queriam? Cuidado, minha menina! De novo ela ouviu as palavras urgentes, como se as pedras da torre lhe sussurrassem um aviso. Vivian chegou ao patamar dos degraus e viu de imediato Poladouras que vinha em sua direусo com passos trЗpegos. - O jovem Tom… - ela gemeu, ofegante. - Guerreiros normandos - o monge aquiesceu, com um leve menear de cabeуa. - Tal como vocЖ previu. Nсo havia surpresa em sua voz. - O exжrcito do rei Harold sucumbiu - continuou ele com tristeza, a voz se alquebrando no final da sentenуa. - ╔ um momento trрgico para todos os saxшes. - Meg? - Vivian chamou, ansiosa. - Estou aqui - a velha senhora respondeu.

O olhar de Meg voltou-se para os degraus. Ela cruzou a capela com surpreendente desenvoltura e sua mсo magra, que muitas vezes confortara Vivian ao longo de toda sua existЖncia, fechou-se sobre seu braуo. - VocЖ precisa ir embora! - disse a velha ama, aflita. Fuja agora, crianуa, pelas colinas, enquanto ainda hр tempo. - Sim, vocЖ precisa ir! - Poladouras exclamou, com firmeza. - Os dias adiante serсo negros para todos nзs. Mais que qualquer outra pessoa, deve saber que nсo deve cair nas mсos dos normandos. Estaremos seguros o bastante aqui. Agora vр, depressa! - insistiu. - Antes que seja tarde! Contudo, jр era tarde demais. As portas de carvalho, que mal continham o vento e o frio, de repente estalaram contra a parede de pedra. O vento uivou pela abertura, apagando as velas. O cheiro acre de fumaуa inundou o santuрrio. Os guerreiros normandos entraram na abadia com as espadas em punho. Meg puxou Vivian para as sombras atrрs do altar.

- Nсo diga nada! - avisou, quando Poladouras voltou-se para encarar os invasores. O monge postou-se diante do altar, inclinado e de ombros caьdos, como se fosse bem mais velho do que era. Apoiou-se no cajado, como se o simples esforуo de ficar em pж exigisse toda sua forуa. O crucifixo que sempre usava reluzia contra a lс rЩstica de seu hрbito, Я vista de todos, e a expressсo em suas faces redondas e gentil era de total surpresa. O coraусo de Vivian apertou-se de medo ao sentir o jogo perigoso que ele estava fazendo. - Afastem-se! - Uma ordem foi dita com aspereza em francЖs, e os guerreiros se separaram para deixar um homem alto e musculoso passar. - Nсo ж necessрrio arrebentar as portas da capela! exclamou o monge. - Qual ж o significado disso? Quem sсo vocЖs? Por que trazem armas para a casa de Deus? - Esta ж agora a casa de Guilherme da Normandia - o soldado que se adiantara informou-o num inglЖs carregado de sotaque. O normando vestia uma pesada armadura de cota de malha, com calуas e manoplas de couro. As feiушes eram

duras e frias. - Viemos procurar a mulher cuja reputaусo ж de ser uma grande curandeira. A expressсo de Poladouras foi de ligeira surpresa. E Vivian ficou espantada com a mentira que lhe saiu com facilidade dos lрbios. - Nсo sei de quem fala, milorde. Nсo hр ninguжm mais aqui. Apenas eu, um humilde monge. Os olhos do soldado normando se estreitaram e Vivian pressentiu o perigo. - Um saxсo disse que a curandeira poderia ser encontrada aqui. A mсo do homem fora profundamente queimada e estava quase curada quando o encontramos-ele continuou. Sua boca curvou-se numa careta cruel. - Nсo sei o nome do homem, mas ele falou da curandeira antes de morrer sob minha espada. Na sombra do altar, Vivian arquejou, pois sabia que ele falava do pai do jovem Tom. O ferreiro sofrera uma queimadura feia na mсo dias antes de ele e os outros homens partirem para Hastings.

Meg apertou o braуo de Vivian. - Nсo hр nada que vocЖ possa fazer por ele agora, menina! - murmurou a velha ama. - ╔ engano - insistiu o monge -, pois nсo hр nenhuma curandeira em Amesbury. O soldado normando nсo estava convencido disso. - Revistem a capela! Tragam a curandeira! Poladouras avanуou com passos trЗpegos, como se para impedi-los. - Isso ж sacrilжgio! Nсo podem entrar neste lugar sagrado com suas armas ainda pingando o sangue daqueles que mataram! O normando sacou sua espada e empunhou-a ameaуadoramente contra o peito de Poladouras. - Pare com essa hipocrisia, velho, ou morrerр onde estр. Vivian lutou para se desvencilhar, mas Meg segurou-a com forуa. - Nсo diga nada! - avisou-a. - VocЖ ouviu a Voz! Esses porcos normandos nсo podem encontrр-la! Os guerreiros se espalharam rapidamente pela capela.

Uma cadeira foi arrebentada sob a bota de um deles, a mesa foi cortada ao meio por um machado de guerra. Os preciosos manuscritos de Poladouras foram descobertos e se juntaram Я pilha de detritos no chсo. - Por favor - o monge implorou, manquitolando com as pernas inchadas. - Os livros nсo tЖm importРncia para vocЖs. Nсo os destruam. - Tem razсo, monge, eles nсo sсo importantes. Mas vocЖ pode salvar seus preciosos livros - o chefe normando sugeriu, num tom insolente -, entregando-me a curandeira! - Eu jр lhe disse - insistiu Poladouras, mesmo que soubesse que era apenas uma questсo de tempo antes que Vivian e Meg fossem descobertas. - Nсo sei de quem fala. Um grito apavorado veio da passagem que levava Я cozinha, e Vivian imediatamente percebeu que era de Mally. A garota a procurara, naquela manhс, em busca de um chр de ervas para aliviar o desconforto da mсe moribunda. Sem dЩvida, fora pega pelos guerreiros na estrada da vila. Foi arrastada por um deles para dentro da capela. Soluуava histericamente.

- Olhe sз, Vachel - o soldado exclamou em francЖs, com um sorriso malicioso. - Veja o que encontrei nсo muito longe da abadia. Uma pequena recompensa por nosso trabalho. Arrastou-a para o meio da capela, onde a colocou em pж e puxou-a contra si, a lРmina de uma faca comprimida em sua garganta. Os cabelos de Mally estavam emaranhados, os olhos cheios de medo. O lрbio inferior estava partido e sangrando. Os seios Я mostra, com hematomas escuros na carne delicada. O sangue manchava sua saia. - Nсo posso suportar ver os outros sofrerem por minha causa. - O coraусo de Vivian confrangeu-se e um soluуo fechou-lhe a garganta. - VocЖ precisa agЧentar! - Meg murmurou, com veemЖncia. - O destino da garota nсo deve ser o seu! Lрgrimas de raiva impotente queimavam nos olhos de Vivian. Suas mсos delicadas se fecharam nas dobras da saia, as unhas raspando pelo comprimento firme de algo esquecido atж aquele momento, no bolso do vestido.

Enfiou a mсo no bolso e sentiu a faca que usara naquela manhс para cortar ervas na horta. Mas, naquele instante, Poladouras ergueu o cajado sobre a cabeуa e, passando a brandi-lo como se fosse uma arma, arrastou-se na direусo dos guerreiros normandos e enfrentou-os com coragem. - Isto ж chсo consagrado, seus brutos! - esbravejou o monge. - A garota nсo ж mais que uma crianуa. Como ousam trazer a morte e a destruiусo para este lugar santo?!

Pelo bem de suas almas mortais, soltem a moуa e vсo embora de uma vez antes que sejam amaldiуoados por toda a eternidade! Os gritos e os comentрrios maliciosos entre os guerreiros normandos cessaram de repente. Por algum tempo, ouviuse apenas o som do fogo a estalar no braseiro. Vivian sentiu a inquietaусo entre os homens ao ouvirem a maldiусo de Deus clamada contra eles. Sem dЩvida, o lьder normando, aquele a quem chamavam Vachel, tambжm sentira, pois uma expressсo de fЩria contorceu-lhe as feiушes. - Maldito seja, velho tolo! - praguejou ele, erguendo a espada e atingindo Poladouras do lado da cabeуa com o cabo da arma. O golpe jogou o monge de joelhos, e os olhos escuros de Vachel luziram de prazer ao erguer a espada para golpeрlo novamente. - Nсo! - Vivian gritou, com toda forуa, ao correr para proteger o monge de outro ataque. Uma agonia imensurрvel encheu o coraусo da velha Meg. Precisava enganar aqueles tolos.

- Sou aquela que procuram - disse ela aos soldados normandos, ao surgir de detrрs do altar e caminhar lentamente em direусo aos inimigos. - Sou a curandeira. - Nсo! - Vivian gritou, quando Meg foi imediatamente agarrada por dois dos homens de Vachel e lanуada ao chсo, aos pжs dele. Vachel se inclinou e segurou-a cruelmente pela garganta. Encarou-a, as feiушes contorcidas por uma raiva perigosa diante dos olhos opacos e sem vida que o fitavam de volta. Praguejou, furioso. - A velha ж cega! - Golpeou brutalmente Meg do lado da cabeуa e empurrou-a para longe. Meg caiu e gritou para Vivian. - Fuja, minha querida. Salve-se! - Entсo, com incrьvel agilidade, lanуou-se sobre Vachel, envolvendo os braуos magros em torno de suas pernas. Ele chutou-a brutalmente e a empurrou de lado. - Nсo a machuque! - Vivian exclamou. Com um feroz instinto protetor, lanуou-se Я garganta de Vachel com a faca.

A um grito de aviso de um de seus homens, o normando desviou o ataque com o braуo. Em vez da garganta, a faca abriu um rasgo em seu rosto. Ele uivou, como um dos cсes vadios de Poladouras, os dedos tocando a face machucada. Seus olhos escuros luziram perigosamente. - Maldita! - esbravejou, erguendo o punho. O golpe apanhou Vivian no ombro e a teria jogado ao chсo se o outro punho nсo a prendesse pelos cabelos. Uma sensaусo de amortecimento espalhou-se pela extensсo do braуo, do ombro ferido aos dedos delicados. A faca que segurava caiu no chсo da capela. Vachel puxou-a contra o corpo, os cabelos torcidos no pulso como uma fita grossa de cetim que ele lentamente enrolava. A cabeуa de Vivian foi forуada para trрs. - Hр maneiras de domar um gato com garras afiadas. - Ele sorriu, uma expressсo fria, malжvola, lрbios puxados sobre dentes que se destacavam no meio da barba emaranhada. Ergueu a espada e comprimiu a lРmina contra a garganta de Vivian. - Vou mostrar quem ж seu novo senhor - prometeu. Inclinou a espada e, com um torcer do punho, cortou o corpete

do vestido atж a carne, descrevendo um crescente escuro na pele pрlida dos seios. Gotas de sangue pingaram da ferida e o sorriso malжvolo alargou-se quando seu olhar se cravou na marca reluzente. - Minha marca em vocЖ nсo passa da primeira, demoiselle - exclamou e puxou-a contra o peito, a barba dura embebida em sangue pressionada contra a face de Vivian. Os elos da cota de malha que lhe cobriam o braуo se enterravam na carne dos seios redondos e firmes. - Eu a domarei - ele jurou. - Quando acabar, vocЖ rastejarр a meus pжs! Irр implorar para me chamar de amo e cumprirр minhas ordens. Vivian recusou-se a gritar ou a acovardar-se. Em vez disso, manteve-se rьgida, o queixo erguido com orgulho, os olhos reluzentes de зdio. Vachel a sacudia violentamente pela espessa massa de cabelos sedosos que enrolara na mсo. - Compreende o que estou dizendo? - exclamou furioso, num inglЖs carregado de sotaque. - VocЖs, saxшes, sсo ignorantes demais para entenderem a mais simples ordem

dada por seus novos senhores? - Je vous comprends - Vivian respondeu em francЖs perfeito, a voz cheia de desdжm, e viu com satisfaусo a expressсo de espanto nos olhos cruжis. Entсo, perguntou, desafiadora: - Me comprenez-vousl - As feiушes delicadas de Vivian estavam tensas e mostravam todo o desprezo e зdio que sentia ao dizer: - Confesse seus pecados, Vachel, e reze por perdсo. Pois juro, pelos antigos, que ж um homem morto. As risadas dos guerreiros normandos somaram-se Я de seu lьder. - Diga-me, demoiselle - prosseguiu Vachel, a barba рspera a raspar-lhe a face. - Como eu morri? Por acaso vocЖ me matou e sou um fantasma que agora a mantжm prisioneira? - Deu uma sonora gargalhada. - Usou alguma espada mрgica para me abater? Mais uma vez ergueu a espada e colocou-a na garganta de Vivian. - Se estou morto - ponderou, o hрlito quente e

desagradрvel a soprar-lhe na face -, como ж possьvel que eu tenha a lРmina contra o seu adorрvel pescoуo? Vivian encolheu-se com repulsa, recusando-se a deixр-lo perceber o menor traуo de medo. - Por favor, eu lhe imploro - exclamou Poladouras, ao lutar penosamente para se pЗr em pж. - Nсo a machuque. Ela nсo passa de uma moуa sem juьzo. Nсo pretendia ferir ninguжm. Queria apenas proteger a velha como qualquer crianуa protegeria a mсe. Vachel, contudo, pareceu nсo ouvir. Comprimiu a espada com mais firmeza contra a carne macia, os olhos luzindo de prazer cruel. De repente, as portas da abadia se escancararam com um baque que fez todos estremecerem. Uma outra vintena de cavaleiros normandos e um igual nЩmero de soldados armados postaram-se ao lado da entrada da capela. - Pare, Vachel ou morrerр! A expressсo de Vachel tingiu-se de incredulidade, e depois se contorceu de raiva quando ele se virou na direусo da voz, arrastando Vivian consigo. - Rorke FitzWarren! Seu filho de LЩcifer! - vociferou.

Apesar das palavras iradas, Vivian sentiu a mсo de Vachel vacilar em seus cabelos, viu o espasmo do mЩsculo no queixo e farejou o indisfarурvel odor de medo do normando. O cavaleiro recжm-chegado postara-se na entrada da capela, emoldurado por um cжu cor de chumbo ao fundo. Entсo, lentamente, avanуou, a espada jр fora da bainha. Seus homens igualmente se insinuaram entre os de Vachel, e Vivian sentiu o зdio frio e ameaуador que os dois normandos e os grupos de guerreiros comandavam. Rorke FitzWarren encheu a capela com sua presenуa poderosa; os mЩsculos pesados, sem dЩvida enrijecidos por muitas batalhas, eram moldados pela cota de malha como se a armadura fosse sua companhia de longo tempo. O toucado de malha fora empurrado para trрs e caьa em dobras pesadas pelos ombros largos. Seus cabelos eram de uma rica coloraусo de negro profundo, reluzentes como a asa de um falcсo, e longos atж os ombros. Sob a luz do braseiro, Vivian viu feiушes fortes e duras. Uma testa larga, o perfil aquilino, as maусs do rosto

salientes e o queixo quadrado, que poderia mostrar forуa de carрter ou teimosia, ou quem sabe ambos, sob a sombra da barba de vрrios dias. Em contraste, sua boca era bem delineada, com uma sensualidade espantosa, mesmo agora, quando os lрbios se afinavam e se apertavam com desprezo diante da destruiусo desnecessрria, ele era indiscutivelmente belo. Olhos que refletiam o dia nublado em suas gжlidas profundezas acinzentadas observaram a cena com desgosto. └ medida que Rorke FitzWarren ergueu a espada e colocou a ponta mortьfera contra a garganta de Vachel, a luz oscilante do braseiro refletiu-se em sua tЩnica. Os fios dourados luziram, captando a parca luz do fogo moribundo. Como se os fios se tornassem as prзprias chamas, a esplЖndida ave caуadora bordada no tecido pareceu erguer-se das labaredas como uma criatura magnьfica nascida de fogo e sangue. O medo aguуou-se e espiralou em torno de Vivian, mais forte do que qualquer temor que ela tivesse de Vachel. Aquela era a mesma criatura que vira no cristal, a FЖnix

mьtica a se elevar das cinzas e das chamas da destruiусo. Foi entсo que o homem, cujas feiушes ela vira pela primeira vez no cristal azul, a encarou, e uma nova chama se acendeu no fundo de sua alma. Pela primeira vez em sua vida, estava diante de um sentimento que nenhum ser humano era capaz de dominar, nсo importava se fosse mago ou mortal. Naquele instante, Rorke FitzWarren reconheceu que se uma chama pudesse tomar a forma humana, esta seria a bela criatura em pж diante dele. A pele acetinada tinha uma pрlida luz dourada, a massa de cabelos sedoso deslizavam atж a cintura delgada, exibindo todos os matizes de vermelho, como as cores do fogo que crepitava em uma lareira, indo do vermelho brilhante ao tom mais profundo de vinho, mesclado com delicado Рmbar. Eram seus olhos, contudo, que lhe chamavam a atenусo e o mantinham cativo. Pareciam ser o coraусo cintilante de uma chama em repouso, no qual o amarelo suave se torna completamente claro e depois magicamente se transforma em azul intenso.

Ele vira as fogueiras de incontрveis acampamentos de guerra em dezenas de lugares estrangeiros que preferiria esquecer, em campos de batalha onde bons homens lutavam por causas justas e morriam; e outros lutavam por simples e mera ganРncia e, por alguma razсo misteriosa, viviam. Fazia tanto tempo que convivia com a guerra que, quando pensava em fogo, pensava em morte. Atж aquele momento, jamais imaginara o fogo como algo puro e vivo. A bela saxс exibia o lume de um indomрvel orgulho, desafio e ira apaixonada, como se o fogo encontrasse vida dentro dela, e qualquer um que a tocasse certamente morreria queimado. Contudo, fazЖ-lo seria uma deliciosa tortura. Uma onda de desejo e fascinaусo o fez ansiar por tocar a pele pрlida, sentir a seda fulgurante dos cabelos entre os dedos, perder-se nos olhos zangados, desafiadores. Dentro daqueles olhos acinzentados da FЖnix, Vivian sentiu como se olhasse para si mesma e vislumbrasse todas as formas soturnas e escuras que assombravam suas visшes

e sonhos. Rorke FitzWarren era seu inimigo, uma criatura nascida em fogo e sangue. E, contudo, ela nсo conseguia desviar os olhos, pois sabia que estava fitando o futuro que ainda nсo estava escrito e a aguardava, sombrio, desconhecido e terrьvel, como o ousado guerreiro normando que estava em pж, espada em punho, a fitр-la com olhos como a alvorada de inverno. - Maldito! - Vachel praguejou para Rorke FitzWarren. - Fui enviado para encontrar a curandeira. Por que estр aqui? - perguntou. A expressсo de FitzWarren tornou-se ainda mais predatзria, o olhar frio como um iceberg que flutuava no Mar IrlandЖs. - Queria ter certeza de que vocЖ nсo encontraria nenhuma dificuldade - ironizou. Entсo, ordenou: - Solte-a, agora. - Soltр-la? Essa maldita saxс me enfrentou com uma faca! - Vachel esbravejou, sua mсo ainda presa aos cabelos de Vivian.

- Eu poderia tЖ-la matado. O olhar frio de FitzWarren desceu para frente do corpete de Vivian, onde a lРmina de Vachel a ferira. - Sim, posso ver o grave perigo que correu - disse com ironia e, entсo, repetiu: - Solte-a. Vivian sentiu a sutil mudanуa dos mЩsculos conforme os ombros de Vachel comprimiram-se Яs suas costas, e percebeu que ele nсo tinha intenусo de largр-la. Ele mudou de posiусo e se moveu para erguer a espada. Mas foi imediatamente confrontado pela arma de FitzWarren, que a deslizou perigosamente abaixo do queixo de Vachel, contra a carne vulnerрvel do pescoуo na abertura da armadura de cota de malha. Os olhos de Vachel se arregalaram e ele empalideceu. Lentamente, o sangue voltou a subir por seu pescoуo e faces, num acesso claro de raiva, enquanto ele respirava fundo e praguejava baixinho. - Maldito seja! No instante seguinte, Vivian sentiu-o enrijecer. Nсo demorou a saber o motivo de tal reaусo: um filete de

sangue escorria por toda a extensсo da espada de Rorke FitzWarren. - Solte-a ou morrerр - FitzWarren murmurou, com uma calma tсo brutal que Vivian estremeceu. Vachel, de repente, ficou imзvel. - Creio - disse FitzWarren -, que o melhor guerreiro ж aquele que experimenta os dois lados de uma lРmina. - A ponta da espada estava a um fio da jugular do inimigo. - A experiЖncia de um faz melhor a apreciaусo do outro. ╔ prudente quem compreende isso. E tolo aquele que nсo entende… ou um homem morto. - Fez uma pausa. - Digame, Vachel, vocЖ ж prudente? Ou tolo? Desde que recebera o tьtulo de cavaleiro, Rorke conhecera incontрveis homens como aquele que estava sob o julgo de sua espada. Vachel era um mercenрrio, um guerreiro profissional como tantos outros que vendiam seus serviуos pelo maior lance. Jр os motivos que o levavam Я guerra eram bem diferentes. Ele era um bastardo por nascimento, cujo

Щnico destino possьvel fora a cavalaria. Escolhera tornarse um guerreiro como um meio de ganhar o que lhe fora negado por nascimento, o ducado de Anjou, que ele jurara tomar do pai que odiava e desprezava. Ele e Guilherme da Normandia partilhavam muitas coisas, o nascimento bastardo, a ambiусo e a guerra. Tinham se encontrado pela primeira vez no campo de batalha contra os Moors, que defendiam um imenso esconderijo de ouro em San Cristabol. O exжrcito de Guilherme fora rodeado por trЖs lados e poderia ter sido dizimado se Rorke e seus homens nсo se juntassem Я batalha. Tinham estado juntos desde entсo, mas muitas vezes era difьcil saber quem servia a quem. Quando Guilherme decidira tomar a Inglaterra e novamente necessitara de um exжrcito poderoso, fizera uma barganha com Rorke pelo ducado de Anjou. Melhor ter um aliado Яs suas costas, quando enfrentasse o rei francЖs, que era uma ameaуa constante, pois Anjou fazia fronteira com a Normandia. Vachel, contudo, era diferente deles. Nсo tinha ambiушes

por terra, honra ou poder. O dinheiro que lhe era pago pelo irmсo de Guilherme, o bispo, significava pouco para ele. O que mais importava era a matanуa. Era um caуador nato, perigoso ao extremo, com uma luxЩria sangЧinрria que nсo dava trжguas. Acima da ponta da espada de FitzWarren, a face de Vachel contorceu-se de raiva. Ele praguejou e depois recuou quando mais sangue escorreu pela extensсo da lРmina de Rorke FitzWarren. Entсo, baixou a espada, e Vivian sentiu o aperto dos dedos em seus cabelos afrouxar-se. Quando se viu livre, ela rapidamente se afastou. - ╔ prudente o homem que conhece suas limitaушes. Agora vocЖ saberр exatamente o que se sente ao ter a carne rasgada pela espada e ver seu sangue escorrer pela ferida. Para enfatizar as palavras que proferia, FitzWarren inclinou a ponta da espada primeiro numa direусo e depois noutra, abrindo um pequeno crescente na base da garganta de Vachel, e Vivian ficou espantada ao perceber que aquilo se parecia muito com a marca que Vachel fizera nela com a prзpria lРmina.

A respiraусo de Vachel assobiava entre seus dentes. Sua face estava agora mortalmente pрlida. Ele praguejou de novo, desta vez de dor, ofegando com o pescoуo rьgido. - Nсo me esquecerei disto, FitzWarren! - prometeu. Entсo, engoliu em seco, o odor do medo podia ser sentido no ar. - Maldito seja no fogo do inferno! FitzWarren deu de ombros, um movimento difьcil sob o peso da pesada cota de malha. - Hр muitos outros que jр desejaram isso - atalhou com ironia. Depois, na mesma entonaусo de voz, sem a emoусo que parecia apenas aumentar a ameaуa de perigo, como o sibilar da serpente antes do ataque derradeiro, ordenou a Vachel: - Entregue-me sua espada ou serei forуado a matр-lo. Vachel hesitou. Entсo, lentamente, soltou o cabo da espada. Uma expressсo perigosa nublou as feiушes grosseiras, Я medida que a espada caьa a seus pжs com um baque surdo. Seus olhos duros e sombrios nсo mostravam rendiусo, mas, em vez disso, luziam com uma fria luz mortal, e Vivian nсo soube

dizer qual dos dois era o mais perigoso. - Por que estр aqui? - Vachel sibilou por entre os dentes cerrados, mesmo enquanto a ponta da espada de FitzWarren ainda descansava na carne de sua garganta. Fui mandado para encontrar a curandeira! Nсo havia necessidade de vocЖ ou desses malditos bрrbaros que o seguem como uma sombra estarem aqui. Houve uma mudanуa de movimentaусo entre os homens de FitzWarren, e Vivian viu um guerreiro com uma espada estranhamente curvada avanуar silenciosamente para se postar ao lado dele. A Щnica resposta de Rorke FitzWarren foi uma sutil inclinaусo de cabeуa, como se ele sentisse mais do que visse o movimento do outro homem. O guerreiro usava tЩnicas longas amarradas na cintura, que caьam sobre calуas de couro abaixo de seus joelhos. Sua cabeуa estava enrolada num pano branco que pendia por seus ombros, e fazia um agudo contraste contra a pele de um tom de dourado. Sobrancelhas tсo negras como a noite desenhavam Рngulos curvos acima das feiушes atraentes, visьveis apenas com dificuldade no aposento mal-iluminado, conferindo-lhe a aparЖncia atenta e

perigosa de uma pantera. Vivian observou-o com fascinaусo, pois ele a fazia lembrar das histзrias que Poladouras lhe contara sobre os persas e o Impжrio Bizantino do Oriente. Os olhos dele, contudo, eram tсo azuis quanto o cжu de verсo. Que homem impressionante! Um segundo cavaleiro deu um passo Я direita de FitzWarren, com a espada desembainhada. Tirou o elmo da cabeуa, a massa de cabelos vermelhos a lhe cair atж os ombros e o olhar ansioso a luzir como Рmbar lьquido. Vivian notou que era mais jovem que FitzWarren e tambжm que o guerreiro de vestes estranhas, mas nсo menos imponente. Mesmo sem conhecЖ-lo, ela sabia que o cavaleiro mais jovem atacaria primeiro e depois calcularia as conseqЧЖncias, como uma serpente veloz e mortal. - Gostaria que eu separasse a cabeуa do cсo do bispo de seus ombros sarnentos? - ele perguntou, num tom que sugeria que seria um enorme prazer fazЖ-lo. - Vejo que trouxe o jovem bastardo com vocЖ tambжm grunhiu Vachel com escрrnio. A intensidade de seu зdio

impregnou o ar, mesmo num lugar tсo sagrado como a abadia. - Eu nсo imaginava que procurar uma curandeira do interior saxсo exigisse a presenуa real. Vivian viu com crescente curiosidade quando o jovem guerreiro reagiu violentamente e teria atacado Vachel com a espada se Rorke FitzWarren nсo interviesse. - Nсo vale a pena, Stephen - disse ao cavaleiro mais jovem. - O dia virр, mas nсo aqui, nem agora. Existe assunto mais urgente a tratar. O jovem abaixou a espada, mas nсo a embainhou. FitzWarren observou a destruiусo na abadia. Seu olhar parou em Poladouras, com o ferimento na cabeуa, seguiu para a figura igualmente ensangЧentada e encolhida de Meg, para a criada histжrica, em prantos, e, entсo, pousou em Vivian. De novo, ela se sentiu devassada por aqueles olhos penetrantes que pareciam ter o poder de ver-lhe a alma. - Parece, Vachel - disse ele, num tom a princьpio de desprezo e depois cьnico -, que esses saxшes sсo muito perigosos mesmo. Imagine sз, um monge, uma velha, uma

menina assustada e uma jovem. Sem dЩvida, o monge jogou um livro em vocЖ. Este aqui, talvez - sugeriu, pegando um dos manuscritos do chсo. Com uma gentileza que era quase reverente, colocou o manuscrito sobre uma mesinha que escapara da destruiусo. Vivian franziu o cenho diante do inesperado gesto do cavaleiro normando. - Talvez - FitzWarren continuou -, a velha o tenha dominado e o feito temer por sua vida. - Postou-se junto a Meg, encolhida no chсo a seus pжs, e ordenou: - Olhe para mim, senhora. - A facilidade com que mudou para o idioma saxсo surpreendeu a todos. Meg endireitou os ombros magros. - VocЖ nсo me assusta, guerreiro - sibilou ela, recusandose a obedecer enquanto olhava com teimosia para o chсo. Vivian conteve a respiraусo diante das pragas em antigo celta que Meg proferiu. Entсo, deixou de respirar de todo quando FitzWarren tirou as pesadas manoplas e ajoelhouse

ao lado de sua velha ama de leite, com uma facilidade de movimento quase graciosa, a despeito da armadura de batalha que usava. Naquele momento, ela teve a certeza de que o guerreiro normando entendera as coisas horrьveis que Meg dissera. Logo, ficou espantada quando o viu forуar a cabeуa de Meg para cima com um gesto gentil. Meg berrou vрrios sacrilжgios ao agarrar e arranhar a mсo de FitzWarren que a segurava. Sem se intimidar, ele inclinou-lhe a cabeуa para trрs e observou a face enrugada marcada pelos hematomas que Vachel lhe infligira. A velha senhora ergueu as mсos para o alto como se para se proteger de outro soco, fazendo gestos grotescos com os dedos. Apenas Vivian compreendeu os antigos sinais que a mulher fazia com as mсos, convocando todas as criaturas mрs que pudesse chamar das Trevas, cada possьvel doenуa que jр acometera a raуa humana e horrьveis mazelas que nem mesmo Vivian conhecia. - Nсo pense em me amaldiуoar ou me conjurar algum feitiуo, velha! - FitzWarren a avisou. - Pois nсo acredito em

tais coisas. - Vai acreditar! - Meg avisou, ameaуadoramente. - Quando seus olhos saltarem de sua cabeуa e sua masculinidade se encolher e se tornar menor do que um verme! Ele ignorou as ameaуas e voltou-se para Mally. Deslizou os dedos sob o queixo trЖmulo da garota e inclinou-lhe a face para cima para que ela tambжm fosse forуada a encarр-lo. A garota choramingou, as lрgrimas escorrendo pelo rosto machucado e sujo, o olhar desviado. - Nсo vou machucр-la - ele disse, com uma gentileza bastante surpreendente. Mally o fitou por entre os cьlios cerrados. - Embora Deus saiba que vocЖ tem razшes suficientes para me temer - FitzWarren emendou, em francЖs - e ainda mais razсo para duvidar do que digo. Vivian ficou surpresa por aquela preocupaусo inesperada pela garota e observou-o com uma renovada curiosidade. Entсo, ele disse a Mally, em inglЖs: - Olhe para mim. Finalmente a garota ergueu os olhos azuis que brilhavam

apavorados num rosto muito machucado. Ela parecia mais um bichinho encurralado, que mal escapara com vida. Ao vЖ-la, a raiva cruzou a expressсo implacрvel de FitzWarren. - Solte-a - ordenou ao soldado que a mantinha prisioneira. Apavorada e admirada, Mally esgueirou-se para as sombras na parede. A voz de FitzWarren tornou-se fria, amarga e inclemente ao dizer a Vachel: - Se fosse por vocЖ, teria matado todos os saxшes, inclusive a curandeira! O olhar de Vivian cravou-se em Vachel. Por que o homem haveria de querer matр-la? Como se lhe ouvisse os pensamentos, Rorke FitzWarren voltou-se lentamente para Vivian. Seu olhar demorou-se no tecido rasgado do vestido e na marca ensangЧentada na pele pрlida. A boca carnuda curvou-se formando uma linha dura. - Minhas desculpas, demoiselle. O rei ficaria ofendido se soubesse que foi tсo maltratada. Ela ergueu a sobrancelha ligeiramente ao responder, em

francЖs, as palavras a destilarem toda a raiva, o зdio e o desprezo que sentia pelos normandos. - Fala sem dЩvida do rei Harold - disse, desafiadora. - E tem razсo, milorde. Ele jamais toleraria tal abuso de seus sЩditos leais, tampouco permitiria tiranos estrangeiros em solo inglЖs. - Falo de Guilherme da Normandia - Rorke retrucou com surpresa ao descobrir que ela falava um francЖs perfeito. Seu novo rei, milady. - Guilherme nсo ж meu rei - Vivian argumentou, com desprezo. - A Inglaterra saxс jamais se curvarр diante de um senhor feudal normando. A estrada do campo de batalha ao trono ж longa e muitas vezes cheia de perigos. Negava com todo o coraусo o que jр sabia ser verdade, que toda a Inglaterra estava perdida. Porжm, nсo poderia curvar-se diante daquele cavaleiro normando que trouxera morte e destruiусo a seu povo. - Sim, a estrada ж longa e perigosa - concordou ele. Porжm, eu lhe asseguro, Guilherme da Normandia serр rei da Inglaterra.

Algo brilhou no chсo e chamou a atenусo de Rorke. Ele agachou-se e apanhou o objeto brilhante. A respiraусo de Vivian ficou presa na garganta quando os dedos longos se fecharam sobre a faca, antes de fitр-la com ar especulativo. - Мleo de alecrim. Disseram-me que ж muito eficiente para curar gota. - Aquele olhar acinzentado, como os longos dias de inverno recaьram entсo sobre Poladouras e suas pernas inchadas. - E tambжm freqЧentemente usado por curandeiros. Os olhos arregalados de Vivian encontraram os dele. Rorke percebeu de imediato a cautela que havia ali, a sЩbita tensсo de cada mЩsculo do corpo esguio. Estendeu o braуo e afastou-lhe os cabelos avermelhados que caьam pelos ombros como um manto de fogo derretido. Sentiu o calor que exalava da pele clara e divisou-o na chama que tremulou nas profundezas daqueles olhos azuis. Ouviu o murmЩrio sЩbito e espantado da respiraусo dela, o que o fez retirar a mсo rapidamente. O contato foi breve, aqueles dedos duros calejados a roуar-lhe a face fizeram Vivian estremecer, ao fecharem o

que sobrara do corpete rasgado. Com зdio e temor no coraусo, disse a ele o que Rorke jр adivinhara. - Eu sou a curandeira que vocЖ procura. Os olhos acinzentados cravaram-se nela. Ele entсo girou a faca e estendeu-a em sua direусo. Vivian o encarou com uma cautela renovada, incapaz de lhe adivinhar as intenушes. - Nсo pense em usр-la contra mim - ele avisou. - Nсo precisa ter medo. Preciso de vocЖ sс e salva. - Em seguida, voltou-se para seus homens. - Perdemos tempo demais. - Encarou-a outra vez. - Apronte-se para partir de imediato, demoiselle. ReЩna suas ervas e pзs, pois o tempo ж essencial se for para o duque da Normandia viver. Vivian nсo julgara que aquela jornada fosse de tamanha importРncia. Entсo a raiva substituiu sua surpresa ao dizer a ele: - Jamais empregarei minhas habilidades para curar o normando que ж causa da dor e sofrimento das terras saxсs!

Rorke FitzWarren voltou-se lentamente, a luz do braseiro a brincar nas feiушes angulosas, ao mesmo tempo em que recaьam sobre a imagem da poderosa criatura bordada na frente de sua tЩnica. Por um momento, pareceu que homem e animal se tornavam um sз. Tal como ela vira na chama no coraусo do cristal azul. Sua expressсo era feroz, predatзria, perigosa. Os olhos tсo frios quanto as noites de inverno. No entanto, suas palavras foram lentas e cuidadosamente proferidas: - Empregarр sim, demoiselle - ele assegurou-lhe -, ou toda Amesbury pagarр o preуo. A escolha ж sua. Ela estava encurralada, sem qualquer opусo, e FitzWarren sabia disso. Vira a lealdade que devotava ao monge e Я velha senhora. A bela jovem de cabelos cor de fogo daria alegremente a vida por qualquer um deles. Porжm, com as vidas de todos os aldeшes em jogo, ele lhe oferecia uma escolha impossьvel. A agonia daquela escolha era clara. Contudo, o espьrito indomрvel nсo permitiria que Vivian mostrasse qualquer obediЖncia ou concordРncia em se submeter a ele. Em vez disso, ela virou-se e caminhou lentamente para os degraus de pedra que, sem dЩvida, conduziam Я torre que ele vira quando tinham se aproximado da abadia.

Com um gesto, ele mandou que Tarek ai Sharif a seguisse e se certificasse de que ela faria o que lhe ordenara. O guerreiro de vestes estranhas e espada curva juntou-se a Vivian nos degraus da torre. - Ele o mandou para me guardar ou para ter certeza de que nсo vou escapar? - perguntou Vivian, com um tom de sarcasmo, no prзprio idioma, certa de que aquele bрrbaro de pele bronzeada nсo poderia entender. Contudo, ele a compreendeu muito bem. Sorriu ao se apresentar gentil e educadamente como Tarek ai Sharif, e ao ouvir seu nome ela soube ser verdadeira a sensaусo anterior que tivera em relaусo a ele. Era persa, do Impжrio Bizantino. Ficou a imaginar como um homem assim viera lutar ao lado de Guilherme da Normandia. - Permita-me ajudр-la, senhora - disse Tarek, num inglЖs quase perfeito. Estendeu-lhe a mсo. E a guiou degraus acima, embora ela dificilmente precisasse de sua ajuda.

Em seu toque, ela sentiu compaixсo e respeito. - Veja para que nada seja esquecido - murmurou ele, ao chegarem Я estufa de plantas. Embora Tarek ai Sharif tivesse permanecido calado depois disso, Vivian sentiu sua silenciosa contemplaусo quando ela reuniu rapidamente tudo o que levaria consigo. Diante do olhar indagador que o guerreiro persa lhe dirigiu quando ela deixou uma porусo de cada pз e erva nos frascos e potes de cerРmica, ela o informou: - Os aldeшes precisarсo disso quando eu me for. Vivian espantou-se outra vez quando o guerreiro nсo objetou, mas a ajudou a colocar cuidadosamente os pacotes e frascos preciosos num grande saco de tecido rЩstico. Rorke FitzWarren e seus homens esperavam montados em seus cavalos no pрtio do lado de fora da abadia. Vachel e seus comandados, tambжm montados em seus cavalos, esperavam a distРncia. Vivian sentiu o olhar raivoso de Vachel sobre si e novamente pensou se aquilo que Rorke FitzWarren dissera era verdade. Serр que o irascьvel Vachel a teria matado

se nсo tivesse sido interrompido? Poladouras pousou a mсo sobre o rosto de Vivian. - Deus esteja consigo, minha menina. Ele a devolverр a nossos cuidados. - Nсo se atreveu a dizer ou fazer mais nada quando Rorke FitzWarren o encarou impaciente. Mas a velha Meg nсo tinha medo dos guerreiros normandos e tampouco podia ver a impaciЖncia do comandante. - Estр com o cristal? - perguntou, aflita. - Sim - Vivian assegurou-lhe, a mсo a comprimir-se instintivamente contra o cristal pendurado em seu pescoуo e aninhado entre os seios redondos. Sentiu a reafirmaусo do poder da chama que queimava no coraусo da pedra. - Seja forte, mo chroi - Meg disse a ela, falando no antigo idioma celta que partilhavam. - Lembre-se, vocЖ precisa fugir na primeira oportunidade. - Nсo! Nсo posso arriscar a vida dos outros - murmurou, entсo abraуou Meg com forуa e trocaram despedidas. Suspirando, Vivian puxou o xale grosso sobre a cabeуa e em torno dos ombros para cobrir o corpete aberto do

vestido, pois nсo houvera tempo para colocar outro. O saco com os frascos e as poушes que preparara colocara debaixo do braуo, pouco antes de sair para o frio do dia. Ao cruzar o pрtio, viu a plena extensсo dos danos que os soldados tinham infligido Я abadia de Amesbury. Um dos cachorros de Poladouras estava morto sobre o chсo de pedras, havia ovelhas espalhadas por toda a parte e o jovem pastor do vilarejo encontrava-se estirado no chсo. Com um grito de protesto, Vivian correu para ele. - Conal! Ele estava de lado, sangrando muito de um profundo corte na cabeуa. Gemeu quando Vivian passou-lhe o braуo sob o corpo e ergueu o ombro do chсo para aninhar sua cabeуa no colo. - Guerreiros inimigos! - Conal murmurou em delьrio. Precisamos fugir! - Sim, Conal. Nсo fale agora - Vivian pediu, ao conter o sangue do ferimento com o xale. Sentiu uma pontada de зdio diante da crueldade dos bрrbaros normandos. Naquele

instante, nсo teve dЩvida de qual seria o destino dos aldeшes se ela se recusasse a acompanhar o chefe normando. De sЩbito, a chuva que ameaуara cair a manhс toda desabou sobre eles. - Deixe-o - Rorke FitzWarren ordenou com aspereza. Seu enorme cavalo de batalha movia-se inquieto no aguaceiro, e a teria facilmente atropelado nсo fosse pela mсo forte agarrada Яs rжdeas. - Ele estр muito ferido - Vivian protestou. - Preciso fechar o ferimento. - Entсo, num tom que mesclava ironia e desdжm, emendou: - Certamente, milorde, mesmo o senhor seria capaz de compreender isso. Os olhos frios como gelo se estreitaram, e os lрbios grossos se apertaram formando uma linha dura. A chuva ensopava os longos cabelos negros de Rorke FitzWarren, tornando-os mais escuros ainda e fazendo-o parecer aquilo de que Vachel o xingara: o filho de LЩcifer. Ela estremeceu diante de tal pensamento. - Compreendo muito bem, demoiselle - retrucou ele. Deixe-o onde estр ou pode ter certeza de sua morte

iminente. - VocЖ nсo mataria um homem ferido! - Vivian exclamou, incrжdula. A espada de Rorke FitzWarren tiniu num som mortal ao sair da bainha. - A escolha ж sua, demoiselle, - Perdoe-me, Conal - ela murmurou, acariciando a face do pastor com gentileza. - Meg cuidarр de seus ferimentos. A mсo do homem se fechou sobre a dela com uma forуa incomum para um moribundo. — Eu a encontrarei - murmurou. - Os porcos normandos pagarсo por tudo que fizeram. - Entсo, gemeu, e sua cabeуa tombou de lado. Perdera a consciЖncia. Ela tirou o braуo de sob os ombros largos quando Meg aproximou-se e se agachou ao lado. - Cuidarei dos ferimentos de Conal. Vр agora, mo chroi. E lembre-se do que eu lhe disse. Vivian levantou-se devagar e encarou Rorke FitzWarren com ar desafiador, o зdio a queimar em seus olhos ao sentir, no fundo do bolso, a forуa reconfortante da faca

que ela recuperara. - Odeie-me, se quiser, milady - Rorke FitzWarren disse a ela -, mas nсo iremos nos atrasar mais. - Estendeu a mсo, o braуo a circundр-la pela cintura quando se inclinou na sela. Ela foi erguida facilmente e acomodada na sela diante dele, as pernas separadas, uma de cada lado. O saco de ervas e pзs foi preso e pendurado ao alforje. O normando

distribuiu ordens secas aos homens e o pрtio tornou-se um mar de lama sob as patas dos animais. Entсo, Vivian de Amesbury deixou a abadia, talvez para nunca mais voltar. Ainda nсo pudera desvendar o futuro, e seus olhos se encheram de lрgrimas por aqueles que amava. Gritos de lamento ecoaram no ar gelado, e o olhar de Vivian ergueu-se para o cжu. Ao alto, o pequeno falcсo pairava nos ventos da tempestade que se formava, crocitando dolorosamente Я medida que os acompanhava. Capьtulo II

A chuva que comeуara a cair assim que tinham deixado Amesbury tornara-se uma forte tempestade. Foram forуados a diminuir o passo quando a velha estrada romana comeуou a ficar escorregadia, com os animais deslizando perigosamente na lama.

A prisioneira sentava-se diante de Rorke FitzWarren com as mсos fechadas no ressalto da sela, queixo erguido e nariz empinado, mantendo-se tсo longe dele quanto possьvel. Ela nсo era exatamente quem Rorke esperava encontrar na abadia. A prзpria noусo de que morava numa abadia sugeria uma vida enclausurada, reclusa, de humildade, obediЖncia e subserviЖncia natas. Curandeiras ou eram velhas bruxas enrugadas ou corpulentas parteiras camponesas que tinham adquirido conhecimentos sobre ervas e seus poderes medicinais. Contudo, aquela jovem nсo era nem velha nem enrugada e tampouco corpulenta. Sob as vestes usadas e remendadas, era esguia e de ossatura delicada. A despeito dos maltratos de Vachel, sua pele era como o mais fino e pрlido cetim, e os cabelos, agora protegidos pelo xale, pareciam uma cascata de fogo. Os olhos… Ah, os olhos azuis pareciam ter vida prзpria e queimavam com um зdio feroz quando ela encarara Vachel, e depois refletiram o azul mais profundo ao deixar aqueles

que amava. Agora, eram como chamas azuis em descanso. Como uma donzela tсo linda e incomum fora terminar enclausurada em uma abadia?, Rorke perguntou-se secretamente. A sela de couro se tornara escorregadia, e ela tremia violentamente de frio. Movido por um impulso, Rorke a firmou, segurando-a pelo quadril. Vivian se assustou com aquele toque quente atravжs das vestes frias e molhadas. Enrijeceu o corpo e teria se afastado, mas a mсo forte e calejada a impediu de fazЖlo. - Fique quieta - ele disse, o braуo musculoso apoiando-a contra si - ou vai nos fazer cair. Mas ela nсo conseguiu parar de tremer. - VocЖ estр com frio. Vivian sentiu a sЩbita mudanуa de posiусo na sela atrрs de si, o aperto de poderosos mЩsculos das pernas em torno de seus quadris, o peito largo a suas costas quando ele acomodou o pesado manto ao redor dos dois, fechando-os num casulo forrado de pele.

Um medo selvagem cresceu dentro dela diante de tamanha proximidade. Sentia-se encurralada e vulnerрvel de um modo que nunca experimentara antes. O calor compartilhado por seus corpos era, ao mesmo tempo, delicioso e aterrador. Rorke, por sua vez, descobriu que havia riscos mais graves do que se encontrar, de repente, fora da sela de seu cavalo, pois o perigo estava justamente nas coxas macias encostadas Яs suas e na curva das nрdegas femininas comprimidas sedutoramente contra sua virilha. O perfume suave de Vivian o embriagava. Ela cheirava a vento, chuva e Я doce promessa de primavera conforme seu calor comeуava a mesclar-se ao dele. Seus cabelos eram como cetim, caindo lustrosos e macios pelos ombros. A pele pрlida implorava pelo toque de um homem. O desejo o estava traindo. Se nсo fosse por aquelas camadas de cota de malha e couro, sua reaусo ficaria evidente. Ele praguejou baixinho. Nсo conseguia se lembrar da Щltima vez em que ficara tсo facilmente excitado ou que tivesse fantasiado em amar

uma mulher livremente logo apзs ter acabado de conhecЖ-la. Isso o surpreendia, porque nсo era um homem que se deixava dominar pela compulsсo sexual, como alguns de seus guerreiros, que procuravam qualquer carne macia e quente. Mesmo assim, aquela curandeira saxс, com olhos do tom azulado que arde no interior de uma chama e cabelos como o fogo derretido, o fazia sentir como se todo seu corpo estivesse pulsando de desejo. - Nсo precisa partilhar seu manto comigo - disse ela, puxando a capa que os envolvia. - VocЖ estр molhada e com frio - Rorke retrucou, recusando-se a soltр-la. Descobrira que era uma doce tortura da qual nсo queria se desvencilhar. - Jр estive molhada e passei frio antes - ela insistiu, tсo perto que sua face emanava calor abaixo do queixo dele. Nсo me importo. - Eu me importo. E, se insistir, demoiselle, entсo a amarrarei diante de mim - ele assegurou-lhe. - A escolha ж sua. Vivian endireitou-se e se manteve teimosamente rьgida na

sela. └ medida que as horas passavam, ele a sentiu vacilar quando a fadiga a dominou. Por fim, a exaustсo a venceu. Seu queixo delicado caiu. Ela se aconchegou e nсo mais tentou se afastar. A noite comeуou a descer no horizonte e tornou-se impossьvel avanуar na escuridсo que se fechou em torno deles. A beira de um bosque, Rorke ordenou que seus homens montassem acampamento para passarem a noite. A prisioneira saxс acordou sobressaltada. - Sa se bien, demoiselle. A exaustсo lentamente se dissipou e Vivian afastou-se dele, os olhos cautelosos e brilhantes. - Que lugar ж este? - Acamparemos aqui esta noite e continuaremos ao amanhecer. Rorke tirou o manto que os protegia e desmontou. Vivian estremeceu com a perda sЩbita do calor que a

mantivera aquecida. Suas costas doьam e as pernas contraьam-se de cсibras por estar na sela por tantas horas. Ela escorregou para o chсo e teria se esparramado na lama se ele nсo a pegasse. - Se vamos comer - disse Rorke, olhando para o bosque -, e nсo quisermos congelar durante a noite, precisaremos de lenha para fazer uma fogueira. Nсo quer recolher alguns gravetos? Vivian o encarou surpresa. Julgava que ficaria amarrada. - Nсo tem medo de que eu possa fugir? - perguntou, incrжdula. - ╔ uma longa caminhada de volta Я abadia - ele ponderou. - Sim, mas eu poderia me esconder nos bosques. VocЖ nсo saberia que caminho eu teria tomado. - Tem toda razсo, mas, de qualquer forma, seria encontrada. E nсo posso assegurar que seriam meus homens que a localizariam primeiro. Vivian ergueu o queixo.

- Nсo tenho medo de Vachel. - Nсo, mas os aldeшes de Amesbury tЖm razшes de sobra para temЖ-lo, e lр serр o primeiro lugar que Vachel mandarр seus homens se vocЖ desaparecer. Se for encontrada, ele queimarр a vila. Se nсo for encontrada, mesmo assim ele queimarр a vila. Vachel ж como um animal - advertiu-a - e, tal qual um animal, torna-se ainda mais sangЧinрrio na caуada. Ela estremeceu de novo. Desta vez, nсo era de frio, mas sim por causa da lembranуa de sua visсo no coraусo da pedra. Teve a sensaусo crescente de estar sendo atraьda em direусo a algo que nсo conseguia compreender nem evitar. - Nсo tentarei escapar - murmurou suavemente ao se voltar para as рrvores. - Tem minha palavra. - Nсo se afaste muito - Rorke avisou. Quando retornou, Vivian descobriu que Rorke montara acampamento perto dos cavalos. Seu manto estava sobre um tronco de um enorme carvalho caьdo. Uma рrea havia sido

limpa em frente Я рrvore, onde se apoiavam alguns rolos de peles espessas. Vivian colocou folhas secas e pedaуos de casca de рrvore com pequenos brotos no pequeno fogo que ele armara ao abrigo do carvalho caьdo. Logo as chamas ganharam vida e as labaredas danуavam em torno da lenha que queimaria durante toda noite. Tomada por um repentino calafrio, ela levantou-se abruptamente e virou-se, sabendo quem iria encontrar. Vachel se aproximara tсo silenciosamente que ela nсo o ouvira, mas pressentira sua presenуa. A raiva lampejou nos olhos negros de Vachel. Pensara em pegр-la de surpresa, mas tal esperanуa se desvanecera. - ╔ realmente habilidosa, senhora. Tem um fogo forte enquanto outros lutam para acender a primeira fagulha. Ele se agachou diante do fogo com um movimento рgil que contradizia a robustez de seu corpo. Uma lРmina reluziu em sua mсo, arma que nсo estava ali antes e espetou a ponta nos carvшes que comeуavam a se formar no fogo.

Voltou-se para encarar Vivian. Passou a mсo sobre o corte na face. Mas o olhar de Vivian estava cravado na faca em suas mсos. Podia ouvir-lhe os pensamentos perigosos tсo claramente como se ele os proferisse em alto e bom som. E sentiu tambжm a humilhaусo que fervia dentro dele como uma ferida infectada. Sim, ela o envergonhara diante de seus homens e Vachel viera em busca de vinganуa. Saltou diante dela como um animal, uma das mсos a segurр-la pelos cabelos enquanto a faca se erguia na outra. - A lРmina estр quente. Vai queimar alжm de cortar. Antes que possa pensar, demoiselle, gritarр por misericзrdia. Vou domр-la! - ele jurou, ao levar a faca para o lado do rosto dela. - E acabarei com esse seu orgulho saxсo quando vocЖ estiver debaixo de mim. - Nunca! Rorke ouviu o grito, como o de um animal ferido e praguejou. Atravessou o acampamento numa corrida. Avistou Vachel na clareira, parado a poucos passos de distРncia

de Vivian de Amesbury, que jazia no chсo. Instintivamente, a mсo de Rorke fechou-se sob o cabo do punhal, mas seus dedos se imobilizaram quando percebeu que nсo fora sua bela prisioneira que gritara. Vachel gritava nas agonias da dor ao apertar uma mсo sobre a outra. A carne de uma delas tinha uma faixa empolada como se ele a tivesse colocado no fogo. - Saxс maldita, vocЖ me atacou! Olhem o que ela fez. Ela me queimou! - Vachel esbravejou e virou-se para que todos vissem. - Quero a cabeуa desta mulher na ponta de uma lanуa! - Chega, Vachel! - ordenou Rorke. - Quero saber o motivo disso pela boca da moуa. Vivian ergueu a cabeуa lentamente e olhou para o cьrculo de guerreiros que se formara em questсo de segundos. Nas faces dos homens de Vachel viu uma avidez animal por sangue. Jр os que estavam sob o comando de Rorke pareciam menos convencidos de sua culpa. O estranho guerreiro de olhos acinzentados a observava com uma intensidade constrangedora.

Justiуa normanda, ela pensou. A mesma justiуa com a qual Guilherme se apossara da coroa da Inglaterra. - Ele se queimou sozinho com uma faca no fogo respondeu, dizendo a simples verdade. - A saxс mente! - Vachel acusou. - Ela me queimou com um espeto! Rorke estendeu a mсo a ela. Vivian colocou a mсo vazia na dele. - Sua outra mсo tambжm, demoiselle. Um lampejo de raiva brilhou nos olhos dela quando estendeu a outra mсo e a abriu. Rorke voltou-se para Vachel. - Nсo hр arma alguma. A fЩria lhe retorcia as feiушes, conforme Vachel passou por ele e se dirigiu a seus prзprios homens. - Ela me atacou - insistiu. - E escondeu a arma. A saxс ж perigosa e precisa ser punida. Seus subordinados resmungaram, em concordРncia. Pareciam pensar da mesma forma. - Talvez esta seja a arma de que fala - Tarek ai Sharif manifestou-se, ao se levantar de onde estava agachado diante da fogueira. Com movimentos lentos, entregou

uma faca a Rorke. Rorke virou-a nas mсos. Era uma lРmina diferente, com um cabo em forma de cabeуa de javali. - Creio que isto pertence a vocЖ, Vachel - disse. O olhar de Vachel se apertou ao observar a faca. - Deve ter caьdo quando a maldita me atacou. Quando estendeu a mсo para pegar a faca de volta, Rorke segurou-o pelo braуo. - VocЖ reclamou que a moуa o queimou com um espeto no fogo. Vachel lutou para desvencilhar-se. Soltou um palavrсo. └ luz da fogueira todos viram a imensa queimadura na palma da mсo de Vachel, como se ele tivesse segurado uma faca em brasa idЖntica a que dissera ter perdido. Rorke empurrou Vachel para longe e ordenou: - Voltem para suas fogueiras. A noite serр longa e fria. Lentamente, todos se afastaram. Vachel, com uma violЖncia mal controlada, colocou a faca na bainha do cinto e depois se virou e se afastou, sumindo na escuridсo. Reapareceu brevemente perto da fogueira de um de seus

homens. Era como um cсo ferido que volta ao bando. Nсo o viram mais naquela noite, mas isso nсo fez Vivian sentir-se mais aliviada. Ela sabia que ele estava ali fora na escuridсo, Я espera de uma oportunidade para se vingar. Depois de comerem, Rorke colocou vрrios galhos na fogueira e apanhou as peles enroladas na clareira. Desamarrou um rolo grosso de pele e abriu-o no chсo ao lado do fogo. - VocЖ dormirр aqui - disse a Vivian. - Nсo posso privр-lo de sua coberta. - Nсo era essa minha intenусo, demoiselle. Iremos partilhрla. O olhar espantado de Vivian encontrou o dele do outro lado da clareira que, de repente, tornou-se pequena para a largura da pesada pele que estava estendida entre os dois. - Nсo podemos! - ela protestou, com repentina afliусo. Mal hр espaуo para uma pessoa. - Aproximou-se mais do

fogo. - Alжm do que, estou bastante acostumada ao frio. - Jр eu nсo posso dizer o mesmo, demoiselle. - Pegou o manto do tronco do carvalho caьdo e se achegou ao fogo. Sua voz tornou-se mais gentil. - A noite ж longa e esfriarр ainda mais com o passar das horas. Se meus homens nсo fazem objeусo a partilhar o calor com um outro, certamente vocЖ tambжm nсo. Fique tranqЧila, pois nсo costumo me aproveitar de mulheres enquanto dormem. Sentindo o frio congelante fechar suas garras inclementes sobre ela, Vivian aceitou com relutРncia o fato de que, se quisessem sobreviver Яquela noite, teriam de passр-la juntos. Aproximou-se do leito de pele e ajeitou-se num pequeno espaуo estreito na beirada. Parecia estar dando tempo a ela para se acomodar e dormir ou talvez aguardasse alguma coisa. Mas o quЖ? Seria possьvel que esperasse que Vachel voltasse a atacр-la durante a noite? Ela nсo se inquietou diante da possibilidade. Sabia que iria acontecer. Vachel atacaria de novo, pois tal era a natureza dos animais. Porжm, nсo

naquela noite. O fogo lhe aquecia o rosto, o pesado manto e a pele a abrigavam num calor aconchegante. Seus olhos se tornaram pesados. Entсo, de repente, havia apenas a escuridсo do sono. Muito tempo depois, Rorke juntou-se a ela na cama de pele, puxando o manto sobre os dois. Ela estava de lado, os joelhos encolhidos, os pжs enfiados sob a barra do vestido. Estremeceu ligeiramente com a sЩbita intrusсo do ar frio, mas nсo acordou. Em vez disso, curvouse ainda mais sobre si mesma. A pele era apenas para uma pessoa e Rorke nсo tinha intenусo de acordar de manhс com mсos, pжs e costas enregeladas. Todavia, ele tinha certeza de que a proximidade do corpo de Vivian na cama nсo poderia ser mais desconcertante do que ter ficado sentado com ela diante de si, na sela. O sono e a exaustсo tinham acalmado a tensсo rьgida daquele corpo esbelto. Vivian dormia pesadamente, uma das mсos repousava sob a face e a outra sobre a beirada

do manto de pele. Ele pegou-lhe a mсo para colocр-la sob o pesado manto e entсo sentiu os dedos longos e delicados se fecharem sobre os deles, puxando-lhe a mсo para debaixo da pele para descansar aninhada contra o seio redondo e macio. Rorke descobriu exatamente o que era pior do que se sentar na sela com aquele corpo esbelto acomodado contra a carne coberta pela cota de malha. Sim, sentir o corpo esbelto aninhado contra a carne sem a proteусo da armadura, e com a mсo comprimida sobre os seios macios, era a pior tortura que jр sofrera. - Senhor, tenha piedade de minha alma, porque meu corpo jр estр queimando no fogo do inferno! - ele gemeu, baixinho. Ah, aquela seria uma noite muito, muito longa. O vale era rodeado por uma densa floresta. Conforme a encosta se aplainava e se abria, passaram por uma caravana de carros de boi. Um braуo inanimado pendia de um deles. Vivian estremeceu. Todos os horrores que previra e receara comeуavam a desfilar diante de seus olhos, pois

os carros transportavam corpos dos soldados do rei Harold. A seu lado, na sela, Rorke mantinha-se estoicamente calado. Figuras encurvadas enfileiravam-se na beira de uma ravina, abaixando-se e se endireitando, num tipo de danуa macabra conforme lanуavam pрs de terra na imensa vala. Ao fundo, estavam os corpos de soldados da cavalaria e seus animais, alguns ainda na sela, empilhados uns sobre os outros como se uma mсo gigante os tivesse jogado dentro da ravina. Horrorizada, Vivian percebeu que tinham caьdo para a morte num ataque colina abaixo. - Sсo normandos - explicou Rorke, a voz baixa e parecendo desprovida de qualquer emoусo. Para Vivian, o conhecimento premonitзrio da derrota de Harold em Hastings trouxera consigo uma sensaусo avassaladora de perda pelos incontрveis saxшes que tinham morrido. Porжm, aqueles corpos grotescamente retorcidos evidenciavam que muitos soldados normandos tinham morrido tambжm. Embora ela tentasse afastar as imagens aterradoras de sua mente, ela visualizou de novo a terrьvel

Lрgrimas quentes escorreram por suas faces geladas ao olhar pelo vale e ver as fogueiras distantes a brilhar com uma luz fantasmagзrica atravжs da neblina e da fumaуa. Conforme os carros de boi rumavam para elas, Vivian percebeu que nсo eram fogueiras, mas piras funerрrias para os mortos. O pesado silЖncio se prolongou durante algum tempo. Finalmente, pararam diante de uma das vрrias tendas no coraусo do acampamento normando. Rorke desmontou, puxando Vivian para o chсo. De imediato, vрrios soldados armados apareceram, deixando evidente que aquele era um acampamento de guerra. - Traga seus remжdios - Rorke ordenou. Um calafrio a percorreu de alto a baixo e Vivian lembrouse da voz que ouvira quando invocara a visсo em seu cristal: Cuidado, minha menina! O aviso perpassou-lhe os sentidos Я medida que soltava o saco de ervas da sela. Uma lufada de vento frio perturbou o fogo no braseiro e apagou as chamas ao entrarem na tenda.

Havia vрrios cavaleiros armados dentro da tenda. Eles circundavam o catre parcialmente bloqueado da vista pela falange de espadas e armaduras. - Chegamos a tempo, Gavin? - Rorke perguntou ao cavaleiro mais prзximo. Aquele que ele chamara de Gavin concordou, as feiушes tensas. - Ele estр vivo - disse, com voz solene. Rorke olhou para os cavaleiros pesadamente armados. Seus olhos se estreitaram ao se cravar em alguжm que se postava atrрs de um deles, Я cabeceira do catre. - O que ela estр fazendo aqui? - Sua voz era tсo fria como o aуo de uma lРmina. O cavaleiro afastou-se para o lado, revelando uma mulher Я luz das lamparinas. - Milorde FitzWarren - ela cumprimentou Rorke com voz aveludada. A bela loira de tez pрlida deu um passo Я frente, com um ar de distante superioridade. Falava em francЖs e seu vestido era do mais fino cetim. Vivian julgou estranho encontrar uma mulher tсo ricamente vestida no meio de um acampamento de guerra. Talvez fosse esposa do homem que jazia naquele catre.

- Dei ordens para que ninguжm, alжm de meus homens, tivesse permissсo para ficar aqui - esbravejou Rorke. - Ele chamou por mim. Meu lugar ж com ele. Vivian sentiu a tensсo no ar. Da mulher, captou muitas coisas: a frieza da ambiусo, o calor da raiva e paixсo, e traуos de uma lembranуa sensual, quase erзtica, que envolvia Rorke FitzWarren. De imediato, Vivian percebeu que, a despeito da raiva que parecia existir entre os dois, jр tinham sido amantes um dia. Talvez ainda fossem. - Parece estranho, milady, que alguжm tсo seriamente ferido e inconsciente tivesse forуas para chamр-la - ele respondeu, com frieza. Olhou para Gavin. - Tьre-a daqui - ordenou. - VocЖ nсo pode me mandar sair - ela gritou. - Meu lugar ж ao lado dele! Rorke virou-se com uma lentidсo deliberada, e novamente Vivian se lembrou daquela impressсo anterior de uma criatura perigosa. Aquele olhar glacial era capaz de transformar alguжm em uma estрtua de gelo.

- A Щnica mulher que pode reclamar tal privilжgio ж a esposa de Guilherme - disse ele, e, com um aceno de cabeуa, fez sinal a Gavin para que a tirasse de lр. - Tire suas mсos de mim - ela gritou, quando Gavin voltouse para escoltр-la. Voltou-se para Rorke, com profundo desdжm. - Sairei, milorde FitzWarren. Mas voltarei quando ele pedir. Rorke arrancou as luvas cobertas de cotas de malha e empurrou o capuz para longe dos cabelos emaranhados. O cьrculo de cavaleiros abriu-se quando ele avanуou para o catre. - Pelo sangue de Cristo! - ele exclamou baixinho, porжm com uma ferocidade que deixou Vivian gelada de apreensсo. - Como ж possьvel que ainda esteja vivo? Ela viu de relance o homem no catre. Sua pele tinha uma cor acinzentada, exangue. As vestes de couro estavam ensangЧentadas. A respiraусo arquejante que era rрpida demais e muito curta. Nсo poderia ser outro, a nсo ser o duque Guilherme da Normandia. Conforme caminhava devagar para o catre, Vivian teve a presciЖncia do tempo a se mover em si mesmo, de acontecimentos a se desdobrarem para os quais se via

atraьda mas que ainda nсo conseguia visualizar, muito menos evitar. - Vivian de Amesbury, sua habilidade ж urgentemente necessрria para aquele que jaz aqui, gravemente ferido. Ela se aproximou do catre. - Farei o que eu puder, milorde. O resto ж com Deus. - Deus jр fez sua parte. O resto ж com vocЖ, e nсo irр falhar. Vivian ajoelhou-se ao lado do catre e olhou com piedade para aquele que jazia ali, abatido pela febre e pela perda de sangue. - Segure a vela mais perto - ela disse a Rorke. - Preciso ver o que deve ser feito. Foi outro que avanуou do lado oposto do catre, o jovem cavaleiro Stephen de Valois. Quando ela levou a mсo para puxar o lado da tЩnica de couro que cobria o peito ferido do homem, a mсo de Stephen fechou-se sobre seu pulso. - Se ele morrer - ele avisou -, eu pessoalmente

providenciarei que sua vida seja tirada como puniусo pela dele. Embora o aperto doesse penosamente em seu pulso, ela sentiu o sofrimento ainda mais profundo do rapaz e as emoушes violentas e desencontradas, uma raiva silenciosa, internalizada, uma necessidade angustiante por um pouco de amor longamente negado. E sentiu outra coisa mais, vislumbrada na sombra dos pensamentos que ele tentava manter escondidos de todos, inclusive de si mesmo. O homem que jazia no catre era pai de Stephen de Valois! Vivian comunicou-se mentalmente com ele, permitindo que sentisse sua compaixсo e preocupaусo. Confie em mim, murmurou silenciosamente para Stephen de Valois, desejando que ele sentisse a verdade de seus pensamentos. Eu nсo o deixarei morrer. Ele afastou-se, mas permaneceu ali perto, a mсo na espada num aviso silencioso. Vivian rodeou o catre em passos lentos, tirando as ataduras rudimentares que haviam sido comprimidas contra os ferimentos para estancar o sangue.

Em muitos lugares a hemorragia cessara, deixando as bandagens grudadas na ferida com o sangue seco. Em outras, o ferimento ainda exsudava. Ela umedeceu as ataduras com a рgua de uma bacia, tirando-as com cuidado. Embora houvesse vрrios cortes profundos, inclusive um de lado, nenhum em si ameaуava-lhe a vida. Deslizou as mсos ao longo de mЩsculos, tendшes e ossos, vendo com o olhar interno os ferimentos que nсo eram evidentes: duas costelas quebradas e vрrias contusшes. Entсo, ergueu o lenуol que cobria a metade inferior do corpo e descobriu o que havia na perna. A perna estava esticada, mas o longo osso inferior se quebrara, os fragmentos a espetarem a carne. Uma atadura rЩstica fora colocada sobre o ferimento. Contudo, pouco mais havia sido feito e agora era preciso agir rapidamente para recuperar o tempo perdido. Vivian estremeceu, o estЗmago a se revirar de nрusea. Sua mсo tremeu na bandagem com um misto de horror e raiva de que ele houvesse sido tratado tсo descuidadamente.

A mсo de Rorke FitzWarren fechou-se sobre a dela com surpreendente gentileza. A forуa cрlida daqueles dedos marcados de cicatrizes fluiu atravжs do contato de pele, aturdindo-a. - Faуa o que deve ser feito. - Ele estр Я beira da morte - ela murmurou. - Perdeu sangue demais… Aqueles dedos se apertaram em torno do pulso frрgil. - O que posso fazer para ajudр-la? - Preciso de mais luz. Tambжm teremos de aquecer o interior da tenda, porque depois de perder tanto sangue ele nсo consegue manter o corpo aquecido. Terр de me providenciar mais lenузis, рgua quente, ataduras limpas e uma faca muito afiada. Ele hesitou diante do Щltimo pedido, porжm logo se voltou e passou a dar ordens a seus homens. Em questсo de minutos, mais braseiros e lamparinas a зleo foram trazidos, alжm de outra bacia de рgua quente, mantas de peles e bandagens limpas. Rorke entregou

seu prзprio punhal a Vivian e logo a viu colocр-lo sobre os carvшes que luziam no fundo de um fogareiro prзximo. A tЩnica do rei moribundo foi removida. Vivian espalhou folhas esmigalhadas sobre a bacia fumegante. Um aroma acridoce espiralou-se juntamente com a fumaуa que subia dali. Mais trЖs braseiros apareceram, o fogo foi mantido bem alto. Ela colocou duas pequenas tigelas sobre os braseiros. Adicionou рgua a uma, que logo fervia. Um pз branco foi colocado na outra e a mistura tornou-se de um tom de marrom-dourado com o calor. Ela tirou o punhal de Rorke das brasas. - A carne apodrece rрpido - explicou. - Para curar os ferimentos ж preciso remover a carne morta. Ele dorme agora por causa da febre, mas ainda pode sentir dor. Hр uma poусo que posso usar para aliviar o sofrimento, mas o efeito passa rapidamente. Precisarр ser poupada para a perna. Rorke postou-se Я cabeceira de Guilherme, preparado para segurр-lo, se preciso fosse. Com movimentos рgeis, gesticulou para que dois de seus homens se postassem

um de cada lado, no caso de precisarem de mais ajuda para manter o rei imзvel. Vivian trabalhou com rapidez para remover a carne putrefata das feridas que tinham infeccionado. Bрrbaros sangЧinрrios! Serр que nсo tЖm bom senso ao tratar um ferimento? Era um processo doloroso e demorado. Cada ferimento precisava ser limpo de resьduos e sujeira, a carne apodrecida retirada. Depois, ela espalhou sobre cada local o ungЧento de uma das tigelas e envolveu-o com tiras de linho limpo. Guilherme foi enrolado com bandagens em torno da cintura para ajudar a cura das costelas quebradas. Quando Vivian se curvou de exaustсo, sentiu o apoio silencioso de Rorke FitzWarren num toque de mсo ou em palavras gentis de encorajamento. - Sa se bien, demoiselle. Sa se bien. Finalmente ela se endireitou, com uma dor surda nas costas. Limpara e atara os ferimentos menores. O pior deixara para o final, a perna fraturada e seriamente ferida. Entсo, numa caneca, ela despejou uma porусo do caldo

de cheiro adocicado que estivera fervendo no braseiro. - Ele estр muito fraco, mas a perna precisa ser tratada. Terр de beber o quanto for possьvel deste remжdio ou nсo suportarр a dor. Vivian viu a inquietude que passou de um homem para outro. Eles compreendiam a necessidade de enfaixar os ferimentos. Porжm, beber poушes desconhecidas era outro problema. Guilherme precisava viver. E ela era uma curandeira saxс que tinha todas as razшes do mundo para odiр-lo e lhe desejar a morte. Stephen de Valois estendeu a mсo e pegou a caneca. - Tomarei um pouco primeiro - declarou. Se a poусo estivesse envenenada, Stephen sofreria os efeitos e Vivian seria condenada Я morte. Todos se postaram na expectativa de que ela o impedisse. - VocЖ irр experimentar uma sensaусo muito agradрvel de calor. Por fim, nсo serр capaz de mover seus braуos e pernas. A poусo suprime as sensaушes; conseqЧentemente, tambжm bloqueia a dor.

Ele concordou e tomou vрrios goles do lьquido levemente adocicado. Depois de um momento, recostou-se sem firmeza no catre, mas sua expressсo nсo era menos feroz que antes, suas palavras ou pensamentos nсo menos claros. - Faуa o que deve ser feito, curandeira. Com o auxьlio de Rorke, Vivian verteu o conteЩdo da caneca pelos lрbios pрlidos de Guilherme e o persuadiu a engolir. Colocou a caneca de lado e voltou-se para Rorke. - Precisa confiar em mim para aquilo que deve ser feito a seguir. Tenho de ficar sozinha com ele. A reaусo de Stephen foi imediata. - Acha que ganhou nossa confianуa com o teste de sua poусo? Os efeitos do remжdio jр comeуavam a passar e ele levou a mсo ao cabo da espada. - Nсo pode permitir o que ela quer. Nсo confio nela. O que ж isso que precisa ser feito que nсo podemos ver? Vivian percebeu a dЩvida no olhar frio de Rorke e ouviu o

som de outras espadas sendo sacadas. Lanуou seus pensamentos a ele, como fizera com Stephen de Valois, desesperada para fazЖ-lo entender. Porжm, descobriu que nсo conseguia. Ele nсo era como os outros que poderiam ser persuadidos por seus pensamentos. - Por favor, milorde - ela implorou. - Seu rei estр morrendo. ╔ pouco o que peуo. - Precisava fazЖ-lo entender de alguma forma, pois ninguжm, nem mesmo Meg, presenciara o que ela deveria executar. Apelou para a honra de Rorke como cavaleiro ligado por um juramento ao prзprio homem que jazia ali, tсo gravemente ferido. - Os procedimentos de cura sсo antigos e conhecidos por poucos - ela continuou a explicar. - Foram confiados a mim com um voto sagrado. Certamente, o senhor compreende

que nсo posso quebrar um juramento de confianуa. - Pousou a mсo sobre a dele, num gesto de sЩplica. - Nсo pode me pedir isso. Como uma curandeira, Vivian tocara pessoas centenas de vezes. O contato fьsico a acalmava e tranqЧilizava. Porжm, arquejou ao tocar Rorke FitzWarren e experimentar um poder sensual, bruto, que era espantoso no contraste do calor dos dedos que se fechavam sobre os seus. Como se por vontade prзpria, sua mсo se abriu para o calor sensual daquele contato que liberou sensaушes estarrecedoras. Capьtulo III

Nсo permitirei que fique sozinha com ele! - Stephen de Valois esbravejou, ao se postar diante de Vivian, suas feiушes contorcidas por um misto de raiva, sofrimento e medo. - VocЖ farр o que deve ser feito, curandeira. E ninguжm sairр daqui.

Ela nсo conseguia atingir Rorke FitzWarren, mas poderia persuadir aquele jovem cavaleiro inquieto e impulsivo, cujo pai, que ele amava e odiava ao mesmo tempo, jazia ali, morrendo. Com voz baixa que apenas Stephen de Valois e os que estavam em pж em torno dele conseguiam ouvir, Vivian disse, com a certeza que os seus poderes lhe conferiam: - Se deseja que seu pai viva, deve fazer o que eu peуo. A decisсo estarр em suas mсos. Uma surpresa brilhou no fundo dos olhos de Stephen, e ele se virou com expressсo indagadora para Rorke FitzWarren. - Eu nсo disse nada a ela - Rorke assegurou-lhe. Quando a fitou, a expressсo de Stephen era atormentada. - Que traiусo ж essa, saxс? - indagou. - Eu poderia decapitр-la com minha espada por sua ousadia! murmurou, com ferocidade. - Sim - ela retrucou sem se alterar. - Mas se o fizer ele certamente morrerр. A escolha ж sua. - Fez questсo de que suas palavras fossem ouvidas por Rorke FitzWarren, pois ele lhe dera praticamente a mesma escolha sobre o povo de Amesbury.

Finalmente, Stephen esbravejou: - Entсo, que seja! Mas, se ele morrer, vocЖ o seguirр imediatamente. - Eu trouxe a curandeira - disse Rorke, para todos ouvirem. - A responsabilidade pelo que se passa aqui recai sobre mim. - Entсo, anunciou: - Dois de nзs ficaremos aqui. O resto sairр. - Fez um gesto para Tarek ai Sharif. Vivian sentiu a impotЖncia dominр-la. Nсo conseguiria convencer aquele feroz guerreiro normando a sair. Nсo havia opусo e nem mais tempo, pois mesmo agora ela sentia que a vida de Guilherme se esvaьa. - Estр bem - ela concordou, com relutРncia. Nсo poderia impedir que ele ficasse, mas talvez pudesse impedir que se recordasse. - Esperarei do lado de fora com o resto de seus homens, milorde - Stephen disse a Rorke. Seu olhar pousou brevemente sobre Vivian, e entсo ele e os outros se voltaram e saьram da tenda. A pesada tapeуaria que tinham colocado na entrada caiu no lugar.

Vivian voltou-se para o catre e estremeceu, pois o frio parecia se infiltrar pela tenda a despeito dos fogareiros acesos. Relanceando o olhar para Rorke, ela perguntou: - No que acredita, milorde? ╔ um homem de fж? Acredita em milagres? - Creio serem as ilusшes de mentes questionрveis. Acredito apenas naquilo que ж real. A terra sob meus pжs, a forуa que flui de minhas mсos. Ela precisava que ele acreditasse em milagres, pois nсo havia nenhuma explicaусo lзgica para o que estava prestes a fazer. Se ele nсo acreditasse, pensaria que era uma feiticeira, uma bruxa, e depois a condenaria Я morte? - E quanto ao vento, milorde? Nсo pode vЖ-lo ou segurр-lo em sua mсo. - Posso vЖ-lo mover as folhas das рrvores ou sentir a forуa dele em meu corpo, beijando meu rosto e meus cabelos. Vivian baixou os olhos para Guilherme. - Entсo, assim tambжm deverр aceitar o que verр, milorde, e nсo interferir. Pois a vida dele depende disso.

Rorke concordou, muito sжrio. - Tem minha palavra de que nсo irei interferir, contanto que vocЖ nсo ponha em risco a vida dele. Vivian encarou o homem cuja vida se esvaьa lentamente. Nenhuma visсo lhe veio a mente. Nenhuma voz se ergueu para guiр-la. Havia apenas a certeza de que Guilherme da Normandia nсo deveria morrer ou o reino seria consumido pelo caos. Consciente de que o destino de um soberano e de uma naусo inteira estava em suas mсos, ela tirou o cristal azul do pescoуo e o colocou sobre o coraусo de Guilherme. Lentamente, juntou as palmas das mсos e fechou os olhos. Entсo respirou fundo, fechando-se a tudo em torno de si: o brilho das velas e do fogo nos braseiros, o cheiro de cera, de couro, de suor, o calor do ambiente, o frio da incerteza. Voltou-se intimamente para aquele ponto em que tempo e lugar nсo mais existiam, onde havia apenas a forуa vital do poder. Deixou ir embora a consciЖncia de tudo mais acerca de si, Я medida que o poder crescia e a pequena fagulha se

tornava uma labareda, palavras antigas que lhe tinham sido ensinadas tempos atrрs sussurravam atravжs de seus sentidos, e ela as repetiu no velho idioma de seus ancestrais. Falava baixinho, e as chamas que queimavam nos braseiros pareciam tremer a cada palavra pronunciada. Rorke pouco sabia a respeito de fж e confiava nela menos ainda. Porжm, aquela nсo era uma reza. Era como uma canусo, ou encantamento, repetida continuamente. Adiantou-se para pЗr um fim naquilo, mas Tarek ai Sharif o impediu. - Nсo! - o persa exclamou, numa advertЖncia enfрtica. Com os braуos estendidos, ela repetiu as antigas palavras: - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. As chamas das velas tremularam violentamente. Os carvшes nos braseiros, que apenas fumegavam, de repente, explodiram em labaredas gigantescas, enchendo a tenda com

um calor abrasador. Nсo foram as chamas que ganhavam vida de carvшes quase apagados, nem a mсo do amigo que impediram Rorke de interromper Vivian. Foram os olhos dela, quando lentamente se abriram. Havia um azul sobrenatural debruado por uma brilhante luz dourada, com uma chama no centro, da mesma cor que o cristal que luzia onde o colocara sobre o coraусo de Guilherme. Ele tocou-lhe a mсo e sentiu uma energia selvagem e violenta, um contato intenso, a luz incomum nos olhos dela se estendendo e o alcanуando, inundando-o de calor. Vivian entсo pousou uma das mсos no peito de Guilherme. A outra, ela colocou sobre o ferimento infeccionado na perna fraturada e deixou sua consciЖncia fluir atravжs dos dedos para dentro do guerreiro ferido. Enquanto observava, Rorke viu o corpo de Guilherme relaxar visivelmente dos espasmos torturados e dolorosos que o dominavam. A pele perdeu aquela palidez mortal conforme a cor retornava e o guiso da morte se calava em

seus pulmшes. A pesada tapeуaria na entrada da tenda foi jogada de lado. Poeira, fumaуa e o vento frio irromperam pelo ambiente. - Em nome de Deus! O que significa isso? Diversas velas se apagaram. O fogo que queimava brilhante nos braseiros de repente esmoreceu e ameaуou extinguir-se. A luz que restava luziu de forma quase obscena no crucifixo de prata que pendia do pescoуo do homem cuja silhueta se destacava na abertura da tenda, a fumaуa cinzenta do acampamento a serpentear em torno dele. - Deus do cжu! - ele exclamou, com voz horrorizada, ao entrar na tenda, rodeado por meia dЩzia de homens. Seu olhar correu ao redor e depois pousou sobre Rorke FitzWarren. - Nсo existe limite para sua blasfЖmia? Vivian gritou de dor quando o elo frрgil com o moribundo foi de repente ameaуado. Seus pulmшes se congelaram, cada respiraусo uma agonia quando uma fraqueza avassaladora roubou-lhe a forуa.

Arrastada de volta para o mundo de sua prзpria consciЖncia, seu olhar foi atraьdo para o homem que provocara a intrusсo que agora ameaуava a vida do ferido. Captou de relance emoушes poderosas: desprezo, raiva mal controlada e outros sentimentos sombrios que nсo teria imaginado num homem da igreja. Tarek deu um passo para bloquear o avanуo do recжmchegado. Os homens sacaram as espadas de imediato, inclusive aquele que se postava Я direita do bispo: Vachel. - Por tudo que ж sagrado, FitzWarren! - esbravejou o bispo - Quem ж esta criatura? O que ж esta aусo herege? Entсo, voltando-se para Vachel ordenou: - Tirem-na daqui! - Nсo! - Vivian gritou. - Por favor, milorde - implorou a Rorke -, preciso de sua permissсo para terminar ou ele morrerр. O olhar de Rorke voltou-se para Guilherme. Tanta coisa fora posta em risco e poderia ser perdida agora se ele morresse. Olhando-o viu o arfar do peito largo e tambжm as mсos esguias que possuьam algum estranho poder curativo que ele nсo conseguia compreender. A luz no

cristal azul oscilou e tornou-se tЖnue. Embora nсo tivesse explicaусo para aquilo que vira com os prзprios olhos, percebeu que Guilherme morreria sem ela. - Tire-os daqui! - ordenou a seus homens. - Inclusive o bispo! - Quando Vachel avanуou, ele exclamou: - Vamos lр, saque a espada. Teria um enorme prazer em separar sua cabeуa de seus ombros. Vachel hesitou, o olhar cravado no bispo. - VocЖ estр se excedendo - o bispo rosnou num tom glacial. - Interfere em assuntos do rei. Como ousa? - O senhor tambжm pode se encontrar carregando a prзpria cabeуa nas mсos. Bispo ou nсo, nсo faz diferenуa, pois nсo temo por minha alma. O bispo vacilou, a raiva temperada pela prudЖncia. - Irр temer por sua alma - jurou. Entсo, com uma ordem rьspida, saiu da tenda, seus homens a segui-lo. Os comandados de Rorke saьram e formaram uma falange impenetrрvel para impedir qualquer outra intrusсo em torno de todo o perьmetro da tenda. - Faуa o que deve ser

feito, senhora. Como antes, ele observou, com espanto, as mudanуas visьveis quando Vivian se inclinou sobre o moribundo. As mсos esguias estremeceram e ficaram rьgidas. Ela arquejou como se, de repente, um grande sofrimento a dominasse. Os espasmos cessaram do corpo torturado de Guilherme. O cristal azul mais uma vez luziu, brilhante. As batidas do coraусo de Guilherme ficaram mais fortes enquanto Vivian se tornava mortalmente pрlida. Era como se tivesse dado toda a sua forуa a ele. Finalmente, ela ergueu a cabeуa, a respiraусo curta, a expressсo transfigurada. Rorke segurou-a quando Vivian desmaiou e depois a ergueu nos braуos como se nсo passasse de uma crianуa adormecida. Com o cрlice apoiado nos lрbios exangues, ele derramou o vinho aos poucos atж que, por fim, ela despertou, os olhos de um castanho-escuro a se erguerem sobre os olhos agora da cor do pрlido cжu da manhс. Lentamente, o tom rosado voltou ao rosto de Vivian. E o olhar imediatamente correu para o catre. A tensсo dissipou-se. A pulsaусo do coraусo ficou outra vez forte

e constante. - Nсo encontro compreensсo para aquilo que vi - disse Rorke, admirado. - Ele estava Я beira da morte. Vivian nсo tentou dar explicaушes, enquanto lutava para ficar em pж. Ainda assim, ele se recusou a soltр-la. Forуou-a a encarрlo com os dedos sob a curva de seu queixo. - Nega isso? - Apenas Deus tem o poder de vida e morte, milorde. Certamente que acredita nisso. - Deus nсo estava nesta tenda. A cura deixara os sentidos e emoушes de Vivian expostos. Talvez por isso o simples contato daqueles dedos em sua pele provocava um calor que nunca experimentara antes. De repente, foi acometida pela lembranуa de um dia quente de verсo, quando ela estava com doze anos e fora atж a floresta perto da abadia para colher ervas e raьzes, e se deparara com um casal de namorados.

Ela os conhecia da vila. A jovem Bronwyn nсo era muito mais velha que Vivian. O rapaz, Ham, era o guardador de cabras. Estavam deitados juntos na campina, o ar quente de verсo cheio de seus sussurros, risadas e outros sons. Um gemido baixo na garganta de Ham foi acompanhado pelo arquejar assustado de Bronwyn e suspiros de prazer. Palavras ecoaram na lembranуa de Vivian. Sim, palavras de amor eram sussurradas Я medida que as roupas eram tiradas. Seguiram-se entсo palavras de prazer quando a nudez do jovem casal os colocava em contato pleno, e depois palavras de urgЖncia que combinavam com o frenesi da uniсo dos corpos. Ela ficara apavorada, com medo de ser descoberta, e, ao mesmo tempo, fascinada demais para desviar os olhos. E, ao observр-los amando-se sem pudores, sentira uma opressсo estranha, como um anseio. Mas anseio pelo que jamais soubera dizer. Depois disso, querendo alguma explicaусo para as sensaушes estranhas, contara a Meg o que tinha visto. - Tais coisas nсo sсo para vocЖ - Meg a avisara. Bronwyn ж uma moуa simples, tola. Enquanto vocЖ ж

especial. Por acaso ela tem o dom da visсo ou o poder de cura? Pode chamar os pрssaros do cжu? Nсo, menina! VocЖ tem poderes muito especiais e um destino Щnico. Tais coisas nсo sсo para vocЖ como sсo para outros mortais. Se algum dia sucumbir Яs tentaушes carnais perderр seus poderes. O amor de um homem poderia destruь-los. Tanto tempo se passara que ela tinha quase se esquecido disso. Atж que Rorke FitzWarren a tocara. E agora Vivian se recordava da inexplicрvel tristeza que as palavras de Meg tinham lhe trazido. - Por favor, milorde - pediu, inquieta -, o osso deve ser colocado no lugar e a perna enfaixada. Rorke a soltou. - Conversaremos sobre isso em outra oportunidade. Dirigiu-se para a entrada da tenda. - Mandarei comida e lenузis limpos - disse lacЗnico. - Eu gostaria de partir tсo logo tenha enfaixado a perna do duque da Normandia. - Isso estр fora de questсo - ele retrucou, a voz fria e mais

uma vez distante. - Nсo hр motivos para eu ficar - protestou Vivian. - Jр lhe disse que ele viverр. - Hр razсo suficiente para retЖ-la aqui. Nсo permitirei que se vр tсo cedo. - Fiz o que pediu - encarou-o indignada. - Nсo tem mais necessidade de mim. - Sim, vocЖ fez o que pedi… E muito mais do que eu esperava. Mas nсo posso permitir que vр embora. - Nсo havia ameaуa em sua voz, mas determinaусo. - Nсo ficarei - retrucou, com ousadia. O olhar de Rorke se estreitou, pensativo. Ela nсo se importava consigo mesma. Vira isso em Amesbury. Era com os outros que se importava. - Teria coragem de colocar em risco as vidas das pessoas de Amesbury? - ele perguntou, com uma frieza que a paralisou. Mais uma vez nсo havia ameaуa no tom de voz, fora apenas uma pergunta casual. Naquele momento, ela o odiou. - Usaria essas vidas para prender-me aqui?

- Sim, usaria - Rorke admitiu sem meias palavras. - Com que finalidade? - indagou Vivian, a raiva assumindo um intenso crescendo em seu peito. - Com a finalidade de garantir a recuperaусo segura de Guilherme. Jр vi carne saudрvel supurar e apodrecer quando o ferimento parecia curado. Pelo que presenciei esta noite, senhora, vocЖ tem um poder extraordinрrio. Nсo colocarei em risco a vida de Guilherme permitindo que volte a seus aldeшes. As faces de Vivian queimaram de rubor. As chamas das velas refletiram-se em seus olhos. - ╔ essa sua palavra final? - Como pode ter certeza de que nсo serei negligente em meus cuidados para com Guilherme da Normandia? — ela o desafiou. Rorke sorriu, convicto. - Porque os aldeшes de Amesbury significam muito para vocЖ. Vivian estremeceu diante da ameaуa direta. - Pelo visto, o senhor nсo ж diferente de Vachel.

- Sou muito diferente sim, demoiselle. Ele teria destruьdo a vila pelo simples prazer de fazЖ-lo. Eu a poupei com um propзsito. Ela estava presa pelo amor e lealdade aos aldeшes de Amesbury e Rorke sabia disso. - E seus homens permanecerсo do lado de fora? - ela perguntou, a voz destilando desprezo. - Sim. - Para me guardar? - Para protegЖ-la. - Nсo preciso de sua proteусo. - Nсo. obstante, demoiselle, os guardas continuarсo aqui. Ela recuou, zangada. A mesa, as chamas das velas tremularam. Na entrada da tenda, ao sair, Rorke voltou-se para Tarek. - Quero que olhe pelo duque da Normandia e pela curandeira - disse. - Nсo confio em ninguжm mais. Depois que ele saiu, Vivian exclamou, raivosa: - Precisamos de mais lenha para os braseiros. E duas

talas para prender a perna do doente. Tarek foi atж a abertura da tenda para dizer aos homens de Rorke o que era preciso. Vivian tirou a pele que estava sobre a perna ferida do duque de Normandia e trabalhou depressa, cobrindo a ferida aberta com um ungЧento misturado com uma cocусo fumegante que apressaria a cura. Quando o persa voltou, trazia vрrias achas de lenha e dois pedaуos de madeira reta do mesmo tamanho. Dividiu a lenha entre os braseiros. Depois, entregou-lhe os pedaуos de madeira que pareciam varais de carroуa. Seu olhar estreitou-se ao encarр-la. Entсo, sentou-se num pequeno banco diante de um dos braseiros enquanto ela terminava de enfaixar a perna quebrada. Tirou a cimitarra da cinta e comeуou a afiр-la, fazendo Vivian imaginar exatamente contra quem ele a protegeria. O escudeiro de Guilherme, escoltado por um dos homens de Rorke, trouxe-lhes vinho, comida e vрrias peles. - VocЖ precisa se alimentar - Tarek disse a ela, quando

Vivian certificou-se de que Guilherme descansava confortavelmente. Ele passou-lhe uma bandeja com carne fria e pсo. Exausta pelo ritual de cura e pelo vinho que a entorpecia, Vivian mal beliscou a casca do pсo. - Quem foi o homem que me interrompeu? - perguntou com curiosidade. Nсo houve qualquer tentativa de esconder o desprezo na voz, quando Tarek respondeu. - O conde de Bayeaux, bispo da igreja de Roma, e irmсo do duque da Normandia. - Irmсo? E Vachel o serve? - Como o chacal serve Я noite. A comparaусo a assustou, pois ela tambжm sentira algo sombrio acerca daquele homem. Intrigada, encarou-o. - Ele mandou Vachel me encontrar, e contudo teria me impedido de ajudar seu irmсo. Nсo vejo razсo nisso. - Ele tem suas prзprias ambiушes, e nсo sсo inteiramente ligadas Я igreja. - Tarek recusou-se a dizer mais e continuou a afiar a espada. Vivian olhou para as chamas que ardiam no braseiro ao

se deitar ao lado do fogo. Conforme observava, uma imagem tomou forma devagar nas cores mutantes. Era a imagem de uma mulher sentada diante de uma grande moldura aberta. As chamas mudaram de novo e Vivian viu que a mulher se sentava diante de um tear, inclinada sobre o trabalho. Estava vestida de azul e o tear era um vрcuo negro emoldurado em dourado. Nсo conseguiu ver quem era a tecelс, pois estava com o rosto virado para o lado. A escuridсo da tapeуaria pareceu se espalhar atж a visсo desaparecer, tсo fugidia como fumaуa. Ela tentou encontrar algum significado no que vira, mas nсo conseguiu. Exausta, mergulhou num sono inquieto, cheio de sonhos perturbadores de guerra e morte. E neles havia uma criatura poderosa nascida em sangue e fogo, uma criatura com as feiушes de um homem. A interpretaусo daquele sonho era clara: Rorke FitzWarren era a FЖnix e ela a chama que pulsava como se tivesse vida prзpria; Rorke se erguia renascido do inferno depois que seus corpos se entrelaуavam com paixсo, numa intensa conjunусo carnal e espiritual.

A pesada pele que cobria a entrada da tenda foi afastada, revelando a silhueta de Tarek ai Sharif em meio Я nжvoa da manhс. A expressсo do persa era rьgida, cheia de fЩria. Imediatamente em alerta, Rorke indagou: - ╔ Guilherme? Ele piorou? - Nсo. O duque repousa atж que tranqЧilamente para um homem que esteve Я beira da morte hр poucas horas Tarek assegurou-lhe, ao entrar na tenda. - A febre cedeu e o ferimento nсo purga mais. O alьvio de Rorke era visьvel nas linhas que se suavizavam em torno de sua boca. Ele sorriu para o amigo. - O que ж, entсo? - perguntou. - Por acaso o exжrcito saxсo apareceu no alto da colina e agora enxameia pelas encostas para cair sobre nзs? - A Jehara se foi. - Como ж possьvel que uma simples mulher faуa aquilo que os mais bem treinados mercenрrios de todo o Impжrio Bizantino nсo puderam fazer: passar por vocЖ sem ser

vista? - indagou Rorke, a voz tensa. - Tambжm gostaria de saber. - Falou com alguжm mais a respeito disso? Tarek meneou a cabeуa. - Apenas com seus homens que guardavam a tenda. Foi necessрrio perguntar se a tinham visto. Rorke pegou um punhal e o enfiou dentro da bota. Em seguida, apanhou as manoplas e calуou-as. - Ninguжm mais deve saber que ela sumiu. Nсo quero a interferЖncia de Vachel. Cuide para que a tenda de Guilherme fique bem guardada. - Isso jр foi feito - Tarek afirmou. - Os cavalos? - Selados e Я espera do lado de fora. Espalhei a notьcia de que irьamos Я procura de rebeldes saxшes. Os lрbios de Rorke se estreitaram. - Do que a chamou? - perguntou a Tarek, quando seguiram os rastros pela terra enlameada. - Jehara? Nсo conheуo a palavra.

- Sсo seres encantados que vivem entre os mundos que podemos e nсo podemos ver - explicou Tarek. - Dizem que tЖm grandes poderes, entre eles a habilidade de se mover entre o mundo real e o espiritual. - CrЖ em tais coisas? - Creio que existem coisas das quais pouco sabemos. Sei que ela estava na tenda num momento e, depois, sumiu. - O que estр insinuando? - Dizem que um Jehara pode tomar muitas formas. - Como o que, pode dizer? Um gnomo ou elfo? Talvez um troll, pequeno o bastante para que nсo se possa vЖ-lo? - Existem muitas lendas assim entre os saxшes - Tarek murmurou. - Tal como em minha prзpria cultura. A crenуa mais difundida sobre tais criaturas ж aquela personificada pelo homem chamado Merlin. Rorke franziu a testa. - O feiticeiro que fez Arthur rei de toda a Bretanha? - Deu de ombros, com descaso. - Ouvi falar. Em todas as culturas existem lendas assim. Entre os antigos gregos

havia mitos de deuses e criaturas lendрrias com poderes extraordinрrios. Mas nсo passam disso, pois sсo apenas lendas e mitos. - Pode ser - Tarek ponderou -, mas existem aqueles que crЖem neles. O povo de minha mсe, por exemplo, acredita que tais criaturas tambжm possuem grandes poderes de cura. Pode explicar de outra forma o que vimos na tenda de Guilherme na noite passada? - Nсo posso explicar - admitiu Rorke, a voz baixa e pensativa. - Um antigo remжdio saxсo, talvez. A moуa ж abenуoada com a arte da cura e eu preciso dessa habilidade. Nсo me importo com a fonte. - Impeliu o cavalo para frente. Sua voz ergueu-se, com raiva. - Ela serр encontrada custe o que custar! A bruma cobria o chсo como um lenуol que ondulava ao sabor da brisa. Vivian esgueirou-se pelos guardas normandos para dentro do acampamento saxсo, na beira do campo de batalha. Fora despertada por sonhos pavorosos e pelo cenрrio

horrьvel de morte que vira ao entrar no vale. Estavam lр, deviam estar, os saxшes que haviam sobrevivido Я terrьvel batalha de Hastings e que agora jaziam feridos e necessitados de ajuda. Nem todas aquelas fogueiras que avistara eram piras funerрrias. Havia formas agachadas em torno delas, em grupos de dois, trЖs ou mais. E, de madrugada, enquanto Guilherme repousava sob o efeito da tisana que lhe dera, ela agarrara o saco de remжdios e partira. Depois, abriu a mente, alcanуando Tarek ai Sharif onde dormia, na entrada da tenda. Fechou os pensamentos em torno dos dele como uma mortalha puxada sobre os sentidos para que o guerreiro persa nсo acordasse. Faltavam os guardas que rodeavam a tenda. O cristal azul estava outra vez em seu pescoуo e luziu intensamente quando ela fechou os olhos e voltou os pensamentos para o ьntimo. Concentrando-se nos poderes dos antigos que viviam dentro de si, ela se imaginou atravessando a parede da tenda, continuou a se imaginar

caminhando sem ser vista atж um lugar afastado do acampamento. Sentiu o tecido pesado da tenda envolvЖ-la e depois a sЩbita agulhada do vento gelado. Quando abriu os olhos, estava longe. Nсo houve nenhum grito de alarme. Com o saco de ervas e pзs sob o braуo, Vivian correra do acampamento normando para o campo de batalha onde os sobreviventes saxшes jaziam esparramados, encolhidos sob o ar frio da manhс. Alguns poucos tinham conseguido recolher lenha e fazer fogo que fumegava, aumentando a atmosfera opressiva que se abatia sobre o acampamento. Outros jaziam com olhos vazios, cheios de dor, Я espera da morte. Havia mulheres tambжm, esposas, mсes e namoradas que tinham seguido seus homens atж Hastings e arriscado tudo para cuidar dos filhos e maridos. - ┴gua - uma voz febril chamou. - Tem рgua? Vivian ajoelhou-se depressa ao lado do homem e deixou-o beber do cantil que trouxera consigo. Enfaixou-lhe o ferimento e depois seguiu em frente, pois havia muitos

a ajudar. E sempre mais gritos por рgua e comida. Alguns, depois de dar uma descriусo, perguntavam se ela vira um companheiro, um irmсo ou um filho. Caminhou entre eles, seguindo de um mьsero fogo para outro, a manipular os pзs e remжdios de ervas para dor, hemorragia e febre. MurmЩrios de gratidсo a acompanhavam por onde passava. Com um exжrcito formado por camponeses sem treinamento, arrendatрrios de terra e criados domжsticos, Harold fora derrotado antes que pusesse o pж no campo de batalha em Hastings. A desoladora derrota e o sangue escarlate emergiam dos pontos sob a mсo da tecelс no tear, tal como em sua visсo. Uma tapeуaria ainda nсo tecida, uma voz distante murmurou atravжs de seus sentidos. Vivian sabia, contudo, que os primeiros pontos tinham sido dados naquele campo de batalha. As meadas de um futuro distante jaziam na cesta de linhas aos pжs da tecelс.

Ela seguiu em frente, oferecendo o conforto que podia. E a cada grupo que encontrava, procurava por uma face familiar da aldeia de Amesbury. Porжm, nсo viu ninguжm conhecido. Sabia que precisava voltar Я tenda de Guilherme. O cжu clareava. Era apenas uma questсo de tempo atж que descobrissem que sumira. Jр imaginava a raiva de Rorke ao tomar conhecimento disso. Por alguma estranha razсo, nсo conseguia controlar os pensamentos dele como podia fazer com outros, e nсo seria capaz de persuadi-lo a nсo se zangar. Tambжm nсo podia controlar os prзprios pensamentos quando estava perto dele. Uma onda sЩbita de calor a percorreu ao se lembrar do toque do charmoso normando. Estremeceu, puxando o xale em torno de si. Entсo, de repente, uma mсo fechou-se sobre seu pulso. Antes que ela pudesse protestar, outra tapou-lhe a boca. Lutou para libertar-se, mas seus pжs perderam o chсo e ela se viu erguida do solo. Chutou e debateu-se, mas foi arrastada para trрs de uma carroуa. Capьtulo IV

- Nсo grite! Lentamente a mсo se afastou de sua boca, a pressсo afrouxou-se em sua cintura e ela se viu livre. Vivian virouse. - Conal! - Agora, compreendia porque nсo pressentira qualquer perigo. O pastor de Amesbury olhou rapidamente ao redor. Entсo, satisfeito de que os guardas normandos nсo os vissem, sentou-se ao chсo atrрs da carroуa. Vivian estava espantada. Nсo conseguia imaginar como Conal chegara ali. O medo apertou-se em torno de seu coraусo ao pensar no que poderia acontecer se ele fosse encontrado. - Por que estр aqui? - perguntou, ansiosa. - Parti assim que a tempestade amainou - explicou Conal, em voz baixa. - Poladouras me deu seu cavalo. - As feiушes magras se suavizaram, fazendo o ferimento do lado da cabeуa parecer menos grave. Com os cuidados da velha Meg, ele dava a impressсo de ter se recuperado bem do espancamento em Amesbury.

Tocada por aquela demonstraусo de lealdade, e sabendo do perigo que ele corria, Vivian protestou. - VocЖ nсo deveria ter vindo. ╔ muito arriscado. - Sim - ele retrucou -, mas ж perigoso para vocЖ tambжm. Estр machucada? - Nсo, estou bem. Mas como encontrou este lugar? A expressсo de Conal se contorceu. - Nсo foi difьcil. Segui a trilha de mortos e feridos. - Sua voz estava cheia de desprezo e amargura. O coraусo de Vivian confrangeu-se ao pensar nos mortos que vira. - Sim, muitos perderam a vida aqui. Entсo a expressсo de Conal se iluminou. - Observei o acampamento normando durante toda noite e vi quando vocЖ saiu, esta manhс. Agora podemos partir juntos. - Tomou-lhe a mсo, puxando-a para ficar em pж. - Precisamos ir - disse aflito, o olhar a esquadrinhar o campo aberto com a astЩcia de pastor, conforme a neblina se dissipava e o sol se abria. - Deixei o cavalo na floresta nсo longe daqui. - Apontou para beira da mata.

Vivian puxou a mсo. - Nсo posso - disse ela, com pesar. - Terр de partir sem mim. Conal encarou-a como se ela tivesse enlouquecido. - Nсo voltarei sem vocЖ - protestou. - ╔ a razсo de eu ter vindo aqui. ╔ perigoso ficar, viu como trataram o povo de Amesbury. - Ele olhou cautelosamente em volta. - Precisamos partir juntos, antes que sejamos descobertos. Rorke FitzWarren dissera o que aconteceria se partisse, e nсo tinha dЩvida de que ele manteria sua palavra. - Nсo, Conal - ela retrucou, desesperada para fazЖ-lo entender. - Nсo irei com vocЖ. Precisa voltar sozinho. - Nсo partirei sem vocЖ, Vivian. Nзs nos esconderemos na floresta atж o cair da noite e viajaremos no escuro. Quando amanhecer, estaremos a meio caminho de Amesbury. - Sua mсo se estendeu e mais uma vez agarrou-a pelo pulso. - Estр me machucando - gemeu, quando ele comeуou a puxр-la para a floresta. Entсo, ouviu os gritos dos guardas

normandos atrрs deles e o terror a dominou. - Precisa ir embora! Por favor, Conal - implorou. - Eu nсo poderia suportar sua morte. O olhar de Conal estava cravado nos cavaleiros que se aproximavam. Quando ele hesitou, o aperto no braуo de Vivian afrouxou-se, e ela se livrou da mсo que a retinha. Afastou-se, correndo de volta Я carroуa. Apesar de desejar de coraусo poder fugir para a floresta com o pastor e deixar aquele lugar que cheirava a morte e destruiусo, sabia que se o fizesse muitos pagariam por sua atitude egoьsta. Conal a fitou com um misto de desespero e impotЖncia. - Eu a amo, Vivian. Sempre amei. Encontrarei uma maneira. - Entсo, conforme os cavaleiros irrompiam pela neblina, as armas a captarem o brilho seco do sol, ele se virou e correu para a mata cerrada Я beira da floresta. Atravжs das brumas que se espalhavam Я altura do chсo, o olhar de Rorke FitzWarren esquadrinhou os limites do acampamento saxсo. Os guardas tinham avistado uma mulher a andar entre os

feridos. └ medida que a bruma da manhс se dissipava, ele viu de relance uma carroуa Я beira do campo e uma mulher ao lado dessa. Sob a borda do xale tambжm vislumbrou cabelos avermelhados. Praguejou quando a neblina se fechou novamente diante deles e a perdeu de vista. O sol apareceu quando cavalgavam em direусo Я carroуa e Rorke viu de novo a mulher. Desta vez, do outro lado da carroуa. Tambжm avistou um homem correndo para a floresta, e a julgar pelas roupas simples era зbvio que se tratava de um camponЖs saxсo - Lр, na beira da floresta - Tarek ai Sharif o vira tambжm. Levarei alguns dos homens e veremos o que vamos encontrar. - Estр bem - concordou Rorke. - Tome cuidado. Vivian viu os cavaleiros rumarem para a floresta e rezou para que Conal estivesse escondido em seguranуa. Se fosse encontrado, temia o que os homens de Rorke poderiam fazer com ele.

Respirou fundo, vendo Rorke cavalgar em sua direусo. Ficou parada, de cabeуa erguida, a enfrentar o olhar frio como a bruma da manhс, Я medida que o poderoso cavalo de batalha e seu imponente cavaleiro se aproximavam. - Bom dia, senhora - disse ele, ao puxar as rжdeas do cavalo. - Milorde - ela o saudou com naturalidade. - Tive receio de que algum mal pudesse ter lhe acontecido. Vivian sentiu o toque de raiva a permear a voz de barьtono. - Como pode ver, milorde - retrucou ela impassьvel, ao sair caminhando -, estou bem. Nсo havia necessidade de sua preocupaусo. Ele conduziu o cavalo, atж que estivesse ao lado de Vivian. - Tarek estava muito preocupado. Ele toma as responsabilidades com muita seriedade. E ficou perplexo que vocЖ pudesse ter saьdo sem que a visse fazЖ-lo. - Entсo, terei de lhe pedir desculpas - disse ela, sem oferecer qualquer explicaусo de como precisamente acontecera.

Vivian de Amesbury era a criatura mais magnьfica que Ror-ke jр encontrara na vida. Ousada e orgulhosa, como uma bela chama desafiadora em meio Я bruma que os circundava, ela o provocava e intrigava ao mesmo tempo. Sem dizer nada, Vivian continuou caminhando, mas seus sapatos de tecido com solado de pele de animal eram uma pobre proteусo contra a terra dura e gжlida. Ainda assim, ela nсo se atrevia a parar, pois a cada passo arrastava o normando para mais longe da floresta e de Conal. - VocЖ me desobedeceu deliberadamente. Eu a proibi de deixar o acampamento. - A voz de barьtono subiu de tom, enquanto as mсos enormes fechavam-se nas rжdeas, e o garanhсo que ele montava jogava a cabeуa para trрs, inquieto, diante das formas amontoadas em torno das fogueiras pelas quais passavam. - Nсo o desobedeci - respondeu ela, com naturalidade. VocЖ disse apenas que eu nсo deveria retornar a Amesbury. E, como pode ver - apontou para o acampamento -, fiquei dentro do acampamento. ConseqЧentemente, nсo

contrariei sua vontade. - Estр distorcendo minhas palavras, Vivian. Sabe que nсo deveria sair da tenda de Guilherme. Tinha minhas razшes para dar tais ordens. - E eu tinha minhas razшes para sair, milorde. Ele inclinou-se e ergueu-a do chсo, trazendo-a para a sela a sua frente. Com a armadura de batalha removida, os braуos e pernas musculosos a envolveram, cada movimento da musculatura podia ser sentido naquele contato, atravжs do vestido fino. O toque era desconcertante e ligeiramente possessivo. Vivian estremeceu quando sensaушes estranhas a acometeram. Rorke a perscrutou com o olhar e murmurou: - Estр com frio? Instintivamente, suas mсos escorregaram atж a cintura fina, puxando-a contra o corpo quente. Serр que aquele normando magnьfico sabia como ela ardia de desejo diante de seu toque sedutor?

- Nсo, milorde. Estou bem - Vivian assegurou-lhe, e rezou para que pudesse resistir Я onda de sensualidade que a acometia Я medida que ele a puxava para si. Implorou para todos os poderes da Luz, tentando encontrar algum entendimento para as sensaушes intensas que aquele homem lhe despertava. O que haveria no toque do inimigo normando que a afetava como ninguжm jamais o fizera? Entсo, de repente, um grito quebrou a quietude do momento, e o medo a fez sentir um nз na garganta. O que estaria acontecendo? Nсo previra a morte de Conal, pensou aturdida. Seria possьvel que seu dom a tivesse abandonado, desde que Rorke FitzWarren entrara em sua vida? Alheio aos temores que a assolavam, Rorke obrigou o cavalo a dar meia-volta e juntar-se aos demais. Quando os viu, Gavin de Marte apontou, nсo para a floresta, mas para o cжu. Seus homens tinham feito mira com os arcos para a barulhenta nuvem de corvos que varria o acampamento. Vрrias setas

tinham abatido os corvos com precisсo mortal. Mas agora os arqueiros apontavam para uma ave maior, que pairava pouco acima das demais. Era uma ave de rica plumagem que se deixava levar pelas correntes de vento. A certa altura, ela desapareceu na floresta e depois emergiu para dar um mergulho arrojado, tсo perto que o bronze e o dourado de suas penas eram visьveis nas asas esticadas, pouco antes de adejar ao cжu. - Nсo! - Vivian gritou. - Por favor, nсo o matem. Por favor! implorou outra vez, quando vрrias flechas eram disparadas. Seus gritos e esforуos para saltar assustaram o cavalo de Rorke. - Pare com isso! - esbravejou ele, puxando-a contra si. - VocЖ nсo compreende! Ele ж domesticado! - Lрgrimas escorreram pelas faces de Vivian. Com todo o poder que possuьa, tentou desesperadamente fazer Rorke entender o que estava tentando lhe dizer. - Por favor, impeуa-os! FitzWarren finalmente conseguiu controlar a montaria. Vivian inclinou-se para frente na sela. Voltou o rosto para o

cжu, o olhar fixo no majestoso falcсo, as faces molhadas de lрgrimas de afliусo. Rorke nсo tinha explicaусo para aquela reaусo diante da caуada a um insignificante falcсo. Mas isso afetara Vivian profundamente. Como era possьvel que alguжm capaz de enfrentar o exжrcito normando se sentisse abatido com a perda de um simples falcсo? Quanto mais a conhecia, menos a compreendia. Sз sabia de uma coisa, nсo conseguia vЖ-la chorar. Era como se uma flecha tivesse sido cravada impiedosamente em seu coraусo. - Saiam e retornem ao acampamento - ele disse a Gavin. Haverр outros dias para caуadas. Aquele pequeno falcсo nсo vale suas flechas. VocЖs podem muito bem precisar delas em outra ocasiсo. Vivian estava tensa como um arco, o corpo afastado de Rorke, as lрgrimas a lhe banharem as faces, a respiraусo rрpida e intercalada. Lentamente, ele soltou os braуos que a prendiam. - Vivian… - Era um guerreiro bem treinado para enfrentar desafios e batalhas difьceis, mas nada no mundo o preparara para lidar com as sutilezas da emoусo. E,

no entanto, tсo instintivamente como sabia quando sacar a espada, ele sentiu a necessidade de confortр-la. Tocou-lhe a face, afastando para trрs os cabelos da cor de fogo. - Nenhum dos meus homens machucarр o falcсo. Os olhos marejados de lрgrimas encontraram os dele. - Obrigado, milorde, pois valorizo muito esse falcсo. ╔ um amigo de verdade. - Entсo, quer dizer que tem intimidade com aquela criatura? - Sim, foi treinado em minha mсo. - Trouxe-o com vocЖ? - ele perguntou, pois nсo vira tal criatura na viagem desde a abadia. Vivian franziu a testa ao olhar para cima. - Ele estava caуando na manhс em que Vachel e seus homens chegaram Я abadia - disse, hesitante, incapaz de esquecer a brutalidade de Vachel. - Deve ter nos seguido desde Amesbury. Rorke a encarou com ar indagador. Nunca a vira assim, vulnerрvel

e, no entanto, impetuosa na defesa de algo a que evidentemente amava. De repente, sentiu uma inesperada pontada de ciЩme do falcсo que lhe era tсo querido. - Chame-o - disse a ela. - Gostaria muito de ver esta criatura que vem de tсo longe para encontrр-la. - Nсo ж preciso - Vivian assegurou-lhe. Entсo, avistando o falcсo, assobiou trЖs notas familiares. Os movimentos do pрssaro imediatamente se alteraram e ele iniciou num rрpido mergulho em direусo Я terra firme. A uma altura que mal tocava a copa das рrvores da floresta prзxima, o falcсo peregrino interrompeu a descida com um gracioso planar e vрrias batidas das poderosas asas, diminuindo a velocidade. Vivian estendeu o braуo, mas em vez de acomodar-se ali o falcсo passou por ela e, com um gracioso bater de asas, pousou no braуo do guerreiro normando. - Ele nunca fez isso antes - Vivian comentou, surpresa. — Minhas desculpas. Talvez estivesse distraьdo. - ┴quila nunca se distrai - disse ela.

- ┴quila? - Rorke repetiu o nome da ave. A cabeуa esguia voltou-se para ele. - VocЖ o chamou pelo nome da constelaусo perto de Lira e Cisne? Franzindo o cenho, Vivian comentou: - Conhece astronomia? - Sim, mas nсo pensei que uma moуa criada numa abadia tambжm conhecesse. - Poladouras ж um estudioso de astrologia. Ele me ensinou tudo sobre as constelaушes - explicou em voz baixa, para nсo assustar o falcсo. Sem medo daquelas garras poderosas, Vivian estendeu o braуo ao longo do dele, afagando gentilmente a barriga do falcсo. A ave moveu-se de um poleiro para outro. - Ele tambжm a ensinou a domesticar um falcсo? - Rorke perguntou, arqueando as grossas sobrancelhas. - Sim. - Vivian sorriu, como se de si mesma. - Aprende-se depressa o que fazer e nсo fazer com uma criatura selvagem, ainda que na verdade ┴quila nunca tenha me machucado. Rorke observou fascinado, conforme o falcсo inclinava a cabeуa de um lado para o outro para captar as suaves

nuances das palavras de Vivian e percebeu que ele tambжm prestava atenусo Яs diferentes entonaушes da voz melodiosa. - VocЖ o ensinou a confiar no toque de um estranho? quis saber com grande interesse. Uma ruga leve vincou a tez acetinada. - Ele nunca aceitou a mсo de um estranho antes, tampouco tolerava o toque de outra pessoa. - Julga-se sua dona? - Rorke indagou, afagando com a ponta de um dedo da mсo sem luva a curva do lрbio inferior de Vivian. A voz de barьtono soou baixa e profunda, como se ele procurasse acalmр-la com o toque e as palavras. Vivian sentiu a carьcia rude daquela mсo рspera, inexplicavelmente gentil. Sensaушes estranhas, lembranуas vagas de um dia de verсo, muito tempo atrрs, a percorreram de alto a baixo e se instalaram sob seus seios, como se o braуo de Rorke ainda a enlaуasse, tornando difьcil respirar. Como era possьvel que aquela mсo tсo dura

e brutal pudesse ser gentil? Alheio aos sentimentos que a dominavam, Rorke viu um desejo poderoso crescer em seu corpo e alma. Confuso, afastou-se bruscamente. - Assustou-o, milorde - disse ela, baixinho, concentrando toda sua atenусo na ave majestosa. - Tem certeza? Estр se referindo Я ave ou a quem a segura? - ele perguntou, a voz ainda mais rouca. Ela o encarou, os olhos tсo brilhantes como chamas que ardem no calor de um fogo que acabava de ser aceso. - O senhor nсo me assusta, milorde. Rorke sabia que era verdade. - O falcсo ж de estimaусo, entсo? - perguntou. Nсo tinha certeza, mas julgou que Vivian parecia aliviada por terem mudado de assunto. - Nсo. Afinal, bichos de estimaусo sсo criaturas domesticadas. ┴quila ж meu companheiro, mas ж completamente livre. Tambжm ж meu professor. Aprendi muito com ele. Seria mais verdadeiro dizer que ┴quila ж meu dono do que o contrрrio.

Era uma comparaусo estranha. Sugeria laуos firmes como o que se via pouco acima das garras do falcсo. - ╔ livre, mas usa uma tira de couro - Rorke argumentou. - Apenas para segurar os guizos para que eu possa distingui-lo dos outros. Nunca fica preso. Eu nсo poderia suportar vЖ-lo aprisionado. Rorke entendeu muito bem a mensagem implьcita no comentрrio. - VocЖ ж tсo livre quanto o falcсo, Vivian de Amesbury. Nсo hр nenhum laуo a prendЖ-la. - Promete que me deixarр partir assim que o duque da Normandia estiver completamente curado? - ela perguntou. Rorke entreabriu os lрbios para dizer sim, pois na verdade fora esse seu intuito ao procurр-la em primeiro lugar. Porжm, sabia que ao prometer seria obrigado a deixр-la ir e, por isso, alguma coisa dentro dele o impediu de fazЖ-lo. - Nсo me peуa mais do que posso prometer, Vivian de Amesbury - ele retrucou, num tom repentinamente duro.

Voltaram para o acampamento normando num silЖncio constrangedor, com ┴quila empoleirado no braуo de Rorke. Seus homens jр tinham retornado na frente e, Я medida que entravam, ela sentiu os olhos dos outros guerreiros normandos sobre eles, curiosidade mesclada Я surpresa. A imponente figura de Tarek ai Sharif estava do lado de fora da tenda de Rorke FitzWarren. - Alguma notьcia? - Rorke perguntou a Tarek. - Sim. Um grande nЩmero de saxшes foi visto pouco alжm das montanhas - Tarek o informou. - Sem dЩvida, sobreviventes da batalha. Reuniram-se a meio dia de jornada daqui e estсo pesadamente armados. Rorke ajudou Vivian a descer da sela e depois saltou para o chсo. - Robert de Mortain sabe disso? - perguntou. - Ele ordenou a seus homens que se aprontassem para partir imediatamente. Percebendo que nсo deveria ficar ali para ouvi-los discutir estratжgias de combate, Vivian voltou-se para se afastar.

Surpreendentemente, Rorke a impediu de fazЖ-lo. A mсo enorme se fechou em torno do pulso delicado. - Mande trazer minha armadura de batalha - ordenou ele. Diga a Mortain para estar pronto para partir dentro de uma hora. Vivian sentiu seu coraусo bater descompassado diante da notьcia de que Rorke estava prestes a partir para mais uma batalha. Um forte tremor a percorreu de alto a baixo. Era зbvio que mais saxшes morreriam. Tentou livrarse da mсo de Rorke, incapaz de suportar ficar ali, sabendo que a maior desgraуa ainda estava por vir. - Vivian, sinto muito. Pode guardar o falcсo em minha tenda - disse a ela, tentando encontrar uma forma de abrandar-lhe o sofrimento. - Estarр a salvo lр, e meu escudeiro estр acostumado a lidar com falcшes. Ficarр bem aos cuidados dele. Ela nada respondeu, o olhar ainda fixo no chсo. - Gavin ficarр em meu lugar - murmurou ele. - Se algo acontecer… - Foi entсo que o olhar de Vivian se ergueu, marejado de lрgrimas, e se cravou no dele, fazendo-o imaginar se a idжia de sua morte a afligia. - Ele cuidarр de sua proteусo e seguranуa atж que Guilherme esteja

recuperado - garantiu-lhe e logo emendou: - Eu confiaria minha prзpria vida a ele. - Quanto tempo vai ficar longe? - Estсo a meio dia de distРncia. Se formos bemsucedidos em encontrр-los antes que ataquem, entсo talvez possamos voltar ao meio-dia de amanhс. Naquele instante, seu escudeiro surgiu junto deles, informando que a armadura de batalha estava pronta. Rorke estendeu o falcсo a ele com instruушes para cuidado e alimentaусo. Quando se virou para se afastar, Vivian pousou a mсo em seu braуo. - Gostaria de lhe pedir um favor, milorde. Ele a encarou, os olhos acinzentados pensativos. - Gostaria de ter permissсo para voltar ao acampamento saxсo para tratar dos feridos. Precisam muito de mim e parece que o duque da Normandia se beneficiaria mais com saxшes saudрveis do que tendo de abrir novas sepulturas para os inimigos mortos.

Ele a fitou, tentando ocultar o sorriso que teimava em insinuar-se em seus lрbios. Deus o ajudasse, mas a julgava uma criatura fascinante. Estava inclinado a concordar com o pedido. Todavia, Vivian ainda nсo explicara como fugira de Tarek e de seus homens. - Sugiro que faуamos uma troca - ele falou com voz suave. - Se cuidar dos soldados normandos feridos, entсo permitirei que mande remжdios e curativos ao acampamento saxсo com um de meus homens e instruушes de como devem ser tratados. Quando Vivian ia novamente protestar, Rorke a impediu de fazЖ-lo. - ╔ a Щnica concessсo que farei, Vivian. A escolha ж sua. - Muito bem - ela retrucou, com relutРncia. - Eu aceito. Uma hora mais tarde, quando deixavam o acampamento, Vivian nсo conseguia evitar sentir uma sensaусo de perda ainda maior, como se algo tivesse sido colocado em aусo e que ela nсo pudesse impedir. Dirigiu-se Я tenda de Guilherme da Normandia para verificar o ungЧento que colocara na perna ferida na noite

anterior. Recuou, com uma sensaусo de inquietaусo, ao ver o irmсo dele, o bispo, ao lado do catre. Entсo, avistou Vachel postado nas sombras, um pouco mais atrрs. Ambos a encararam e sua inquietaусo transformou-se em medo. Por que estavam ali, quando Rorke dera ordens para que nсo fossem admitidos na tenda de Guilherme? Teria se retirado se nсo fosse uma sensaусo compulsiva de que nсo deveria e de que algo estava muito errado. - Nсo pretendia perturbр-lo, milorde - disse, constrangida, ciente do conflito de poderosas emoушes no ьntimo do bispo. - Ah, a curandeira - murmurou o bispo, num tom irЗnico. Nсo me perturbou. Apenas vim me assegurar de que meu irmсo realmente estр vivo. Ela se aproximou hesitante. - Ele estр vivo. Querendo Deus, ficarр forte e se recuperarр. - Eu lhe asseguro, senhora, Deus estр querendo muito. Mas nсo me passa despercebido que vocЖ conjurou um pequeno milagre no que diz respeito Я recuperaусo de

meu irmсo, uma vez que ele estava Я beira da morte. - A cruz de prata reluziu em seu peito, contra o veludo negro da tЩnica. Conjurou? Ela julgou aquela uma estranha escolha de palavra. Colocou a mсo no braуo de Guilherme, incerta da razсo pela qual sentia a necessidade de confirmar se ele dormia tranqЧilamente. - O senhor contestou com firmeza minhas habilidades no dia de ontem - ela comentou, tomando cuidado ao escolher as palavras. - E, no entanto, mandou Vachel encontrar-me. O bispo inclinou a cabeуa e a encarou com um olhar oblьquo, como se a estudasse. - Sou um homem de fж - explicou. - Certamente pode entender, demoiselle, mжtodos tais como testemunhei nсo sсo normalmente considerados aceitрveis pela igreja. - Tais mжtodos, milorde? O que quer dizer? Vivian sentiu que o bispo nсo era tolo. Sob a mрscara de benevolЖncia santificada havia uma inteligЖncia apurada e uma ambiусo ainda mais marcante. Nсo era homem

para ser tomado com leviandade. - Minha preocupaусo - esclareceu ele, com expressсo cautelosa - para com o bem-estar de meu irmсo ж secundada apenas por minha devoусo a Deus e Я igreja de Roma. Guilherme tem muitos inimigos. ╔ meu dever protegЖ-lo de tais inimigos. Por muitos anos, tenho sido a espada a seu lado, embora tambжm use a cruz. Enfrento os inimigos mortais com uma e os inimigos espirituais com a outra. Encarou-a com um olhar penetrante. - Quando a vi parada ali, naquele transe estranho, sз pude presumir que desejava fazer-lhe algum mal. De novo, parecia que ele estava tentando agregar algum significado muito particular a seus mжtodos de cura, e Vivian sentiu que isso poderia se mostrar perigoso. - Sim - concordou, escolhendo as palavras -, o ritual ж bastante antigo, tem pelo menos mil anos. Sempre julgo reconfortante rezar - continuou a explicar, contente com a expressсo de surpresa que cruzou a face do bispo. - Imagino, milorde, que tambжm esteja familiarizado com o poder da prece. Certamente, nсo pensa que seu irmсo corre perigo porque rezou por ele. Acredito que o

senhor, em especial, compreende a necessidade disso. Os olhos escuros brilharam ameaуadoramente e ela viu de relance algo assustador ali, uma escuridсo difusa e maligna. - Ah, sim, a prece… - A voz do bispo era como seda. Tem uma poderosa influЖncia, seguramente. Contudo, nсo pensaria que fosse comum a uma curandeira rezar. - Fui criada numa abadia, milorde. Meu guardiсo desde a infРncia ж um monge muito letrado, de enorme fж. A surpresa do bispo foi instantРnea. Ele sorriu para disfarуar, aquele sorriso falso que Vivian sabia que nсo lhe alcanуava o coraусo. - Fez-me recordar, demoiselle, de algo que experimentei o bastante no passado, mas que tinha esquecido no meio da guerra. Deus trabalha por caminhos misteriosos. Muitas vezes coloca tais assuntos nas mсos habilidosas de um homem. Ou, neste caso em particular, nas mсos habilidosas de uma mulher. Entсo, em meio ao sussurrar das chamas nos braseiros e ao movimento das paredes da tenda que se mexiam a cada sopro do vento, Vivian ouviu a Voz, um aviso suavemente

murmurado: Hр um grande perigo… Embora ela tentasse ouvir mais, nсo conseguiu, ficou-lhe apenas a lembranуa daquela breve advertЖncia. - Suas habilidades como curandeira e seu poder de prece sсo um dom pelo qual estou profundamente grato - o bispo continuou. - Estou perdoado pelas circunstРncias de nosso primeiro encontro? - O perdсo ж uma dрdiva que cabe a Deus conceder disse ela, franzindo a testa. - A minha ж curar. Por fim, o bispo voltou o olhar frio para o irmсo que dormia. - Ele irр se recuperar dos ferimentos? - Sim, milorde - Vivian assegurou-lhe, entrelaуando as mсos para aquecЖ-las, ao sentir um frio repentino. - Com o tempo e com descanso e cuidados. A perna precisa disso para sarar adequadamente. - Notрvel - murmurou ele, e meneou a cabeуa num gesto de despedida.

As chamas das velas e os braseiros bruxulearam quando o bispo saiu da tenda. Entсo, firmaram-se e mais uma vez brilharam com forуa. Vivian estremeceu, como se uma presenуa maligna tivesse deixado o lugar juntamente com ele. Ocupou-se em preparar um caldo nutritivo para quando Guilherme acordasse. Afinal, o lьder normando estava deitado sem alimentaусo por vрrios dias, com febre, embora essa tivesse baixado com o chр forte de casca de salgueiro branco. Se fosse para se recuperar, precisaria comer. Trabalhou em silЖncio, alheia ao fato de que cantarolava uma antiga canусo celta para si mesma, quando Guilherme remexeu-se no catre. - VocЖ ж a curandeira saxс - ele resmungou e, com mais esforуo, estreitou os olhos, a estudр-la. - Meu escudeiro falou-me a seu respeito esta manhс, ou talvez durante a noite. - Seus olhos se fecharam conforme ele reunia forуas para prosseguir. - Acho que nсo consigo me lembrar. - Sou Vivian de Amesbury - apresentou-se, pousando a mсo em seu ombro.

Os olhos de um Рmbar-escuro se abriram mais uma vez e lentamente focaram nela. - Meu escudeiro tambжm disse que eu devia minha vida a vocЖ. Vivian sentiu a forуa vital forte e segura dentro dele, junto com uma sensaусo de frustraусo pela enfermidade. - Deve sua vida a Deus. - falou. Entсo, sorriu, pois nсo julgava Guilherme da Normandia uma figura tсo extraordinрria como fora levada a crer. - Deve, contudo, sua perna a mim. A surpresa do normando foi imediata. - Nсo foi forуada a amputр-la? - Achei que ficaria mais bem servido se a perna fosse salva. Para confirmar, ela ergueu a ponta da manta de pele e revelou a prova de sua afirmaусo. O alьvio de Guilherme foi visьvel, quando deixou a cabeуa cair no travesseiro.

Depois de um momento, ele voltou-se para o som borbulhante que vinha do braseiro. - O que ж esse cozido de cheiro horrьvel? - perguntou. Vivian sorriu. Parecia que normandos e saxшes eram parecidos quando se tratava de poушes curativas. - Nсo ж veneno - assegurou-lhe -, embora alguns digam que tem gosto mais horrьvel que a morte. Passou o braуo sob a cabeуa de Guilherme e levou uma colher da poусo a seus lрbios. Ele estremeceu conforme engolia, e respirou fundo para se recobrar. - De qualquer forma, vocЖ ж saxс e nсo seria inesperado que tivesse um profundo ressentimento contra mim. - Sim, ж verdade - ela admitiu, sem hesitaусo, e em seguida acrescentou: - mas culpa igual deve ser atribuьda a Harold, eu creio. Pois ele pЗs a perder seu exжrcito, as vidas de muitos saxшes inocentes e seu trono. - Ao pensar nas visшes que tivera do conflito iminente, murmurou, com tristeza. - Nсo poderia ter sido de outra forma. - Encheu uma caneca de chр de lavanda. - Beba isso, milorde. Irр tirar o gosto do outro.

Quando foi colocado mais uma vez de costas no catre, ele pediu: - Sente-se um pouco, demoiselle, pois estou cansado de tanto dormir. - Sua respiraусo era calma e nсo havia mais expressсo de dor em seu rosto. - VocЖ enxerga as coisas de forma bastante diferente da maioria dos saxшes - comentou. - Outros nсo seriam tсo gentis ou generosos na maneira de pensar. - Nсo ж nem gentileza nem generosidade, milorde - ela respondeu, com franqueza -, mas vejo a verdade de coisas que os outros nсo querem enxergar. - Dizem que realizou um milagre ao salvar minha vida. Isso ж verdade? - Deixo o assunto de milagres para Poladouras, o monge da abadia de Amesbury. - Se nсo foi um milagre que salvou minha vida, sobra apenas a magia. ╔ alguma espжcie de bruxa ou feiticeira, Vivian de Amesbury? Ela espantou-se e sз pЗde agradecer que Guilherme estivesse de olhos fechados. Com surpresa, respondeu: - Nсo pensei que Guilherme da Normandia desse crжdito a tais coisas. Nсo sou bruxa. Sou apenas uma pessoa que

tem o dom da cura e conhece ervas. - Suponho que vр exigir pagamento em troca de suas habilidades, nсo? Qual ж seu preуo, salvo o de sua liberdade? Essa eu nсo posso conceder enquanto tiver necessidade de sua perьcia. - Falaremos disso mais tarde, milorde. Preciso pensar muito para tirar plena vantagem de sua generosidade. Ele riu diante do comentрrio espirituoso, um som dжbil que lhe trouxe um espasmo de dor. — Se nсo ж uma bruxa, entсo ж uma feiticeira. Como o novo rei da Inglaterra, eu teria um feiticeiro a meu lado, como Arthur teve o fabuloso Merlin. - Sua cabeуa voltou-se no catre, aqueles olhos cor de Рmbar a fitр-la, pensativos. - Acredita na lenda, Vivian de Amesbury? - Muitos crЖem que seja verdade - ela respondeu num tom enigmрtico. Guilherme fechou os olhos como se analisasse a resposta. - Mas, afinal - Vivian continuou, baixinho -, Merlin defendia os saxшes.

Ele nсo se mexeu diante da resposta e Vivian percebeu que Guilherme adormecera. Diante disso, ela saiu Я procura de Gavin para ajudр-la a organizar os remжdios que queria mandar para o acampamento saxсo. Encontrara baЩs de medicamentos, frascos de remжdios e pacotes de condimentos esmagados que tinham pertencido ao mжdico pessoal de Guilherme, que infelizmente perecera durante a travessia do canal. A maioria das coisas ela fora capaz de identificar e acrescentar a seu prзprio suprimento de remжdios. As demais foram destruьdas, pois os relatзrios do homem eram pobres em explicaушes e nсo davam indicaусo de como utilizar os vрrios medicamentos. O escudeiro de Guilherme concordou em levar os remжdios para o acampamento saxсo, acompanhado por um dos homens de Gavin. Partiram no meio da tarde numa carroуa cheia de curativos de ervas e remжdios com instruушes especьficas para o tratamento dos ferimentos mais comuns.

Depois, Vivian se dedicou aos feridos entre os homens de Rorke, indo de fogueira em fogueira, de tenda em tenda, com Gavin sempre a seu lado. Trabalhou atж o entardecer. Seu corpo doьa todo de ficar curvada durante longas horas sobre as fogueiras, a mexer os remжdios, preparando ataduras e ungЧentos. Eram tantos feridos que Gavin solicitara ajuda de seu prзprio escudeiro e dois outros homens. - ╔ tarde, senhora, e a luz estр findando - disse Gavin, com inesperada preocupaусo. - Deixe para amanhс. - Sim - ela concordou, mas insistiu -, sз esta Щltima tenda. Sentira uma presenуa dentro da tenda. Fez menусo de entrar. Um dos outros homens a segurou pelo braуo, para impedi-la. Gavin o agarrou pela tЩnica. - Nсo interfira, Soren. Soren recuou, relutante. Assim que entrou na tenda, Vivian percebeu o que tinha sentido. - Mally! - Correu para o lado da garota. - Oh, Mally, o que aconteceu? - Mas mesmo enquanto perguntava, sabia a resposta. Contra as ordens de Rorke FitzWarren, Mally

fora raptada pelos homens de Vachel e escondida ali para seu desfrute. O coraусo de Vivian condoeu-se, pois sentia que a garota sofrera bem mais do que os maus-tratos que recebera em Amesbury. Fora usada repetidamente e, sem dЩvida, por mais de um homem. As manchas disso cobriam suas roupas rasgadas, e, junto com a dor no coraусo, Vivian sentiu зdio. - VocЖ vem comigo - disse a Mally e ajudou a jovem a se levantar, apoiando quase todo o seu peso ao saьrem juntas da tenda. Soren imediatamente se pЗs em pж. - Nсo pode levar a moуa! Ordens de Vachel. A espada de Gavin cortou-lhe o prзximo protesto. - Vamos levр-la-disse ele, com rispidez. - Caso Vachel queira discutir o assunto, pode tratar comigo ou com milorde FitzWarren. Leve-a a minha tenda e notifique meus homens de que ela estр sob minha proteусo. Pouco depois, jр na tenda de Gavin, Vivian apoiou a cabeуa de Mally na curva do braуo e lhe deu colheradas de chр de lavanda entre os lрbios inchados.

Mally gemeu, num protesto e tentou se esquivar quando o lьquido quente ardeu levemente. - Quero morrera jovem reclamou. - A senhora deveria ter me deixado. Que bem pode me fazer agora? Nunca mais poderei voltar para minha famьlia. Nсo sirvo para nenhum homem agora. O que vai ser de mim? - Estou olhando para vocЖ e vejo contusшes e ferimentos que irсo sarar. Com o tempo, seu coraусo tambжm ficarр curado. - Vai acontecer de novo. Os homens de Vachel virсo atrрs de mim. - Ela estremeceu violentamente. - Jamais acontecerр de novo - Vivian afirmou com uma firmeza que trouxe um olhar de surpresa aos olhos da garota. Entсo, prometeu: - Cuidarei disso. Mally curvou-se de lado, enterrando-se nas peles quentes como uma crianуa buscando conforto, fazendo lembrar a Vivian de como era jovem. Mas nсo mais inocente. - Ela ficarр bem, senhora? - o escudeiro de Gavin perguntou. Seu nome era Justin e ele ficara por perto desde que tinham trazido Mally para a tenda. Providenciara baldes de рgua quente, afastando-se enquanto Vivian a

banhara e depois trazendo uma de suas prзprias tЩnicas, larga o suficiente para um vestido, que ela poderia usar. - As contusшes irсo sarar - disse Vivian, e acrescentou, com um vinco profundo na testa -, mas existem outras feridas que demorarсo muito mais para serem curadas. Com o tempo tambжm sumirсo - prometeu, afagando o rosto da garota adormecida. A nсo ser por uma, pensou ela, pois, com seu dom de visсo, jр pressentia o dano maior que fora feito e que Mally nсo poderia saber. Uma crianуa, concebida de uma das relaушes a que fora forуada desde o dia em que tinham partido de Amesbury. Sentiu uma pontada no coraусo, sabendo dos tempos difьceis que estavam adiante da garota. O vento soprou, enchendo os lados de toda a tenda, e Vivian estremeceu. Pegou o saco de ervas medicinais, pois precisava ver Guilherme da Normandia. Guilherme nсo despertara desde a Щltima vez que o vira, e Vivian nсo encontrou razсo para acordр-lo quando dormia tсo tranqЧilamente. Era melhor deixр-lo descansar.

Enquanto descansava, o corpo se curava. Guardas se alinhavam do lado de fora da tenda e o escudeiro de Guilherme jр fizera sua cama ao lado do catre de seu senhor. Vivian fez sua prзpria cama de peles onde dormira na noite anterior, mas o sono nсo veio logo. Estava preocupada, com o pensamento em Mally e tambжm no encontro que tivera com o bispo. Nсo podia fazer nada com relaусo a Mally naquela noite, mas quando Guilherme acordasse, ela pretendia pedir a proteусo dele para a garota. Quanto ao bispo, nсo tinha respostas para a inquietaусo que sentia, uma inquietaусo que a seguiu nos sonhos tumultuados. A tenda estava escura quando ela acordou, com uma afliусo urgente a percorrer-lhe a pele como uma mсo gelada. A princьpio, pensou que todos os braseiros tinham se apagado, mas entсo viu que vрrios queimavam com forуa. Apenas ali, a seu redor, a luz nсo chegava. A escuridсo a rodeava e ela sentiu uma ameaуa maligna,

exatamente como o perigo que vira de relance em sua visсo dentro do cristal azul. Algo estava errado. Correu para o braseiro. Lentamente, estendeu a mсo na direусo da chama. O calor a alcanуou, banindo o frio e irradiando-se por ela. Entсo, conforme estendia lentamente a mсo para dentro da labareda, o fogo a rodeou enquanto ela murmurava as palavras antigas: - Fogo da alma, chama de vida, conforme a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. A chama tornou-se ainda mais alta, os matizes de dourado e azul a se mesclarem ao laranja reluzente e ao escarlate profundo. A princьpio, ela viu apenas um vрcuo. Depois, as cores da visсo mudaram gradualmente. A chama de brilhante amarelo e laranja foi banhada em escarlate que se espalhou, afogando as outras cores, atж que tudo estivesse coberto de sangue. Vivian teve entсo um prenuncio da morte de… Rorke FitzWarren.

Vivian gritou, como se experimentasse uma dor insuportрvel, e saiu correndo da tenda de Guilherme. Sз parou ao encontrar um dos homens de Rorke. - Precisa me levar Я tenda de milorde FitzWarren - ela pediu, e viu o alarme que despertava naquela expressсo. O falcсo estр lр. Preciso vЖ-lo. O guarda finalmente concordou e seguiu ao lado dela atж a tenda de Rorke. Ao entrar na tenda, a cabeуa da ave inclinou-se em sua direусo, os olhos como poуas brilhantes de luz. Vivian aproximou-se do poleiro. - VocЖ sentiu tambжm, nсo foi? - murmurou, acariciando o peito brilhante do falcсo para que ele se acalmasse. - Sim, estр lр. Sinto, mas nсo consigo enxergar. Entсo, tomando o falcсo no braуo, saiu da tenda. - Estique suas asas, mo chroi - pediu, deixando os pensamentos se unirem aos do falcсo. - Veja o que eu nсo posso ver, esteja onde eu nсo posso estar. Falava no antigo idioma celta. Depois, estendendo o braуo para o alto, ergueu o falcсo. Quando o guarda de

Rorke ia impedi-la, era muito tarde; o falcсo jр cortava o cжu banhado pela luz da aurora. - Agora vocЖ precisa me levar atж sir Gavin-ela ordenou. O guarda hesitou. - Leve-me, depressa - esbravejou Vivian -, ou o sangue de lorde FitzWarren estarр em suas mсos. E foi o que o rapaz fez. Ao vЖ-la, Gavin levantou-se de imediato do leito, e o irmсo Guy apontou na entrada da tenda com ele. Ambos traziam as espadas em punho. - O que ж? - ele perguntou, intrigado. - O que aconteceu? - Hр um grande perigo - Vivian explicou, apressada, o medo a lhe apertar a garganta. - Precisa levar seus homens atж lorde FitzWarren. Pode salvar a vida dele! Percebeu que Gavin nсo estava convencido. - Por favor, sir Gavin - implorou. Entсo, conclamando seus poderes, estendeu a mсo e a pousou no braуo dele, os dedos a se fecharem suavemente sobre os mЩsculos rijos, enquanto sentia a escuridсo tornar-se ainda mais perigosa. - Nсo pode falhar com ele - rogou, transmitindo-

lhe os pensamentos e passando-lhe as mesmas imagens que vira tсo claramente nas chamas. - Eu irei - Gavin exclamou, com urgЖncia na voz. - O falcсo o guiarр. Quando a guarniусo partiu, Vivian postou-se na abertura da tenda de Guilherme, a escuridсo a invadir-lhe os pensamentos e a alma tomada por uma dor aguda e a certeza de que o futuro estava em risco. Depressa! Transmitiu mentalmente os pensamentos aflitos a Gavin. Nсo se atrase. Entсo, sua mente alуou vЗo, subiu aos cжus nas asas esticadas do falcсo, enquanto ela rezava para que nсo fosse tarde demais. Rorke e seus homens paravam Я margem de um riacho para dar рgua aos cavalos e para um descanso breve. As duas vintenas de homens escolhidos a dedo cavalgavam em grupos de quatro, abrindo um leque ao penetrar na mata fechada.

O exжrcito saxсo do rei Harold poderia estar destroуado, mas ainda nсo estava derrotado. Fora por essa razсo que ele mandara soldados campo afora para rastrear os lьderes saxшes que poderiam ter reunido outro pequeno exжrcito para detonar uma rebeliсo de surpresa. A bruma se esfumaуara na altura das copas das рrvores, revelando um brilhante cжu azul. As folhagens e ramos ralearam e se abriram numa clareira onde o sol do fim da tarde conseguia penetrar, aquecendo as armaduras. Uma sombra esguia e graciosa cruzou a clareira iluminada, atraindo o olhar de Rorke para o cжu. Ele reconheceu imediatamente o falcсo pela tira de couro passada por uma fita azul. - ┴quila! - exclamou, surpreso. - Ele nсo nos seguiria por vontade prзpria - murmurou, muito sжrio. - Foi enviado para nos encontrar - disse, com certeza. Entсo, um bando de aves voou em debandada, assustados por alguma criatura nсo vista… Ou criaturas. - Em guarda! - Rorke disse a seus homens, o grito de guerra rompendo a paz da floresta.

Nem bem tinham empunhado as armas, o ataque estava sobre eles. Rebeldes saxшes surgiram das рrvores e da cobertura das rochas, enxameando pela clareira. Nсo houve tempo para mais nada. Os preciosos segundos que tinham conseguido com o alarme dado pelas aves assustadas tinham feito a diferenуa crьtica entre a morte imediata e uma chance de se defenderem. Tudo ao redor deles ressoava com os sons familiares e terrьveis de uma batalha lutada com fЩria: os gritos ferozes dos saxшes que jр tinham sido derrotados em Hastings e sem dЩvida sentiam ter muito pouco a perder; um grito de agonia quando um saxсo defrontou-se com a morte sob os cascos possantes de um cavalo de batalha normando; os urros agoniados dos feridos ao caьrem de ambos os lados; o relincho de um animal moribundo ao tombar ao chсo, levando o cavaleiro consigo. Em seu campo de visсo, Rorke viu o falcсo voar mais alto no cжu, em seguida, o som da batalha pareceu recrudescer por dez vezes quando soldados montados derramaram-se

da floresta para dentro da clareira. Os saxшes se descobriram encurralados entre os homens de Rorke no meio da clareira, e os homens de Gavin, que os rodeavam em todas as direушes. A batalha, que parecia perdida apenas momentos atrрs, mudara de rumo e chegara a uma rрpida e decisiva conclusсo. - Contenham suas armas! - Rorke gritou a ordem, que ecoou ao longo da linha normanda atж que, um por um, seus homens deixaram de lutar. Os mortos saxшes coalhavam a clareira. Poucos permaneciam em pж. Rorke enxugou o sangue que ensopava sua tЩnica. A dor comeуou a queimar e acomodou-se num lugar familiar abaixo da lateral, onde a cota de malha se rasgara na batalha, dias antes. - VocЖ estр ferido! - Tarek exclamou, ao ver o sangue. - Parece que sim - Rorke retrucou, com um sorriso tenso. - O bruto de meu cavalo foi um pouco lento em uma volta.

O amigo postou-se imediatamente ao lado dele, examinando delicadamente o vсo entre os elos quebrados. - O bruto a que se refere provavelmente salvou-lhe a vida Tarek informou. - O golpe veio por trрs. Se o tivesse acertado, metade de vocЖ ficaria montado no cavalo e a outra metade cairia na clareira. Rorke pestanejou e encarou-o com um olhar ameaуador, diante do exame doloroso. - O aviso do falcсo salvou nossas vidas. - Tragam a curandeira! - o grito ecoou assim que Rorke e seus homens retornaram ao acampamento normando, pouco antes do pЗr-do-sol. Vivian estivera andando de um lado para outro na tenda de Guilherme. Quando o primeiro alerta de que os cavaleiros tinham sido vistos correu pelo acampamento, ela apressou-se a ir atж a abertura da tenda. Uma prece emergiu-lhe dos lрbios para que Rorke nсo morresse. O irmсo de Gavin, sir Galant, levou-a apressado atж a tenda de Rorke. Gavin e Tarek ai Sharif estavam lр, junto com Stephen de Valois.

- Trouxe suas poушes medicinais? - Tarek perguntou, as belas feiушes morenas vincadas de preocupaусo e cansaуo. Vivian concordou e a mсo de Tarek fechou-se em seu braуo, guiando-a por entre os homens aglomerados nos fundos da tenda. Eles se afastaram quando ela chegou mais perto, o saco contendo suas preciosas ervas e pзs sob o braуo. Rorke FitzWarren encontrava-se sentado num banco entre seus homens. Estava vivo! Ela quase gritou de alьvio. As feiушes de Rorke estavam tensas, a expressсo cansada. Sua cor normalmente saudрvel sumira, exibindo agora nuances de cinza sob a sombra da barba escura. Havia um pequeno corte sobre a sobrancelha direita, feito muito provavelmente pelo elmo. O sangue estava seco numa crosta. Ele apoiou-se contra a mesa, suportando o peso com o braуo direito, e passou o cрlice para a mсo esquerda. Sua boca estava apertada, os olhos fechados como se engolisse um grande gole de vinho para agЧentar a dor do ferimento.

A cota de malha mostrava a evidЖncia de uma violenta batalha, os elos de ferro curvados com os golpes. Havia um vсo do lado esquerdo, no lugar onde tinham se rompido, revelando a tЩnica de couro de proteусo, que tambжm fora cortada, e o sangue fresco que brotava dali. - A armadura terр de ser removida - disse ela, quase com medo, pois sabia que poderia lhe causar mais dor. O escudeiro e sir Gavin tiraram com cuidado a tЩnica e o tocado de cota de malha. Com um gesto para que trouxessem velas para mais perto, ela se ajoelhou ao lado de Rorke. O escudeiro lhe deu um pano limpo e Vivian estancou o sangue para poder determinar a extensсo do ferimento. Sob a leve pressсo de seu toque, Rorke abriu os olhos devagar. Frios com uma manhс de inverno, cinzentos como uma tempestade nзrdica, aqueles olhos estavam opacos de dor. Vivian comeуou a dar ordens como um general, pedindo as coisas de que precisaria para limpar o ferimento. Duas bacias de рgua quente, uma sobre um braseiro para

ferver, ordenou ao escudeiro de Rorke e, depois, deu ordens semelhantes a Tarek e Stephen de Valois, como se eles estivessem lр a seu serviуo. Sem hesitar, trouxeram panos limpos, mais velas e tiraram da tenda todos os outros soldados, prendendo as peles que protegiam a entrada para que a corrente de vento nсo entrasse. Com a рgua quente ao alcance da mсo, cortou a grossa camisa de lс, parecida com a que os saxшes usavam. Comprimiu um pano limpo gentilmente no ferimento, na lateral do corpo de Rorke, onde a lс fora cortada. Concentrou toda a sua atenусo e umedeceu gentilmente os fios do tecido rasgado e afastou-os do ferimento. Assim que terminou, o escudeiro tirou a tЩnica de lс de Rorke. Ela entсo se ajoelhou entre as pernas do normando, enfiadas em pesadas calуas e botas de couro. O ferimento era pior do que pensara. Rorke sofrera um golpe oblьquo, evidenciado pela depressсo na cota de malha. A ponta de uma espada encontrara um lugar vulnerрvel onde os elos tinham cedido ante um golpe anterior,

possivelmente na batalha de Hastings. - Seria bem mais sжrio se nсo fЗssemos avisados de antemсo. O falcсo nos alertou no bosque. Vivian ergueu o rosto e seus olhares se encontraram. As chamas de uma dЩzia de velas colocadas ali perto estremeceram como se sopradas por um golpe de vento. Era зbvio que Rorke esperava por uma explicaусo. Ela sabia que sua decisсo em mandar o falcсo abriria uma porta que nсo poderia mais ser fechada outra vez. O que jazia alжm daquela porta era um grande enigma, pois a visсo no cristal nсo revelara o futuro, nem sua parte nele. A Щnica coisa certa era que, embora Rorke FitzWarren fosse um inimigo e houvesse tirado incontрveis vidas de saxшes, ela nсo deveria deixр-lo morrer. - Entсo, ж muito afortunado, milorde. - Sim, ou talvez isso nada tenha a ver com boa sorte, afinal. Procuramos pelo falcсo depois. Mas nсo pudemos encontrр-lo. Receio que possa ter se perdido. - Nсo hр nada a temer. ┴quila tem sentidos apurados. Vai voltar.

- Foi surpreendente como nos encontrou - disse, observando-lhe a reaусo. - Nem tanto, senhor, pois jр o conhecia. Rorke nсo se deixou enganar pela explicaусo. - Acho que nсo - ele murmurou. - Nсo sairia de seu lado, a menos que recebesse ordem. - Existe sempre uma primeira vez. Ele estava inquieto, desacostumado das novas imediaушes. Talvez tenha saьdo para caуar. - Sim - Rorke retrucou, numa entonaусo cheia de significados -, caуou, e caуou bem. Com um gesto para Tarek e Gavin, dispensou os dois homens. Ficaram sozinhos. - Estрvamos em menor nЩmero - explicou, observando como ela se concentrava em limpar o ferimento. Cravou os olhos no brilho dos cabelos vermelhos como fogo lьquido a lhe descer pelos ombros, e procurou esquecer a dor. Quando Vivian se recusou a fazer comentрrios, ele continuou a descrever o ataque em detalhes. - Eram guerreiros experientes. Serьamos obrigados a nos

defender com todas as forуas caso nсo soubжssemos de sua presenуa antes que estivessem sobre nзs. Vivian continuou calada e pegou um novo pedaуo limpo de pano. Rorke a segurou pelo queixo, forуando-a a erguer a cabeуa e encarр-lo. - VocЖ sabia que serьamos atacados. Mandou o falcсo para nos avisar e Gavin seguiu o falcсo, embora nсo conseguisse explicar a razсo. - Estudou-a com os olhos apertados. - Quando perguntei por que estava convencido de que havia um grande perigo, ele nсo soube dizer. Vivian sentiu um enorme alьvio. Gavin nсo se lembrava de nada. - Gavin ж seu amigo e um guerreiro experiente. Sem dЩvida, sentiu o perigo como o senhor sentiria, milorde. Certamente, nсo foi nada mais do que o instinto. Ele observou a maneira que a luz do fogo do braseiro prзximo parecia incendiar aqueles fios de cabelos e depois escorrer com lРnguida graуa como se realmente fosse uma chama.

- ╔ uma coisa muito diferente. Ele nсo poderia saber precisamente onde e quando o ataque ocorreria. VocЖ mandou o falcсo, salvou minha vida. Por que faria uma coisa dessas? - Eu… - Vivian calou-se sob o escrutьnio daqueles olhos acinzentados. O que poderia dizer a ele? Que era pela mesma razсo pela qual sabia que devia acompanhр-lo ao acampamento normando naquele dia em Amesbury? Que tivera uma poderosa visсo de um ser magnьfico nascido em fogo e sangue, a mesma criatura que ele carregava no escudo? E que sabia que seu destino estava ligado ao dele inexoravelmente? Como poderia explicar o dom que possuьa? Como lhe dizer que via o ьntimo dos outros, sentia-lhes as emoушes, as tristezas e angЩstias que lhes afligiam os coraушes e pensamentos? Finalmente, como poderia fazer aquele guerreiro inimigo compreender as forуas que mesmo agora se reuniam em torno dos dois e formavam o desenho daquela tapeуaria

ainda nсo tecida, daquilo que ainda haveria de acontecer, quando ela mesma nсo compreendia? Ao perceber que nсo havia resposta convincente, voltou Я tarefa de cuidar do ferimento. A um movimento, uma brilhante luz azul reluziu e piscou por trрs do vжu de seus cabelos. Vivian assustou-se quando ele afastou a cascata sedosa e o brilho do braseiro refletiu-se no magnьfico cristal que ela trazia pendurado no pescoуo. Os dedos de Rorke se fecharam em torno do cristal como se fosse tomр-lo dela. Vivian prendeu o fЗlego, esperando pelo grito de dor assim que ele tocou o cristal. Ninguжm o tocara antes sem se queimar. Era por essa razсo que o mantinha escondido. Sз alguжm alжm dela tocara o cristal e nсo ficara terrivelmente queimado: a velha Meg. O que estava acontecendo, entсo? - Nсo devo - explicara, quando Vivian perguntara a razсo. Apenas uma vez foi possьvel a mim tocar o cristal e isso ao dр-lo a vocЖ. Se eu o tocasse agora, ficaria horrivelmente queimada, como acontecerр com qualquer um que tente tirр-lo de vocЖ. Essa ж a proteусo do cristal.

Apenas aquela a quem pertence o cristal pode tocр-lo e nсo se ferir. Contudo, agora, havia outra pessoa que tinha tocado o cristal e permanecia incзlume, ao aninhar a pedra na palma da mсo cheia de cicatrizes. Rorke vira tais pedras raras de qualidade incomparрvel quando estivera no Oriente. Aquela era magnьfica, uma safira oval de um azul profundo, perfeitamente polida, macia ao toque, que dava a ilusсo de que se poderia ver atravжs de sua transparЖncia. - ╔ uma pedra bela e rara - ele comentou, em voz baixa, como se especulasse como uma simples saxс vestida como uma camponesa poderia ter uma gema tсo preciosa. Tem o mesmo azul de seus olhos, e parece guardar o fogo dentro, da mesma maneira que seus olhos exibem uma chama ardente. - Esta pedra foi um presente de meu pai - contou, sem saber por que o fazia. - Foi tudo o que ele pЗde me dar antes…

- Antes…? - Antes que fosse obrigado a me mandar embora. ╔ tudo que tenho dele. ╔ chamada de Olho do Dragсo. Seus dedos se enfiaram entre os dele, tentando abri-los. Em vez disso, conforme se entrelaуavam sobre a safira, Vivian sentiu a gema vibrar com um repentino calor. Nсo tсo violento a ponto de queimar, mas um calor lРnguido que parecia fundir as mсos unidas, numa tepidez hipnзtica, sensual, a ligр-las em torno do cristal. Capьtulo V

Rorke soltou o cristal com relutРncia, e Vivian enfiou-o dentro do corpete do vestido. - O Olho do Dragсo. Acredita em dragшes, Vivian? Ela deu de ombros num gesto de descaso. - Algumas pessoas acreditam neles. Dizem que um dragсo guarda o Santo Graal numa profunda caverna, no norte. - Ah, lendas… Conhece a lenda de Excalibur? - A espada do rei Arthur? - ela comentou, sem encarр-lo. -

Dizem que tem poderes extraordinрrios. - A espada do feiticeiro presa na pedra e o Щnico capaz de tirр-la de lр seria o menino-rei. Dizem tambжm que o cabo tem uma magnьfica pedra preciosa azul. Ele ainda a observava, Vivian podia sentir o exame daqueles hibernais olhos acinzentados. - No que acredita? - perguntou, baixinho. - Acredito naquilo que posso ver e segurar com minha prзpria mсo. A espada de um guerreiro ж sua verdadeira forуa, nсo uma arma mьtica surgida da lenda. Ele ainda a examinava. Desamarrando o saco de medicamentos e ervas, ela espalhou o conteЩdo sobre a mesa e procurou entre os pзs e poушes atж que encontrou aqueles que queria. Aplicou o ungЧento, segurando-o no lugar com um pedaуo de pano que enrolara em torno da cintura de Rorke. A pele do normando arrepiou-se ao toque delicado. Os mЩsculos do ventre, acima das calуas de couro, encolheram-se e ficaram rijos como pedra com a respiraусo contida.

Conforme ela inclinou-se para passar a faixa de uma das mсos para a outra, Яs costas de Rorke, as madeixas cor de fogo roуaram-lhe o ombro e ele parou completamente de respirar. - Por que mandou o falcсo? - insistiu em saber, quando recuperou o fЗlego. As mсos de Vivian se imobilizaram na tarefa de passar as faixas. O medo, arma perigosa do desconhecido, perpassou-a. Ela nunca o sentira antes ou, pelo menos, nсo com aquela intensidade. Antigamente, todas as coisas lhe eram conhecidas. Via tudo em visшes e sonhos, sentia com um simples toque que dissipava qualquer fingimento e disfarce. Aquele homem, porжm, era um grande enigma. Nсo conseguia sentir nada do que lhe ia Я alma. Ela o temia. Sim, temia o que nсo podia ver, temia as outras sensaушes nas quais era forуada a confiar e, mais que tudo, temia suas prзprias reaушes. Recusou-se a encarр-lo, e apressou-se em atar a bandagem para poder ir embora. Mas seus dedos, experientes e seguros, embaralhavam-se como se caуoassem dela.

Rorke, por sua vez, ansiava por sentir novamente o toque da pele acetinada de Vivian. Nсo o toque de uma curandeira, mas o toque da mulher que se escondia dentro dela. E com uma fome brutal, rara, ele ansiava em provar a plenitude de sua boca. Vivian sentiu a mсo do guerreiro em seus cabelos e a pressсo gentil que empurrava sua cabeуa para trрs e a obrigava a fitр-lo. As feiушes mрsculas estavam tensas e o cinza hibernal daqueles olhos assumiu um tom mais escuro e tempestuoso, deixando-a aturdida com a transformaусo do frio hostil para algo que ela sentiu ser ainda mais perigoso. A mсo do guerreiro fechou-se sobre a massa de cabelos que caьa solta pelas costas de Vivian. Ele torceu-a gentilmente, formando uma espжcie de corda sedosa e perfumada, ao mesmo tempo em que a trazia para junto de si. - Jehara. A palavra soou baixa e rouca. Ao mesmo tempo, pareceu um murmЩrio soprado ao vento que se agitou pelas

paredes da tenda e acariciou as chamas trЖmulas das velas. Entсo, como estava escrito desde o princьpio dos tempos, a boca de Rorke fechou-se sobre a dela. Seu hрlito, quente e doce, a fez estremecer. Aprisionada entre as pernas do normando, capturada pelos cabelos por aquela mсo forte, e incapaz de escapar, um medo maior que qualquer outro que tivesse conhecido a percorreu de alto a baixo. A visсo interna que sempre a guiara agora a abandonara, deixando-a nua, exposta, absolutamente vulnerрvel pela primeira vez em sua vida. - Tocр-la ж como tocar o sol - Rorke sussurrou. Sua pele arrepiou-se quando a outra mсo de Rorke subiu para empalmar sua face, os dedos calejados abrindo-se em leque por seu rosto, raspando levemente a tez com uma ternura surpreendente que a fez ansiar por mais. - O seu gosto… A ponta da lьngua de Rorke roуou pela curva de seus lрbios, tсo leve como a carьcьa de uma asa de borboleta. - …ж como provar o fogo.

Ele gemeu, e as palavras se tornaram um repentino murmЩrio quando o calor da boca carnuda apossou-se da sua, aturdindo-a. Vivian sentiu-se encurralada pela forуa daquela mсo poderosa enrolada em seus cabelos. Nсo havia como fugir, nem qualquer esperanуa disso. Havia apenas a forуa daquele beijo a fazЖ-la soltar as ervas preciosas dos dedos trЖmulos, disper-sando-lhe os pensamentos e depois invadindo-lhe os sentidos. Apavorada, tentou empurrar o normando. Rorke tinha gosto de vento, aуo e suor, sobrepujado pela doуura do vinho quente mesclado a um toque de especiarias exзticas. Uma explosсo de calor a invadiu conforme sua boca abriu-se para receber a dele. Extasiado por ver aquele contato retribuьdo, Rorke aprofundou o beijo. Vivian de Amesbury tinha gosto de calor ardente, sonhos antigos, perdidos na noite e uma inesperada inocЖncia que lhe transpassou os desejos mais bрsicos para abrir uma brecha na muralha de gelo que erguera para proteger seu coraусo.

Ele sentiu o calor daquelas mсos delicadas e a pressсo insistente quando tentou interromper o beijo. Entсo, vozes soaram irritadas, do lado de fora da tenda. A pele que protegia a entrada, de repente, foi puxada para o lado. - Perdoe-me, milorde - o escudeiro resmungou uma desculpa, embaraуado. - Tentei impedi-la, mas ela nсo me deu ouvidos. O beijo terminou abruptamente e Rorke experimentou uma sensaусo aguda de perda igualada apenas Я fЩria glacial que o invadiu. - Dei ordens expressas para nсo ser perturbado! - Vi quando voltou, milorde. Judith de Marque forуou a passagem pelo escudeiro e parou diante da visсo da jovem de cabelos vermelhos como fogo ajoelhada entre as pernas de Rorke. Espantada, aturdida, humilhada e apavorada por aquilo que nсo poderia, nсo deveria sentir, Vivian lutou para se libertar. Mas aquela mсo poderosa, torcida com gentil pressсo em seus cabelos, a continha com tanta firmeza como a um falcсo amarrado por tiras de couro ao punho do dono. Encarou Rorke com uma tal agonia que ele

afrouxou os dedos, e as mechas sedosas de cabelos escorreram por sua mсo como fogo lьquido. Como o falcсo que procura o cжu, Vivian levantou-se e recolheu depressa suas ervas e pзs. Fugiu da tenda e, de repente, tudo pareceu mais frio, as sombras mais profundas, como se ela tivesse levado a luz consigo. - Deve ter se divertido com a escrava saxс - escarneceu Judith. Encheu uma jarra com vinho quente de uma panela sobre um braseiro. Levou-a para a mesa onde ele se sentava. Parou entre as pernas esticadas do normando e pegou o cрlice vazio. Despejou o vinho com um leve som murmurante atж Я borda. O cheiro pungente, levemente apimentado, subiu pelo ar. Estendeu-lhe o cрlice. - Mas o passarinho fugiu. Ajoelhou-se entre as pernas de Rorke, como Vivian fizera. Contudo, diferentemente de Vivian, nсo havia nada que pudesse ser confundido com inocЖncia em Judith de Marque

quando ela apanhou o pano da tigela sobre a mesa e o torceu. - Ela ж jovem demais e muito simples para compreender as necessidades de um guerreiro - ronronou, ao descer com o pano pela curva do peito. - E vocЖ compreende tais necessidades perfeitamente disse ele, sem o mьnimo esforуo para disfarуar o cinismo. Judith molhou o pano outra vez na рgua quente. - Muito bem, milorde. Quem sabe tenha esquecido. - Ela se inclinou para mais perto, e a frente de seu manto se abriu, revelando que nсo usava nada por baixo. Enquanto esfregava o pano pela barriga do guerreiro, fez um leve movimento de ombros e o manto escorregou e caiu no chсo. Seus seios eram grandes e pendiam, fartos, roуando o braуo de Rorke quando ela se inclinou para frente. Os mamilos enrijeceram e saltaram ao contato. - Eu, porжm, nсo me esqueci - ela murmurou, com voz rouca, os dedos a deslizarem pelo ventre de Rorke e depois para baixo, atж a virilha. - E quanto Я sua lealdade para com Guilherme? - ele perguntou, a frieza da voz combinando com o brilho gelado

dos olhos cinzentos. - Sou tсo leal a ele como ele ж a mim. Guilherme me trouxe para a Inglaterra para aquecer as noites frias porque sua duquesa estр muito pesada, esperando um filho. Mandarр buscр-la para se juntar a ele, em Londres, e quando ela der Я luz, serр de novo leal a ela. Observou a reaусo de Rorke. Entсo, o agarrou pelo pescoуo e o beijou com volЩpia. Abruptamente, ele a empurrou. - Estou exausto, Judith, e o ferimento ж como uma lanуa cravada na minha costela. - Sua expressсo era destituьda de qualquer emoусo. - Talvez um dos homens do conde de Bayeaux aprecie sua lealdade esta noite. - As palavras eram cortantes como lascas de gelo. Espantada com aquela rejeiусo, Judith afastou-se com um movimento brusco. Pegou o manto. Suas feiушes se endureceram, nсo mais sedutoras, porжm uma mрscara de зdio sem disfarce. Zangada, enrolou o manto em torno de si e saiu da tenda quando Tarek ai Sharif entrava. Rorke virou o cрlice de vinho na boca e o encheu de novo.

Pegou um grande pergaminho enrolado em couro. Soltou a tira e abriu o rolo, espalhando-o pela superfьcie da mesa. Era o mapa de toda a Bretanha. - ╔ imperativo que Guilherme tome Londres. Apenas entсo o trono pode ser assegurado. Faremos nossos planos para tomar Canterbury a seguir. Tarek conhecia o lugar chamado Canterbury, o coraусo espiritual da Inglaterra saxс, e viu a sagacidade do plano de Rorke. - Reclame o coraусo da criatura e depois capture sua alma, quando e onde nunca se espera. - Era um plano excelente. - Haverр oposiусo - avisou. - Existem aqueles que dirсo que vocЖ foi dominado pela ambiусo, meu amigo. - E vocЖ o que diz? - perguntou Rorke. Tarek sorriu com aprovaусo ao erguer o cрlice. Os olhos azuis brilhando e iluminando as feiушes marcantes. - Que mais poderia dizer, meu caro amigo? A Londres. Sir Gavin de Marte chegou para acompanhar Vivian atж a tenda do duque Guilherme. A Щnica coisa que diferenciava a

pequena e pouco evidente tenda das outras eram os guardas que a rodeavam. Os rebeldes saxшes poderiam estar em qualquer lugar e, com o ataque dias antes, nсo podiam correr nenhum risco. A pele que cobria a entrada da tenda foi puxada e Vivian entrou apressadamente. Estava atrasada. Rorke jр chegara e vрrios rolos de mapas estavam espalhados sobre o catre de Guilherme. Como acontecera no Щltimo encontro dos dois, dias antes, todos os sentidos de Vivian pareceram ficar em total estado de alerta diante dele. O corte simples da tЩnica de couro, as calуas e botas que envolviam os mЩsculos rijos mais os destacavam que os disfarуavam. Sua face estava recжm-barbeada. Fora-se a sombra da barba que dava a ele um ar rЩstico, substituindo-a por uma aparЖncia ainda mais temьvel nos Рngulos agudos das feiушes duras e frias. Contudo, sob a frieza aparente, alжm do cinza hibernal dos olhos, havia uma luz predatзria ali. Aquele era o olhar feroz de um caуador, deixando-a ciente de que

havia um fogo intenso a queimar debaixo do gelo aparente. O irmсo do duque, o bispo, estava ali tambжm, e a cumprimentou com um menear de cabeуa. Embora fosse um bispo com votos feitos a Deus, era tambжm um guerreiro com um juramento de lealdade prestado a Guilherme. O guerreiro-bispo. Uma estranha combinaусo, ela pensou, e imaginou o conflito que tais devoушes poderiam despertar no Рmago de uma pessoa. - Bom dia, senhora - Guilherme a saudou. A despeito dos rigores da viagem com os ferimentos ainda tсo recentes, ele parecia bem. Sentava-se ereto, usando uma tЩnica e calуas limpas. Vivian respondeu ao cumprimento, e o avaliou por sob as longas pestanas. Seus pensamentos estavam cheios de angЩstia por Mally, por tudo o que sofrera na mсo dos normandos. Apressou-se a fazer seu trabalho, ansiosa por sair da tenda e da presenуa de Rorke FitzWarren. - Eu lhe devo minha vida - Guilherme afirmou, com praticidade. - Isso tem passado por minha cabeуa nos Щltimos dias. Devo-lhe um prЖmio. Sз precisa dizer o

quЖ. -╔ muito generoso, milorde. Hр um prЖmio que eu gostaria de pedir. - Ela respirou fundo, imaginando se a generosidade iria esbarrar nas objeушes do irmсo, pois Vachel era homem do bispo. — Nсo peуo por mim, mas para outra pessoa. Guilherme ergueu as sobrancelhas, sem tentar esconder a surpresa. - Pode pedir roupas. - Ele apontou para o vestido limpo, mas cheio de remendos, que Vivian usava. - Tambжm pode pedir ouro, pois valorizo muito suas habilidades. - Que bem me traria ouro se um soldado normando poderia tomр-lo de mim? - ela perguntou, com candura. Que bem me fariam roupas quando terсo o destino daquelas que eu uso? O de serem rasgadas e esfarrapadas. Tais coisas tЖm pouco valor para mim, milorde. O prЖmio que peуo ж uma garota. - Uma garota? - Sim, milorde. Uma garota saxс tirada de Amesbury no mesmo dia em que fui obrigada a sair de lр sob ameaуa

de morte Яqueles que amo e me sсo caros. Ela estр aqui, neste acampamento agora, e foi terrivelmente abusada por alguns de seus homens. - Isso ж verdade? - Guilherme olhou para Rorke. - A garota foi trazida contra minhas ordens. Foi bastante maltratada e estр em recuperaусo aos cuidados de Gavin de Marte. - Protesto contra tal pedido - o bispo interveio. - Vai conceder favores a uma escrava saxс? - apontou para Vivian. Vivian teve consciЖncia do olhar sombrio e zangado que perpassou pelo rosto do bispo. - VocЖ nсo pede nada para si, mas para ela. Por que, Vivian de Amesbury? - As razшes sсo trЖs, milorde. Preciso da garota. Ela me ajudava antes e aprendeu muitos mжtodos de cura. Ele concordou ao que considerou um bom motivo. - E a segunda? - A garota, Mally, foi abusada horrivelmente, de maneira

pior que o animal mais inferior que se arrasta pela terra. Ela sentiu o olhar duro do bispo. - Gostaria que nсo fosse abusada outra vez, pois poderia facilmente sucumbir e seria de pouca utilidade para milorde. - Vejo a sabedoria de seu pedido - Guilherme retrucou. E, no entanto, se eu conceder esse prЖmio pelas razшes dadas, o daria para a prзpria garota, pois parece que ela sofreu em demasia e sem uma justa causa. Foi igualmente franco ao continuar: - Terei a Inglaterra na ponta de minha espada, mas nсo a terei sob minhas botas. Um reino assim nсo ж um reino, mas o pior tipo de prisсo e nсo valeria de nada para mim. Vivian percebeu que Guilherme, duque da Normandia, nсo era homem de brincar com as palavras. - Ah, e ainda resta um motivo. Disse, senhora, que as razшes eram trЖs. - A terceira razсo ж que se eu pedir algo para mim o senhor deve concedЖ-lo, pois fez um juramento perante

testemunhas, inclusive seu prзprio irmсo, o bispo. Ele concordou com a cabeуa enquanto estreitava os olhos, com ar especulativo. - Continue, por favor. Vivian esboуou um sorriso. - ConseqЧentemente, nсo pedirei o prЖmio para mim agora - prosseguiu. - Mas chegarр o dia em que o reclamarei. Sendo um estrategista sagaz, Guilherme da Normandia admirava a mesma qualidade nos outros, e sorriu com ar apre-ciativo. - Por Deus, lady Vivian, se eu tivesse um negociador tсo esperto quanto a senhora em minhas campanhas no Impжrio Bizantino, o reino teria sido meu. Aceito sua decisсo. Concederei o que me pede. A garota ficarр consigo, sob minha proteусo pessoal. - Obrigada, milorde - ela murmurou, ao se acomodar para trocar as ataduras do duque, o que fez rapidamente. Entсo pediu licenуa para se retirar. Em questсo de horas estavam a caminho de Londres. Guilherme decidira que nсo poderiam se atrasar mais. As

tendas foram desarmadas e guardadas em grandes carroуas que seguiram na retaguarda do exжrcito principal. Fraco demais para liderar seu exжrcito, Guilherme delegara o comando a seus generais. Vivian descobrira que o exжrcito de Guilherme era composto de generais, cavaleiros de confianуa e nobres amigos que tinham se provado em batalha a seu lado durante os anos. Soube que ele confiava no irmсo, o bispo e conde de Bayeaux, em assuntos de fж. Porжm, em assuntos de conquista, confiava seu exжrcito a Rorke FitzWarren. Fora na batalha em San Cristabol, nas provьncias do MediterrРneo, quando tinha apenas dezoito anos, que Rorke encontrara Guilherme da Normandia. A amizade de ambos fora forjada em sangue e ambiусo comum, e Rorke empenhara sua lealdade a Guilherme. Agora, quatorze anos depois, Londres estava rodeada com legiшes do exжrcito de Guilherme, como os elos de uma enorme corrente. Canterbury caьra ante os normandos

duas semanas antes. Entсo, com todo o exжrcito circundando Londres, o magistrado de Londres finalmente capitulara e negociara a paz. Contudo, Rorke FitzWarren ainda nсo ordenara que os soldados normandos invadissem a cidade. Nada aconteceu no dia seguinte, ou no prзximo. Os nervos estavam Я flor da pele conforme a espera continuava. Vivian sabia que devia ser muito mais difьcil para os habitantes de Londres. Outro emissрrio chegou a mando do chefe do condado de Londres, sob os cuidados de quem a defesa da cidade fora deixada, depois da morte de Harold. Nenhuma resposta foi dada. A espera continuou. Finalmente, na manhс do terceiro dia depois da data marcada para a rendiусo da cidade, com a tensсo a alcanуar um ponto insustentрvel, Rorke FitzWarren deu a ordem para a marcha sobre Londres. Soldados montados e a pж, todos pesadamente armados, deveriam entrar na cidade de uma dЩzia de pontos estrategicamente escolhidos.

O duque da Normandia nсo estaria entre os primeiros homens a lutar, uma decisсo que nсo agradou ao comandante calejado de batalhas. - Qual ж entсo seu plano para minha campanha? - ele perguntou a Rorke, cheio de frustraусo. - Protegeremos a cidade contra conflitos e rebeliшes. Quanto ao que diz respeito a qualquer um, em Londres, serр o duque da Normandia que irр liderar seu exжrcito. Guilherme ergueu a cabeуa, surpreso. - Explique-se. - Com sua permissсo, usarei sua armadura de batalha e carregarei seus estandartes. Somos do mesmo tamanho. Com o elmo no lugar certo, ninguжm perceberр. E sua presenуa Я frente do exжrcito serр um forte repressor de ataques e boatos que possam ter avanуado atж aqui, antes de nзs. - Posso tambжm fazer de vocЖ um alvo para um assassino - Guilherme ponderou. - Sempre aceitei a plena responsabilidade por minhas aушes. Nсo mandaria outro homem

morrer em meu lugar. - Com o duque da Normandia visto a liderar seu exжrcito na tomada de Londres, nсo haverр necessidade da morte de qualquer homem. Guilherme concordou. - E o que acontecerр assim que tenha estabelecido o controle da cidade? - Mandarei Tarek para acompanhр-lo a Londres. Para todos os efeitos, o duque da Normandia se encontrarр com os condes e barшes saxшes e farр sua reivindicaусo de direito ao trono. Ninguжm perceberр. - Devo protestar! - o bispo objetou, os olhos negros estreitados. - Guilherme deve ser visto liderando seu exжrcito em Londres. CrЖ que os saxшes serсo enganados? Tais estratagemas estabelecem um precedente perigoso.Entсo, voltou os argumentos para Guilherme. - FitzWarren ж seu comandante mais poderoso. Jр comanda mais da metade de seu exжrcito. E ж ambicioso. Nсo permita isso, meu irmсo. ╔ muito perigoso.

- Tсo perigoso como deixar o lado de Guilherme durante o recrudescer da batalha? - Rorke dirigiu-se ao bispo com raiva, as palavras proferidas em tom de acusaусo. - O que estр insinuando, FitzWarren? - a voz do bispo tornou-se, de repente, baixa e ameaуadora. - Nсo insinuo nada, bispo - retrucou Rorke, os olhos a assumirem uma tonalidade glacial de cinza. - Direi francamente o que todos sabem ser verdade. O senhor nсo estava lр para defender o lado de Guilherme quando ele foi ferido! - Parem! - ordenou Guilherme. - Nсo permitirei essa inimizade entre homens de quem preciso. - Apontou para Rorke. - VocЖ tem minha confianуa. Concordo com seu plano. Esperarei a escolta. - Voltou-se para o irmсo. - VocЖ acompanharр FitzWarren. Seria estranho se nсo estivesse ao lado do duque da Normandia. A mensagem sutil era igualmente clara. O sЩbito desaparecimento do irmсo na batalha de Hastings nсo fora esquecido. O bispo inclinou a cabeуa em relutante obediЖncia

Я decisсo de Guilherme. - Vр com Deus - Guilherme disse a Rorke. - ╔ uma jornada difьcil, meu amigo. Rorke concordou e saiu da tenda. Vivian deixou a tenda do duque da Normandia. O sopro do ar frio da manhс a surpreendeu. Apertou o xale nos ombros ao sair pelo acampamento atrрs de Rorke. Gavin o ajudava a envergar a desajeitada armadura de cota de malha de Guilherme. Rorke voltou-se ao toque da mсo de Vivian. Os olhos que ela certa vez julgara tсo frios como o gelo no inverno suavizaram-se ao vЖ-la. - Veio para me dizer adeus, demoisellel - Sim - ela retrucou, com franqueza. - E para lhe desejar uma jornada segura - emendou. Ele parou de puxar as tiras de couro da armadura, e fitou-a com ar especulativo. - Seria possьvel que sentisse algum tipo de pena por minha morte, caso eu sucumbisse nas ruas de Londres? perguntou, o timbre profundo da voz a tocar-lhe a pele

como uma mсo quente. - Naturalmente. Nсo! O que quero dizer ж… Se alguma coisa acontecer… Rorke sorriu. - No curto espaуo de tempo em que a conheуo, Vivian de Amesbury, nunca lhe faltaram palavras. Diga o que quiser e seja rрpida, antes que fique congelada. - Muito bem - ela retrucou, a respiraусo se condensando com o frio. - Minha preocupaусo ж com Mally. - Mally? - ele exclamou, com leve irritaусo. Inclinou-se e puxou uma tira de couro no lugar, ajustando a tЩnica de malha sobre a coxa musculosa. - O que tem a garota a ver com a tomada de Londres? - Ela estр protegida contra Vachel e os outros por ordem de Guilherme e entregue a seu cuidado. Se alguma coisa acontecer em Londres… - Tem medo que a garota possa sofrer algum mal - Rorke completou o que ela parecia ter alguma dificuldade em dizer. - Sempre implora pelos outros? A garota tem a proteусo de Guilherme se algo me acontecer. Estarр segura. Mas o que pediria para si mesma?

- Para mim? Por que eu pediria alguma coisa? murmurou, surpresa. - Tenho tudo o que preciso. E vocЖ evidentemente deixou claro que nсo concederр aquilo que eu pediria, a seguranуa do povo de Amesbury. - Mas e quanto a sua liberdade? - ele indagou, baixinho, a voz profunda. - Se algo me acontecer, o que serр de vocЖ, entсo, Vivian de Amesbury? Diante daquelas palavras, ela sentiu um frio repentino envolvЖ-la e dominр-la. - Eu voltaria Я abadia. - E se Guilherme ou o bispo nсo permitissem? Ela respondeu com total honestidade. - Nсo podem me impedir, se eu resolver partir. Os olhos de Rorke se estreitaram. - Contudo, vocЖ continua dentro do acampamento de Guilherme quando nсo tem vontade alguma de ficar aqui. Onde reside a diferenуa? Ela desviou o olhar, acometida por um calafrio violento e repentino. - Nсo posso dizer.

O toque da mсo de Rorke era tсo quente como o sol de verсo em sua pele, conforme ele a forуou a fitр-lo com os dedos a lhe empurrar a curva do queixo para cima. - Ou nсo dirр? - indagou, trespassando-a com os olhos acinzentados. - Darр sua palavra pela seguranуa de Mally? - ela evitou uma resposta direta. - Sim, darei minha palavra quanto Я seguranуa de Mally. E a sua - ele a surpreendeu, ao acrescentar, pouco antes de pegar o manto pesado que estava na sela. Era de uma lс escura como a meia-noite, belamente tecida, e contornada com pele branca e macia. Enrolou-o nos ombros de Vivian, aconchegando-a contra seu pescoуo. O manto, largo o suficiente para cobri-lo com a armadura de batalha, caьa sobre o corpo esbelto com um peso reconfortante. - Nсo posso usar isto - ela protestou, sentindo a cрlida carьcia nos braуos e pernas, o cheiro mрsculo, um toque de especiarias e de vento, que permeava o rico tecido e a pele grossa. As mсos calejadas demoraram-se em seus ombros, os

dedos a roуar-lhe o pescoуo, provocando uma onda de excitaусo. - Nem eu - ele murmurou, a voz gutural, como se houvesse algo por trрs das palavras. - Pode devolvЖ-lo quando estivermos seguros na cidade. Com uma facilidade que contrastava com o peso da armadura de cota de malha, ele se ergueu na sela, ajustando o manto de Guilherme com o leсo de ouro do brasсo facilmente reconhecьvel, para todos verem, para que soubessem que Guilherme da Normandia se apossara de Londres. Enfiou as pesadas manoplas, e seguiu para o lado de fora da tenda. Olhou rapidamente para Vivian com uma expressсo que era quase terna. Entсo, voltou-se para sir Gavin e disse, num tom significativo: - Tem suas ordens, meu amigo. Nсo me falhe. O comando foi dado e ecoou ao longo de toda a coluna de soldados, formada com seis fileiras, lado a lado. Vivian deu um passo atrрs, puxando as dobras do manto em torno de si para conter o frio insuportрvel que a transpassou. A pequena legiсo de soldados que invadira

Amesbury algum tempo antes era apenas um mero simulacro do tamanho e forуa do corpo militar que agora marchava para Londres. E, infelizmente, nсo havia nada que ela pudesse fazer para impedir. Na verdade, ela era parte disso, parte daquela tapeуaria nсo-tecida que estava no futuro, os fios a se desmancharem, sacudidos pelo vento frio. No meio da noite seguinte, Vivian acordou dos sonhos atribulados por uma sacudidela insistente no ombro. Era sir Gavin. - Estр na hora, milady. O sinal foi visto no coraусo da cidade e um mensageiro chegou nсo faz uma hora. Vamos seguir para Londres. Por dois dias tinham esperado sem nenhuma notьcia, a nсo ser o fulgor das fogueiras que apareciam pela cidade, brilhando em telhados e depois esmorecendo em carvшes incandescentes. Vivian acompanharia o duque de Normandia. Mally seguiria a seu lado. Sua experiЖncia com cavalos limitava-se ao velho pangarж de Poladouras, uma criatura dзcil que

o monge dizia que cochilava a cada dezena de passos. Ela e Mally receberam pЗneis de carroуa para montar, em vez de animais maiores e mais inquietos. As duas estavam rodeadas pela guarda de sir Gavin. O duque da Normandia apareceu na abertura da tenda. Usava a armadura de batalha. Isso escondia a fraqueza da febre e da infecусo que devastara seu corpo, fazendo-o parecer formidрvel em altura e tamanho. Chamou o escudeiro e lhe deu instruушes. - Mande um mensageiro aos navios que esperam na costa. ╔ chegada a hora e quero que levem Matilda a Londres para que ela possa ser coroada rainha quando eu for coroado rei da Inglaterra. - Em seguida, voltou-se para sir Gavin. Tem a rota pela qual entraremos na cidade? - Sim, milorde - concordou Gavin. - Pela ponte do norte. Uma escolta estarр esperando por nзs. O acampamento normando estava a menos de um quilЗmetro e meio da cidade. A ponte norte logo surgiu Я vista, delineada pelas tochas colocadas ao longo de toda a extensсo

que ligava um lado do rio ao outro. Uma escolta armada atravessou para encontrр-los. Seguiram por uma rota sinuosa atж a cidade, cruzando ruas secundрrias, alamedas calуadas e locais onde o pavimento cedia lugar Я terra, atravessaram outra ponte e passaram por uma praуa central com as torres da abadia de Westminster assomando sempre mais perto. Ocasionalmente, passaram por ruьnas enegrecidas e queimadas, tudo que restara de uma cabana ou loja onde houvera contendas e incЖndios. Porжm, a maior parte das construушes de pedra estava intacta. O destino era a torre real onde Harold instituьra sua corte. Era ali que Guilherme iria reclamar oficialmente o trono. Entсo, um calafrio enregelou o sangue de Vivian, aguуou seus sentidos e a obrigou a puxar as rжdeas do pЗnei e fazer um gesto para que Mally fizesse o mesmo. - O que ж? - a menina perguntou, ansiosa. - Algo estр errado. Hр perigo, muito perto. - Sem ver claramente, ela sentia um perigo mortal fechar-se em torno deles. Gritou um alerta a sir Gavin. Cavalgando logo Я frente, Gavin de Marte puxou as

rжdeas e voltou-se ao som de sua voz. No mesmo instante, o luzir de machados e espadas explodiu das sombras de cada lado da rua estreita. Ordens foram berradas, em rрpida sucessсo. Os cavalos foram empurrados uns contra os outros. Aуo retinia contra aуo. Ao lado de Vivian, Mally se pЗs a gritar. Vivian agarrou as rжdeas do pЗnei da garota para impedir que se separassem, no meio da confusсo. Estavam presos, encurralados pelos prжdios erguidos juntos por paredes comuns, e sem esperanуa de escapar. Os soldados normandos eram bem treinados, porжm estavam em menor nЩmero. Se nсo recebessem ajuda rapidamente, a morte era certa. Vivian sabia que Guilherme era um homem bom e justo, e um lьder forte e decidido. Nсo podia morrer. - Escutai-me, poderoso ser - murmurou, e, com a cabeуa inclinada, voltou os pensamentos para o ьntimo, para aquele lugar de visшes e sonhos antigos, convocando o poder da Luz.

Erguendo as mсos diante de si, murmurou as palavras antigas: - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, abra-sem a noite! Capьtulo VI

A explosсo encheu o cжu noturno com uma luz flamejante. Rorke estremeceu. Parecia que os habitantes de Londres estavam determinados a queimar a cidade atж o chсo, se necessрrio fosse, para impedir a conquista da cidade pelos normandos. A maioria dos incЖndios fora controlada ou deixava para se apagar em prжdios separados dos outros e que nсo constituьam maior ameaуa. Mas aquele incЖndio era uma bola de fogo que explodira. Recortava os telhados contra o cжu noturno e vinha de uma parte da cidade que fez seu sangue enregelar nas veias. Era a rota pela qual Guilherme entraria em Londres. Rorke gritou ordens a seus homens, e todos seguiram com as espadas e lanуas empunhadas, arqueiros com flechas prontas nos arcos, temendo o pior.

Estacaram ao final da rua diante da carnificina com que seus olhos se deparavam. O ataque fora no centro da rua, onde nсo havia nenhuma esperanуa de fuga. Ele contou pelo menos uma dЩzia de soldados normandos mortos e soube que haveria mais conforme averiguassem. Entre eles havia um igual nЩmero de saxшes caьdos, formando um anel de corpos em torno do nЩcleo da escolta de Guilherme. No cьrculo defensivo dos soldados normandos que ainda estavam em pж ou montados havia pequenas chamas que luziam como jзias penduradas em um colar. Rorke disse a si mesmo que era Guilherme a quem procurava entre os soldados de espada em punho. Mas, em verdade, um pavor inesperado fechou-se em torno de seu coraусo e lhe comprimiu as vьsceras conforme buscava por algum sinal de Vivian, determinado a encontrр-la e ao mesmo tempo temendo o que pudesse achar. Quando ela se tornara tсo importante para ele, assim?

Desde o inьcio, a resposta veio sem esforуo, esgueirando-se por seus sentidos, relembrando-o de relance de todas as formas, o leve insinuar de um sorriso, o fogo que saltava tсo facilmente aos olhos azuis quando defendia alguжm a quem ela era leal, ou o doce tormento do sabor daquela boca delicada. Sir Gavin avanуou por entre o cortejo dos soldados que rodeavam Guilherme e saudou Rorke com um menear de cabeуa. - Fomos atacados. Vieram de todos os lados - Gavin apontou para as portas e janelas - dos edifьcios e telhados. - O duque da Normandia? - Rorke perguntou, ansioso. Houve novamente um aceno sжrio, desta vez com um toque de satisfaусo. - Estou bem! - Guilherme gritou. - Mas fomos tristemente compelidos a nos defender e poderьamos ter perecido se nсo fosse aquele anel de fogo que vocЖ lanуou sobre eles. - Vivian? - Toda a raiva desesperada de Rorke brotou no som daquele nome proferido em alto e bom som.

Um pЗnei se destacou entre os enormes cavalos de batalha, e a figura esbelta que o montava estava envolta no pesado manto preto, a pele alva emoldurada pelo brilho flamejante dos cabelos vermelhos. Num ato tсo instintivo como o de respirar, Rorke estendeu o braуo e puxou Vivian do lombo do pЗnei para a sela a sua frente. Ela se agarrou a ele como se fosse o centro calmo no meio de uma tempestade, um esconderijo seguro, quando tudo a seu redor estava um caos. Recostou-se contra o peito do cavaleiro como se tomada por uma repentina fraqueza. Num gesto que era ao mesmo tempo rude e terno, Rorke afastou o capuz da cabeуa de Vivian, a mсo a correr possessivamente por seus cabelos. - Estр ilesa? - perguntou. - Sim, milorde - ela murmurou, enquanto sentimentos estranhos e inexplicрveis a queimavam ao simples toque daquela mсo em seus cabelos. - ╔ melhor deixarmos este lugar tсo logo seja possьvel. Os mais seriamente feridos serсo carregados em liteiras -

Tarek informou a Rorke conforme avanуavam. - Devemos considerar que existe um traidor em nosso meio. Rorke murmurou, em voz baixa: - Tem razсo, mas por enquanto ж importante que Guilherme chegue Я fortaleza em seguranуa. Por ora, nсo diga nada a ninguжm. Voltou-se para Guilherme. - A fortaleza foi preparada, milorde. Vivian estremeceu ao passarem pelo primeiro conjunto de portшes e depois um segundo conjunto de portas de ferro, seus sentidos assaltados por mirьades de imagens e impressшes. O ataque nas ruas fora uma indicaусo do perigo que os rodeava, um perigo que ela sentia ainda mais intensamente dentro daquelas maciуas paredes de pedra que tinham sido erigidas nos preparativos da chegada de Guilherme Я cidade. Dentro da residЖncia real, Guilherme desmontou e caminhou atж o centro do pрtio interno com toda a autoridade de um rei.

- Seus aposentos particulares estсo prontos. - Rorke adiantou-se depressa. - Talvez queira um pouco de comida e bebida? - Sim, eu gostaria - retrucou Guilherme, com todo gosto de um homem que possuьa um apetite рvido, e que sobrevivera com um caldo magro durante vрrias semanas. Sua mсo larga comprimiu-se contra a frente da tЩnica de malha como se a fome o consumisse. Gavin e sir Galant acompanharam Guilherme, um de cada lado, os braуos a apoiarem o rei, ao seguirem para os aposentos reais. Vivian sentiu a mсo de Tarek tocр-la gentilmente no braуo. - VocЖ serр necessрria - disse ele, em voz baixa, e acompanhou-a atrрs dos outros. Mally os seguiu de perto, carregando o saco de ervas medicinais. Dentro do aposento real, tudo estava pronto para a chegada de Guilherme. Em lugar da guarda do novo rei, que ainda nсo chegara do acampamento normando, os guardas pessoais de Rorke se postavam fortemente armados de

ambos os lados da entrada. Assim que a porta se fechou atrрs deles, barrando os olhares curiosos e qualquer intrusсo inesperada, Guilherme cambaleou de exaustсo e teria caьdo ao chсo se os homens de Rorke nсo o segurassem. - Tragam-no para a cama - Rorke ordenou. - E depois removam-lhe a armadura de batalha. - Voltou-se para Vivian, mas ela jр estava ao lado da cama, os dedos eficientes a soltar com rapidez a tЩnica pesada. Guilherme esbravejou. - Estou bem! Pretende me curar ou me matar? resmungou, quando ela abriu com rispidez a frente da camisa almo-fadada, para revelar que a ferida se abrira, sem dЩvida durante o ataque na rua. - Ficaria aliviada se nсo precisasse consertar constantemente seus estragos. Guilherme limitou-se a rir.

Vivian deu ordens rрpidas a todos, inclusive a Rorke, para que providenciassem um caldeirсo fumegante, fogo para a lareira, panos limpos e um pouco do vinho francЖs de que Guilherme gostava. - O senhor deveria descansar - disse ela, com firmeza. - Hр assuntos que precisam ser discutidos - o bispo interferiu, aproximando-se da cama. - Serсo de pequena importРncia se ele sucumbir aos ferimentos - Vivian ponderou. O bispo a olhou enviesado, mas ela recusou-se a se sentir acovardada. - Vрrios de seus homens foram feridos no ataque explicou a Guilherme. - Com sua permissсo, irei vЖ-los. - Por favor, senhora - concordou Guilherme. - Nсo negaria a meus soldados e cavaleiros o que tem ajudado em minha recuperaусo. Enquanto isso, descansarei. Acho que estou bastante fraco com os acontecimentos do dia. Quando o bispo obviamente pretendia insistir numa audiЖncia, Rorke interferiu.

- Nсo hр nada que nсo possa esperar atж amanhс - disse ao zangado bispo. - ╔ tarde. Para todos os efeitos, Guilherme apenas se retira para comer e descansar. Certamente que o senhor nсo lhe negaria um repouso muito necessрrio. - VocЖ ultrapassa seus limites, FitzWarren - o bispo esbravejou, furioso. - Alguжm poderia pensar que aspira a ser rei de Inglaterra. - E o senhor, mьlorde bispo - contestou Rorke, os olhos tсo frios como o gelo do inverno -, a que alturas aspira? Vivian estremeceu diante da animosidade entre os dois homens, na postura de Rorke, subitamente tensa e no olhar furioso do bispo. - Basta! - Guilherme interveio rispidamente. - Nсo quero ouvir mais nada! - Para Vivian, murmurou, com gentileza. Por favor, veja os outros que precisam de seus cuidados. Ela agradeceu, contente com a oportunidade de sair. Para os demais, Guilherme ordenou: - Saiam!

Guilherme estendeu a mсo e tocou o braуo de Rorke. - Gostaria de conversar com vocЖ, a sзs. Quando todos tinham deixado o quarto, ele abandonou qualquer esforуo de disfarуar a dor que dominava cada mЩsculo e articulaусo. Suas feiушes estavam marcadas pela fadiga, a pele pрlida com a fraqueza e a dor que parecia arrancar a carne dos ossos. - Pensou que haveria um ataque? - perguntou a Rorke. - Temi que houvesse - retrucou Rorke. - Hр perigo em toda parte. Existem bolsшes de resistЖncia continuamente desde que tomamos a cidade. - Podemos manter a cidade cercada? - Londres ж sua - Rorke assegurou-lhe. - Nзs a manteremos, nсo importa a resistЖncia dos saxшes. - Quem conhecia a rota pela qual eu entraria na cidade? - Apenas uns poucos. Eu mesmo, Tarek ai Sharif, Gavin, Montfort e seu irmсo. - ╔ difьcil guardar segredos quando as paredes tЖm olhos e ouvidos - Guilherme comentou, pensativo. - Quem sсo os

saxшes que continuam dentro da fortaleza real? - Os do conselho, vрrios dos barшes, o arcebispo, todos que procuram uma audiЖncia. Guilherme fez um gesto de concordРncia. - O anel de fogo foi uma arma eficiente. Eu o cumprimento pela tрtica, pois se provou efetiva. - Eu reclamaria o crжdito se fosse minha obra - Rorke declarou e, entсo, esclareceu -, mas nсo foi. Com toda a verdade, nсo sei dizer como ocorreu. Os olhos de Guilherme se estreitaram, pensativos. - Talvez fosse de um de seus homens - sugeriu. - Lutaram bem. Devo minha vida a eles. Rorke jр questionara os homens sobre isso. Nada sabiam a respeito, e ele nсo tinha nenhuma resposta, pelo menos nсo uma plausьvel. Afinal, como poderia dizer ao novo rei que acreditava que uma mulher jovem e delicada fora capaz de salvр-lo do exжrcito inimigo? Vivian terminou finalmente de enfaixar o Щltimo ferido na batalha de rua. Ergueu os olhos quando dois dos escudeiros de Rorke apareceram. Estavam vestidos nсo

com o usual traje de calуas e tЩnica de couro, mas numa veste simples em que havia as cores vermelha e dourada de Rorke. - Temos ordens de escoltр-la atж seus aposentos, senhora - um deles informou. - Foram tomadas providЖncias para que a garota tenha um cЗmodo fora da despensa da cozinha. - Quando Vivian ia protestar, ele assegurou. - Milorde FitzWarren pediu que deixрssemos guardas ali. Depois que a comitiva chegar, amanhс, ela pode se transferir para a ala sob proteусo de sir Gavin. Mally concordou com relutРncia e acompanhou o escudeiro mais jovem a seu cЗmodo, perto da despensa. Vivian arrastava os pжs de cansaуo enquanto seguia o outro escudeiro de Rorke. Reconheceu o corredor por onde ele a levava. Era o mesmo que conduzia ao aposento real onde Guilherme agora dormia. O escudeiro abriu a porta de um quarto Я direita

do aposento real. O cЗmodo nсo era muito grande, mas bem mobiliado. Havia uma cama contra a parede do fundo. Peles grossas e mantas de lс a cobriam. Uma mesa e duas cadeiras ficavam diante da lareira que jр tinha sido acesa. Tapeуarias pesadas recobriam as paredes para diminuir a umidade prзpria de todas as construушes em pedra. Seus olhos entсo recaьram sobre a mesa, onde havia uma bandeja de frutas frescas, queijo, pсo e vрrias porушes de carne fria de frango. Ouviu seu estЗmago roncar alto. Os Щltimos trЖs dias pareciam ter se misturado num borrсo e nсo conseguiu se lembrar quando comera ou dormira pela Щltima vez. Estava exausta, gelada e faminta. - De quem ж este quarto? - quis saber, desconfiada que era muito conforto para uma mera prisioneira como ela. - ╔ meu. Vivian deu meia-volta ao som da voz de barьtono. Nсo era do escudeiro, mas do prзprio Rorke FitzWarren, que entrava logo atrрs.

- Seu? Mas… - Olhou ao redor. - Seu escudeiro disse que eu deveria dormir aqui. - Sim, estava seguindo minhas -ordens. - Isso ж impossьvel. Nсo posso - ela protestou. - Nсo ficarei aqui. Certamente deve haver outro lugar. A copa, a casa de armas ou a falcoaria. Gavin lhe dissera que era para onde ┴quila seria levado. Sim, claro. Era isso. Uma soluусo simples. Ela dormiria na falcoaria. Rorke FitzWarren, contudo, meneou a cabeуa com veemЖncia. - Estр fora de questсo. Guilherme ainda precisa de suas habilidades. Estр muito mais fraco e em piores condiушes do que deixaria que alguжm acreditasse. E ninguжm deve saber de sua fraqueza - disse, com uma expressсo sжria que enfatizava suas feiушes cansadas. - Os barшes continuam dentro destas muralhas. No momento adequado, Guilherme irр encontrр-los para providenciar a transferЖncia de poder. Ninguжm - ele repetiu, enfaticamente -, ninguжm deve suspeitar de que ele goza de menos que

a mais perfeita saЩde e plena capacidade de desempenhar seus deveres como rei. Hр uma passagem sob aquela tapeуaria que leva diretamente ao quarto de Guilherme. Posso entrar para discutir assuntos de importРncia sempre que seja necessрrio, sem requerer sua presenуa no salсo, em armadura de batalha. VocЖ poderр entrar sempre que for preciso administrar poушes ou trocar ataduras. E ninguжm serр testemunha disso. - Mas irр parecer como se… - sua voz falhou com o sЩbito nз na garganta. - Como se fЗssemos amantes? - ele perguntou, com frieza. - Jр disseram que vocЖ ж saxс e nсo poderia inspirar confianуa, que faria mal ao duque e, no entanto, vocЖ nсo deu importРncia a essas coisas. A questсo estр resolvida, Vivian. - Muito bem - murmurou ela, cansada demais para discutir. Atravessou o quarto atж a lareira, e pegou as peles e os tapetes de lс grossa. Colocou-os diante do calor do fogo.

- Pode ficar com a cama - Rorke disse, ao perceber sua intenусo. - Qualquer tempo de sono que eu puder ter esta noite serр com meus homens. - O assoalho estр зtimo - ela o informou, determinada a estabelecer limites fьsicos entre os dois. - Nсo ж tсo duro ou frio como o chсo. Vivian voltou as costas para aquele olhar igualmente desconcertante e estendeu as peles diante da lareira, fazendo uma cama fofa. - Hр outro assunto que eu gostaria de conversar com vocЖ. - Nсo pode esperar atж amanhс? - ela perguntou, com um suspiro cansado. - Nсo, nсo pode. Guilherme e eu conversamos sobre o ataque de hoje. VocЖ cavalgava ao lado de Guilherme… Entсo, no meio da batalha, quanto tudo parecia perdido, meu rei se lembra distintamente que vocЖ comeуou a pronunciar estranhas palavras em celta. Logo em seguida surgiu um anel de fogo ao redor de todos. De onde veio o fogo, Vivian? - indagou. - Havia incЖndios por toda parte - ela gaguejou. - Foi uma explosсo repentina, ж tudo. Talvez um dos homens de

Gavin… - emendou, procurando algo que pudesse satisfazer aquela aguda curiosidade. - Eu perguntei. Todos estavam tсo intrigados como Guilherme com a apariусo daquele anel de fogo, embora extremamente agradecidos. Alterou o rumo da batalha. Estudou-a com grande atenусo. - De acordo com Tarek, a Jehara possui grandes poderes, os poderes da luz e da terra, do vento e do fogo… o poder de se transformar em qualquer coisa que deseje. - Pensei que nсo acreditasse em tais coisas - murmurou Vivian, a voz permeada de medo. - Creio que existem muitas coisas entre o cжu e a terra que nсo podem ser explicadas. - Conforme falava, seus dedos fortes se apertaram em torno do pulso de Vivian. Ela riu baixinho, a despeito do medo que se retorcia dentro dela, medo da brutalidade do guerreiro, brutalidade que sabia de que ele era capaz, medo de alguma outra paixсo igualmente terrьvel, e, finalmente, medo da prзpria vulnerabilidade a essa paixсo.

- Se eu possuьsse tais poderes, nсo seria uma coisa simples me transformar e fugir do perigo e depois escapar de seus homens e retornar a Amesbury a meu bel-prazer? - ela perguntou, obrigando-se a se acalmar. - Realmente - Rorke retrucou, pensativo, a expressсo por trрs do olhar implacрvel se alterando, tornando-se mais sombria com algum pensamento. - Como ainda sou sua prisioneira, parece, tambжm, que Tarek estр enganado. Nсo posso dizer de onde veio o fogo - ela continuou, com firmeza. - Talvez - sugeriu, algo desesperada o que Guilherme tenha ouvido fossem minhas simples preces. Rorke suspirou, com uma sensaусo de derrota. Soltou-lhe o pulso lentamente. - Estou muito cansada - Vivian murmurou, sem encarр-lo. Estava apavorada que ele visse que nсo lhe dissera toda a verdade, e mais receosa ainda de que pudesse divisar outra verdade: a das caзticas emoушes ao mais simples toque dele. - Gostaria de dormir agora. Restam poucas horas na noite e Guilherme precisarр de mim quando acordar.

- Nсo precisa dormir no chсo. Fique na cama. Serр muito tarde quando eu me recolher para dormir, caso me recolha. - ╔ muito generoso, milorde, mas nсo posso aceitar protestou. - Do que tem medo? - ele perguntou, parando diante dela, tсo perto que Vivian podia sentir-lhe o cheiro como se o conhecesse por toda a vida, o toque de couro mesclado com a essЖncia da bruma da noite, terra e vento com uma nuance de suor mрsculo. - Nсo tenho medo de nada - retrucou, desafiadora. - VocЖ ж como um falcсo nсo-domesticado - disse ele, surpreendendo-a com a repentina gentileza da voz. Ela ergueu os olhos e cometeu o erro de encarar aquele olhar irresistьvel. Os dedos de Rorke seguraram-lhe o queixo com suavidade. Vivian poderia ter se afastado, mas nсo o fez. Algo mais forte que o medo a imobilizou, como o falcсo fascinado pelas sensaушes que a perpassavam. - Inteligente, linda, sensata de tantas maneiras - ele

murmurou, suavemente - e, no entanto, selvagem e indomada. Deslizou a mсo para a garganta onde uma veia pulsava. Pronta para fugir da mсo desconhecida. Seus dedos acariciaram a leve depressсo na base da garganta e a pele de Vivian eriуou-se a cada toque. Entсo, ele se afastou e saiu, deixando-a sз. Em questсo de dias desde a chegada Я Londres, Guilherme comeуara a presidir diariamente a corte para dissipar quaisquer possьveis boatos sobre sua saЩde. Reunia-se a cada dia com os condes e barшes saxшes, os arcebispos ingleses e seus prзprios lьderes, enquanto dava passos para estabelecer a estrutura da transiусo rumo ao reino normando sobre a Inglaterra saxс. Discutia assuntos importantes agora, com seu irmсo, Rorke, Tarek e outros cavaleiros. Vivian quase sempre estava presente, a cuidar dos ferimentos que ainda custavam a sarar. - O que me diz, senhora, das terras de posse dos condes e barшes saxшes? - Guilherme a surpreendeu ao perguntar.

Vivian olhou ao redor, incerta, e viu que todos a fitavam. Todos, exceto o bispo, que aparentemente meditava sobre o vinho, mas ela sentiu a verdadeira razсo: seu crescente ressentimento para com ela. - Sei pouco sobre tais questшes, milorde - retrucou, em tom de desculpa. - Mas certamente tem uma opiniсo a respeito. Todos tЖm. Ela relanceou os olhos para Rorke e ele lhe fez um gesto de encorajamento. Guilherme a estudou atentamente. - Prometi certas recompensas a meus prзprios cavaleiros e barшes. Promessas devem ser cumpridas, milady, ou nсo poderei manter a Inglaterra sob meu julgo. Vivian gostaria que ele nсo tivesse perguntado, pois se falasse em favor daquele plano, isso seria visto como uma traiусo a seu povo. Se falasse contra ele, Guilherme poderia se ofender, pois nсo poderia voltar atrрs com a palavra dada. - Nem poderр mantЖ-la por longo tempo se houver rebeliсo constante - ela ponderou e ouviu uma exclamaусo

de raiva diante de sua honestidade. Guilherme ergueu a mсo, pedindo silЖncio. - Continue. Gostaria de ouvir o que tem a dizer. De novo, ela olhou para Rorke. Sua expressсo era de admiraусo, a boca a se curvar num sorriso, que ele procurava esconder atrрs do cрlice que levara aos lрbios. Seu olhar, contudo, encontrou o dela sobre a borda e, nele, era possьvel vislumbrar um certo orgulho. - Centenas de homens morreram em Hastings - ela comeуou, escolhendo as palavras com cuidado. - Suas viЩvas e filhos choram por eles. Mas, em vez de escorraур-los para fora da terra de seus ancestrais, poderia ser mais lзgico vinculр-los por laуos de gratidсo ao senhor, ao mesmo tempo em que permite que fiquem em suas terras. Jр pensou, milorde, em casar aqueles de seus homens que sejam aceitрveis com as viЩvas dos lordes saxшes? Assim, garantiria o laуo saxсo com a terra, ao mesmo tempo em que criaria um laуo com a nobreza normanda que nсo poderia ser rompido.

O olhar de Guilherme estreitou-se, pensativo, ao fitр-la. - Sim - ele ponderou. - Conquistar pelo casamento e nascimento o que caso contrрrio seria conquistado somente pela morte. - Seria um meio de aplacar a dor e a revolta de um povo. A mсo de Guilherme estalou num tapa no braуo da cadeira. Soltou uma gargalhada. - Por Deus, eu gostaria muito de encontrar este monge que a ensinou assim tсo bem. VocЖ tem uma lзgica que vЖ o cerne de assuntos difьceis e oferece uma soluусo para qualquer argumento. - Sorriu para ela com efusividade. - Obrigado, Vivian de Amesbury. - Nсo tem de que, milorde. Ela reuniu as poушes de ervas e saiu, pois sentira a animosidade do bispo, embora os outros a escutassem com atenусo. Rumou para o salсo e assustou-se quando Rorke a seguiu. Sua mсo quente fechou-se sobre a dela, impedindo-a de entrar. - Hр alguma coisa que queira, milorde? - ela perguntou,

hesitante, bem mais nervosa com o contato da mсo gentil do que ficara com qualquer coisa que Guilherme perguntara, ou pelo duro escrutьnio do bispo. - Sim - ele retrucou, a voz baixa, quase um murmЩrio, e tсo perigosa para os sentidos de Vivian quanto aquele contato. - Hр muita coisa que eu quero. Quero — fez uma pausa - agradecer por sua honestidade. Outros teriam dito muitas coisas tolas. Por isso, eu lhe agradeуo. Abalada pelo contato, incapaz de dizer algo coerente, muito menos pensar, ela retrucou, ao se afastar: - De nada, milorde. - Lady Vivian! Era a garota, Mally, que vinha apressada do grande salсo. Ao ver Rorke, encolheu-se e gaguejou: - Perdoe-me, eu nсo o vi aь, milorde. - Uma expressсo de medo cruzou-lhe a face enquanto ela mordia o lрbio inferior e torcia as mсos. - O que foi, Mally? - perguntou Vivian, dizendo a si mesma que estava contente que a garota tivesse aparecido. Seus

pensamentos comeуaram a clarear, lentamente. Era estranho que Mally estivesse no salсo. Ela procurava se manter afastada, jр que havia sempre muitos soldados por lр, e se escondia na cozinha, onde ajudava a cozinheira, ou, como uma sombra silenciosa, seguia Vivian nas tarefas. - Alguma coisa errada? Alguжm ficou doente? - Fale, garota! - ordenou Rorke. Mally ainda hesitou, lanуando olhares preocupados de Vivian para Rorke e vice-versa. - ╔ um assunto particular, senhora. Vivian sentiu algo cheio de medo nos pensamentos caзticos da garota, e ficou a imaginar o que poderia ter acontecido que ela nсo fosse capaz de perceber. - Seja o que for, pode me contar e nсo precisa ter medo, Mally - encorajou a garota, afagando-lhe o braуo. Foi quando os pensamentos da jovem se juntaram aos dela no som de dois nomes, como se fossem pronunciados em voz alta. Poladouras e Meg! Eles estavam ali, naquele exato

momento, no grande salсo da fortaleza de Guilherme, em Londres. Vivian voltou-se abruptamente para Rorke. - Por favor, milorde-implorou. - ╔ um assunto particular. - E, entсo, teve a idжia. - ╔ coisa de mulher. - Nсo era inteiramente mentira. Rorke viu a mudanуa nos modos de Vivian. O leve franzir das sobrancelhas e depois o olhar assustado que lampejou em seus olhos como se alguma comunicaусo muda tivesse

se passado entre ela e a garota. Algo estava errado, mas percebeu instintivamente que se a pressionasse ela nсo falaria. Depois de aquiescer, observou quando a garota conduziu Vivian pelos fundos do salсo, onde diversos comerciantes saxшes, camponeses e monges se reuniam. Ao se aproximar do grupo, Vivian sentiu aquela presenуa de amor e carinho que a levara do longьnquo oeste do paьs para uma abadia de pedras em ruьnas, guiada por um falcсo mрgico. - Meg - ela murmurou com doуura, ao se voltar para a pequena forma a seu lado, as feiушes ocultas no capuz de uma capa de monge. - Mo chroi. A beira do capuz se ergueu o suficiente para revelar aquele rosto querido e marcado que nсo tinha idade para Vivian. Imediatamente, a conexсo de amor e medo passou entre elas, seguida pela constataусo de que cada uma estava bem e segura, no momento. Segurando a mсo da velha ama, Vivian relanceou os olhos ao redor Я procura de Poladouras, mas nсo viu seu rosto

ou a forma arredondada envolta em nenhum daqueles hрbitos de monges que rodeavam Meg. - Seus sentidos a abandonaram, menina? - uma voz perguntou atrрs dela. — As aparЖncias podem enganar. Ela fez meia-volta e se deparou com um mercador em roupas remendadas, com uma barrica de hidromel debaixo do braуo. Seu rosto estava oculto por uma farta barba grisalha que se juntava aos cabelos desgrenhados, mal contidos por um capuz de lс. - Meg se veste como um monge e o senhor se disfarуa como um mercador do campo? - ela perguntou, incrжdula, os olhos lacrimosos de alegria e afliусo pelo perigo que os dois correram. - Pareceu lзgico. Quem se importaria com um simples mercador levando um presente de hidromel para Guilherme? - ele argumentou. A mсo enorme e gentil agarrou a de Vivian. - Ah, querida! VocЖ estр bem.

- Sim, bem e em seguranуa - ela assegurou a ambos. Entсo, correu o olhar preocupado pelo salсo. - Por que vieram atж aqui? ╔ perigoso. Nсo podem ficar. Precisam partir agora antes que sejam vistos! - continuou, com crescente afliусo. Jр era tarde. Uma voz familiar atrрs dela comentou: - Certamente que seus amigos nсo iriam partir tсo cedo, demoiselle. O medo fechou-se sobre o coraусo de Vivian quando ela reconheceu aquela voz. Voltou-se lentamente para se deparar com o olhar glacial de Rorke FitzWarren. - Milorde - ela murmurou, o fЗlego preso nos pulmшes. Tentou disfarуar a agitaусo quando percebeu que ele reconhecera Meg e Poladouras. - Guilherme ficarр muito interessado em conhecЖ-los Rorke disse a eles, mas seu olhar estava cravado em Vivian. Ao ser informado sobre os recжm-chegados, Guilherme convocou-os imediatamente para que fossem a seus aposentos. - Entсo o senhor ж o monge Poladouras - exclamou, quando os dois velhos foram levados Я sua presenуa. -

Ouvi falar muito a seu respeito. Por favor, aproxime-se para que possamos conversar. Pedirei seu conselho sobre certos assuntos. Quero que permaneуa em Londres como meu hзspede. Com admiraусo e um novo respeito, Vivian percebeu o propзsito de Guilherme. Ao vincular o monge Я corte, criava um laуo com ela. - E quanto Я velha? Corre entre meus homens que ela tem jeito de feiticeira - exclamou o bispo. Guilherme explodiu numa gargalhada. - Ela tem conhecimentos da arte da cura - Rorke disse a seu soberano, atraindo um olhar curioso de Meg, que logo se lembrara de sua voz e o distinguira dos outros. - Suas habilidades seriam valiosas para nзs. - Sim - concordou Guilherme. - O assunto estр decidido, entсo. - Levantou-se, pois havia assuntos que precisava atender, na corte. - Volte ao final da tarde e junte-se a mim para o jantar - disse a Poladouras. - Sei que ж um homem de intelecto privilegiado e confesso que por

enquanto tenho encontrado falta de preparo entre os barшes saxшes. - Entсo, voltou-se para Meg. - A garota, Mally, pode encontrar um lugar para vocЖ, com ela, perto da cozinha. - Gostaria de ficar com minha senhora - Meg protestou. - Para isso, deve pedir permissсo a milorde FitzWarren Guilherme a informou -, pois ela ocupa o quarto adjacente, para que possa cuidar dos ferimentos que sofri em Hastings, e o quarto ж dele. A resposta de Rorke foi veemente. - Perto da cozinha serр o suficiente. Tenho certeza de que a garota pode deixр-la confortрvel. Vivian acompanhou Meg para a cozinha, onde encontrou conforto no pequeno aposento fora da despensa, que Mally ocupava. - Ouvi murmЩrios - Meg disse, pousando a mсo no braуo de Vivian, quando Mally saiu para procurar algo com que fazer um leito para a velha. - As paredes dizem que vocЖ ж amante de milorde FitzWarren. - Seu rosto tinha rugas de preocupaусo.

- As paredes estсo enganadas - Vivian negou, com veemЖncia. - Murmuram a respeito do que vЖem, mas nсo sabem de nada. Foi-me dado o quarto adjacente para que eu possa atender Guilherme sem que os outros saibam da real extensсo de seus ferimentos, pois ele quase morreu em Hastings. - E quanto Я sua visсo em Amesbury? - perguntou Meg, a voz trЖmula. - Nсo sei nada mais do que sabia entсo. Apenas que meu destino jaz ligado ao destino de Rorke. Nсo me pergunte mais nada, por favor. A senhora estр aqui. Talvez juntas possamos descobrir. - Nсo - Meg murmurou com tristeza, a mсo a pousar na face de Vivian. - Receio que sз vocЖ possa descobrir seu destino. Devo apenas esperar e talvez protegЖ-la o melhor que puder. Como sempre fiz, desde que vocЖ nasceu. Eis porque vim Я Londres. Estive com vocЖ desde o primeiro momento em que respirou. Fui a primeira a segurр-la quando saiu do ventre de sua mсe. E desde entсo sou responsрvel por vocЖ. Nсo a abandonarei agora, minha

menina, qualquer que seja a trilha pela qual seu destino a leve. Apenas imploro, cuidado com todos, pois sinto perigo neste lugar. Era fim de tarde e quando Vivian voltou para o quarto de Rorke o encontrou em pж, diante de uma bacia de рgua fumegante, sem a tЩnica, usando apenas calуas e as botas de couro. A luz reluzia nos mЩsculos de seus ombros e peito; os desenhos de antigas cicatrizes destacavam-se contra a pele bronzeada. Vivian gostaria de desviar os olhos, mas descobriu que nсo conseguia. Como curandeira, sabia e sentia muita coisa atravжs do toque. Queria tocр-lo, conhecer os contornos da musculatura rija e dos ossos fortes, deslizar os dedos pela pele dourada e todas as saliЖncias das cicatrizes que definiam a vida daquele guerreiro, para que, de alguma forma, pudesse saber mais sobre ele. Seus dedos queimavam de desejo e ela os fechou em punhos tensos, tentando negar as sensaушes que apenas a visсo dele despertava. Mas nсo conseguiu. Suas mсos se tornaram inquietas, os dedos a se flexionarem e se curvarem com o esforуo de

nсo tocр-lo. Gotas de рgua espirravam nos cabelos de Rorke, reluzindo na massa escura e nos Рngulos agudos de sua face. Havia uma jarra de vinho sobre a mesa, e dois cрlices, como se alguжm fosse esperado. - Perdoe-me, milorde - ela murmurou, numa entonaусo assustada, e voltou-se para sair. - Fique, Vivian - disse ele, com gentileza, mas num tom de comando. Enxugou a рgua dos cabelos e do rosto com uma toalha de linho, e tambжm as gotas que luziam nos pЖlos negros do peito. Sob eles, havia um padrсo de uma colcha de retalhos de cicatrizes pрlidas, antigas e novas. Vivian olhou, fascinada, para os caracзis escuros, para a tonalidade da pele, mais escura que a dela. Os mamilos estavam enrugados com o ar frio, e ela sentiu um formigamento nos prзprios seios, ao imaginar o contraste daquela nudez contra a dele. Seria todo assim, moreno, poderoso, forte, rijo, como os mЩsculos dos braуos e do peito? - Hр algum assunto que queira discutir?

- Pode esperar, milorde - ela retrucou, ofegante, desesperada para desviar os olhos daquele corpo desnudo, e, ao mesmo tempo, desesperada para ver mais. - Guilherme nсo estр bem? - Nсo, ele encontra-se muito bem para um homem que estava Я beira da morte apenas poucas semanas atrрs. - Se nсo ж a saЩde de Guilherme, entсo que assunto de importРncia poderia fazЖ-la me procurar, jр que tenho plena consciЖncia de que faz todos os esforуos para me evitar? - Ele sorriu, desarmando-a ainda mais. - Nсo ж verdade - ela protestou, julgando necessрrio respirar mais fundo diante do poder avassalador daquele sorriso, que transformava a reluzente FЖnix num predador ainda mais formidрvel, um predador dos sentidos. - Entсo fique um pouco e prove que ж mentira. Ela gaguejou uma desculpa. - Vim agradecer por sua gentileza hoje. Nсo era preciso que se incomodasse. - Ah, Guilherme procurou vinculр-la a ele, como vocЖ certa

vez explicou que poderia ser mais sрbio, ao tratar com os barшes saxшes. - Estendeu a mсo e pegou uma mecha de cabelos entre os dedos e afagou-os gentilmente. - Eles nсo sсo barшes e nada tЖm de valor - Vivian lembrou entre arquejos, ao ver os cabelos presos possessivamente entre os dedos longos e calosos, como peias que a prendiam Я mсo de Rorke. Contudo, ela apenas precisava se afastar. Mas nсo o fez, e continuou onde estava, ao mesmo tempo aterrorizada e fascinada pelas sensaушes que nunca experimentara antes. Conteve ainda mais a respiraусo arquejante, quando ele enrolou lentamente a mecha de cabelos em torno dos dedos, puxando-a para mais perto de si. - A velha ж completamente cega? - Rorke perguntou, confundindo-a com a repentina mudanуa de assunto. - Desde que nasceu - Vivian explicou. - Mas eu sempre julguei que ela enxerga bem mais que os outros. - Sua respiraусo saiu ofegante por entre os lрbios entreabertos.

A respiraусo era rрpida, arquejante, e, ao mesmo tempo, impregnada de outra coisa que ela nсo compreendia. - O que vЖ, Vivian de Amesbury? - A voz de Rorke soou rouca. — Como, milorde? - A pergunta a confundiu. - Olhe para mim. Vivian ergueu os olhos e sentiu que algo irrecuperрvel havia se libertado de seu controle e, em seu lugar, instalara-se algo novo, ainda nсo descoberto e, contudo, tсo inevitрvel como o sol a percorrer o firmamento. Viu naquele olhar cinzento o fogo oculto que jazia sob o manto glacial na mirьade de luzes douradas que fulguravam ali. - O que vЖ? - ele repetiu, as palavras mais baixas ainda, provocando um arrepio de prazer pela pele de Vivian. Um mЖs, uma semana ou mesmo no dia anterior, ela teria respondido francamente que nсo via nada. Agora, via-se dominada por poderosas emoушes. Nсo eram as visшes de clara compreensсo que percebia em outras pessoas, mas, em vez disso, explosшes de pura emoусo, lampejos de cor num vрcuo de trevas, e uma luz tсo intensa que

podia senti-la ao longo de cada terminaусo nervosa. Vivian se afastou, rompendo a tenra conexсo da mсo de Rorke em seus cabelos e, ao mesmo tempo, quebrando o vьnculo sensual. Apressou-se a se desculpar, tropeуando nas palavras. - Preciso preparar uma tisana. - Por que foge de mim, Vivian? Do que tem medo? Receia o que faуo vocЖ sentir? Ela evitou-lhe o olhar. - Nсo compreendo. - Compreende muito bem, pois se sentiu da mesma maneira que eu me senti. - Tomou-lhe a mсo na sua. Com o polegar, abriu-lhe os dedos e depois levou a mсo atж o peito e colocou a palma sobre a curva do mЩsculo rijo. - Por favor! Nсo! - ela implorou. - O que sente? - Nсo sinto nada!

- Sente o que eu sinto. Calor, o fogo a queimar atravжs de mim a seu toque mais simples. Sei que sente. - Nсo sinto nada! - Continuou a negar, mas a luta desesperada para livrar a mсo a tornava uma mentirosa. Por favor! - implorou. - Nсo posso suportar isso. Encarou-o com uma expressсo que mesclava terror e o anseio. - Eu jр lhe disse - ela repetiu, a voz nсo mais que um murmЩrio. - Nсo sinto o que as outras sentem. ╔ impossьvel. Puxou a mсo com forуa. A conexсo quebrou-se. O frio enregelou-lhe a pele como se alguma coisa bloqueasse toda luz. Arquejou diante das emoушes intensas: desejo, necessidade e depois desespero, como nunca antes experimentara. Emoушes humanas, mortais, contra as quais ela sempre fora protegida pela certeza de seu destino. Sentia como se estivesse morrendo e certamente morreria se nсo se afastasse de Rorke. Procurou o saco de ervas e poушes. Estava ao lado da lareira, os cordшes pendendo soltos. Pegou-o, sem perder tempo em fechр-lo.

Seguiu depressa para a porta quando ele a impediu, os dedos fortes a se afundarem na carne macia de seu braуo. - Vivian. A voz soou rouca e ao mesmo tempo gentil, cheia de um conflito de emoушes tсo violentas como as dela prзpria. - Por favor, nсo! Entсo, recuando alжm do alcance, Vivian abriu a pesada porta do quarto. A surpresa de Judith de Marque foi tсo grande quanto a dela, porжm a normanda foi mais rрpida em se recobrar do fato de encontrar Vivian nos aposentos de FitzWarren. Uma expressсo astuta lampejou em seus olhos, ao parar no limiar do quarto e depois se transformou em indiferenуa, quando passou por Vivian. - Vim assim que recebi seu recado, milorde - ela disse a Rorke. - Vejo que serviu vinho para nзs. - Sua voz era como mel quente quando ela fechou a pesada porta firmemente atrрs de si. Vivian recostou-se contra a parede de pedra do lado de fora do quarto, de olhos fechados, enquanto tentava

colocar as emoушes perigosamente caзticas sob controle pela firme forуa de vontade. CiЩme e anseio espiralavam dentro dela. CiЩme da mulher que tinha certeza que ainda era amante de Rorke, e anseio por partilhar o vinho com ele e muito mais. Sufocou um soluуo de dor. A visсo que tivera tanto tempo voltou, vividamente. Uma criatura nascida em fogo e sangue que abria suas asas pela face da Inglaterra. Rorke FitzWarren. Seu destino estava inexoravelmente vinculado ao dele. Nсo era acidente ou mudanуa aleatзria da sorte que o levara Я abadia de Amesbury. Era o destino, visto numa visсo. Agarrou a brilhante pedra azul que pendia de seu pescoуo e lanуou os pensamentos para longe, alжm das muralhas de pedra, alжm de Londres, alжm do tempo e do espaуo, para a bruma serpeante onde presente e passado se mesclaram num tempo de esperanуas e sonhos, num lugar distante que existia apenas nas antigas colinas cavernosas. Palavras murmuravam em seus pensamentos atormentados.

Por favor, pai. Ajude-me. Um baque surdo sacudiu o ar tranqЧilo da manhс naquele reino envolto em bruma, suspenso entre os mundos conhecidos dos homens. Uma ladainha de furiosos xingamentos, numa meia dЩzia de idiomas antigos e quase esquecidos se fez ouvir. - Querido, amor - Ninian murmurou. - O que aconteceu? Ele continuou parado ali por um longo instante e, entсo, lentamente voltou-se para fitр-la. As belas feiушes tinham se tornado mais ainda marcantes com o tempo, as linhas em torno dos olhos e boca acrescentando forуa e carрter Я face. Eram feiушes fortes, aquilinas, que sugeriam uma antiga linhagem real e, claramente, ancestrais celtas. Muito tempo atrрs ele escolhera deixar crescer uma barba inteira. O tempo nсo diminuьra o seu amor por ele. Na verdade, o aprofundara, dando a ele novas qualidades distintas como o vinho. Contudo, nunca antes Ninian presenciara tamanha ira. Ela podia senti-la e vЖ-la nos punhos cerrados de raiva

impotente atж que os nзs dos dedos branquearam; ouvi-la na ladainha de pragas que ainda pesavam no ar do quarto com uma energia selvagem e caзtica; percebЖ-la no tremor sob a palma de sua mсo. - Querido, por favor - disse, gentilmente. - Preciso encontrar uma maneira - ele exclamou, com crescente desamparo, as mсos lanуadas ao alto. - O que viu nas chamas? - ela perguntou. Ele se recusou a responder, a princьpio. Tinha a expressсo torturada, com imensa tristeza e desamparo. Lрgrimas luziam em seus ardentes olhos azuis. - Fui incapaz de ver alguma coisa. Nem mesmo o menor vislumbre. Nada, a nсo ser uma treva crescente. - Jр aconteceu antes, meu amor - ela o consolou. - Nсo! Nсo desse jeito! Sempre antes houve uma ligaусo. Eu conseguia alcanур-la, mas ultimamente, isso desapareceu. Julguei que talvez atravжs da luz do fogo… Mas havia apenas treva! - Jр houve treva antes - ela o relembrou. - A escuridсo sempre segue o dia. - Sua voz era tсo calmante como seu

toque, lьrica, ligeiramente musical, balsРmica como seu mрgico contato curativo. - VocЖ sempre cuida de mim, minha amada. Cura as feridas da carne e alivia as feridas do espьrito. Trouxe-me esperanуa, fж e amor, e fez desta prisсo que ж minha existЖncia um tesouro alжm de qualquer comparaусo. O que lhe dei que mereуa tanto assim? - Deu-me verdade, honra e uma rara paixсo. Seu coraусo e sua alma. E me presenteou com filhos, lindos e bons, quando me desesperei ao pensar que nсo poderia desfrutar desses prazeres mortais. Sinto-me rica com a troca, meu amor. - Mas eu pensei que poderia mantЖ-la em seguranуa e nсo pude. Tenho medo dessa escuridсo, Ninian. Nсo ж como a treva que se segue Я luz do dia. Ele se levantou e caminhou para a janela. - ╔ uma escuridсo que consome a luz, que a destrзi, obliterando tudo que era antes e possa ter alguma vez esperanуa de ser. Enterrou a cabeуa entre as mсos.

- E, agora, nсo consigo alcanур-la. Nсo posso avisр-la disso! Ninian envolveu-o nos braуos, sentindo a dor do desespero que o dominava. Ocultou os sentimentos do coraусo para que ele nсo pudesse ver o medo que havia ali. - Encontraremos um jeito, meu querido. Ela ж parte de nзs. ╔ forte e boa e verdadeira. Encontraremos um jeito de alcanур-la. Enquanto falava, ela voltou a face para o ombro do marido, apavorada que ele pudesse ver a dЩvida em sua face ou as lрgrimas de impotЖncia que escorriam, por seus filhos que lhe tinham sido tirados, longo tempo atrрs, para o prзprio bem, para lugares onde poderiam estar seguros, e por aquele imortal que ela amava e por quem desistira da prзpria vida mortal para compartilhar a dele. Seu marido, seu amante, seu companheiro atravжs de toda eternidade. Merlin, cuja dor ela nсo podia aliviar. Ele inclinou a cabeуa sobre a dela, sobre os cabelos que caьam numa cascata dourada, como o sol a se infiltrar pela bruma. Ninian, a dama do lago que lhe roubara o coraусo, curara

sua alma e lhe dera o doce e precioso dom da vida. Ele a abraуou, extraindo forуas dela. - Acharei um jeito de alcanур-la - jurou. A estreita passagem que conduzia Я cozinha era fria e Щmida aos pжs de Vivian. Ela procurava por Meg e a encontrou mexendo uma panela sobre um braseiro. A velha sorriu quando ela se aproximou. - Minha querida menina, fiquei aflita para ter uma oportunidade de conversar com vocЖ. - Senti seus pensamentos e vim assim que pude. - VocЖ estр bem? - Puxou Vivian de lado para os sacos de farinha alinhados na parede. Sentaram-se sobre eles. A visсo revelou alguma coisa a mais a vocЖ? - perguntou, com preocupaусo na voz. Vivian meneou a cabeуa, negando. - Nсo vi mais nada na pedra. Mas senti uma presenуa. Olhou para trрs, por sobre o ombro, para ter certeza de que ninguжm a ouvia. Sentia uma presenуa atenta. E assim procurou comunicar-se com Meg da maneira antiga,

passando-lhe os pensamentos. Segurou a mсo da velha ama contra a face e abriu a mente, como se dissesse as palavras em voz alta. - Na visсo, vi uma treva fria e maligna diferente de qualquer coisa que eu tenha conhecido, mas nсo sei o que significa. A visсo nсo me revelou. Desde entсo, nсo a vi de novo, mas sinto sua presenуa. Estр aqui, nas sombras, logo alжm de minha habilidade para vЖ-la. Como se estivesse esperando por alguma coisa, ou alguжm. Diga-me o que a senhora sabe sobre isso. Sob a mсo, ela sentiu o tremor de Meg. E, antes que qualquer pensamento fosse compartilhado, Vivian sentiu a angЩstia do medo da velha ama. - Por quinhentos anos nсo se falou da Treva. Quando eu era crianуa havia murmЩrios sobre isso, era um conto para assustar os pequenos, eu acho. Nada mais. Diziam que surgira sobre a terra no tempo dos antigos reis. Contavam tambжm que a Treva destruiu o antigo reino.

- Ninguжm tentou impedir? - Sim - retrucou Meg, agora com uma clareza de compreensсo da visсo de Vivian que nсo tivera antes. Alguжm tentou impedi-la. Vivian captou o prзximo pensamento. - E foi destruьdo por causa disso? - perguntou, receosa. - Sim, banido do reino para sempre. Lрgrimas encheram os olhos cegos de Meg, conforme ela mais uma vez respondeu em voz alta. - Receio por vocЖ, minha menina. Deixe este lugar. Volte para Amesbury. Podemos partir agora. Poladouras nos levarр. Vivian meneou a cabeуa com tristeza. - Sabe que nсo posso. Vi a treva em minha visсo. Sou parte disso. Se tiver de partir, ela me encontraria de novo. A senhora sabe da verdade das visшes, depois de vistas nсo podem ser alteradas. ╔ aquilo que nсo foi revelado que ainda pode ser mudado. - O futuro - Meg murmurou, com voz trЖmula.

- Como uma tapeуaria - Vivian respondeu. - Os fios ainda nсo foram tecidos. - Sentiu uma pequena chama de esperanуa. - O futuro ainda nсo estр definido e jaz nas mсos de uma criatura nascida em fogo e sangue, e… - E tudo estр em suas mсos - disse Meg, com uma tristeza ainda maior na voz. - Seus destinos estсo entrelaуados. Vejo agora que vocЖ tem razсo, embora eu rezasse para que nсo tivesse. Ele ж normando. Traz sangue e morte aos saxшes. Todas as emoушes que ela sentira durante as semanas transcorridas derramavam-se sobre Vivian. Seu medo de Rorke, seu temor dos prзprios sentimentos e a profecia que os vinculava. -Esse destino jр estava certo antes que ele e seus cavaleiros chegassem a Amesbury - Vivian constatou, tristemente -, pois vi claramente na pedra, assim como eu sabia que devia vir com ele. Uma das ajudantes da cozinheira entrou na despensa e relanceou o olhar para elas com curiosidade enquanto pegava um saco de farinha. Vivian levantou-se para sair,

pois tinha outros afazeres a cumprir quando parara para ver Meg. A mсo da ama era surpreendentemente forte e quente, repleta da forуa vital que ainda a percorria, a despeito dos olhos frрgeis. - Embora seu destino esteja ligado ao dele, cuidado advertiu-a, em voz baixa. - Conheci os sentimentos que tem por vocЖ. Sсo perigosos. VocЖ ж uma filha da Luz. Nсo deve esquecer o aviso da profecia, pois se seus poderes forem perdidos tudo estarр perdido. E quanto aos meus sentimentos para com ele? Vivian pensou, embora assegurasse a Meg que nсo precisava se preocupar. Por que aquelas emoушes e necessidades mortais se remexiam dentro dela como nunca acontecera antes, a um simples toque de Rorke? - Tomarei cuidado - prometeu, mas seus pensamentos estavam cheios de dЩvidas e incertezas, ao sair da cozinha. Precisava ir ao mercado comprar as ervas e pзs para seus remжdios e sir Gavin fora encarregado de levр-la. Vivian aproximou-se.

- Bom dia, sir Gavin. Peуo desculpas por fazЖ-lo esperar. - Bom dia, milady - o cavaleiro retrucou, ao se voltar para revelar que nсo era Gavin que a esperava, mas Rorke FitzWarren. - Onde estр sir Gavin? - ela indagou, espantada com a presenуa inesperada daquele a quem vinha evitando nos Щltimos dias, desde o infeliz encontro no quarto dele. - Foi chamado para resolver outro assunto. VocЖ falou da necessidade de ir ao mercado. Portanto, irр ao mercado acompanhada de meus homens. E, para sua seguranуa, cavalgarр comigo. Uma estranha calma estabelecera-se na cidade. Os comerciantes reabriram suas lojas. Os mercados fervilhavam de atividade. Hospedarias e tavernas, fechadas dias antes, estavam lotadas e empenhadas em negociaушes ruidosas, providenciando alimentaусo e alojamento para os mesmos invasores contra quem tinham lutado. Comжrcio significava lucro e lucro significava sobrevivЖncia. O mercado mais diversificado ficava perto do rio, onde as barcaуas e chatas traziam as cargas dos navios que

enchiam o porto. Carros de boi se somavam Я aglomeraусo de pessoas nas ruas. Os cavaleiros normandos em seus cavalos de batalha destacavam-se na multidсo. Recebiam uma variedade de olhares, de indiferentes a furiosos, e provocaушes ostensivas

conforme passavam pelas bancas. Vivian conteve o fЗlego na expectativa de problemas, mas, por sorte, nada aconteceu. Finalmente, ela encontrou a banca que procurava. - Preciso descer - pediu. - ╔ muito perigoso - avisou Rorke. - Faуa sua escolha e mandarei um de meus homens pagр-la. - Nсo pode ser assim. Preciso ter certeza daquilo que estou comprando. - Estр bem - ele concordou, com relutРncia. Com um gesto, Rorke desmontou, tirando Vivian da sela e colocando-a gentilmente no chсo. A pressсo das mсos enluvadas demorou-se na curva de sua cintura. - Faуa as compras necessрrias e eu pagarei. ╔ perigoso para vocЖ, aqui. - Por favor, milorde. Nсo gostaria de tirar seus homens de seus deveres. - Sсo meus homens. Eu digo quais devem ser seus deveres. Mesmo que seja escoltar moуas bonitas pelo mercado.

O olhar espantado de Vivian encontrou o dele. Ninguжm nunca dissera isso sobre ela, que era bonita. Pela primeira vez na vida, Vivian experimentou a incerteza, no significado da palavra, na maneira peculiar que ele as pronunciara, como se fosse uma expressсo de afeto entre pessoas enamoradas. Um anseio intenso e repentino a invadiu, trazendo consigo uma onda de emoушes indesejadas. Queria ao mesmo tempo gritar, chorar e rir, sem qualquer idжia da causa de tamanha emotividade, a nсo ser que a deixava emocionada e ao mesmo tempo apavorada. O sorriso de Rorke aliviou a incerteza, ao comeуar num canto da boca e se estender atж aqueles olhos acinzentados. Sentindo a confusсo e o embaraуo de Vivian, ele se afastou, e ela fugiu atж a primeira banca e se pЗs a examinar as mercadorias. - Fiquem por perto - Rorke instruiu a seus homens. - Nсo quero surpresas. - Entregou as rжdeas ao cavaleiro mais prзximo e seguiu atж onde Vivian estava. Ao fazerem as compras, Rorke descobriu que Vivian tinha

um olhar arguto, um extraordinрrio domьnio dos nЩmeros e sabia negociar como poucos. Contudo, os mercadores a tratavam com um ressentimento disfarуado. Ela falava o idioma local com uma fluЖncia que revelava que era realmente saxс. E havia sз uma conclusсo a ser tirada de sua presenуa entre os cavaleiros e o fato de ser escoltada por um nobre normando sem a restriусo de correntes. Se nсo era prisioneira, entсo era uma prostituta. Contudo, ela tratava cada pessoa que encontrava com gentileza, parecendo nсo notar a hostilidade. As cabeуas se voltavam conforme ela passava pelas bancas. Expressшes hostis se suavizavam quando ela parava para fazer uma pergunta sobre um artigo ou outro. Ela nunca deixava de atrair um comerciante para uma conversa, os comentрrios rudes esquecidos quando olhavam para aqueles luminosos olhos azuis; a suavidade musical de sua voz tinha um estranho efeito calmante, assim como o toque gentil de sua mсo na cabeуa ou rosto de uma crianуa suja de rua. Sinto-me como essas crianуas, Rorke pensou, fascinado por aqueles olhos azuis incomuns, atraьdo pelo som

daquela voz, ansioso pelo toque daquela mсo. Sua prзpria mсo brincou com um corte de lс de qualidade particularmente fina, de um tom de malva pрlido e ele imaginou como pareceria perto da pele de Vivian. Alheia ao sentimento que o assolava, ela seguiu em frente, rodeada pela guarda bem armada. Rorke pagou o comerciante pelo corte de lс e enfiou o embrulho debaixo da tЩnica de cota de malha. Alcanуou Vivian numa banca onde o feirante vendia velas de sebo, sabшes e ervas perfumadas. Ela apanhava um punhado de ervas, de olhos fechados, e inalava o aroma com prazer. - Outra planta curativa? - ele indagou. - Hum, curativa contra o fedor de soda e sebo. A experiЖncia anterior com algumas das cocушes, para nсo mencionar as histзrias que ela lhe contara, o deixaram cauteloso. Tomou delicadamente o punho delgado e ergueu a mсo da jovem atж o nariz, a fragrРncia suave quase tсo agradрvel a seus sentidos como o toque daquela pele macia. Sorriu de prazer ao notar o aroma de lavanda. - Isso certamente nсo cura muito - brincou. - Porжm, nсo

cheira a ovos podres, nсo arde nos olhos ou trava a garganta. Ela riu, um som mрgico e quente, um bрlsamo curativo, fazendo-o ansiar por ouvir mais e mais aquele riso. - Nсo, mas tranqЧiliza o espьrito e faz a gente se recordar da primavera no meio do inverno. Os homens comeуavam a ficar com fome e sedentos, e olhavam ansiosos para a comida e bebida oferecidas nas bancas. Na prзxima barraca, compraram canecas cheias de cerveja. Acostumados ao vinho francЖs, olharam o lьquido escuro e espumante com certa desconfianуa. Entсo, com um brinde resmungado, viraram a bebida. Vivian riu conforme seguia adiante. Nсo pensara em desfrutar a manhс quando descobrira que Rorke a esperava. Mas a primeira impressсo de desconforto passara. Parecia que nсo havia nenhuma ameaуa de perigo no mercado, e Rorke nсo a interrogara sobre o ataque a Guilherme nas ruas de Londres, nem falara do anel de fogo.

De repente, Vivian sentiu uma presenуa familiar a seu lado, a mesma que sentira no campo de batalha em Hastings. Um braуo fechou-se em torno de sua cintura e uma mсo cobriu-lhe a boca. Ela foi puxada para trрs de uma cortina pendurada entre duas bancas de venda. A mсo afastou-se de sua boca e ela encarou, com surpresa, um rosto conhecido. — Conal - murmurou. - Nсo devia estar aqui. ╔ muito perigoso. Ele puxou-a para trрs da carroуa que estava ao lado da banca do vendedor. - Eu a segui. Juntei-me aos outros, aqui em Londres. Vim por sua causa - Conal exclamou. - Prometo que a tirarei de Londres antes de atacarmos esses bastardos normandos! - Nсo! - Vivian exclamou, com veemЖncia. - Nсo deve! Tentou desesperadamente fazЖ-lo entender. - Nсo posso voltar para Amesbury. Poladouras e Meg estсo aqui ela exclamou, certa de que isso ele entenderia. - Haveria conseqЧЖncias pavorosas contra eles se eu fosse embora; portanto, nсo posso.

- ╔ mais que isso. Ouvi conversas por aь - Conal insistiu, os dedos a lhe machucarem o braуo. - Dizem que vocЖ e o bastardo FitzWarren sсo amantes. Ouvi quando ria com ele. Vi como ele a tocou. Sabe quantos saxшes ele matou? Como pЗde se entregar a ele? - Sua expressсo retorceu-se numa agonia de emoушes. Vivian pestanejou diante da acusaусo. - Conal, por favor, vocЖ nсo compreende. Eu lhe peуo, vр agora, antes que seja tarde. Jр era tarde, porжm. Da rua vieram gritos, ordens rьspidas e berros quando Rorke e seus soldados comeуaram a revirar as bancas dos vendedores, em busca de Vivian. A atmosfera festiva do mercado transformou-se em terror e pragas quando os vendedores tentavam proteger suas mercadorias e mсes agarravam seus filhos para nсo serem pisoteados pelos cavalos. - Por favor, Conal! - Vivian gritou. - ╔ a mim que eles procuram. Quando ele se recusou a soltр-la, ela aumentou a pressсo da mсo, usando da forуa de seu poder, e dobrando a vontade de Conal Я sua prзpria. Contra o desejo dele,

os dedos do pastor se afrouxaram de seu braуo, libertando-a. Ele a encarou, incrжdulo. - Vр agora, antes que eles o encontrem - disselhe, antes que Conal pudesse fazer qualquer pergunta. - Nсo podem encontrр-lo aqui. Volte para Amesbury enquanto ж possьvel. Ela sentiu a aproximaусo dos soldados antes de vЖ-los. Mas nсo eram os cavaleiros de Rorke FitzWarren. Eram os homens de Vachel! Com o muro de pedra por trрs da fila onde se alinhavam as barracas dos vendedores, Conal estava encurralado, sem esperanуa de fugir. Lembranуas dos corpos que coalhavam o campo de batalha em Hastings vieram Я mente de Vivian. Conforme os soldados avanуavam entre as barracas em torno deles, fechando o caminho, Vivian segurou-o pelo braуo e empurrou-o de costas para o muro de pedra. - Terр de confiar em mim. ╔ o Щnico jeito. Tome minhas mсos e, nсo importa o que aconteуa, nсo as solte. Hesitante, Conal segurou-lhe as mсos. - Feche os olhos

- ela ordenou. - Nсo importa o que aconteуa, nсo os abra. O que ela pretendia fazer consumiria todas as suas forуas e exigiria todos os seus poderes. Os gritos estavam muito mais prзximos agora. Suas mсos agarravam com forуa as do amigo, e Vivian deu um passo atrрs. Entсo outro, e mais outro, puxando-o consigo conforme ela e Conal passavam juntos atravжs da sзlida muralha de pedra. Capьtulo VII

- Vivian… Vivian… Seu nome soou muito distante, a chamр-la, empurrando-a para trрs, mais perto agora. - Vivian? Era Rorke. Sua voz nсo tinha mais a entonaусo rьspida de antes, mas estava cheia de uma gentileza inesperada e preocupaусo. Suas mсos fortes se fecharam sobre os braуos de Vivian como se ele a puxasse de volta para o mundo fьsico onde ele e seus homens existiam.

Ela se recostou contra o muro de pedra onde apenas momentos antes estivera com Conal. Vivian sabia que ele continuava escondido como o aconselhara, antes de se afastar. - Estр tudo bem - murmurou, em resposta ao olhar de Rorke. - VocЖ estр gelada como uma pedra. Tem certeza de que nсo foi ferida? Uma risada brotou na garganta de Vivian diante da comparaусo que ele escolhera. Ah, se ele soubesse… Meneou a cabeуa. - Sз assustada, ж tudo. - Uma resposta certa no meio de tantas incertas. Dois dos homens de Rorke voltaram sem encontrar qualquer traуo dos rebeldes que procuravam. Vivian ocultou um suspiro de alьvio ao perceber que Conal ainda estava escondido em seguranуa no lugar onde o deixara. Fraco e desorientado pela passagem pela pedra, ele a fitara com uma incredulidade muda. De alжm do muro, ela ouvira os gritos urgentes dos soldados e soubera que, se nсo fosse encontrada logo, a

busca iria se espalhar do mercado para aquela outra rua do outro lado do muro. - Viu a direусo em que fugiram? - Rorke perguntou, insistente. Ela meneou a cabeуa. - Havia tanta confusсo no mercado… Eles sumiram. Por favor, Rorke! - ela implorou, desesperada para impedir que Conal fosse descoberto. - Podemos voltar agora? Nсo houve nenhum mal. Nсo hр por que continuar com essa caуada. VocЖ pode nunca encontrр-los. O som de cavaleiros que se aproximavam atraiu-lhe a atenусo e um novo frio de pavor invadiu-a quando o bispo surgiu e, ao lado dele, estava Vachel. O bispo saltou da montaria e aproximou-se com um ar de autoridade. - Nсo pensei vЖ-lo pelas ruas de Londres, milorde bispo comentou Rorke. - Ultimamente, parece extremamente ocupado com assuntos de estado. - Disseram-me que havia alguma dificuldade no mercado. Que vocЖs foram atacados por rebeldes saxшes - o bispo retrucou, com altivez.

- ╔ incrьvel a rapidez com que o senhor toma conhecimento dessas coisas - disse Rorke, numa entonaусo fria e sarcрstica. - Parece ter o ouvido do divino em tais questшes que o fazem ser capaz de atender tсo prontamente. Os olhos do bispo faiscaram de raiva. - As notьcias se espalham rapidamente nas ruas. Seu olhar recaiu sobre Vivian. Ergueu o sobrolho num mudo questionamento que era tсo evidente como se tivesse feito a pergunta em voz alta. - Meu irmсo ficaria muito aborrecido se soubesse que sua curandeira talvez conspire com os rebeldes saxшes. Um de meus homens disse que a viu com um homem. Vachel, ж claro! Ela ia retrucar, mas antes que pudesse falar, os dedos de Rorke apertaram-se num aviso em seu braуo. - Ela jр me falou disso - ele assegurou ao bispo. - Ah, entсo os rebeldes foram pegos. - O bispo olhou com ceticismo de um para outro dos soldados, a dЩvida expressa em suas feiушes.

- Nсo - Rorke retrucou. - Sumiram. - Estр dizendo que eles desvaneceram? Talvez desapareceram pelas paredes? - Estou dizendo que ж simples desaparecer em ruas desconhecidas dos outros. Como uma forуa viva, malжvola, o зdio entre os dois podia ser ouvido e sentido. Vivian estremeceu diante da mal controlada violЖncia que sentiu pairando entre eles. Rorke acompanhou Vivian atж o cavalo, enquanto seus homens se fechavam num cьrculo protetor Яs suas costas. Ele ergueu-a para a sela e em seguida montou atrрs. - Tome cuidado - avisou ao bispo, na partida. - As ruas de Londres podem ser perigosas. Conforme cavalgavam de volta para a fortaleza, Vivian sentiu a tensсo da raiva em cada mЩsculo duro do corpo do guerreiro, e viu os nзs dos dedos brancos pela forуa com que ele segurava as rжdeas diante dela. O clima descontraьdo que tinham partilhado anteriormente sumira. - Vai me contar o que houve agora, Vivian? - ele a assustou com a pergunta.

- Como eu disse, milorde, nсo posso esclarecer mais nada. - Nсo pode, Vivian? Ou nсo quer? - ele indagou, a voz baixa na garganta, sugerindo perigosas emoушes. Vivian fechou os olhos, aflita. Contudo, se contasse a verdade, arriscaria a vida de Conal, e isso ela nсo poderia fazer. - Nсo posso, milorde. Preocupada e desassossegada pelo que acontecera no mercado e pelo caos de sentimentos que nem entendia nem desejava, Vivian ansiava por alguns momentos de privacidade. Meg estava esperando por sua volta e mesmo sem ver sentiu a preocupaусo de Vivian. - Algo aconteceu - Meg exclamou, quando teve certeza de que nсo seriam ouvidas. - Posso sentir em vocЖ. Suas mсos estсo frias como a morte. Vivian contou-lhe rapidamente seu encontro com Conal e o modo como tinham escapado. Meg meneou a cabeуa. - Tive medo de que pudesse acontecer isso. Ele ficou desesperado

quando vocЖ foi levada de Amesbury. Sabe dos sentimentos do rapaz por vocЖ? Vivian aquiesceu com tristeza. - Sim, ele me falou. Tentei dissuadi-lo, mas receio que isso nсo tenha terminado. - Nсo - retrucou Meg, com certeza. - E receio que nenhum bem venha disso. O que vocЖ vai fazer? - Tentei convencЖ-lo a partir de Londres, mas ele nсo me ouviu. - Olhou para as feiушes tensas de Meg. Poladouras falou de visitar amigos em Londres. Se pudesse encontrar com Conal e convencЖ-lo de que deve ir embora… Meg concordou. - Falarei com ele. Certamente o bispo darр permissсo. Poladouras me disse que o homem se ressente com o tempo que ele passa com Guilherme. - Sua voz tremeu ao ter um outro pensamento. - Tenho medo do bispo. Precisa ter cuidado, mo chroi. Vivian beijou a face enrugada da ama adorada.

- E tome cuidado tambжm, minha cara. - Nсo poderia permitir que Meg soubesse que ela tambжm tinha medo do bispo. Durante a tarde, tratou de vрrios ferimentos. Os cavaleiros de Guilherme exercitavam-se no pрtio e a procuravam com vрrias contusшes, cortes e arranhшes das prрticas de guerra. Mais tarde, as tisanas de Meg esfriavam na cozinha. Os pзs agora enchiam os frascos e jarras e a velha ama fora procurar Poladouras para conversar com ele. Mally recolhia as roupas lavadas do varal. A lavanderia ficava atrрs da cozinha e o fogo aquecia a рgua, usada para lavar roupa e para o banho. Vivian pegou um punhado de lavanda e espalhou-a pela рgua. Abriu um frasco de extrato de raьzes que comprara naquele dia. Quando esfregado entre as mсos, o extrato formava uma espuma. Tinha um cheiro agradрvel, perfumado com a essЖncia das campinas na primavera. Ela o usou com parcimЗnia para se esfregar e depois ensaboou os cabelos, certa de que nсo teria outra oportunidade para ir ao mercado em

breve. Algum tempo depois, seguiu para o quarto, os cabelos molhados caьdos pelas costas, as dobras do manto apertadas contra o corpo para afastar o frio dos corredores. Quando ela atravessava uma passagem, vazia a nсo ser pelos guardas postados de cada lado da entrada, viu de relance uma mulher. Judith de Marque fora brevemente iluminada por uma tocha ao final da passagem. Nсo viu Vivian, tсo fixa estava sua atenусo no guerreiro alto cuja identidade se acobertava nas sombras. Vivian ouviu o murmЩrio de palavras trocadas seguidas pela risada lasciva de Judith. Naquele instante, Vivian pensou outra vez em Rorke FitzWarren e nos rumores que corriam entre os cavaleiros. Uma pontada de dor retorceu-se em algum lugar sob seus seios. Tentou livrar-se dos sentimentos indese-jados. Ansiava pela privacidade do quarto. Aturdida, Vivian puxou a pesada tapeуaria de lado e fez menусo de entrar no aposento. Estacou logo depois da soleira, espantada.

Com um olhar inocente de desculpas, Rorke FitzWarren voltou-se de onde estava, Я beira da lareira. - Por favor, perdoe-me, demoiselle. Quando cheguei, nсo havia ninguжm. Nсo pretendia assustр-la. -Nсo assustou - disse Vivian, recuperando o fЗlego. Sentia uma sensaусo de alarme por nсo ter percebido a presenуa do normando antes de entrar no quarto. Para disfarуar o constrangimento, assegurou-lhe: - Apenas pensei que todos estivessem no salсo. Nсo esperava encontrр-lo aqui. - Nem eu - ele retrucou com voz sжria, a expressсo imperscrutрvel. Era impossьvel saber seu humor. Bebeu o vinho como se precisasse se fortificar para algo que viria. - O duque Guilherme julgou necessрrio que eu procurasse seus dons de curandeira - ele explicou. - Sofri um pequeno corte no pрtio de exercьcios. Ela ergueu a sobrancelha com a onda de medo que a surpreendeu. - Tem algum ferimento? Quando ele se virou e levou a mсo para o cрlice de vinho,

Vivian viu entсo a grande mancha de sangue na manga da camisa. Ela atravessou o quarto com uma pressa que fez as chamas das velas bruxulearem. Rapidamente pegou a cesta de medicamentos de um nicho na parede. - A camisa precisa ser tirada - disse a ele. Quando se virou, descobriu que Rorke jр estava com o peito desnudo. Havia uma grande quantidade de sangue em seu ombro, a maioria seco. Ela franziu a testa ao molhar um pano limpo. Embora o ferimento tivesse sangrado muito, era pequeno. Havia cicatrizes em seu corpo de ferimentos bem mais severos e perigosos. - Deve ter sido muito doloroso - ela murmurou, ao examinр-lo com o olhar estreitado. - Mais provavelmente um ferimento em seu ego - emendou, a voz seca e cheia de um sЩbito cinismo. Ele a encarou com um olhar divertido. - Mas, mesmo assim, a menor ferida pode infeccionar e provocar febre - Rorke ponderou, insistente. Decidira fazer uma nova investida se quisesse saber a verdade

sobre o que acontecera naquela manhс. - Passe uma bandagem no ferimento. Por favor. Vivian nсo fazia idжia do jogo que ele jogava, ou com que finalidade, mas nсo estava disposta a seguir suas ordens. - Nсo posso - retrucou, o azul de seus olhos luzindo como uma chama derretida. - A ferida precisa ser fechada adequadamente - continuou, a luz incidindo nos utensьlios quando ela abriu a caixa de agulhas. Vivian pegou uma e passou um fio grosso que poderia ser usado para remendar arreios de couro. - Preciso de mais luz - disse com um olhar para a vela sobre a mesa. - Para nсo dar um ponto errado e ter de comeуar outra vez. Ela viu a mudanуa sutil naquele olhar, do cinza frio e hibernal para alguma outra emoусo que vira de relance antes mas que agora reconhecia muito tarde. Antes que pudesse escapar, Rorke circundou-lhe a cintura com o braуo forte e saudрvel, puxando-a para perto e imediatamente deixando claro que mesmo com o uso de apenas um braуo, era ainda um homem formidрvel e perigoso.

- VocЖ, demoiselle - disse ele, o rosto tсo prзximo que Vivian foi forуada a inclinar a cabeуa para trрs - ж uma feiticeira encantadora. - Nсo, milorde. - O olhar assustado de Vivian encontrou o dele. Sua respiraусo ofegante apenas intensificava a sensaусo atordoante que espiralava dentro de suas

entranhas e formigava em seus seios. Os mamilos enrijeceram e saltaram tanto que teve medo que, quando ele a soltasse, pudesse vЖlos atravжs do vestido. Com palavras medidas que exigiam um mьnimo de fЗlego, ela assegurou-lhe: - Nсo sou feiticeira. Rorke pareceu pensar na possibilidade. - Se nсo ж feiticeira, Vivian, no mьnimo ж fascinante. - Em seguida, repetiu. - Nada de pontos. Uma atadura limpa serр suficiente. Se sua intenусo ж provocar mais dor, a retaliaусo serр rрpida. - Como se para comprovar a ameaуa, seu braуo se fechou mais uma vez em torno dela. - Nсo precisava de meus cuidados. Poderia ter enfaixado o ferimento sozinho - comentou Vivian, ao pegar o ungЧento. - Talvez eu tenha vindo lhe dar um aviso. - Um aviso? - O que aconteceu esta manhс no mercado foi perigoso. Entсo, pensou Vivian, Rorke tinha intenусo de continuar a insistir naquele assunto. Que fosse. - Sim - ela concordou, com ar solene. - Muito perigoso.

- Falo do bispo. Ele ж o irmсo de Guilherme e conseqЧentemente um homem muito poderoso. Nсo deve ser tratado com leviandade. - Tem medo dele? - Nсo tenho medo de homem algum, seja bispo, duque ou rei. Mas suas ambiушes o tornam perigoso. Ele estр determinado a provar que vocЖ ж uma traidora. Talvez, por isso, seja mais verdadeiro eu dizer que vim em busca da verdade. Se houver algo mais que eu deva saber a respeito de hoje, precisa me dizer agora. Vivian o encarou com cautela. - Eu lhe disse a verdade, milorde - atalhou, numa voz que mesmo para si prзpria era pouco convincente. - VocЖ nсo viu mais nada. Ela esperava por mais perguntas. Quando Rorke nсo as fez, Vivian voltou Я tarefa de limpar o ferimento. Rorke percebera o olhar inquieto que lhe cruzara a face, a sombra da apreensсo naqueles olhos vividos e preferiu ficar calado. Iria observр-la. E ela era uma criatura deliciosa de se observar.

Os cabelos estavam Щmidos e cheiravam a uma fragrРncia suave que o recordava das campinas luxuriantes de Anjou, na primavera. - O que ж entсo, senhora? - especulou, voltando Я conversa anterior. - Se nсo ж uma feiticeira que encantos usa? A mсo delicada, sempre tсo segura e firme naquela tarefa familiar, de repente hesitou. Sem erguer os olhos, como se isso exigisse uma grande concentraусo de atenусo, ela espalhou o ungЧento em torno do ferimento. - Talvez eu seja uma bruxa - ela sugeriu, mantendo o olhar longe do dele. - Uma bruxa? Uma Jehara, como Tarek acredita? Criaturas que lanуam feitiуos, uma crianуa roubada pelas fadas, um ser mрgico que controla os poderes mьsticos do universo e existe apenas entre a bruma e a realidade? - Fitou-a com ar especulativo. - Talvez… um troll do pРntano? Ela ergueu a cabeуa num ьmpeto, os olhos faiscantes de raiva. - Estр dizendo que cheiro mal?

Rorke afagou o rosto de Vivian para depois afundar os dedos no cetim da tranуa quase solta. - VocЖ, demoiselle - ele aspirou o perfume dos cabelos, ainda Щmidos, com um sorriso a lhe curvar os lрbios diante daquela expressсo ofendida -, cheira ao vento da madrugada e Я chuva quente da primavera. - Seus dedos se afundaram no manto espesso dos cabelos, lentamente se apossando deles. - E ao sol de verсo. Cheira a coisas vivas, a pinheiro da floresta e Яs suaves campinas. A sonhos doces da meia-noite e segredos ainda mais doces. - A carьcia estendeu-se atж o rosto de Vivian para roуar seus lрbios. - VocЖ nсo ж nenhum troll continuou, acariciando-lhe a curva do lрbio inferior, a pele rude a raspar a carne tenra. - Talvez uma fada - ela murmurou, num arquejo assustado. - VocЖ nсo ж nenhuma criatura sobrenatural, etжrea - ele murmurou, os lрbios a roуarem os dela, aturdindo-a com a ternura que prometia todas aquelas coisas e muito mais. Entсo ele a provou, o veludo rЩstico da lьngua a deslizar pela curva de sua boca, de um canto a outro e depois lentamente de volta, para entсo se insinuar

pelo centro entreaberto. Pela primeira vez na vida, incapaz de ver com a visсo interna, Vivian fechou os olhos e experimentou aquele prazer maravilhoso com todos os seus outros sentidos. - VocЖ tem gosto de vinho doce - disse Rorke, num murmЩrio arquejante, quando lhe mordiscou o lрbio inferior, provocando em Vivian uma inesperada pontada de desejo, que ela nсo saberia definir, mas que precisava provar de novo. Abriu a boca para ele e sugou o veludo daquela lьngua numa conjunусo elemental, primeva. - A velha Meg me avisou em Amesbury naquele primeiro dia - Rorke resmungou, com voz rouca, enquanto sua mсo deslizava pela curva da garganta de Vivian atж o lugar sedoso onde o sangue latejava sob a pele. — Disse que nсo tinha noусo de seu poder. Ah, mas tenho, demoiselle - garantiu-lhe, conforme inclinava a cabeуa e seus lрbios seguiam a mсo atж aquele lugar vulnerрvel acima da renda do vestido. Sua lьngua acariciou a macia depressсo de carne, perturbando-a ainda mais. Ela ergueu as mсos para impedi-lo, e os dedos se curvaram sobre o contorno

rijo dos mЩsculos do peito de Rorke, as unhas a se enterrarem na carne. - VocЖ tem o poder de enfeitiуar e enganar. Os toques suaves da lьngua quente eram como o bater de asas de borboleta na pele de Vivian, fazendo-a arquejar, e a respiraусo tremer nos pulmшes. Uma lembranуa de longo tempo atrрs relanceou por entre seus pensamentos tumultuados: de Bronwyn e Ham naquele dia na clareira… dos beijos apressados e afobados… das roupas arrancadas com gestos frenжticos… e depois a conjunусo ainda mais frenжtica dos corpos ao se unirem um ao outro. Nсo havia pressa nem afobaусo nos beijos de Rorke. Era como se cada um fosse deliberado, demorado e saboreado completamente antes que o prзximo comeуasse, enchendo-a de uma loucura sensual que ela nсo queria nem compreender nem terminar, mesmo que sentisse o puxar suave dos laуos do corpete e depois a jornada descendente daqueles lрbios para outros pontos que formigavam de ansiedade.

- Meu Deus - ele murmurou. - Sua pele ж tсo quente e macia. - Sua lьngua correu sobre um mamilo rosado. - ╔ como fogo envolvente. Vivian ofegou diante da reaусo de seu corpo. Sentia que pulsava por inteiro, e abandonou-se aos sentidos recжmdescobertos. Deixou a cabeуa pender para trрs atж que tinha o pescoуo arqueado, e enterrava as unhas nos ombros de Rorke, a respiraусo presa nos pulmшes. Entсo, um pavor que vinha do mais profundo de seu ser a fez exclamar: - Rorke, nсo posso… nсo devo… Por favor… Ele acariciou-lhe o seio e inclinou-se para sugр-lo. - Nсo precisa ter medo… - Por favor! - Lрgrimas de desejo, incerteza e angЩstia travaram a garganta de Vivian enquanto suas mсos agarravam os cabelos de Rorke, puxando as longas mechas. - VocЖ nсo compreende… eu nсo posso - As palavras fraquejaram num soluуo. - Eu nсo sei como… agradar a um homem. Ele esperava pela recusa, certo de que viria. E aquela honestidade da inocЖncia aguуou o desejo ainda mais

profundamente dentro de Rorke, enrijecendo ainda mais a carne que jр ansiava por ela. - Nсo tenha medo. - Beijou-a, os dedos a acariciar o rosto, a voz baixa e rouca -, pois me agrada muito… Os olhos sem malьcia, como chamas gЖmeas que refletiam o brilho da pedra azul que pendia entre os seios de Vivian, o fitaram de volta com um desejo franco e aberto. - Sua honestidade me agrada. Seus dedos escorregaram pela extensсo dos ombros, acariciando-lhe a nuca, provocando sensaушes inteiramente novas. Ela nсo podia ver, apenas sentir e imaginar com uma expectativa ofegante que devia haver muito mais. - Sua suavidade me agrada - ele murmurou, ao soltar a tranуa e enterrar as mсos nos cabelos perfumados, a agonia do desejo a invadi-lo. Vivian tinha consciЖncia da boca de Rorke em seu ombro, da lьngua a escorregar por sua pele. Seus mamilos formigaram ao se enrijecerem, na Рnsia de serem cativos

mais uma vez do calor possessivo daquela boca. Aquelas mсos duras, marcadas de cicatrizes, capazes de impor morte e destruiусo, mantinham seu corpo inteiro tenso com gestos ternos ao afastar a massa pesada de cabelos por sobre um ombro, expondo a nuca, empurrando os braуos para baixo, tirando as mangas e depois o corpo do vestido atж a cintura. O vestido caiu a seus pжs. Outras lembranуas daquele dia na clareira relancearam por seus atordoados pensamentos. Mas nсo havia o arrancar de roupas ou a ansiedade que parecia quase um frenesi animal para se unirem. Em vez disso, ele a desnudava lenta e delicadamente, excitando-a ainda mais a cada carьcia que lhe roуava a pele. Vivian arquejou, envergonhada pela nudez repentina e depois ofegou quando as mсos de Rorke se fecharam sobre seus seios. A barba dura raspou-lhe a pele quando ele mordiscou o lado de seu pescoуo, provocando deliciosos arrepios a cada pressсo gentil. - Sua inocЖncia me agrada - ele sussurrou, com tanto

ardor que a fez estremecer. - Por favor… - Vivian suplicou, sem saber o que fazer. - Seu gosto doce me agrada. Ele se ajoelhou e Vivian sentiu o calor daquela boca deslizar em beijos suaves por sua coluna atж o final da espinha. Visшes daquele dia na clareira a invadiram. Quando observara aquela uniсo ardente, soubera que tal coisa lhe era proibida, mesmo que experimentasse uma estranha percepусo de desejos sensuais de sua porусo mortal de carne e osso. Rorke FitzWarren despertara esses desejos, acordando dentro dela um anseio por coisas proibidas. Porжm, nсo importava o que custasse, ela queria experimentar o que provocara em Bronwyn tanto prazer. Queria sentir o despertar de seus outros sentidos numa volЩpia de preenchimento que unira sua mсe e seu pai, e a criara de carne e osso mortais. - E seu calor me agrada… - A mсo de Rorke deslizou pelo ventre liso, os dedos acariciando a carne acetinada.

Quando ele a fitou, assustou-se com o olhar ardente e apaixonado em Vivian. Dissera que ela nсo era uma criatura etжrea, sobrenatural, mas, naquele momento, com o desejo a queimar como uma chama azul na profundeza de seus olhos, a combinar com o cristal reluzente que era tudo que ela usava, Vivian parecia de certa forma de outro mundo. Era como se, com a brilhante coroa de seus cabelos, fosse-uma criatura nascida do fogo. Por uma noite, pensou Vivian, ao pousar as mсos no peito de Rorke, eu o terei por uma noite. Ele beijou-a com paixсo, as mсos enterradas na cascata espessa de seus cabelos. - VocЖ ж como fogo, a me incendiar. Livrou-se das calуas e botas e envolveu-a nos braуos, sentindo que o autocontrole o abandonava. Nсo teve paciЖncia para carregр-la para a cama e deitou-a sobre o espesso tapete de peles diante da lareira. Era como se o fogo a tratasse como uma divindade, banhando sua pele nua, luzindo em todas as depressшes acetinadas para destacar o monte sedoso que brilhava de umidade

e nos cabelos espalhados como um manto sobre as peles. - Deixe-me agradр-la - ele murmurou. Um incЖndio pareceu irromper dentro de Vivian e espalhou-se, fora de controle. E ela se abandonou Я pura sensaусo fьsica do supremo prazer. Uma noite. A profecia a avisara que nunca poderia amar como uma mulher mortal. Qual seria o preуo por aquela noite de prazer? Ela nсo sabia. Sabia apenas que nсo poderia voltar atrрs Я sua existЖncia solitрria, confortada apenas pelo fogo mрgico que queimava dentro de si. Nсo depois de ter experimentado a magia do fogo da paixсo de Rorke. Lрgrimas de tristeza e alegria marejaram seus olhos. Apenas por uma vez seria uma mortal, mesmo se isso significasse a perda de seus poderes. Saberia o que era ser amada e se unir fisicamente a um homem. Uma noite. Para durar por toda eternidade. Qualquer que fosse a perda, valeria a pena. A imagem dos namorados na clareira tornou-se uma lembranуa distante quando o fogo banhou-lhe a alma em

flamejante calor conforme seu ousado guerreiro a banhava de amor. E Vivian deixou escapar um grito semelhante ao de um falcсo recжm-nascido quando Rorke a possuiu. - Perdoe-me - ele murmurou -, nсo queria fazЖ-la sofrer. Ia se afastar, mas ela o impediu, as mсos a agarrр-lo pelas costas. - Nсo, milorde - ela ofegou -, vocЖ ж magnьfico, uma bela criatura nascida em fogo e sangue. Rorke estremeceu. Nunca ele, marcado de cicatrizes, enrijecido pela tortura e crueldades de sua vida de bastardo e pela dura realidade das guerras, fora chamado de belo. - Entсo, queime comigo, meu doce fogo - ele gemeu, quando seus corpos comeуaram a se mover no mesmo compasso, num sз ritmo, atж se tornarem um sз. Cabeуa jogada para trрs, os olhos de Vivian luziram conforme seu ser se ligava Я terra, seduzida pelo homem cujo amor a preenchia completamente. E sua parte imortal buscou o cжu, voou e pairou nas asas daquela paixсo, como a criatura cuja imagem poderosa se estampava na tapeуaria da parede, uma criatura nascida em fogo e

sangue. Rorke teve a sensaусo de que o prзprio tecido de sua vida fora rasgado, consumido pelo fogo ardente daquele corpo de mulher, atж que, como a mьstica criatura que salta das chamas da desolaусo, com um grito rьspido, feroz, viu-se renascido, renovado pela paixсo. O quarto estava frio, o fogo hр tempo estava quase apagado na lareira. Vivian levantou-se, enrolando uma pele em torno de si. Rorke remexeu-se com a repentina ausЖncia daquele corpo quente e, meio adormecido, levou um braуo para o lugar vazio como se para puxр-la para mais perto. Ela queria voltar para aquele lugar, sentir os braуos fortes a envolvЖ-la, aquele corpo a lhe roubar o calor para depois devolvЖ-lo Я paixсo ardente da uniсo. Mas nсo podia. Sentiu as pedras do chсo geladas sob os pжs descalуos. Pegou algumas achas de lenha para colocр-las na lareira. As brasas ainda luziam em meio Яs cinzas, emitindo um dжbil calor quando Vivian esticou a mсo sobre elas. Entсo os carvшes de repente estalaram quando as labaredas ganharam vida, desdobrando-se como as

pжtalas de uma flor a se abrir. - VocЖ estр aь, sei que estр - ela murmurou, uma das mсos a se fechar em torno do cristal azul, a outra a se estender para o fogo que agora brilhava fulgurante na lareira. Vivian fitou as chamas, lanуando os pensamentos muito alжm das muralhas de pedra e da fortaleza do bosque. Alжm de hospedarias, tavernas e mercados de Londres. Alжm do vжu da noite e das fronteiras do tempo e espaуo, para outro lugar, de esperanуa, sonhos e antigas lendas, encontrado apenas naquele momento hesitante logo antes da alvorada. Naqueles poucos e breves instantes em que a noite nсo ж mais noite e o dia ainda nсo ж dia, havia um lugar encontrado apenas na bruma. - Por favor, venha a mim - implorou, ao estender a mсo diante do fogo. - Precisa me ajudar a compreender. Um braуo estendeu-se das chamas. Uma mсo fez um sinal, a chamр-la. Vivian estendeu os dedos para as chamas. Pousou a mсo

naquela que se esticava. Uma visсo apareceu, de uma clareira na floresta coberta com neve recжm-caьda e uma Щnica pedra em pж. Entсo os dedos escorregaram dos dela, desaparecendo nas chamas. Tudo que restou foi a visсo da pedra postada na beira da clareira na floresta. Depois, lentamente tambжm desapareceu, atж que tudo que restava era o fogo queimando na lareira. Tochas queimavam ao longo das paredes da passagem quando Vivian saiu do quarto de Rorke. No salсo principal, ela pЗde divisar as formas amontoadas dos homens de Guilherme debruуados pelas longas mesas ou deitados pelo chсo. O ar recendia a cerveja e comida. Sair pela passagem secreta teria sido mais discreto, mas tambжm tomaria muito mais tempo, pois ficava alжm da cozinha, nos fundos do complexo. A entrada da frente era mais bem guardada, porжm mais prзxima da pequena floresta que bor-dejava a fortaleza. Projetou os pensamentos e envolveu a mente do guarda Я porta.

- VocЖ destrancarр a porta e irр me deixar passar sem tentar me impedir. Nсo contarр a ninguжm que me viu - ela insistiu. - E nсo se lembrarр de nada que aconteceu. - Nсo me lembrarei de nada. - Ficarр em seu posto como antes. Entсo, enquanto ele soltava o mecanismo que erguia a pesada barra de ferro, ela murmurou: - Bom dia, Sevien. Esgueirou-se pela porta, desceu os degraus e saiu para o pрtio interno. Logo depois dos canis havia as falcoarias onde estavam as aves de caуa trazidas da Normandia. Ela se esgueirou para dentro. Os sons no interior da falcoaria eram docemente familiares. O pequeno falcсo, ┴quila, estava num poleiro separado das aves maiores, ao fundo. Captou o cheiro e a presenуa de Vivian, e chamou-a com um piado curto e agudo. A ave passou com cuidado para o braуo desprotegido de

Vivian. Assim que estavam fora da falcoaria, ela tirou-lhe o capuz. - Precisa voar por mim. Preciso de seus olhos, meu amigo. - Abrindo o braуo, ela mandou o falcсo para o alto. ┴quila subiu rapidamente pelo cжu cinzento que antecedia a alvorada, escapando facilmente das altas muralhas de pedra. Circulou ao alto e depois pareceu desaparecer, mas Vivian nсo se alarmou. O falcсo iria procurar o bosque, a imagem que Vivian vira. Pela primeira vez desde que conhecera a verdadeira extensсo e a finalidade de seus poderes, Vivian se sentia incerta, a profecia que a velha Meg lhe revelara a enchЖ-la de dЩvida. Ela nсo era como as outras mulheres e, no entanto, por umas poucas e preciosas horas, ela se voltara contra seus poderes para se tornar uma mulher. E agora, se seus poderes se voltassem contra ela? Suas mсos tremiam ligeiramente quando as espalmou sobre as pedras da muralha. Mentalizou o fogo. Teve uma visсo, e atж mesmo sentiu a poderosa presenуa de

alguжm que procurava alcanур-la. Certamente nem todo os seus poderes estavam perdidos por causa do que acontecera entre ela e Rorke. Inspirou fundo e soltou o ar, liberando toda a dЩvida e todo o medo. Fechou os olhos e se comprimiu contra as pedras da muralha. Visualizou cada grсo duro que compunha a pedra, cada fissura, emenda e junta, e a espessa massa entre elas. Entсo se permitiu sentir o frio e a umidade, vendo-a tambжm na superfьcie plana e no gelo que reluzia em cada borda aguda. Depois, ainda voltada para o ьntimo, imaginou-se passando atravжs da muralha. Primeiro as mсos, depois os braуos, um passo, dois, e, conforme o poder se congregava e se focalizava, ela passou pela parede como se nсo fosse mais substancial que a bruma, ou uma simples gota d’рgua que escorria pelas pedras. Com um arquejo ofegante, emergiu do outro lado. Sua primeira percepусo foi do frio de doer os ossos, como

se naqueles breves instantes ela houvesse se tornado de pedra e barro, coberta de gelo, ensopada de umidade. Sentiu-se fraca, como se a vida tivesse sido drenada de si e somente agora retornasse. Gradualmente, percebeu que pelo menos aquela habilidade nсo lhe fora tomada. Um grito suave, agudo, ouviu-se ao alto. ┴quila estava empoleirado no baluarte do oeste, a esperar por ela. Lanуou-se do topo do baluarte, descrevendo cьrculos e espirais contra o cжu de chumbo. Com um pensamento, Vivian mandou-o para o bosque. Nсo havia tempo a perder conforme o cжu se tornava mais claro naquele tempo entre a escuridсo e a luz, quando a noite nсo ж mais noite e o dia ainda nсo ж dia… Vivian atravessou o leito seco do fosso e entrou pelo bosque, lanуando seus pensamentos a distРncia para se unirem aos do falcсo, procurando com o dom especial por uma clareira na qual se erguia uma antiga pedra. A neve se estendia como um manto alvo pelo chсo, refletindo a luminosidade crescente. Uma sensaусo de urgЖncia tomou conta de Vivian. Precisava encontrar a clareira

antes que o sol se levantasse. Entсo, ouviu o grito do falcсo, o mesmo grito de quando avistava uma presa. Ela seguiu o som, atж que emergiu numa pequena clareira. Uma dжbil luz dourada rompeu o mar espesso de nuvens no horizonte e penetrou pela clareira. A bruma comeуou a se erguer com o calor dos raios solares. Foi entсo que Vivian viu a pedra. Era alta, um grande obelisco que parecia marcado pelas eras. Erguia-se do chсo e da neve como uma mсo estendida, ou possivelmente a lРmina de uma antiga espada de pedra. Vivian caminhou lentamente em sua direусo. O monзlito nсo se assentava no chсo, mas pairava logo acima dele, rodeado por uma suave luz brilhante. Aquela era a pedra de sua visсo, suspensa no tempo, a fonte de seu poder extraьdo da luz brilhante que se irradiava da rocha. Com uma repentina calma interna, Vivian pousou as mсos na face da pedra, como fizera na muralha. Desta vez nсo houve nenhum frio de enregelar os ossos nem a sensaусo de ser fragmentada ou dilacerada ao

passar atravжs da matжria dura. Nem dor ou fraqueza. Era como uma cortina se abrindo, passar da treva para a luz. Ao emergir do outro lado, Vivian sentiu que uma mсo tocava a sua, e depois se fechava com firmeza, transmitindo um amor tсo incondicional e uma forуa tamanha que era como se ela renascesse, deslizando do Щtero do mundo mortal para dentro do mundo espiritual da alma. Abriu os olhos devagar para olhar dentro dos olhos daquele cuja mсo segurava a sua, aquele que a esperava. - Papai! - gritou, atirando-se Яquele abraуo protetor. - Minha filha! - ele exclamou, apertando-a com forуa. Por um longo momento ele simplesmente a abraуou a murmurar palavras doces, tсo ternas e calmantes como a mсo que lhe afagava os cabelos. Lрgrimas marejaram os olhos de Vivian. - Pensei que tivesse me abandonado - ela murmurou com o rosto comprimido contra o ombro largo. - Jamais, minha filha. - A voz estava cheia de inesperada

emoусo. Seus braуos se apertaram em torno dela como se ele tivesse medo de deixр-la ir embora. Finalmente, a soltou. Sз o bastante para fitр-la, a mсo a lhe afagar a face. - Estр tudo bem, minha menina. Estр segura aqui. O sol incidia quente Яs costas de Vivian. Uma brisa suave beijou-lhe o rosto. Ali havia apenas claridade e sol. A fortaleza e toda Londres desaparecera. Apenas a pedra permanecia em pж, o monзlito a reluzir sob a luz. Entсo ela tambжm lentamente se desvaneceu atж que Vivian nсo conseguia vЖ-lo claramente se o olhasse diretamente, mas apenas enxergр-lo na beirada da visсo. - Venha, filha - disse ele, puxando-a de lado com o braуo em torno de seu ombro. - Sua mсe a espera. - O pomar e o jardim estсo tсo deslumbrantes - ela exclamou, admirada, conforme se aproximavam de um simples chalж, Nunca deixava de surpreendЖ-la a abundРncia com que tudo crescia ali. Sua mсe corria pela trilha do jardim em direусo a eles. - Mamсe.

A voz de Vivian fraquejou quando os braуos delicados a enlaуaram. Ninian afastou-a ligeiramente, estudando-a com olhos de mulher, precisando apenas da percepусo feminina que alguжm que amava profundamente para ver isso em outra. Afagou a face da filha. - Venha, meu coraусo. Preparei um chр especial. Abraуada aos pais, Vivian seguiu com eles para o chalж onde aromas maravilhosos exalavam pelas janelas abertas. Conversaram como todas as famьlias quando se reЩnem depois de uma longa ausЖncia. E, contudo, sua mсe e seu pai dificilmente pareciam mais velhos do que quando ela os visitara pela primeira vez, depois de descobrir o dom da visсo nas chamas. Tudo ali permanecia constante, imutрvel. Ali, Vivian sentia-se renovada. Ali, ganhava forуa. Sabia que, do outro lado, alжm do portal, o tempo mal teria passado, afinal. Uns poucos segundos, minutos talvez. E Vivian sentiu outra vez uma urgЖncia de algo que assomava no horizonte. Aquela mesma urgЖncia que a

levara a cruzar o portal. - Papai, preciso conversar com o senhor. Ambos se entreolharam e Vivian captou uma tristeza na face do pai que ela vira de relance quando atravessara o portal. Ele suspirou fundo. - Venha caminhar comigo, filha. Saьram juntos do chalж, subindo a trilha da antiga colina verdejante. Vivian parou para olhar para trрs e avistou de relance a mсe, no jardim. Sentiu o amor de Ninian como se lhe dissesse algo e as palavras fossem carregadas pelo vento. Sei que vocЖ deve seguir seu destino, filha de minha paixсo, minha filha do fogo. Saiba que eu sempre estarei com vocЖ. A lenda dizia que depois do grande conflito, Merlin fora enterrado nas colinas cavernosas, numa cРmara com luminosas paredes douradas que luziam com a luz de uma Щnica vela colocada num nicho na parede. Tambжm diziam que uma linda jovem por vontade prзpria unira-se a ele, deixando o mundo mortal por aquele local imortal. Enquanto Merlin jazia em sua laje fЩnebre feita de

mрrmore branco, ela lhe dera o dom de si mesma. E uma espada certa vez poderosa, danificada e marcada, que ela trouxera de um lugar chamado de Marж do Tempo. A espada era chamada de Excalibur. - Papai? Ele se voltou do nicho e lhe sorriu, sem disfarуar aquela impressсo de tristeza. - Vi uma coisa, pai. Algo poderoso e terrьvel. Uma grande escuridсo no mundo. O que ж? Precisa me dizer. O que ж essa treva que vi? O que significa? -Minha doce crianуa, esperei que isso nunca a encontrasse. Rezei para que nсo acontecesse. Vivian sentiu a sЩbita tensсo, como se o pai fosse tomado por uma raiva impotente. - Eu as protegi contra isso! Esta ж a razсo pela qual mandei vocЖ e suas irmсs para o mundo mortal. Esperei que pudessem ficar a salvo. E agora… - A raiva permaneceu, mas temperada mais uma vez por uma sensaусo crescente de desamparo. - Agora - ele repetiu, como se reunisse forуas -, receio que a tenha encontrado. Perdoe-

me, filha, por nсo ter podido evitar. Ela nunca o vira assim. Seu pai, sempre onisciente e Todo-Poderoso, sempre tсo forte e seguro de si, o sрbio conselheiro, o professor, o mentor que ela e as irmсs sempre procuravam em busca de guia, estava consumido por uma avassaladora tristeza que ela nсo conseguia imaginar qual seria. - Precisa me contar tudo, papai. Desde o inьcio, para que eu possa entender. E foi ali, na cРmara dourada, com a escuridсo a cair, e uma abзbada de estrelas ao alto, que Merlin contou a Vivian sobre a terrьvel Treva. Em todas as grandes configuraушes das galрxias havia um equilьbrio de forуas que mantinha os planetas alinhados. Criava ordem no caos. Mas sempre havia a ameaуa de que o caos sobrepujasse a ordem, com guerras, fome, pestilЖncia e morte. A grande Treva que existia no mundo do Alжm era o governante do caos, mantido ao largo apenas pelo poder da Luz. Mas havia sempre o embate pela dominaусo.

Com Merlin para guiр-lo, um jovem rei poderoso desafiara a Treva e, por algum tempo, reinou sobre os domьnios. Esse rei era Arthur, e o reino prosperara. Mas Arthur foi traьdo por aqueles que amava e confiava. Nem mesmo Merlin pudera protegЖ-lo. Arthur fora abatido em batalha e morreu. A grande Treva se espalhara sobre a terra, trazendo quinhentos anos de guerra, fome e morte na forma de um usurpador apзs outro, que invadiam, conquistavam e despojavam a Inglaterra. Nсo havia ninguжm para se opor ou impedir. Merlin se fora. E assim a Treva descansou, recuando para os longьnquos recessos da memзria, confiante de seu poder sobre o reino. Entсo, conforme a lenda crescia de que o feiticeiro nсo morrera, tambжm despertaram aquelas forуas malжvolas, pois a Treva sentiu que seu domьnio sobre o reino destruьdo poderia nсo estar seguro.

- Sou a causa disso - Merlin disse, baixinho, as mсos a lhe empalmar a face. - Eu deveria ter previsto que aconteceria. Mas nсo pude. Desde o momento em que vocЖ nasceu, senti a presenуa da Treva se reunindo mais uma vez. Observando. Esperando, como antes. Nсo foi o bastante que eu fosse banido, aprisionado nas brumas do tempo. Nсo foi suficiente que sua mсe fosse forуada a desistir de tudo para viver comigo aqui, porque eu nсo poderia ser parte do mundo dela. Agora, a Treva quer minhas filhas! Com um medo sЩbito, Vivian abraуou o pai e sentiu seu tormento. Era como se tudo tivesse de repente mudado e ela fosse o pai e ele a crianуa que precisava de conforto. - E quanto a Guilherme da Normandia? - ela perguntou. Vi uma grande mudanуa que iria envolver toda a Inglaterra em minha visсo e soube que ele derrotaria o rei Harold. ╔ ele o rei que a Inglaterra esperou por todo esse tempo? - Nсo ж Guilherme - ele respondeu, hesitante. - Ele serр rei por algum tempo, mas, como antes, haverр muito conflito. - Se nсo ж Guilherme, quem entсo? Um filho talvez, pelo

direito de sucessсo? ╔ isso que a Treva veio impedir? Ela sentia que Merlin sabia, mas se recusava a lhe contar a verdade. - Papai, precisa me dizer! O que isso tem a ver comigo? Por que eu a vejo em minhas visшes? - Nсo tem nada a ver com vocЖ! - Tive outras visшes, pai. Falou-lhe entсo da criatura nascida em fogo e sangue; a imagem do escudo de batalha de Rorke FitzWarren; do aviso sobre uma fж que nсo tinha coraусo, e da espada que nсo tinha alma; e, finalmente, de sua visсo recorrente da tapeуaria. - A tapeуaria ж uma profecia - disse ele com uma grande debilidade de espьrito. - O que vЖ no desenho sсo as coisas que irсo se passar. - Profecia de quem? Da forуa da Luz? Ou da forуa da Treva? - VocЖ ж uma filha da Luz. A visсo ж sua; portanto, ж uma profecia da Luz. - Mas ainda nсo estр terminada. Como posso conhecer a

profecia se partes dela ainda nсo estсo tecidas? - Nсo pode saber - Merlin retrucou, desviando o olhar aflito do rosto da filha. Vivian soube que ele mentia. - Eu me vi na tapeуaria - murmurou, sentindo muitas outras coisas que antes lhe estavam ocultas. - Sou parte disso. Ela era a tecelс. De repente, Vivian soube alжm de qualquer dЩvida, que era isso que atormentava Merlin, e o que ele tentara impedir que ela visse. - A tapeуaria ainda nсo estр tecida - ela disse, baixinho. - O futuro ainda nсo estр decidido. Sou a tecelс no tear. Determinarei o desenho. Eu, e eu sozinha, devo enfrentar a Treva. - Tentei afastar tudo isso de vocЖ. - Sei disso, meu pai. Mas tambжm sei agora que talvez eu possa mudar o desenho da tapeуaria. Estр em minhas mсos. Devo enfrentar a Treva. - Nсo precisa - ele murmurou, com doуura. - Nсo volte. Fique aqui, conosco.

- O senhor sabe muito bem que nсo posso ficar. Com uma tristeza profunda no coraусo, ele respondeu: - Sim. - Abraуou-a. - Eu sabia que essa seria sua resposta, mas tinha esperanуa de que pudesse mudar de idжia. - E quanto a meus poderes, pai? Sabe que amei um homem mortal. - A resposta, minha filha, deve ser encontrada no coraусo desse homem. Se o coraусo dele for verdadeiro, entсo seus poderes serсo mais fortes por isso. Mas se o coraусo for falso… - Nсo consigo ver o verdadeiro coraусo de Rorke, pai. - Nсo pode porque precisa abri-lo para vocЖ. Sз saberр quando ele entregar em rendiусo tanto o coraусo como a alma a vocЖ. O cжu da noite tingiu-se de prata com o anЩncio da alvorada. - Tem o cristal? Enquanto o possuir, estaremos juntos. Sejam quais forem os poderes que eu tenha, eles se juntarсo aos seus nesta jornada. - Fitou-a nos olhos. -

Nсo hр nada que eu possa dizer para impedi-la? Ela o abraуou com forуa. - Nada, papai. Depois de um instante, ela se afastou, sabendo que se o pai pudesse retЖ-la fisicamente a seu mundo, ele o faria. - ╔ tarde, papai. Preciso ir. Merlin nсo discutiu. Havia lрgrimas em seus olhos. - Irei com vocЖ. Voltaram juntos pela trilha, descendo as colinas, deixando para trрs o antigo lugar lendрrio onde a vida de Vivian comeуara. Na borda do pomar, Ninian os esperava. Havia embrulhado muitas das antigas ervas que cresciam em profusсo em seu jardim e entregou-as a Vivian, junto com um pacote especial para Meg. Vivian colocou os embrulhos dentro do manto que Merlin lhe enrolara nos ombros. Os trЖs voltaram para a pequena clareira no meio do pomar.

- Possam os poderes da Luz estar com vocЖ, minha filha Ninian disse, em despedida. E Vivian percebeu que ela sabia do que se passara entre pai e filha. - Eu a amo, mamсe - retrucou. Merlin atravessou com ela a clareira atж o obelisco que era quase visьvel agora naquele lugar entre a noite e o dia, em que o tempo se imobiliza em meio Я bruma. Vivian fez um gesto de despedida aos dois. Voltou-se e seguiu devagar rumo ao obelisco que parecia como se suspenso na bruma, pairando acima do chсo. Com a mсo apertada em torno do cristal, voltou todos os pensamentos para o ьntimo. Focou todos os poderes e a forуa da Luz e, em seguida, entrou pelo portal. Imagens cruжis e dolorosas bombardearam seus pensamentos, tentando quebrar sua concentraусo numa imensidade de visшes fantasmagзricas que pareciam controladas por alguma outra forуa, como se uma forуa malжfica estivesse tentando impedi-la de entrar no mundo real. Podia sentir essa forуa rasgando-lhe a carne, queimando em sua alma, tentando destruь-la, e soube que era a

Treva. Viu-a, como jр vira antes. Pairava logo alжm das fronteiras da percepусo, numa forma vaga, escura, que se assemelhava a um homem envolto em sombras, cuja imagem vinha atж ela, empurrando, bloqueando, negando-lhe entrada. Um porteiro cuja horrьvel risada ressoava em seus ouvidos. Vivian agarrou a pedra. Absorveu seu antigo poder buscando, atravжs da ardente Luz da pedra, extrair a forуa que seu pai prometera, somando-a a sua prзpria. Esta queimou brilhante como a luz de um bilhсo de estrelas a lhe escapar pelos dedos, perfurando a escuridсo. As sombras se dobraram e se retorceram. E recuaram mais uma vez para as fronteiras da realidade, nсo mais capazes de impedi-la. Vivian foi lanуada pelo portal para o outro lado, caindo sobre a neve na clareira do bosque. Ficou ali, completamente imзvel, inanimada, quase como se estivesse morta. Capьtulo VIII

As chamas nas tochas bruxulearam violentamente, lanуando imagens distorcidas e ferozes ao longo das paredes da entrada do salсo real quando Rorke confrontou o guarda, tomado de ira. - Ela deve ter passado por este caminho! - Nсo, milorde - o guarda, Sevian, retrucou com absoluta certeza. - Eu estava em meu posto durante toda noite. A senhora nсo passou por aqui, nem ninguжm mais. Como era possьvel, Rorke pensou, que Vivian saьsse e nсo fosse vista, num lugar onde as pessoas se amontoavam nos salшes e pelos corredores o tempo todo, fosse dia ou noite?! Junto Я raiva, sentia a incerteza de que o motivo do sumiуo fosse o que havia acontecido entre os dois. Pelo cжu! Ele nunca conhecera uma mulher com tamanha paixсo. Nada que tinham partilhado indicava algum pesar ou infelicidade ou preocupaусo da parte dela, embora ele houvesse pensado nisso, jр que pressentira, por sua inocЖncia, que Vivian nunca se deitara com nenhum

homem. Depois, quando descobrira que aquilo que suspeitara era verdade, tivera o cuidado de nсo machucр-la ou assustр-la. Mas fora ele que se espantara e se surpreendera com a extensсo de sua paixсo e a maneira desinibida como correspondera. E, agora, ela se fora. Sevian insistiu. - Milorde, ninguжm passou por aqui. A frustraусo aumentou. Era quase alvorada. Logo todos saberiam que ela sumira, inclusive o bispo, que jр andava atrрs de motivos para desacreditр-la junto a Guilherme. Tarek aproximou-se, pois Rorke o havia informado do desaparecimento de Vivian. Com um silencioso gesto de cabeуa, Tarek indicou que a minuciosa procura pela casa real resultara em nada. Rorke verificou os estрbulos. Depois, a falcoaria. No fundo, onde o pequeno falcсo ficava usualmente preso, ele encontrou a velha ama, Meg. - Ela se foi - disse Meg, sem surpresa, ao voltar os olhos cegos para ele, embora Rorke nсo tivesse feito qualquer

ruьdo ao entrar. - E levou o falcсo consigo. - O que sabe sobre isso? - indagou, suspeitando que ela soubesse de algo mais. Porжm a expressсo da velha era tсo vazia como os olhos opacos. Ou talvez fingisse. - Ela nсo confiou em mim. Estava com o senhor, milorde Seu tom se exasperou. - Sabia que nсo deveria ficar com o senhor. VocЖ fez sua conquista - ela continuou, com desprezo. - Deitou-se com ela. Sonhei com isso a noite passada. Vi o sangue virgem de Vivian em seu corpo. - Entсo as feiушes enrugadas se iluminaram de compreensсo. - Serр que o conquistador agora descobre que foi conquistado? - Riu, uma risada caуoьsta. Rorke sacudiu-a. - Nсo tenho tempo para seus enigmas nem seus sonhos. Ela disse que vocЖ vЖ muitas coisas, a despeito de sua cegueira. Pode ver para onde ela foi? - Vivian foi procurar a verdade. Foi para o bosque e levou ┴quila consigo. Precisa encontrр-la. - Meg estremeceu como se tomada por um repentino calafrio. - Hр muito perigo. - A mсo ossuda fechou-se sobre o braуo de Rorke com forуa surpreendente. - Nсo estр mais aqui, mas

espera por ela. Precisa encontrр-la! Do lado de fora da falcoaria, o olhar de Rorke esquadrinhou o cжu atж a copa das рrvores no bosque, alжm das muralhas da fortaleza. A dЩvida o corroьa. Serр que ela fugira deliberadamente? Ela fora apaixonada, muito alжm de seus sonhos mais ardentes. Responsiva, curiosa, inventiva. Doce e terna num momento, cheia de ardente abandono no outro. Tinham feito amor repetidas vezes atж que finalmente haviam adonnecido de exaustсo. Pelo menos ele julgara que ambos dormiam. Agora, Vivian se fora. E que perigo era esse de que a velha falara? Seriam os devaneios irracionais de uma louca, como a bruxa queria que todos acreditassem? Ou havia algo mais? Ao encontrar seu escudeiro, Rorke berrou uma ordem: - Sele meu cavalo. Apenas sela e brida. Sem armadura de batalha. Tarek se aproximou.

- Soube notьcias? - Sim, pela velha bruxa. Vivian foi para o bosque. - Vou com vocЖ - Tarek anunciou. Em questсo de instantes ambas as montarias estavam seladas e os dois deixaram o pрtio pelo portсo mais prзximo do bosque. Seguiram depressa pela muralha externa da fortaleza. Nсo demorou muito atж que Rorke descobriu o que estava procurando: pequenas pegadas, conduzindo ao bosque. Fazia quanto tempo que Vivian sumira, Rorke se perguntou. Uma hora? Duas? Mais? E como ela saьra sem ninguжm ver? Naquele momento, nсo importava. O importante era encontrр-la. Havia muitos perigos para uma mulher sozinha e desprotegida. Se perdesse terras, lutaria para recuperр-las e as reivindicaria em triplo como recompensa. Se perdesse dinheiro, caуaria os ladrшes e os faria pagar dez vezes mais. Mas, e quanto a uma bela saxс de olhos como fogo azulado, cabelos da cor da chama e o poder de fazЖ-lo querer rir, de enchЖ-lo de raiva e de levр-lo a fazer amor

atж que ambos se incendiassem? Que preуo poderia aliviar aquela perda? Logo se tornou impossьvel seguir as pegadas no bosque. - Aqui nos separamos e cada um procurarр numa parte do bosque - Rorke anunciou, sentindo urgЖncia em encontrрla. Tarek concordou e seguiu pelas рrvores. Rorke fez o cavalo dar meia-volta e seguiu na direусo oposta. Seguiu pelo mato espesso e por entre рrvores caьdas, procurando algum sinal de que ela passara por aquele caminho. Estava prestes a voltar e redobrar os esforуos em outra direусo quando ouviu o grito de um falcсo. A ave mergulhava sobre as copas das рrvores e emitia o crocitar de quatro notas que Vivian lhe ensinara. Era o pequeno peregrino, ┴quila. E se o falcсo estava por perto, ela tambжm estava. Entсo o grito do falcсo soou de novo, um Щnico pio de alarme,

agudo e vibrante. Rorke incitou o cavalo na direусo do chamado. Vivian tentou se mexer. Nсo tinha idжia do que a despertara. Tampouco sabia onde estava ou o que acontecera. Entсo, gradualmente, teve consciЖncia do frio sob o corpo e do cжu cinzento acima das copas das рrvores. Tudo voltou, num fluxo repentino de memзria e percepусo fьsica: a visсo nas chamas, a ida ao bosque e a jornada atravжs do portal de pedra. Seu corpo doьa como se tivesse sido espancada. E ela se deu conta da enorme diferenуa entre a jornada para o outro mundo e a volta. Era como se tivesse lutado atж as Щltimas forуas com algo que a impedia de voltar. Tentou se mover ao ouvir um ruьdo. Nсo conseguiu discernir o que era. Julgou que o tivesse imaginado. Fechou os olhos e caiu de costas de exaustсo. O alerta aflito de um falcсo ao alto atravessou a muralha de dor e a letargia que lhe entorpecia a mente. Fora o grito repetido de alarme de ┴quila que a arrancara do estupor. Algo estava errado. Havia perigo, e muito

perto. Entсo, o silЖncio foi de repente sacudido por um estourar de galhos e farfalhar de folhas, seguido pelo baque compassado de patas e o bufo de um animal que investia para a clareira. Vivian sentiu o perigo tсo bem como ouvira o crocitar de alarme do falcсo. Ergueu-se sobre um cotovelo. Conforme seus sentidos continuavam a clarear e entrar em foco, ela soube da ameaуa antes mesmo de vЖ-la. Um enorme javali entrara na clareira do outro lado da floresta. Nсo era fрcil vЖ-lo com seus pЖlos eriуados a se mesclarem aos matizes ocres da mata. Mas era visьvel a fumaуa da respiraусo condensada pelo ar frio da manhс, e seu grunhido era assustador. Vivian ficou absolutamente imзvel. O animal escavava a neve, impaciente, as presas curvas, amarelas como chifres a estalarem na queixada. A cabeуa larga voltou-se na direусo de Vivian, o focinho chato a se torcer conforme captava seu cheiro. A criatura a fitava como se a contemplasse. E um tremor

de inquietaусo tomou conta de Vivian, diante da vaga lembranуa da jornada de volta atravжs do portal. A memзria expandiu-se e aguуou-se. Sombras serpenteavam e tomavam formas. Primeiro, a de um homem. Depois, de alguma criatura sobrenatural a investir, obrigando-a a recuar, como se tentasse impedi-la de voltar para o mundo real, encurralando-a em meio Я bruma. Parecia impossьvel e, no entanto, conforme encarava o animal, Vivian percebeu que a criatura viera terminar o que fracassara em fazer no portal. Ao alto, o grito do falcсo cortou o ar da manhс, urgente e sombrio como a tempestade que se avizinhava. Rorke avistou o peregrino, mergulhando entre as copas das рrvores. Incitou o cavalo Я frente, seguindo o vЗo rasante atж uma clareira. Os piados aflitos faziam seu sangue enregelar nas veias. Em meio ao branco desnudo, ao cinza frio e a ausЖncia de verde da floresta, ele avistou a ardente coroa de cabelos avermelhados de Vivian. Ela estava deitada na base do que parecia ser uma enorme pedra. Entсo, Rorke viu o javali.

O bicho rosnava e escavava o chсo, o bufo a se condensar no ar frio, os fios de muco congelado a luzir no focinho torcido conforme se preparava para investir. Com um agudo grito de guerra, ele incitou o cavalo para a clareira. Saltou para o chсo com a espada larga e o punhal na mсo. Ao sentir o cheiro do javali, o garanhсo disparou pela clareira, os olhos a se revirarem. Estacou, a alguma distРncia do porco selvagem, e empinou, as patas ameaуadoras no ar. Por mais incrьvel que parecesse, o javali mostrouse apenas ligeiramente perturbado. E, como se fizesse pouco da ameaуa, voltou a cabeуa mais uma vez na direусo de Vivian. O vento mudou, carregando o cheiro de Rorke atж o animal. O javali virou a cabeуa e, por um momento, pareceu que avaliava aquele novo alvo com uma percepусo aguda. -Nсo! - Vivian murmurou, desesperada, pois ela tambжm vira a sutil mudanуa na postura do animal.

Ela quase conseguia ouvir os pensamentos da criatura, e sabia que era de outro mundo. Sabia tambжm que mataria Rorke. Havia apenas uma remota chance de que ele pudesse sobreviver. Vivian levantou-se com dificuldade e deu um passo na direусo do animal, atraindo-lhe a atenусo. A cabeуa horrьvel e deformada virou-se para ela. O bicho bufou, expelindo um jato de baba ao escavar a neve. Os olhos tсo negros como a Treva luziram com uma luz malжvola, e algo muito prзximo de um sorriso mortal curvou o beiуo do animal. Com um guincho de enregelar o sangue, a besta investiu pela clareira, cabeуa baixa, os olhos fixos nela. O golpe a lanуou ao chсo. Em meio aos grunhidos do animal e aos roncos sedentos de sangue, ela sentiu aquelas presas mortais lhe rasgarem a carne. Como se saьsse fora do corpo, ela viu o ataque Я distРncia e, ao mesmo tempo, de dentro do corpo. Olhou para a cena pela extensсo branca de neve e entсo voltou os

pensamentos para o ьntimo, rumo Я sobrevivЖncia. Desligou-se da dor fьsica do mundo mortal como se alguma outra pessoa sofresse o ataque. Concentrou-se na Treva encarnada no animal que tentava destruь-la. Sua mсo agarrou o cristal azul com forуa enquanto sua alma chegava ao coraусo da pedra para alcanуar o poder da mсo que se estendia para ela. - Viva, filha! - as palavras ultrapassaram a dor que lhe dilacerava a alma. - Precisa lutar contra a Treva! Extraia o poder da Luz! Pontos brilhantes de cor a circundaram, e depois gradualmente se separaram e se aglutinaram de modo que os tons se entrelaуaram e se tornaram fios de cor verde-escuro da floresta, branco reluzente da neve, cinza prateado do cжu de chumbo ao alto, ocres amadeirados, e brilhante sangue escarlate, tudo tecido na visсo da tapeуaria. Viu, de relance, um vislumbre fugidio das imagens que comeуavam a emergir conforme as meadas se juntavam a outras. Era como se alguma mсo invisьvel as tecesse, cuidadosamente,

um homem e uma mulher cujos corpos lentamente se uniam numa explosсo de ardente e abrasadora cor que mudava a cada instante, sensual e eroticamente, numa junусo intensa e ьntima, conforme os fios do destino eram tranуados. Entсo ela ouviu o grito de Rorke e nсo sentiu nem viu mais nada. Ele atacou, cravando o punhal dezenas de vezes no animal, atж que por fim o javali virou aquela cabeуa repugnante na direусo dele. O sangue escorria daquelas presas letais, o sangue de Vivian, para se misturar ao sangue da criatura. - Venha, prole sedenta de sangue de Satс! As imprecaушes encheram a clareira conforme Rorke postou-se em posiусo de combate, a espada empunhada com ambas as mсos. Entсo, ele viu aquilo que parecia um sorriso malicioso no focinho horrьvel do animal, como se zombasse dele e da espada reluzente que jр arrancara sangue da criatura.

- Venha enfrentar sua morte! - ele desafiou. Como se compreendesse, o animal fez um giro, baixou a cabeуa deformada, grunhindo e escavando o chсo coberto de neve com as presas ensangЧentadas. Balanуou o focinho para frente e para trрs. Recuou, soltou um guincho atroz, e investiu. Arrojou-se com uma forуa incrьvel, mirando as pernas de Rorke, com a intenусo de aleijр-lo com aquelas presas mortais e depois arrastр-lo para o chсo, para a morte. A espada era uma arma desajeitada para a situaусo. Ele teria apenas uma chance de incapacitar o animal. Quando o javali estava a alguns passos de distРncia, Rorke lanуou-se de joelhos, apoiando a ponta do cabo da espada no chсo duro Я sua frente, a lРmina erguida num Рngulo na direусo do peito da fera. A forуa do choque quase lanуou Rorke ao chсo. Mas ele colocou todo o peso por trрs da lРmina conforme a ponta mortal finalmente atravessava o couro rЩstico e a musculatura pesada, deslizava ao longo dos ossos e depois se afundava na carne macia dos зrgсos vulnerрveis do animal.

Com guinchos de dor e fЩria, aturdido pelo golpe, o javali recuou e enterrou os cascos no chсo para recuperar o equilьbrio. Naqueles poucos segundos, Rorke recuperou o punhal do chсo, onde o deixara cair. E enterrou-o naquele ponto vulnerрvel entre as espрduas, seccionando a espinha da fera. Depois, pЗs um fim aos guinchos frenжticos do animal com um golpe rрpido nas veias da garganta. O bicho foi sacudido por um Щltimo espasmo de agonia enquanto o sangue vital era bombeado pela ferida, jorrando sobre a neve, tingindo-a de escarlate. Com um grito feroz de angЩstia, Rorke lanуou-se pela clareira na direусo da jovem que jazia amontoada no chсo ensangЧentado. A frieza do corpo de Vivian, quando ele a tocou, o deixou aturdido. Pareceu penetrar por seus dedos, derramar-se por dentro atж se enroscar em torno de seu coraусo. Ele a virou para cima, aninhando-a nos braуos, enquanto tocava-lhe os ferimentos. Um arquejo escapou dos lрbios dela. As pрlpebras estremeceram e se abriram, mostrando os olhos assustados, de um azul profundo, um olhar vago que o fez

recordar-se dos olhos sem visсo dos mortos nas batalhas. A pele parecia exangue, mortalmente pрlida. - Rorke? - ela murmurou, por entre os lрbios roxos, congelados. - Nсo tente se mexer! - ele ordenou, aterrorizado. - A criatura…? - Morta! - ele exclamou, brandindo a palavra como uma arma. Ela estremeceu violentamente. - Tive medo… - Nсo hр nada a temer. - Ele suavizou o tom de voz. Acabou, ma chУre. - O tratamento era quase uma carьcia. Ele a puxou para mais perto. - Preciso levр-la de volta para a fortaleza, se julgar que estр forte o bastante para cavalgar. Ela concordou com um gesto dжbil de cabeуa. Ao alto, o falcсo crocitava freneticamente. Muito perto dali, alguжm se aproximava sorrateira e silenciosamente, como

se uno com o vento. A figura imponente de Tarek emergiu dentre as рrvores, a cimitarra empunhada nas duas mсos. Correu o olhar pela clareira e viu o corpo inanimado do javali e o amigo inclinado sobre a bela mulher. Rorke gritou: - Traga meu cavalo! Momentos depois, enquanto Rorke montava, Tarek erguia Vivian gentilmente atж a sela. Ela estava pрlida, o corpo frрgil enrolado nas dobras de seu manto. Um ferimento longo e denteado cortava a extensсo de sua perna do tornozelo atж acima do joelho. Como guerreiro, Tarek sabia que uma Щnica lesсo como aquela poderia ser fatal com a perda de sangue. Se a pessoa sobrevivesse, o membro ficaria horrivelmente aleijado. Tarek ficou mudo, o rosto sжrio, ao enrolar as beiradas do manto em torno das pernas e dos pжs de Vivian, o tecido escuro tingido de sangue.

Rorke aninhou-a contra o calor do prзprio corpo. Com o cheiro do sangue do javali a se mesclar ao sangue humano, o garanhсo remexeu-se, nervoso. Mas Rorke o conteve com a mсo forte nas rжdeas. - Levarei suas armas - Tarek disse ao amigo, quando Rorke girou o animal e rumou para a beira da clareira, na direусo da fortaleza. O olhar vago de Vivian cravou-se pela Щltima vez na clareira. O portal de pedra se fora, desvanecido em meio Я bruma. Seu sangue e o do javali morto se mesclavam num padrсo perfeito, manchando a neve. A criatura estava morta. Fora abatida pela espada de Rorke, e seu corpo jazia imзvel. Contudo, conforme os olhos de Vivian se fecharam e ela voltou seus poderes para o ьntimo, direcionando-os para a fragilidade da carne destroуada, sentiu algo mais terrьvel que a dor lancinante. A criatura da Treva ainda vivia. Movia-se com constРncia pela floresta, espreitandoos por detrрs de cada рrvore e rocha e da cobertura de cada moita.

Um grito ressoou no topo da muralha quando se aproximaram da fortaleza. Rorke e Tarek foram reconhecidos e os guardas apressaram-se a abrir os enormes portшes. Sem diminuir o passo, Rorke incitou o cavalo pelo fosso seco, para a margem oposta e atravжs dos portшes. No pрtio, Rorke escorregou para o chсo, segurando Vivian com firmeza. Seu escudeiro apareceu correndo. - Procure a velha bruxa e a traga atж mim! - Passou pelo escudeiro assustado, que saiu correndo para fazer o que ele lhe ordenara. Rorke carregou Vivian pela entrada, atravessou o grande salсo e seguiu pelo corredor atж seu quarto. Chutou a porta e levou-a para dentro. Deitou-a gentilmente sobre a cama e entсo avistou o escudeiro. - Onde estр a velha?! - gritou. - Estou aqui - Meg o informou, passando por Tarek e o escudeiro e se postando ao lado da cama. - Tem o mesmo poder de emendar ossos quebrados e fechar a carne com o toque da mсo? - ele perguntou. Embora sem visсo, o olhar de Meg cravou-se nele. Ela nсo

se dera conta atж aquele momento que sua senhora revelara o dom muito especial que tinha a ele. Contudo, mesmo sabendo disso, nсo havia desprezo nem dЩvida em sua voz, mas uma aceitaусo do que vira obviamente com os prзprios olhos, embora tais coisas estivessem alжm das crenуas aceitas no mundo real. - Infelizmente, milorde, esse dom pertence apenas a ela Meg admitiu, com um peso no coraусo. - Mas farei o que eu puder. - Farр tudo que puder e mais - ele ordenou, a voz falhando. - Vivian nсo pode morrer! Diante do desespero naquela voz, Meg voltou-se para o normando com uma nova percepусo. Seria possьvel que aquele ousado guerreiro fosse aquele mencionado na antiga lenda? - Farei o que eu puder - repetiu. - O resto ж com ela. Aproximou-se da cama e debruуou-se sobre Vivian, vendo-a com a sensibilidade dos dedos. Tocou a face da sua senhora, os braуos, as mсos e a extensсo do corpo atж a

barra rasgada e ensopada de sangue de seu vestido. Um suspiro fundo e triste escapou dos lрbios finos e os ombros frрgeis vergaram como se ela descobrisse mais do que poderia suportar. - Eis le, mo chroi - murmurou em celta antigo, conforme acariciava a face de Vivian, como se confortasse uma filha adorada. Sua voz tremia de incerteza quando falou novamente. - Farei tudo que eu puder. Rorke distribuiu ordens a seu escudeiro. - Mandarei Mally ajudр-la - disse a Meg. - Nсo! - a velha retrucou, rispidamente. - Ninguжm deverр ficar perto dela. Eu farei isso. Tenho tudo que preciso. Mande os outros embora. Ela sentiu a forуa do olhar incisivo do guerreiro sobre si e, nele, a desconfianуa. Sentiu algo mais tambжm, uma poderosa emoусo tсo crua e angustiada como a que ele sentiria em qualquer batalha. Seria possьvel, pensou outra vez, que aquele cavaleiro normando, um homem mortal com fragilidades humanas, pudesse amar sua senhora?

Ela ouvira os murmЩrios quando ele voltara. Uma grande batalha fora travada na floresta. Com apenas uma espada na mсo, Rorke FitzWarren enfrentara um javali, uma fera enorme e feroz. Mesmo agora, ele tinha o cheiro da morte da criatura sobre si. Seria possьvel? Seria ele a criatura nascida em fogo e sangue que abriria suas asas pela terra, como sua senhora vira em sua visсo? Com uma nova consciЖncia, Meg murmurou, suavizando a voz: - Quando Vivian deslizou para este mundo, foram minhas mсos que primeiro a seguraram. Ela ж como minha prзpria filha. Se quiser que ela viva, precisa deixar-me com ela. ╔ a Щnica maneira. Rorke ordenou a todos que saьssem do quarto. Entсo seu olhar cravou-se em Vivian, estendida na cama que tinham partilhado apenas poucas horas antes. Pela primeira vez, sentiu medo. Medo de que pudesse perder a luz e o brilho. Medo natural que emanavam dela.

- Eu a entrego a seus cuidados, senhora - ele concordou. Mas ficarei aqui. Seja o que for que precisa fazer para salvр-la, faуa! Mas eu nсo sairei. Meg ouviu a firmeza de aуo naquela voz. - Estр bem, guerreiro. Sinto que tem coragem o suficiente para confrontar qualquer inimigo em batalha, inclusive a morte. Mas tem coragem para confrontar a verdade? Nсo importa o que essa verdade possa ser? Com determinaусo, Rorke exclamou. - Jр sabe minha resposta. - Que assim seja, entсo. Peуo apenas uma coisa. - E o que ж? - Nсo importa o que aconteуa, nсo importa o que veja, nсo deve dizer ou fazer nada. - De acordo. - Entсo passe as barras nas portas para que ninguжm possa entrar-instruiu Meg. - Assim que tiver comeуado, nсo pode haver distraушes ou interrupушes. Faуa fogo na lareira e acenda cada vela, colocando vрrias perto da

cama. Eu farei o resto. Meg aproximou-se da cama. Tirou o manto rasgado e o vestido de Vivian. A respiraусo agoniada de Rorke a informou da gravidade dos ferimentos antes mesmo de tocр-los. Ele se recusara a ficar em algum canto do quarto. Ela aceitara, porque nсo havia tempo para discutir. Dentro das dobras do manto, Meg encontrou o pacote de ervas antigas. Aquela essЖncia estranha, pungente, nсo encontrada por centenas de anos neste mundo, a fez descobrir quem a tinha enviado. Ah, Ninian, pensou, a primeira crianуa que eu trouxe para este mundo e mсe desta menina que agora jaz tсo perto da morte. Sentiu de alguma forma que as poушes especiais que recebera pudessem ser usadas para impedir que Vivian morresse. - Talvez haja esperanуa - murmurou, parando apenas uma vez mais quando os dedos tocaram a carne dilacerada. Tomou coragem e comeуou a cantarolar a antiga cantiga celta de encantamento enquanto banhava a sua senhora

com рgua perfumada com ervas, limpando o sangue da ferida. Sua voz tremeu ligeiramente, e entсo ficou mais forte quando ela ergueu o cristal diante de uma vela e entoou as antigas palavras celtas: - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. Houve apenas silЖncio. Sentindo a impotЖncia de sua cegueira que a impedia de ver o cristal conforme o segurava diante da chama da vela, ela comeуou outra vez. - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite! - Sua voz quebrou-se num soluуo. - Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade… Mas foi outra voz que murmurou as Щltimas palavras do encantamento, conforme Vivian balbuciou: - Queimem no brilhante dourado da eternidade. O rosto de Meg iluminou-se de impressionante alegria. E ela apertou as mсos juntas sobre o cristal.

- Minha filha querida! Pensei que a tivesse perdido. Vivian suspirou. Custara quase toda a forуa que lhe restara, mas ela conseguira se concentrar no cristal que Meg segurava nas mсos, e as palavras antigas a tinham despertado. - Meg querida - ela murmurou, como se nсo tivesse visto Rorke. - Traga a vela para mais perto. Meg fez o que ela pediu das sombras ao lado da cama. Rorke observou quando Vivian focalizou o olhar na chama da vela, refletida nas profundezas do cristal azul. E, na expressсo da velha ama, ele viu o aviso silencioso de que nсo devia dizer ou fazer nada. Entсo, a jovem levou uma das mсos ao pescoуo e segurou a pedra, sentindo seu calor ardente queimar como fogo, reacendendo a chama que vivia dentro dela tal como aquela que habitava o coraусo do cristal. Estendeu a outra para a chama da vela. Depois, fechou os olhos. E murmurou as palavras antigas na mesma cadЖncia ritualьstica que Meg entoara, momentos antes. - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto

a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. Rorke viu, fascinado, quando a chama da vela se expandiu e cresceu. Uma corrente de ar. Nada mais. Entсo observou, aturdido, quando Vivian estendeu a mсo para a chama. Meg sentiu que ele iria tentar impedi-la e sua mсo ossuda, forte como aуo, agarrou-o pelo braуo. - Queria a verdade, guerreiro - ela sibilou. - Agora a terр. Mas nсo deve fazer nada. Ou isso significarр a morte de Vivian! Rorke controlou-se, cheio de afliусo como se uma faca fosse cravada dentro dele, quando as labaredas envolveram Vivian. Continuou a olhar, em muda agonia, como se fosse a prзpria morte quando o fogo pareceu consumi-la, atж que teve a certeza de que nсo poderia mais olhar. Ia se afastar quando Meg se recusou a permitir. - VocЖ ж parte disso agora - ela murmurou, pois embora nсo enxergasse, podia sentir tudo que se passava. - Esta

ж a verdade de Vivian. Ela se arrisca muito em revelр-la. Se vocЖ se afastar agora, serр causa de sua morte, tсo certamente como se enterrasse uma espada em seu peito. Rorke continuou a olhar, certo de que enlouquecia. Nсo havia lзgica no que presenciava; nenhuma lзgica que existisse no mundo real. Entсo, forуou-se a ir alжm da loucura. Sentiu o calor do fogo que queimava em torno dela. Com a cabeуa jogada para trрs, uma expressсo radiante na bela face, a cascata deslumbrante de cabelos a se tornar o prзprio fogo, era como se Vivian fosse uma criatura feita de labaredas. Nсo destruьda pelas chamas, mas extraindo vida delas. E descobriu que ela nсo era deste mundo. Ao se levantar da cama, Vivian pousou a mсo sobre o braуo de Rorke, postado ao lado da cama, completamente aturdido. Atravжs da camisa em seu braуo, ela sentiu seu sangue vital pulsar pelas veias, rрpido e forte como se tivesse acabado de travar uma dura batalha. E sentiu algo mais sob os dedos, uma angЩstia tсo grande que

mal conseguiu suportar. Porжm, com uma nova percepусo, captou muito mais. Uma uniсo mais profunda do que a junусo fьsica de seus corpos, quando tinham feito amor. Ele arriscara a vida pela dela e matara a fera, uma criatura da Treva que ainda nсo compreendera. Na mistura de seu sangue de guerreiro com o de Vivian, houvera uma uniсo bem mais profunda que a da carne. Houvera uma uniсo de almas. O mortal se unira ao imortal. Ele agora era parte dela e ela era parte dele. Mas Rorke tambжm nсo tinha compreensсo disso. Vira apenas o que poucos mortais tinham presenciado, e Vivian percebeu que parte daquela angЩstia provinha da luta para compreender o que acontecera. Descobriu isso no olhar ardente com que a fitava. Tentou sentir seus outros pensamentos, mas o elo entre eles ainda era muito novo e frрgil. Descobriu que nсo queria apossar-se deles como poderia fazer facilmente com os outros. Rorke nсo era como os outros. O que quer que partilhassem, deveria ser porque ele permitira de bom grado e se abrira para ela. Sentiu os nervos de seu braуo tensos sob a mсo e, por um

momento, experimentou uma dЩvida tсo penosa que julgou que nсo suportaria se ele pudesse recusar-se a aceitar o que vira. Se Rorke se recusasse, a recusaria tambжm. Entсo deu-se conta da batalha silenciosa que ele travava sem saber o que poderia encontrar sob a mсo, depois daquilo que presenciara. - Nсo estр queimada? - Nсo, milorde. - E os ferimentos? - Curados. Pode ver por si mesmo. - E vocЖ ж real? Nсo ж nenhum espьrito que nсo posso tocar? Como se apenas tocр-la pudesse convencЖ-lo, seus dedos apertaram o pulso de Vivian numa pressсo desesperada que teria sido dolorosa para qualquer outra pessoa. Ela sorriu com doуura. - Pode me tocar.

Atrрs de si, ela ouviu o ferrolho correr, e soube que estavam sozinhos. Como se ainda nсo tivesse se convencido, Rorke puxou-a bruscamente para dentro dos braуos. Sentiu a carne cрlida e o sangue a pulsar sob as mсos, e viu-a corporificada Я sua frente. Apertou-a com forуa contra si, as mсos a se afundarem na cascata dos cabelos, abraуando-a como se julgasse que Vivian pudesse se transformar em fumaуa e desaparecer no ar. Entсo, sua boca pousou sobre a dela num beijo que era ao mesmo tempo terno e desesperado, gentil e ardente, com o desejo a banir qualquer dЩvida que restasse. Ele invadiu-lhe os sentidos, o calor de sua boca a criar um novo fogo que se juntou ao dela e queimou mais forte. - Sim - ele murmurou, deslumbrado. - VocЖ ж muito real. Logo apзs Vivian ter escapado da morte, tinham se unido com uma urgЖncia e um desejo incendiрrio que os consumira. E depois, afastados os Щltimos traуos de dЩvida, o ato de amor despertara uma nova ternura dentro de

Rorke, ao acariciar e afagar cada pedaуo do corpo macio e feminino, com a necessidade de tocar a carne dilacerada que agora se mostrava mais uma vez inteira e flexьvel sob seus dedos. Finalmente, rendera-se Я necessidade de ser capaz de aceitar o que vira. Era uma mulher real e verdadeira a que se deitara com ele, enchendo-o de paixсo. - Conte-me tudo - pediu, quando ela aproximou-se com um cрlice na mсo. Uma perna muito branca e torneada mostrou-se na abertura do manto de pele, livre atж da menor cicatriz. O toque mрgico de cura que fechara os ferimentos de Vivian e lhe salvara a vida trabalhava bem. As portas estavam fechadas. A velha ama se fora. Era meio-dia ou talvez meia-noite. Nсo importava. Nem mesmo Guilherme da Normandia teria recebido uma resposta, caso convocasse seu cavaleiro. Ela estendeu-lhe o cрlice de vinho, os dedos de ambos a se roуarem numa redescoberta do calor ardente que saltava tсo facilmente entre os dois. Com uma graуa fluida

e sensual como uma labareda, que ele agora percebia que era uma parte inerente dela, Vivian ajoelhou-se e depois se sentou nas peles espessas em frente Я lareira. Imaginando o quanto ele sabia sobre as antigas lendas, contou-lhe sobre Ninian e Merlin e a descoberta de seus poderes muito especiais, um legado dos guardiшes da Luz. Falou das Trevas que conspiravam contra as forуas da luz pelo domьnio do reino. Contou-lhe dos outros poderes que descobrira aos poucos e que aprendera gradualmente a usar, inclusive o poder incomum de curar que salvara a vida de Guilherme, e a dela prзpria, horas antes: o poder do fogo. - O fogo ж um dos elementos da natureza. Minha mсe me chama de filha da paixсo, filha do fogo. ╔ como se o fogo queimasse dentro de mim. - Sim - Rorke confirmou, o olhar cravado nela, a voz mais rouca na garganta, cheia de paixсo. - Provei o seu fogo. ╔, creio, a Щnica maneira que eu gostaria de morrer. - Nсo! - ela exclamou, num tom apaixonado. - Nсo morrer, mas viver! O fogo ж o poder da vida dentro de mim. Portanto, tambжm estр com vocЖ agora que nзs nos unimos.

Aconteceu naquele momento em que seu sangue se juntou ao meu na clareira, quando vocЖ enfrentou a criatura. - Uma fera violenta - ele comentou, os pensamentos tumultuados com tudo o que Vivian contara. - Eu nсo tinha certeza de que morreria. - Nсo morreu - ela retrucou, muito sжria. Seu olhar encontrou o dele, cheio de preocupaусo. - Ainda estр viva. A Treva pode assumir muitas formas. Para Arthur, apresentou-se na forma do amigo, cuja traiусo trouxe a derrocada do reino. Eu a vi na forma de um homem que tentou me atacar quando eu passava pelo portal. Quando escapei, ele se tornou um javali. Constatei isso nos olhos da fera. - Que forma assumiu com Merlin? - Foi uma batalha de poder. Primeiro, destruiu Arthur, pois Arthur era como um filho para Merlin e possuьa o coraусo verdadeiro para ser um rei poderoso que teria destruьdo a Treva de uma vez por todas. Quando a Treva nсo conseguiu destruir Merlin, aprisionou-o, impedindo que voltasse ao mundo mortal e usasse os poderes da Luz.

- Mas a Treva nсo sabia que havia outros com os poderes de Merlin - ponderou Rorke - A filha. Como o grande guerreiro e tрtico que era, Rorke via lзgica em tudo que ela lhe contara, o que explicava muita coisa a respeito daquilo que sabia sobre lenda, mito e fato. - Entсo a lenda de Arthur e Merlin ж verdadeira - disse, em tom de aceitaусo. - Sim - ela retrucou. - ╔ verdadeira. Contou-lhe entсo de seu poder de visсo interna, e das visшes que lhe apareciam, a comeуar com a primeira, em Amesbury. De uma criatura nascida em fogo e sangue, a FЖnix a se erguer de um leito de chamas, e do aviso da profecia: Cuidado com a fж que nсo tem coraусo, com a espada que nсo tem alma. Rorke a fitou com uma nova compreensсo. - VocЖ sabia que Guilherme seria vitorioso em Hastings. Ela aquiesceu. - Vi isso… e outras coisas mais. — Que outras coisas viu?

- Vi uma tecelс tecendo uma tapeуaria. Mas o desenho ainda nсo estр terminado. Nсo sei o que significa. - Pode ver meus pensamentos? - ele perguntou. Ela confessou: - Diferentemente dos outros, seus pensamentos estсo fechados para mim. - E isso a perturba. Pode acreditar que eu seja uma criatura da Treva? - Nсo - ela exclamou, com a voz rouca quando ele acariciou-lhe um seio. - Eu saberia. A criatura de minha visсo, a FЖnix que se ergue das chamas, ж uma criatura de fogo e luz, nсo uma criatura da Treva. - E, no entanto, vocЖ nсo pode ter certeza. - Existe um meio. - Diga e eu provarei. - Nсo ж assim tсo simples. Para que eu possa conhecer verdadeiramente seu coraусo, vocЖ precisa abrir seus pensamentos para mim. Nсo sсo apenas seus pensamentos

que conhecerei, mas suas esperanуas, lembranуas e emoушes. Sua prзpria alma estarр desnudada para mim. - Eu nсo a desnudaria para ninguжm mais, minha querida. Pode roubar meus pensamentos, na verdade jр os roubou. E jр tem meu coraусo. Descobri isso esta manhс, quando vi que vocЖ tinha sumido. - Nсo! ╔ perigoso. Se uma pessoa nсo for forte, pode ser destruьda. - Acha que nсo sou forte o bastante para suportar? - Nсo ж isso. VocЖ ж forte, mas a dor ж intensa. Cada parte de vocЖ serр abrirр para mim, como uma ferida. Seu instinto natural serр lutar e, na luta, haverр mais sofrimento, tсo forte e profundo que vocЖ pode nсo sobreviver. Nсo o colocarei em risco assim. Eu nсo suportaria ser a causa de sua morte. - Devo aceitar tudo que vocЖ me contou. Vi seu poder com meus prзprios olhos e nсo existe outra explicaусo. Vi o portal na bruma. Vi seu mжtodo de cura, diferente de qualquer um no mundo mortal. E conheci seu fogo, atж tive certeza de que iria perecer nele. Agora vocЖ me fala de uma grande Treva que procura devastar tudo diante

de si sem que reste nada, a nсo ser uma esperanуa. Disse que, com esse conhecimento acerca de mim, saberр tudo a meu respeito e verр meu verdadeiro coraусo. Mas nсo ж verdade que eu tambжm aprenderei tudo acerca de vocЖ? E nсo poderia haver nesse conhecimento algo a ser adquirido para derrotar essa Treva? Rorke agachou-se no chсo diante dela, em toda a sua gloriosa nudez viril, com tanta confianуa como se envergasse uma armadura de batalha. - Tem medo que eu perca minha alma, Vivian. Mas, na verdade, jр a reclamou para si. Eu morreria por sua causa em qualquer campo de batalha. Nсo estр em suas mсos

dizer sim ou nсo. Estр em meu poder arriscar, se eu quiser - falou e assegurou: - Serр feito! Vivian percebeu que nсo havia nada que pudesse dizer ou fazer para dissuadi-lo. Nem todos eram fortes o bastante para sobreviver Яquilo que deveria fazer. E se ele nсo suportasse a dor que era tanto fьsica como mental? E se fosse a causa de sua morte? Como se sentisse o medo e a dЩvida que a invadiam ele pousou a boca sobre a dela e beijou-a suavemente. - Deve ser feito, minha adorрvel Jehara. Nсo hр outro jeito. Ela concordou com tristeza, os olhos fechados ao respirar fundo, tragando para dentro de si o calor apaixonado de Rorke, unindo sua forуa Я dele. - Sim - murmurou. Entсo, com mais uma respiraусo profunda, afastou-se. - Preciso atrair os poderes da Luz. O fogo deve ser alimentado para que queime com forуa. Todas as velas e tochas precisam ser acesas. Ele concordou. Quando tudo estava feito, voltou e se postou diante dela.

- VocЖ precisa ficar completamente relaxado - ela lhe disse, puxando-o para a cadeira diante da lareira. Quando ele se sentou reclinado na cadeira, o manto de pele enrolado em torno de si, ela o encorajou a tomar mais um pouco de vinho. - Misturei um pз que o ajudarр a relaxar. Nсo deve lutar. Deve entregar-se por inteiro. Ele olhou para o cрlice e entсo, abruptamente, entornou o conteЩdo todo de uma sз vez. - Posso pensar em outras maneiras de relaxar, pois vocЖ tem esse poder bem maior do que qualquer vinho ou poусo, minha cara. - Talvez, mas na verdade exerуo pouco controle sobre eles quando vocЖ me toca. - Uma feiticeira enfeitiуada? Ele a puxou para mais perto. O calor de seu hрlito mesclou-se ao dela. Sua boca roуou a de Vivian com uma ternura agoniada. Mas suas palavras soaram duras. - Eu me rendo a vocЖ, senhora do fogo. Por favor, ela pensou, murmurando uma prece silenciosa ao Deus de Poladouras, permita que o coraусo de Rorke seja verdadeiro. Pois eu nсo poderia suportar ser a

causa de sua morte. Trouxe uma vela para mais perto e colocou-a entre os dois. - Olhe para a chama - instruiu, baixando a voz para que as palavras fossem envoltas em suave entonaусo musical, ao dar inьcio ao encantamento que uniria seus pensamentos. - Concentre-se na chama e nada mais. Veja sua forma, o jeito como gentilmente se agita e se move, todas as cores, o amarelo pрlido na ponta, pelo qual vocЖ pode quase ver atravжs dela, depois o amarelo brilhante, o ouro suave, e finalmente o azul, no coraусo da chama. Rorke suspirou. - Olhe para a chama - disse, suavemente, concentrando o prзprio olhar no centro da labareda. - Veja as cores. Sinta seu calor. Ouуa o som que faz ao derreter. - Pense apenas na chama, feche seus olhos e a veja. Ele obedeceu, fechou os olhos, inclinou a cabeуa ligeiramente para frente e descansou os braуos no apoio da cadeira. Seu corpo relaxou, os mЩsculos poderosos ficaram Я vontade.

Suas feiушes entraram em repouso, aliviadas das fortes emoушes e da mрscara igualmente forte que ele mantinha afivelada ao rosto. Rorke se rendera Я vontade de Vivian. Ela poderia encerrar tudo ali, trazЖ-lo de volta do lugar de doce repouso onde seus pensamentos agora jaziam. Mas ele exigiria a verdade. E ela seria forуada a dizer. Nсo havia outra escolha a nсo ser encontrar a verdade maior que habitava seu coraусo e sua alma. Ainda segurando a vela entre os dois, o frрgil elo da chama agora a conectр-los um ao outro, ela passou os dedos da mсo direita pela ponta da labareda, fortalecendo o vьnculo, avanуando, abrindo um portal para a alma de Rorke. Sentiu a forуa da chama queimar atravжs das veias, procurar e encontrar a chama da vida. Colocou a vela de lado. Voltou-se para Rorke, o fogo a queimar agora internamente, e pousou a mсo ao lado de sua cabeуa, a pressionar gentilmente atж que sentiu o duro contorno dos ossos

sob as pontas dos dedos. Pousou a outra mсo sobre seu coraусo, e depois fechou os olhos. Murmurou as palavras antigas. - Elemento de fogo, espьrito de luz, essЖncia de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade. Sua consciЖncia juntou-se Я dele numa explosсo de violentas cores. Ela sentiu a luta dentro dele para afastр-la, as muralhas de proteусo erguidas durante anos como um escudo sobre o coraусo e alma, encerrando tudo do lado de fora. Enviou-lhe um pensamento, uma lembranуa do momento partilhado no passado recente, a imagem de seus corpos unidos; o terno assalto com que Rorke tomara seu corpo; a entrega fьsica a ele, como agora o persuadia a se abrir e entregar-se, o ardente poder de seus corpos se tornando unos conforme seus pensamentos procuravam se unir aos dele. Entсo, sentiu a Щltima das resistЖncias ceder quando o corpo poderoso parou de lutar fisicamente; e a completa rendiусo, quando a alma de Rorke abriu-se para ela.

Viu-se lanуada num vзrtice de visсo, som e cor, em meio a cada experiЖncia, pensamento e emoусo que ele jр tivera ou possuьra. Era avassalador. As imagens se infiltraram por sua consciЖncia num borrсo ofuscante, fora de controle, com o tormento das emoушes, conforme ele desvendava a alma e o coraусo. Imagens de rostos passavam de relance diante de Vivian. Tarek ai Sharif, o duque Guilherme, Stephen de Valois, a rainha Matilda, o conde, e outras mais que ela reconhecia vagamente e incontрveis que nсo sabiam quem eram. Entсo, as imagens diminuьram seu caзtico bombardeio e se acomodaram numa ordem. Havia imagens de uma batalha feroz e Vivian soube que era a batalha de Hastьngs. Entсo, foi catapultada para o passado na Normandia; o conselho da nobreza em que Guilherme tomara a decisсo de tomar o trono da Inglaterra; os incontрveis encontros com os homens, o sentimento para com Stephen de Valois. como o de um irmсo, a falta de qualquer afeto por Judith de Marque ao levр-la para a cama. Voltou bem mais para trрs, atravжs de incontрveis campanhas militares; a longa amizade com Guilherme da

Normandia; a campanha no Impжrio Bizantino; mais batalhas; a amizade especial com Tarek ai Sharif e o encontro que os unira, uma vida poupada por uma vida salva e um juramento de sangue e de lealdade. Viu um homem que sabia atravжs das lembranуas de Rorke ser seu pai, o conde de Anjou. Viu tambжm Rorke com um rapaz que soube ser seu irmсo mais novo, Philip. Experimentou sua vergonha e sofrimento pelo nascimento bastardo, seu anseio por ser amado como seu meio-irmсo e herdeiro do pai era amado. Vivenciou incontрveis outras experiЖncias de infРncia. Sentiu seu amor incondicional ao irmсo, amor que nunca vacilou ou se transformou em amargura com as crueldades do destino que o fizera nascer um bastardo. Depois, experimentou a dor devastadora da separaусo, os anos duros que tinham se seguido, as incontрveis campanhas conforme ele crescia em estatura e valentia. Depois, a batalha em Antioquia, onde irmсo se reunira a irmсo no campo de batalha. Reviveu a proteусo que dera ao irmсo,

mal acostumado aos rigores da guerra. Os horrores da batalha, a superioridade numжrica do inimigo, a posiусo conquistada, a luta feroz. Vira Philip enterrar a prзpria adaga, bem fundo no peito, tirando a prзpria vida. Philip morrera nos braуos de Rorke. Mas a tragжdia maior jazia no fim da longa jornada, quando Rorke levara o corpo do irmсo para casa, em Anjou, com a acusaусo cruel de seu pai de que fora Rorke que tirara a vida do prзprio irmсo para que Anjou pudesse ser sua. As palavras duras, cruжis, que jamais poderiam ser retiradas, as acusaушes, o desprezo e o зdio do conde que eram como uma espada de batalha a lhe desferir golpes e, finalmente, o banimento. - Saia de minha presenуa! - seu pai vociferara. - Que destino maldito ж esse que faz com que o bastardo viva enquanto meu filho verdadeiro jaz morto e frio? Saia de Anjou e nunca mais volte, pois nсo ж nenhum filho meu! A dor fora intensa, maior que qualquer faca enterrada fundo. Vivian sentiu as lрgrimas que escorriam pelas faces ao mesmo tempo em que experimentava a dor e a

sensaусo de perda de Rorke, todas as esperanуas e sonhos de um rapazinho destroуados e congelados no coraусo de um poderoso guerreiro cuja Щnica falta fora amar demais seu irmсo. Rorke partira de Anjou, jurando que um dia voltaria e a reclamaria como sua, mesmo que o Щnico meio fosse mais derramamento de sangue. Vivian nсo julgou que pudesse prosseguir. E, no entanto, sabia que interromper a conexсo entre os dois agora significaria a morte certa de Rorke. Teria de suportar tudo, atж que soubesse de cada coisa do passado e pudesse entсo fazer a jornada para o futuro daquilo que ainda estava por vir. Vivenciou tudo que se seguiu depois da morte de seu irmсo, ao voltar mais uma vez aos acontecimentos em Hastings. Desfrutou a jornada de Amesbury para Londres, das experiЖncias sensuais da descoberta um do outro, a ardente paixсo de seu ato de amor. E, finalmente, chegou ao javali que fora morto na floresta. Lрgrimas lhe escorreram pela face diante da dor que ele

suportara. Ela lhe pedira que abrisse a alma e Rorke o fizera. Seu coraусo e alma eram verdadeiros. Agora, ela se sentia arrojada irrevogavelmente do passado do que fora para o futuro do que ainda seria. Visшes apareceram. Imagens encheram sua consciЖncia, uma criatura nascida em fogo e sangue, a FЖnix a se erguer das chamas; um grande perigo e rivalidade; a Treva emergente, uma batalha cataclьsmica na qual o futuro do reino estava em jogo; a queda dos antigos reinos; a coroaусo de um rei todo poderoso; os ferozes leшes gЖmeos na insьgnia de um soldado. E, finalmente, os ecos das antigas verdades que Rorke nunca soubera e que ela podia ver somente agora que desvendava todas as coisas que tinham modelado a vida dele. Soltou um grito de espanto quando a verdade se desdobrou. Rorke nascera como primogЖnito, com todos os direitos e herdeiro legьtimo do conde de Anjou e de sua jovem condessa. Mas aquele fora um casamento sem amor. A

jovem condessa, ardente e voluntariosa, odiava o marido. Em seu leito de morte com a febre pзs-parto, ela arquitetara a morte do prзprio filho preferivelmente a tЖ-lo criado por um pai frio e despзtico. A crianуa foi trocada pelo corpo do prзprio filho bastardo do conde, que morrera naquela mesma noite, ao nascer. O conde de Anjou enterrou a esposa e o filho, sem saber da verdade atж muitos anos depois, quando banira o primogЖnito para sempre e perdera o filho mais novo nascido de seu segundo casamento. Rorke dera seu coraусo e sua alma a Vivian. Agora, ela os devolvia, fundindo seus pensamentos mais uma vez aos dele para que ele visse o que ela vira em suas visшes. Sentiu o quanto ele sofria pela pressсo forte do queixo sob a palma de sua mсo e pelo bater desenfreado do coraусo sob a outra. Entсo, viu as lрgrimas que lhe escorriam pelas faces. Gentilmente, muito delicadamente, ela o soltou, retirando-se de suas lembranуas e pensamentos. Ele abriu os olhos devagar. Fitou-a, atormentado pelas antigas tristezas e novas revelaушes. Ela sentiu seus sentimentos conturbados e a

angЩstia, como nunca fora capaz de sentir antes. Cada emoусo abria-se para ela como uma ferida que precisava se curar. - Eu jamais soube! - ele murmurou, o corpo de repente tenso e rьgido como se tentasse fisicamente combater a dor. - Sou filho legьtimo de meu pai! E, por um momento, Vivian sentiu que nсo deveria ter entrado em seus pensamentos nem em seu passado. Que qualquer mentira era melhor que a dor daquela triste verdade. - Perdoe-me! - ela murmurou, os olhos marejados de lрgrimas. - Eu nсo deveria ter partilhado isso com vocЖ. Nсo queria fazЖ-lo sofrer. Ele pousou um dedo sobre seus lрbios, silenciando-a. - Nсo! - exclamou. - A verdade ж a mais suave das dores. Pelo menos agora sei que nсo fui a causa da morte de meu irmсo. Ele prзprio a quis. E quanto a meu pai… - Seu olhar mergulhou no dela, iluminado com um fogo dourado que lhe era prзprio. - A verdade nсo o teria mudado. Mesmo minha mсe preferiu o suave alьvio da morte a continuar a viver com ele. Seus poderes me deram este

consolo, quando tudo o que eu tinha antes eram mentiras. Acariciou-lhe a face, o polegar a secar-lhe as lрgrimas. Rorke levantou-se e ergueu-a como se ela nсo pesasse mais que o ar e carregou-a para a cama. Entre abraуos e beijos, uniram-se mais uma vez, e o quarto reluziu com o fogo da paixсo renovada. Tсo grande era a necessidade um do outro que nenhum dos dois viu as chamas oscilarem e estremecerem. Nem a sombra que espreitava os amantes enrodilhados antes de recuar para os cantos mais distantes, onde continuou a observar e esperar. Capьtulo IX

Para qualquer um alжm de Rorke ou Meg, a recuperaусo de Vivian foi lenta e trabalhosa, como deveria ser depois de um ataque tсo terrьvel. Quando ela saiu finalmente do quarto foi para caminhar devagar e com cuidado, com ajuda da velha ama. Sз o bispo parecia nсo estar convencido pelo jogo que jogavam, a observar Vivian constantemente,

como se soubesse que os ferimentos nсo mais a incomodavam. Porжm como ele poderia saber? Agora, depois de trЖs meses, Rorke se postara atrрs da cadeira onde ela se sentara, nos aposentos de Guilherme, a mсo pousada sobre seu ombro. - A coroaусo serр no dia de Natal! - Guilherme insistiu, ao se encontrar com Rorke e seus cavaleiros de confianуa nos aposentos privativos. - Nсo retardarei mais a cerimЗnia e ela serр realizada na abadia de Westminster! - Londres jр ж sua - disse o bispo. - VocЖ nсo precisa de nenhuma proclamaусo oficial para isso. Nosso exжrcito estр espalhado por toda a Inglaterra. Por que essa impaciЖncia de se ver coroado tсo depressa? Espere atж o verсo - sugeriu. Havia rumores constantes de escaramuуas na distante regiсo norte, que se somavam aos boatos de que os dinamarqueses pretendiam desferir um ataque ofensivo contra a Inglaterra com a intenусo de reclamar o trono inglЖs. Em funусo desses rumores, logo depois da chegada em Londres, Guilherme mandara seu filho, Stephen de Valois,

e seus cavaleiros, juntamente com sir Galant e seus homens, para garantir a seguranуa da regiсo norte contra a ameaуa de invasсo. - Sсo argumentos convincentes - Guilherme disse ao irmсo com um meio sorriso nos lрbios. - Mas hр outra pessoa a quem eu gostaria de consultar. Lady Vivian. - Devo aconselhр-lo, irmсo - interveio o bispo -, a nсo procurar ouvir essa mulher. ╔ saxс e sua lealdade ж зbvia. Ela nсo faz segredo disso. Certamente vocЖ estр brincando com assunto sжrio. - Eu nсo brinco - retrucou Guilherme, de uma maneira que insinuava que o irmсo talvez tivesse ultrapassado os limites. - Justamente porque ela ж saxс, pode talvez ter uma perspectiva diferente. Lady Vivian? Ela sentiu o conforto de Rorke no calor da mсo pousada em seu ombro e naquela percepусo fьsica que parecia se estabelecer tсo facilmente entre os dois. Tambжm sentiu uma advertЖncia sutil. Compreendeu-a muito bem, o sangue falava mais alto, e embora Guilherme reprovasse a intemperanуa do bispo, este ainda era seu irmсo e havia uma lealdade de raьzes fundas.

- O povo da Inglaterra servirр mais prontamente a um rei se estiver ligado a ele por um juramento - disse. - Seu juramento de assumir as responsabilidades da realeza perante o povo, milorde, tambжm marcaria sua intenусo de pЗr fim ao caos. Os saxшes estсo cansados de tanta desgraуa e com o tempo rejeitariam quem fosse a causa disso. ╔ evidente que preferem a garantia de que suas famьlias, seus lares e a Inglaterra mais uma vez haverр de prosperar. Guilherme concordou. - E a cerimЗnia? De novo, Vivian sentiu o aviso mudo de Rorke. - Nсo deveria ser inferior Я coroaусo de Harold aos olhos de todos os saxшes - ela ponderou, para depois acrescentar -, e normandos e quaisquer usurpadores estrangeiros como um claro sinal de sua intenусo de governar bem e com firmeza. - Hр perigos - Guilherme a relembrou. - Se eu for assassinado, dificilmente governarei, afinal. - Se milorde FitzWarren pЗde defendЖ-lo nas ruas de

Londres - ela sugeriu -, entсo certamente poderр protegЖlo dentro da abadia. - Cavaleiros armados na abadia - ponderou Guilherme. Seria extremamente incomum. - Eu protesto! - exclamou o bispo. - Soldados armados na abadia? ╔ sacrilжgio! O papa ficaria horrorizado com tais medidas. Pode atж mesmo retirar seu apoio a vocЖ diante dessa atitude. ╔ ultrajante. Nсo posso tolerar! - Pode ser feito? A expressсo de espanto de Rorke era evidente. Encarou o comandante e viu sua perspicрcia. - Sim, milorde - disse, hesitante. - Os guardas esconderiam suas espadas para que ninguжm tivesse ciЖncia de que estariam armados. Mas isso pode abrir a porta para a censura do papa. - O papa estр em Roma - Guilherme ponderou, com frieza. - Vai funcionar. A coroaусo acontecerр na abadia de Westminster no dia de Natal! VocЖ tomarр todas as precauушes para que nсo haja derramamento de sangue.

- Sim, milorde. - Que comecem os preparativos. Mande chamar o arcebispo de York. Diga Яquele sapo hipзcrita que serei coroado na abadia de Westminster. - Ele pode se recusar - o bispo avisou. - Jр disse isso. - Entсo, certifique-se de que ele nсo recuse! Logo depois, Vivian retornou ao quarto que partilhava com Rorke. Sentia-se inquieta e apreensiva. Algo estava prestes a acontecer. Ela podia sentir. Quando as labaredas cresceram, olhou para o fogo e entoou as palavras antigas. A visсo veio lentamente, a se remexer no coraусo das chamas. Ela viu uma terra estranha e fria, montanhosa e varrida pelo vento, e percebeu que era o norte distante. Viu cavaleiros e soldados sob a bandeira de Guilherme, e outros soldados que nсo reconheceu. Viu uma batalha com Stephen de Valois e sir Galant na vanguarda. Entсo viu sangue e morte, um cavaleiro corajoso que caьa do cavalo, trespassado por uma lanуa. O cavaleiro amontoou-se no chсo, a bandeira do duque Guilherme agarrada nos dedos quase sem vida. Enquanto

a batalha continuava ao redor, seus companheiros correram para seu lado, pegaram a bandeira e procuraram erguЖ-la ao alto mais uma vez. O cavaleiro que portava a bandeira era Stephen de Valois. Rorke encontrou-a de joelhos, diante da lareira, as lрgrimas a escorrer pelo rosto, os punhos fechados numa raiva impotente diante do dom que lhe permitia ver mas nсo impedir o que visualizava. - O que foi? - Rorke estava de imediato ao lado dela, seus braуos a envolvЖ-la com afliусo. - O que aconteceu? Nсo estр bem? Ela contou a Rorke a sua visсo, da batalha e das mortes. As prзprias emoушes de Rorke se uniram as suas, daquela maneira Щnica que agora os ligava e vinculava tсo profundamente. Sentiu-lhe a tristeza, experimentou todas as lembranуas partilhadas com o irmсo, e percebeu que a dor era profunda. E, junto com a tristeza, sentiu a enorme preocupaусo para com Stephen de Valois, de quem gostava como de um irmсo mais novo. - Stephen estр bem - ela lhe assegurou.

Um medo crescente comeуou a dominр-la quando sentiu a Treva muito perto, e se recordou do aviso de Merlin de que o mal tentaria destruь-la a qualquer momento. Mas onde ou quando, ela nсo sabia. Mais tarde, ao se encontrar com Guilherme, Rorke lhe contou que havia boatos de um confronto na regiсo norte do paьs. Mais que isso ele nсo poderia dizer, pois embora o duque tivesse passado a confiar aos conselhos de Vivian, tinha que se acautelar contra o bispo e, conseqЧentemente, ele preferiu nсo falar das visшes. Matilda, duquesa da Normandьa e esposa de Guilherme, chegou trЖs dias antes da coroaусo. Estava pesada, no final da gravidez, e a travessia do Canal fora difьcil. Mesmo assim, era uma mulher cativante e de vontade forte e, no momento em que Vivian viu os dois juntos, compreendeu porque Guilherme banira Judith de Marque de seus aposentos. Como muitos de nascimento real, ela era uma mulher para quem houvera poucas opушes. Bem-educada, voluntariosa, havia

apenas dois caminhos a tomar, a Igreja ou um casamento vantajoso. O dia de Natal amanheceu brilhante e claro. A coroaусo fora anunciada com bastante antecedЖncia e a notьcia se espalhara por toda a Inglaterra. A nave da abadia de Westminster estava superlotada de saxшes e normandos. Guilherme e Matilda ajoelharam-se diante do imenso altar. Centenas de velas estavam acesas, a luz pрlida a brilhar profusamente pelas paredes de pedra que Eduardo construьra em seu reinado, anos antes do infeliz Harold, que morrera em Hastings. Para o observador casual, a cerimЗnia sem dЩvida parecia grandiosa e auspiciosa, com toda a nobreza em suas melhores tЩnicas e insьgnias, os normandos todos adornados com os mais belos mantos, a despeito do calor dentro da nave. Mas os normandos sabiam, e talvez uns outros poucos sentiam, que os mantos escondiam bem mais que a mera elegРncia. Ocasionalmente se via de relance um luzir de aуo das espadas e machados de guerra carregados de

lado, desembainhados e prontos, caso houvesse qualquer sinal de problema por parte dos barшes saxшes e seus cavaleiros. Na abadia de Westminster, as palavras da cerimЗnia de coroaусo foram pronunciadas duas vezes, uma em inglЖs saxсo e outra em francЖs, diante da congregaусo reunida. - Abenуoado por Deus, em concordРncia com seu pacto Sagrado, e em nome de Seu Filho, Jesus Cristo - a voz do arcebispo de York entoou os antigos ritos ingleses com os quais Guilherme insistira, a ressoar alta e clara, embora um pouco perpassada de nervosismo, pela nave da abadia, em Westminster. A voz do dignitрrio da Igreja tremeu visivelmente, e Vivian sentiu sua recusa em pronunciar as palavras cruciais que deveriam se seguir. Rorke postou-se ao lado dele e, depois de um leve cutucсo, o arcebispo apressouse a proclamar: - CorЗo a Guilherme I, rei de Inglaterra, em nome do papa, pela graуa de Deus e sua lei sagrada. Sua mсo tremia tanto quanto a voz ao abaixar a coroa de ouro sobre a cabeуa de Guilherme. Vivian sentiu como se um calafrio percorresse a nave, a

despeito das centenas de pessoas comprimidas juntas. As velas no altar oscilaram violentamente, ameaуando se extinguirem e deixar a nave em completa escuridсo. Mais uma vez ela ouviu as palavras da antiga cerimЗnia, ao serem pronunciadas para Matilda, e uma coroa menor foi colocada na cabeуa da nova rainha. O arcebispo de York entсo declarou, com imensa relutРncia na voz. - Levante-se, Guilherme I, rei de Inglaterra. Brados de vivas se ergueram entre a congregaусo normanda. Acima de tudo, o alьvio inundou a abadia. Guilherme era agora rei de Inglaterra. A um sinal, os homens de Rorke e Guilherme formaram uma falange armada em torno do rei e da rainha, para todas as aparЖncias uma escolta real elegantemente vestida que apenas abria caminho para seu monarca. Mais soldados se enfileiraram nos degraus do lado de fora da igreja. Vivian pousou a mсo sobre o braуo de Rorke. - O que ж? - Rorke sentiu a afliусo que a perpassava. -

Sentiu alguma coisa? Hр perigo? - Sim. Mas nсo aqui. - Seu olhar triste encontrou o dele. Stephen de Valois voltou a Londres. Rorke deu ordens a seus homens para escoltarem Guilherme de volta Я fortaleza sem demora. Mesmo assim, a procissсo tomou quase uma hora para chegar Я fortaleza. As pessoas enchiam as ruas numa atmosfera de celebraусo contida que parecia mal controlada e ameaуava se tornar violenta a qualquer momento. Tal como Vivian previra, Stephen de Valois esperava por Rorke nos portшes da muralha da fortaleza. - Nсo houve nenhum indьcio - explicou Stephen. - Meus homens nсo viram nenhum sinal da presenуa inimiga. Entсo estavam sobre nзs. Surgiram do nada. Guilherme ouviu com uma expressсo muito sжria. - E a bandeira que levavam? - Nenhuma foi vista. - Por Deus, rapaz! Sabe alguma coisa desses ataques, alжm de que teve quase duzentos homens ou aleijados ou mortos?

- Tenho isto, milorde! Nсo portavam nenhuma bandeira Stephen vociferou, zangado. - Meus homens confirmarсo. Todos os que podiam se locomover fugiram. Deixaram para trрs este machado de guerra. Tem a marca do dinamarquЖs, Canuto. - Canuto da Dinamarca - Rorke disse, pensativo. - A arma ж dinamarquesa. - Virou o machado de um lado para outro, examinando-o cuidadosamente. - E nova da forja. A arma de um jovem guerreiro, talvez. Voltou-se para Stephen. - Lembra-se de algo mais sobre o ataque? Como caьram sobre vocЖs? De vрrias direушes ou apenas em uma? Estavam montados ou a pж? Foram recuperadas outras armas? - E continuou com incontрveis perguntas mais que tinham o poder de tornar a situaусo menos tensa e, ao mesmo tempo, trazer informaушes valiosas sobre o ataque. Os escudeiros trouxeram comida e bebida, pois nem Stephen nem os que tinham voltado com ele tinham comido alguma coisa a nсo ser pсo seco e рgua durante a longa

viagem de volta. - Gostaria de seu conselho, senhora - disse Guilherme, quando Vivian pediu permissсo para sair, pois jр era tarde. - Aprendi a valorizar suas palavras. O que me diz desses invasores dinamarqueses? - O machado que Stephen de Valois trouxe com risco da prзpria vida parece confirmar o fato. Nсo precisa de meu conselho, milorde, pois creio que jр tomou sua decisсo. Ele concordou. - Obrigado, senhora. Faz-me recordar que posso ser descomedido em alguns assuntos. - Sim, milorde - ela respondeu com absoluta diplomacia e um breve olhar de soslaio para Stephen. - Assim como todos podemos ser, Яs vezes. - Quando encontrar minha rainha, transmita-lhe minhas mais gentis preocupaушes, pois receio que se passarсo muitas horas antes que eu possa mesmo fazer isso. Era quase dia claro quando Rorke finalmente retornou ao quarto. O fogo na lareira fazia longo tempo morrera. Ele se moveu em meio Яs sombras, silencioso, ajoelhou-se

diante da lareira e alimentou o fogo com lenha nova. Vivian aproximou-se, segurando um manto de pele em torno de si para se proteger do frio do quarto, um frio que doьa em seus ossos com a premoniусo daquilo que estava por vir e de coisas desconhecidas que nсo conseguia divisar. - Guilherme ordenou que partьssemos para a regiсo norte Яs primeiras luzes - disse ele, com extrema seriedade e sem erguer os olhos. Entсo, voltou-se para fitр-la. - VocЖ previu isso. Viu mais alguma coisa nas chamas, Jehara? - Vejo uma criatura nascida em fogo e sangue. Receio que haja mais morte, mas de quem, nсo consigo enxergar. E esse ж o receio maior. Seu olhar torturado procurou o dele e ela pousou a mсo na face de Rorke, onde os mЩsculos do queixo saltavam sob a marca de uma cicatriz que o deixava ainda mais belo. - Cuidado com a fж que nсo tem coraусo, com a espada que nсo tem alma-repetiu as palavras profжticas murmuradas naquele dia, em Amesbury, quando vira pela

primeira vez a criatura nas chamas. Ao pousar a mсo sobre a dela, Rorke voltou a cabeуa, os lрbios a roуarem a palma de Vivian. - VocЖ ж minha fж e meu coraусo, senhora. Com sua visсo a guiar-me, nсo falharei. As lрgrimas queimaram seus olhos quando ela se atirou nos braуos do guerreiro com uma afliусo descontrolada, o manto de pele a resvalar para o chсo conforme ela o envolvia pela nuca, sua boca a procurar a dele com uma avidez desesperada, uma Рnsia infinita de provar e sentir a forуa e o calor do amado. Deitaram-se nas peles e se uniram numa violenta conjunусo que deixava evidente toda a incerteza que jazia logo alжm do amanhecer. Os cavaleiros e soldados de Guilherme enchiam o pрtio em meio ao ruьdo de ordens gritadas, o tinido de arreios e o lampejo fosco de espadas e lanуas sob um cжu plЩmbeo. Centenas mais aguardavam alжm das muralhas, tendo os preparativos sido feitos durante toda noite, nos acampamentos

armados que se enfileiravam ao longo do rio TРmisa. O rei estava determinado a liderar seu exжrcito. Nenhum argumento de Rorke ou qualquer de seus cavaleiros pudera dissuadi-lo. Alguns cavaleiros jр estavam montados, fazendo os ajustes finais nas armaduras. Escudeiros corriam ao redor, entregando sacos de provisшes para a jornada, uma cavalgada de quatro dias para o norte. Stephen de Valois aproximou-se de Rorke, as feiушes tensas de raiva e frustraусo. - Eu gostaria de cavalgar com o senhor, milorde - pediu, quando Rorke montou o cavalo. - Para os diabos com o que meu pai diz! Ele me julga um covarde! Rorke inclinou-se para pousar a mсo no ombro do jovem cavaleiro. - Ele tambжm ж seu rei - relembrou a Stephen. - E nunca se falou em covardia. - Mas ele pensa - Stephen esbravejou. - ╔ pior. Se tivesse falado com franqueza, eu o desafiaria por causa disso. - Ele pensa em sua seguranуa, Stephen - Rorke explicou, gentilmente. - VocЖ foi ferido na batalha - Apontou para a

faixa na abertura do pescoуo da armadura de Stephen. Vivian cuidara de um profundo corte de espada que quase seccionara o braуo do ombro. Ele cavalgara durante trЖs dias com o braуo quase inЩtil preso do lado com uma tira de arreio. - Tenho outra mсo boa - Stephen argumentou com a impetuosidade da juventude. - Posso empunhar um machado de guerra. - Enquanto segura as rжdeas do cavalo com os dentes? perguntou Rorke, e continuou, antes que Stephen pudesse discutir. - VocЖ precisa se recuperar e manter a fortaleza para seu rei. - Ele deixa meu tio para proteger o trono - Stephen bufou, com desprezo. - O bispo se julga um guerreiro capaz - Rorke se atreveu a dizer em voz alta. - Mas usa o medo da santa cruz com mais eficiЖncia. Se houver problema em Londres, ж preciso que haja alguжm que fique para enfrentar o desafio - continuou, com uma alusсo oculta e, depois, emendou - e hр um favor que eu nсo gostaria de pedir

a ninguжm mais. - Qualquer coisa, milorde - Stephen retrucou, sem hesitaусo. - Gostaria de pedir que proteja a sra. Vivian. Eu nсo confiaria a seguranуa dela a ninguжm mais. - Sim, milorde - concordou Stephen. - Eu a protegerei com minha vida. - Rezo para que nсo chegue a tanto. Ela e Stephen se entreolharam. Vivian sentiu o turbilhсo interno do rapaz, e percebeu no entanto que ele manteria a palavra dada a Rorke, mesmo ante a obediЖncia ao rei. A ordem de partida correu entre as colunas de cavaleiros montados e soldados, parecendo aquele dia em Amesbury, um momento pesado sob a chuva ligeira que comeуava a cair. Rorke inclinou-se na sela, a mсo a deslizar pelos cabelos de Vivian, e desatou-lhe a fita de cetim malva da tranуa.

- Eu a levarei como uma parte sua comigo, senhora. Ela tirou a fina corrente de prata do pescoуo e colocou-a nele, o cristal azul a reluzir com a luz interna naquele dia tenebroso. - Perigos desconhecidos o aguardam - disse, a voz a falhar, - Mantenha a pedra consigo o tempo todo. Enquanto a usar, haverр um elo entre nзs, minha FЖnix, que nсo pode ser quebrado. Os dedos de Rorke se fecharam sobre o cristal como se fosse a jзia mais preciosa da terra. - Atж eu voltar, manterei esta pedra perto de meu coraусo, senhora, como a guardo dentro dele. Vivian correu para dentro da fortaleza real e subiu as escadas atж a torre de vigia mais alta. De lр, com a chuva a escorrer por seu rosto e a se misturar Яs lрgrimas, ela ficou a observar aquela coluna escura, como uma longa fita, a serpentear e se afastar pelas estradas de Londres. Estendeu-se por todo o caminho atravжs da cidade, atж que a escuridсo da tempestade fechou-se em torno e ela nсo os pЗde ver mais.

- Possa todo o poder da Luz ir com vocЖ, meu amor murmurou. Cavalgaram para o norte durante quatro dias, seguindo uma rota diferente porжm paralela a que Stephen e seus homens tinham percorrido, como precauусo contra um ataque dos invasores. Batedores avanуaram para procurar sinal dos dinamarqueses. └ noite, faziam acampamentos frios sem fogueiras que pudessem indicar sua posiусo. Durante o dia, cavalgavam duro para chegar Я costa norte, ao local do ataque. Na manhс seguinte ao quarto dia, levantaram acampamento antes das primeiras luzes surgirem no horizonte. Embora parecesse impossьvel, o dia amanheceu ainda mais sombrio que o anterior, com uma imensidсo de neve pelas charnecas escocesas. Pelos cрlculos, deveriam encontrar o acampamento de Stephen pelo meio-dia. Ele fora forуado a abandonar ali duas dezenas de homens seriamente feridos. O escudeiro de Rorke levava sacos de remжdios

que Vivian preparara. Encontraram o que restava do acampamento menos de duas horas mais tarde. Nсo havia fogueiras, apenas os restos enegrecidos de carvшes de vрrios dias e vрrias formas amontoadas sob o manto de neve. Tarek foi um dos primeiros a desmontar. Cutucou gentilmente uma das formas curvadas com a ponta da bota. Um empurrсo mais firme, virou-a para revelar o corpo de um soldado. As outras foram viradas tambжm e mostraram que todos os soldados que Stephen deixara para trрs estavam mortos. - Esta fogueira estр apagada faz dias - Tarek disse, enfurecido. - Devem ter sido atacados logo que Stephen partiu. Guilherme olhou para o acampamento com desgosto, suas feiушes torcidas de fЩria. - Quero a regiсo costeira vasculhada, cada aldeсo, camponЖs e fazendeiro interrogado. Os homens que fizeram isso irсo pagar. Resolvido a nсo se arriscar a ser pego como Stephen fora

com seus homens todos sob um comando, Guilherme dividiu seu exжrcito em trЖs guarniушes e cada uma seguiu um curso determinado que os levaria ao longo da linha costeira, uma ao norte, outra ao sul, e a terceira ao interior no caso de os invasores dinamarqueses terem ingressado naquela direусo. Cavaleiros deveriam manter os trЖs contingentes em constante comunicaусo no caso de um ataque. Rorke e Tarek sentaram-se ao redor da fogueira naquela noite. O acampamento estava fortemente guardado, com os homens de Rorke posicionados ao longo do perьmetro, e ainda outro perьmetro de guardas. Era algo que aprendera com Tarek ai Sharif: sempre esperar o inesperado. - Estр pensativo, meu amigo - disse Tarek. - Algo o preocupa. - Os cavalos. Quatro vintenas completas seguiram para o norte. Metade desse nЩmero voltou para Londres. Os traуos que vimos eram de pelo menos duas vezes esse tanto e feitos depois daqueles dos homens de Stephen.

O olhar de Tarek se estreitou ao comeуar a compreender o rumo dos pensamentos de Rorke. - Os atacantes estavam montados. - Cavalos trazidos em navios? - Guilherme trouxe cavalos da Normandia - Tarek apontou para as prзprias montarias amarradas ali perto. - Pelo canal estreito. Aqueles invasores tinham de cruzar centenas de milhas de mar aberto. No entanto, nenhum bote foi visto pelos homens de Stephen. Os atacantes estavam a cavalo, e, no entanto, os dinamarqueses nсo sсo conhecidos por sua condiусo de cavaleiros nem por soldados montados. E depois hр isto aqui. - Pegou a faca do cinto e lanуou-a no chсo perto de onde Tarek se sentava. Ela enterrou-se no chсo, o cabo esculpido a luzir sob a luz do fogo. Tarek pegou-a e revirou-a entre os dedos. - Que soldado deixaria para trрs esta arma? Especialmente uma tсo bem-feita? E o machado de guerra que Stephen encontrou? - Nenhum soldado deixa suas armas enquanto tiver um Щltimo fЗlego, pois podem significar a diferenуa entre a

vida e a morte um outro dia. O que quer que eu faуa? - Um exжrcito deste tamanho ж visto facilmente. Parta antes das primeiras luzes do dia. Terр de viajar com trajes bem mais simples que nсo sejam notados com facilidade. Leve apenas sir Guy com vocЖ. Ele estava aqui com Stephen; conhece esta terra hostil. - Minha sensaусo ж que estamos sendo observados. VocЖ precisa encontrar os vigias. Sз entсo poderemos saber a verdade dos dinamarqueses com cavalos, dinamarqueses que nсo cavalgam e que sсo tсo descuidados com suas armas que deixam para trрs como um rastro de guia. Tarek sorriu, os dentes faiscando nas feiушes bronzeadas. - Farei qualquer coisa se isso significar deixar este lugar gelado e pouco acolhedor o mais rapidamente possьvel. Eu os encontrarei antes que me encontrem. Partiu bem antes do primeiro clarсo da alvorada, seguindo sir Guy. Rorke nada disse a Guilherme. A ausЖncia de dois homens, um dos quais viajava segundo a prзpria vontade, provavelmente nсo levantasse questшes que, por enquanto,

Rorke nсo queria que fossem feitas entre o resto dos homens, ou pelo rei Guilherme. Tarek descobriu que aquela terra fria e hostil era como o deserto e tambжm tinha seus segredos verdejantes. Na manhс do segundo dia, descobriu um lugar assim, depois que ele e sir Guy se separaram, cada um a seguir um caminho pela trilha da montanha. Parou para dar рgua Я жgua numa pequena lagoa. O vale era abrigado do vento ao alto, entre colinas. Tarek esperou atж que a жgua tivesse saciado a sede e se sentou Я beira d’рgua. Era fim de tarde e o sol irrompia por entre as nuvens. A рgua era lisa como vidro, quebrada apenas pelas ondulaушes feitas pela жgua, ao beber. O calor do sol na superfьcie fria provocava uma nжvoa que comeуou a subir e a espalhar-se pela рgua e pela margem. A jovem surgiu do nada, esguia e graciosa como uma corуa, e tсo assustada quanto uma, ao encontrр-lo ali. Se tivesse brotado de uma abertura da terra, Tarek nсo poderia ter ficado mais surpreso. Seu primeiro instinto foi pegar o punhal. O segundo foi

pensar que a жgua nсo a sentira. Mesmo agora as orelhas do animal simplesmente se agitavam para trрs e para frente como se ela reconhecesse um ser que nсo representava nenhuma ameaуa iminente. Tarek saltou em pж, o cabo do punhal fechado com firmeza na mсo e apontado para aquela adorрvel intrusa. E ela era, realmente, adorрvel. Tinha o rosto em formato de coraусo e a pele rosada. O nariz era pequeno e delicado acima do “O” surpreso de uma boca deliciosamente cheia, de lрbios cor de rubi. O queixo era tambжm pequeno, firme. E havia o verde intenso daqueles olhos, tсo verdes como o musgo aveludado que se agarrava Яs pedras lavadas pela рgua. A princьpio parecia nсo mais que uma crianуa, miЩda, pрlida e esguia. Mas ela se voltou, e Tarek viu o contorno alto dos seios fartos debaixo das dobras do fino manto de lс. O capuz do manto caьra para trрs, por sobre os ombros, revelando um forro de cetim verde tсo requintado como a lс e tсo espantoso como a cor daqueles olhos, e tambжm deixando Я mostra uma rica cascata de cabelos da cor da luz do sol atravжs da bruma.

Pensamentos loucos, improvрveis, encheram a mente de Tarek, enquanto ele imaginava se o restante daquele ser era tсo luminoso, pрlido e perfeito como as feiушes e as mсos delicadas que agarravam as dobras do manto. E, mais improvрvel ainda, como seria possuir tal criatura, que parecia nсo ser deste mundo, mas feita de raios de sol e de bruma, e da prзpria natureza verdejante em si. A mсo esguia ergueu-se, num aviso. E ela olhou outra vez por sobre o ombro. - Precisa deixar este lugar imediatamente. Nсo ж seguro. A voz era tсo delicada como a bruma, quase sem fЗlego. As palavras tinham um sotaque estranho, embora fossem em inglЖs. - Nсo hр tempo. Eles logo estarсo aqui. - Quem estarр aqui? Aquele olhar de esmeralda voltou-se para ele. - Os homens que procura. Estсo muito perto e hр um grave perigo. Precisa avisar os outros ou serсo todos mortos. Ele a fitou, estupefato.

- Como sabe disso? - Eles estсo na trilha ao alto. Estavam esperando por vocЖ. Se nсo for embora agora, ficarр encurralado e impossibilitado de escapar. - Se esperam ao alto, nсo posso seguir pela trilha. - Hр um outro caminho por trрs da рgua e atravжs das rochas. Nсo pode cavalgar por ele, mas pode seguir andando. Com um outro olhar para cima, Tarek perguntou: - O que sabe a respeito desses homens? - Sсo aqueles que atacaram e mataram os soldados. - O olhar da jovem cravou-se nas colinas. - Precisa ir depressa. - E quanto a vocЖ? - Estas colinas sсo meu lar. Conheуo-as bem. Nсo me encontrarсo. - Se aqueles homens sсo como vocЖ diz, nсo gostaria que vocЖ ficasse para trрs. - Teme pela minha seguranуa?

- Como temeria por uma jзia rara sem preуo. Os olhos verdes se escureceram atж assumir o azul-esverdeado da рgua. - VocЖ tem algo diferente e suas palavras sсo estranhas. Nсo ж um homem como os outros. - Eu me chamo Tarek ai Sharif. Meu lar fica muito distante daqui. E vocЖ, qual ж seu nome? Ela pareceu prestes a contar-lhe quando se ouviu um som no alto da colina. Os inimigos, cansados de esperar pela volta de Tarek, tinham decidido mudar de estratжgia. - Por favor, guerreiro moreno, vocЖ precisa ir depressa. Tarek saltou para a sela da жgua рrabe. Inclinou-se e pegou a mсo delicada da jovem. Como sabia que seria, a pele era como o mais fino cetim contra a sua. Ela fitou a mсo bronzeada que se fechava possessivamente sobre a sua. E pareceu aturdida. - Vр! Agora! - Arrancou a mсo do aperto e apontou para a lagoa. - Atrрs da cascata, e pelas pedras - repetiu, dando um tapa nos flancos da жgua. A montaria saltou para dentro da lagoa rasa e estacou

quando Tarek puxou as rжdeas. Porжm, quando ele se virou na sela, a jovem sumira. Nсo havia traуo dela na beira d’рgua, na margem, nem na ladeira da colina. Ela se fora, a bruma a se revolver no lugar onde ela estivera apenas momentos antes, e nada alжm de raios de sol e nжvoa. Tarek incitou a жgua pela lagoa na direусo da cascata. A passagem estava justamente onde ela dissera que estaria, uma abertura entre as pedras com espaуo suficiente para um homem passar puxando seu cavalo. Atravжs do vжu prateado da queda d’рgua, Tarek olhou para trрs mais uma vez. A cascata caьa num poуo que, por sua vez, alimentava a lagoa, abaixo. A superfьcie da lagoa estava novamente calma, a nсo ser por uma ondulaусo que parecia afastar-se das pedras. Entсo ele viu um gracioso pрssaro a deslizar lentamente pela рgua. Era esguio, de pescoуo longo e de penas de um pрlido prateado. Parecia flutuar em meio Я bruma. Virou a cabeуa em sua direусo e, por um momento, ele poderia

jurar pelos livros do Profeta que o fitava como se soubesse que ele estava ali. Tarek ergueu os olhos novamente para a colina. Os cavaleiros desciam rapidamente para a lagoa. E quando ele olhou para a рgua outra vez, o pрssaro sumira. Tambжm nсo levantara vЗo. Com uma sensaусo de urgЖncia a dominр-lo, Tarek puxou a жgua atravжs do vсo entre as rochas. Havia uma subida ьngreme a escalar, escorregadia de рgua, mas ele por fim chegou ao fim, para descobrir que estava agora acima da lagoa e dos cavaleiros que pretendiam encurralр-lo. Montou a жgua e pensou na bela moуa que vira e desejou que estivesse a salvo. Estava atrasado para o encontro no local combinado, mas sir Guy o aguardava. - Hр cavaleiros a nсo mais que um quilЗmetro daqui Tarek informou. - E mais deles para atacar a coluna de Guilherme. - Como sabe disso?

- Encontrei um morador das Terras Altas que falou sobre isso. - Sir Guy nсo iria acreditar se Tarek lhe contasse a verdade. - Uma velha que mora nas montanhas. Avisou-me dos cavaleiros e falou do ataque. Viu a emboscada aos homens de Stephen. Guilherme e seus homens vсo cair numa armadilha. - Entсo precisamos encontrр-los com toda a pressa. Rorke incitou o cavalo com pressa ao rumar de encontro a um de seus homens que tinha acabado de chegar. Ainda nсo havia notьcias de Tarek ou sir Guy. Quatro outros tinham deixado de voltar. E Guilherme dividira seus homens em trЖs colunas afastadas demais para obter um bom resultado no caso de um ataque de surpresa por uma grande forуa. Tudo isso o deixava com uma sensaусo de profunda inquietaусo. - O que tem a informar? - perguntou, com secura. A expressсo do soldado era sжria. Estava com Rorke fazia muitos anos e era um veterano de vрrias campanhas. - Champlain e Dulonges. Rorke conhecia bem aqueles homens. Eram dois dos quatro que ele enviara como batedores na tarde do dia

anterior. - Estсo mortos, milorde. Logo adiante do acampamento de ontem. Nзs os encontramos no mato, com as gargantas cortadas. Rorke praguejou. - Nem foram alжm do acampamento! Por Deus, preciso ter respostas e nenhum homem morto a mais! VocЖ ficarр conosco. - E quanto a Tarek ai Sharif e sir Guy? - Terсo de nos encontrar. Nсo podemos ficar aqui. Tarek encontrou-os na borda da mata. O amigo estava perto da coluna de Guilherme. - O inimigo espera logo adiante, num lugar chamado Brecon. Sсo os mesmos que atacaram os homens de Stephen. - Tem certeza disso? - Absoluta, meu amigo. Encontrei os soldados muito perto daqui. O aviso fora dado com tempo suficiente para se

prepararem. Os homens de Guilherme se juntaram aos de Rorke, e a batalha foi desfechada numa baixada logo depois da floresta. As forуas divididas rodearam e fecharam os invasores num cьrculo. Foi uma luta sangrenta. O aуo tinia contra aуo. Cavalos relinchavam e caьam, levando junto os cavaleiros. Por duas vezes os invasores investiram contra o contingente armado que lutava ao lado de Guilherme. Por duas vezes foram rechaуados, bastante enfraquecidos, atж que o Щltimo homem caiu sob a espada de Rorke. Rorke saltou do lombo do cavalo e empurrou o capuz de lс que escondia as feiушes do inimigo. Nсo queria acreditar no que via. O soldado morto nсo era um dinamarquЖs afinal. Era Vachel. - Por Deus! O que significa isso? - exclamou Guilherme. - Significa - disse Rorke, o coraусo a se transformar numa pedra de gelo - que alguжm planejou a sua morte, milorde. E receio que isso possa nсo ser o pior. Significa traiусo. Este homem devotava lealdade a apenas uma pessoa.

- Meu irmсo - a voz de Guilherme estrangulou-se na garganta. - A rainha! E meu filho nсo nascido! Rorke, contudo, sentiu que o perigo era ainda bem maior. Vivian falara de seus receios com relaусo Я Treva. Por duas vezes antes, tentara destruь-la. E ela lhe dera o cristal para proteусo, o que a deixara perigosamente vulnerрvel. Era ela quem precisava de proteусo agora. E urgentemente. Mas mesmo se cavalgassem sem parar e os cavalos resistissem Я jornada, ainda assim levaria dois dias inteiros para chegarem a Londres. Capьtulo X

Vivian atiуou o fogo na lareira contra um frio penetrante que nenhuma quantidade de lenha parecia capaz de dissipar. Estremeceu ao puxar as beiras do xale em torno dos ombros. Deixara o quarto da rainha um pouco antes, depois de lhe dar um chр calmante para que pudesse descansar apзs uma noite insone com o filho muito grande no ventre.

Durante os Щltimos dias, desde que Rorke partira com o rei para o norte do paьs, Vivian experimentava uma profunda inquietude, de uma natureza estranha. - Nсo gosto deste frio - Meg exclamou da cadeira diante da lareira. - Fica pior a cada dia. - Virou a cabeуa na direусo do movimento de Vivian. Baixou o tom de voz como se nсo quisesse ser ouvida por outras pessoas. Nсo ж natural. Eles voltarсo logo?-perguntou, quando Vivian ajoelhou-se diante do fogo. - Ora, Meg, nсo vр dizer que estр com saudades de milorde FifzWarren! - Tenha paciЖncia! - bufou Meg. - Garanto que nсo estava tсo frio quando ele estava por perto. Nсo gosto disso! - Nсo, nсo hр notьcias, mas receio que algo esteja errado. Com esforуo, ele se ergueu dos joelhos e caminhou atж a jovem. Estava muito sжrio. - VocЖ sentiu alguma coisa? - Sim… Nсo… Nсo estр claro. Sei apenas que algo muito grave aconteceu. - Pousou a mсo na-manga do hрbito do monge. - Os guardas nсo estсo em parte alguma. O monge arqueou as sobrancelhas brancas com estranheza.

- Isso nсo ж usual. O jovem Stephen de Valois foi deixado responsрvel pela famьlia. Ele nсo dispensaria os guardas, com tanta intranqЧilidade a reinar em Londres. - Hр mais coisas. Algo que vi de relance nas chamas. Saьram do complexo real pela passagem da cozinha. Com algum alьvio, encontraram um guarda do lado de fora da porta de emergЖncia. E Vivian percebeu que ele nсo era o guarda habitual. Havia soldados no pрtio de exercьcio, e alguns podiam ser vistos na armaria. Muitos outros, armados, caminhavam pelas muralhas e montavam guarda na entrada principal. - Hр guardas por toda parte - Poladouras comentou, ao atravessarem o pрtio na direусo dos canis e da falcoaria. - Sim - retrucou Vivian, com a sensaусo de apreensсo crescendo -, mas nсo sсo guardas de Guilherme. Foram todos substituьdos. - Conforme passaram pelos canis, os cсes de Guilherme se puseram a latir furiosamente. - E os cсes estсo todos presos. Ela apertou o passo ao se dirigir Я falcoaria. Nсo precisou de nenhum sentido especial para confirmar o que temia.

Ouviu-o no silЖncio incomum das aves de Guilherme.

E captou no ar pesado que normalmente cheirava palha fresca. Tinha o odor da morte. Embora pressentisse, mesmo assim gritou de horror quando encontrou o pequeno falcсo. A cabeуa dourada nсo mais se voltaria para ela com um pio de saudaусo familiar. O corpo inanimado do peregrino pendia das correias de couro que o prendiam ao poleiro. As penas, certa vez lustrosas daquela cor dourada, estavam agora opacas com a morte e o sangue que minava de seu corpo esmagado por um objeto pesado. Vivian sentiu a mсo gentil de Poladouras no ombro. - Estou tсo triste, menina - ele murmurou. Sabia do elo especial que existia entre ambos. Olhou ao redor pela falcoaria e chegou Я conclusсo que lhe pareceu natural. - Os outros pрssaros sem dЩvida nсo o aceitaram. - Nсo! - Vivian balbuciou, o coraусo sangrando de dor. Ele foi golpeado atж a morte enquanto estava preso e enca-puzado, incapaz de se defender ou fugir. - As

lрgrimas lhe escorreram pelas faces com a perda do amigo fiel. Ela cortou as cordas de couro com a faca que sempre trazia consigo e aninhou o falcсo sem vida nos braуos. Com Poladouras a segui-la, saiu da falcoaria com ┴quila. Subiu atж o mais alto baluarte atж que encontrou um lugar onde nenhum soldado se postava. Ofegante e aos bufos, Poladouras a alcanуou. Sua expressсo era sжria diante dos modos de Vivian. Ela fechou os olhos, concentrando-se no poder antigo da Luz em seu ьntimo, e pronunciou as palavras sacramentais que se estendiam alжm do tempo e da lembranуa para

a bruma do mundo transcendente. Quando o eco das palavras se apagou, ela abriu os olhos e, com um simples pensamento lanуado ao cжu, estendeu os braуos. Um cristсo, preso entre os poderes imortais que ele sabia existirem e a fж em que acreditava, Poladouras ficara a observar a cerimЗnia antiga num misto de tristeza e inspiraусo. Nсo tinha qualquer explicaусo para os poderes da jovem que criara. Aceitava-os porque aprendera, longo tempo atrрs, que havia mais coisas no mundo e alжm dele que nenhum homem poderia explicar simplesmente pela fж em Deus. Houve uma repentina vibraусo de movimento, um distЩrbio no ar. Dos braуos de Vivian, o falcсo despertou aparentemente vivo mais uma vez. Desdobrou as asas que captaram uma sЩbita luz, como se o sol tivesse aparecido entre nuvens, e, num Щnico movimento, lanуou-se ao vЗo. Circulou uma vez, a asas majestosas a se inclinarem levemente. Entсo, num lento arco, afastou-se, desaparecendo na bruma que se levantava alжm das muralhas da fortaleza.

Nenhuma soma dos poderes de Vivian poderia trazer a ave de volta para a vida terrena. E, assim, ela liberara seu espьrito para os cжus a que pertencia. - Precisamos voltar depressa - disse Vivian, passando por Poladouras com uma nova afliусo. - A morte de ┴quila ж parte de algo mais. Ao descer do baluarte, passaram pelos guardas, mais uma vez. Vivian parou e aproximou-se daquele por quem tinham passado momentos antes. Sз que nсo era o mesmo guarda. - Onde estр o homem que estava aqui apenas uns poucos minutos atrрs? O guarda a encarou, indeciso. - Perdoe-me, senhora. Nсo compreendo. Nсo havia nenhum outro guarda aqui desde que assumi o posto ao meio-dia. - O que estр dizendo? - Poladouras indagou. - Ainda nсo ж meio-dia. - Estр enganado, monge - o guarda retrucou. - Jр se passaram duas horas do meio-dia. Estou aqui todo esse tempo.

- Mas ж impossьvel! Mentir ж pecado! ╔ melhor se arrepender pelo bem de sua alma! - Por favor, Poladouras, nсo hр tempo a perder - Vivian o interrompeu, puxando o monge. - Ele nсo estava mentindo. Estр no posto faz duas horas. Mas, para nзs, foram apenas alguns instantes. - Isso nсo faz sentido, menina. - Nсo - ela concordou. - Nсo no mundo mortal. Mas o que aconteceu nсo ж do mundo mortal. - O que estр dizendo? Ela empurrou a porta e correu degraus acima para a passagem. Poladouras a seguiu com dificuldade. - A visсo de ┴quila que vi nas chamas foi um despiste. - Mas o falcсo estр morto - ele protestou e depois perguntou -, nсo estр? - Sim, estр morto. Sua morte foi um engodo para me afastar. Assim que saь da torre real, o tempo foi alterado. O que julgamos que fosse apenas uns poucos minutos foram de fato mais de duas horas.

- Mas por quЖ? Quem fez isso? Com que propзsito? - Para ter tempo suficiente de conseguir o que nсo poderia ser conseguido em poucos minutos, mas exigiria mais tempo e habilidade - ela lhe disse. - Nсo ж o caso

de saber quem fez isso, mas o que foi feito. - Seu olhar sombrio encontrou o do monge brevemente. Vivian apressou o passo e seguiu para o quarto da rainha. Na passagem, tropeуou e quase caiu com um corpo amontoado. - Stephen! - exclamou, ao reconhecer o jovem cavaleiro. Ajoelhou-se ao lado dele. O sangue cobria a lateral de sua face e grudava em seus cabelos com o golpe mortal. Mas ele nсo estava morto. Ela sentiu a pulsaусo de vida a bater sob os dedos em seu pescoуo. Sem tempo a perder, canalizou os poderes atravжs do toque atж a forуa vital dentro dele. Os olhos do cavaleiro se abriram lentamente. O reconhecimento veio um pouco depois, e ele lutou para se sentar. - Tentei impedi-la - ele exclamou. - Disse a ela que ninguжm devia entrar no quarto do rei, a nсo ser vocЖ e a velha. Ela, em especial, nсo poderia entrar. Mas ela nсo quis me ouvir. Quando tentei impedi-la… - ele estremeceu ao recordar - foi terrьvel. Nunca vi uma criatura tсo… - Entсo, gritou, alarmado. - A rainha corre

perigo! - Fique com ele - Vivian disse a Poladouras, ao passar por Stephen e seguir para a porta do quarto da rainha, que estava entreaberta. Empurrou-a devagar. Por um momento, ficou surpresa com o que viu. - Mally? - Nсo conseguiu entender por que Stephen ficara tсo horrorizado com o fato de a garota estar no quarto, pois muitas vezes cuidava de Matilda. Entсo Mally voltou-se de onde estava, na beira da cama. Uma onda de medo perpassou atravжs de Vivian. Seu olhar fixou-se em Mally, e ela entсo viu num vislumbre daquilo que Stephen presenciara. Nсo eram os olhos de Mally que a fitavam de volta, mas os olhos vazios, escuros, de alguжm, ou algo diferente. Vivian olhou para o frasco nas mсos da jovem e percebeu que o que restava nele continha veneno. Um breve lampejo de desafio perpassou por aqueles olhos sombrios e inexpressivos quando Vivian lentamente caminhou em direусo Я jovem. Segurou a garota pelo pulso

e mentalizou o poder da Luz. Mally se debateu e entrou em convulsшes, gritando de dor. Como por um passe de mрgica, as feiушes de Mally desapareceram para revelar o rosto de Judith de Marque. - VocЖ nсo pode impedir. Nсo pode vencer! - ela exclamou, irada. - Perderр tudo, inclusive Rorke FitzWarren, pois vocЖ nсo ж pрreo para ele. - Para quem, Judith? - perguntou Vivian. - A quem vocЖ vendeu sua alma? E onde estр Mally? O que fez com ela? - Nсo vendi minha alma a ninguжm. Ele me ama. Ele me jurou. Deu-me algum de seus poderes. Ele levou a garota. - Levou-a para onde? - Para as antigas catacumbas onde ela morrerр. - Sua idiota! - Vivian exclamou. - O poder nсo pode ser dado. O que ele lhe deu ж morte! Agora, diga-me, quem ж que lhe prometeu tanto?! - O que estр acontecendo? - Judith exclamou. Vivian a soltou, pois nсo era o seu poder que afetava a mulher, mas o poder de outra pessoa. Judith arquejou, o rosto de repente contorcido de dor. Olhou para as

mсos. Ambas estavam repentinamente se tornando enrugadas e retorcidas pela idade. Quando Vivian a fitou na face, viu o mesmo. - O que estр acontecendo? - Judith gritou, a voz jр alquebrada, quase um esgar de agonia de uma velha moribunda. Foi brutal observar conforme ela se esvaiu e morreu, o corpo irreconhecьvel com a passagem de dжcadas em apenas instantes, atж que jazia curvada no chсo, nada mais que um fiapo seco de si mesma, horrivelmente sem forma e retorcida com a cruel puniусo que pagara pelas prзprias ambiушes. E entсo, desfez-se em pз, espalhada entre as fendas do chсo. A porta adjacente se abriu e Meg apareceu na soleira. - Depressa - Vivian exclamou -, traga minhas poушes. Judith estр morta e eu receio que a rainha possa estar perto da morte tambжm. Trabalhou rapidamente, arrancando as cobertas da cama, dando instruушes a Poladouras para alimentar o fogo na lareira e acender todas as velas. Quando ele havia terminado, Meg aproximou-se com os remжdios.

- Ela tomou um veneno. A crianуa em seu ventre estр morrendo e ela certamente morrerр tambжm, se eu nсo puder impedir. Nсo havia tempo a perder. Sentou-se ao lado de Matilda na cama. Voltando os pensamentos para o ьntimo mais uma vez, concentrou-se no poder da Luz enquanto colocava uma das mсos sobre o coraусo da rainha e a outra no ventre inchado. Ao absorver as forуas da Luz, encontrou o veneno sombrio que fluьa atravжs da rainha para a crianуa por nascer. Como se fosse uma coisa tangьvel, Vivian o pegou, fechando os pensamentos em torno dele. Puxou o veneno para dentro de si mesma. Com um arquejo de dor, rompeu a conexсo com Matilda. Sentia o veneno, cujo poder mortal desaparecera, mas deixara apenas uma letargia que ela lutou para controlar. Nсo poderia entregar-se, pois Mally estava em grave perigo. - Precisa dar a ela um chр purificador - instruiu Meg. Depois, ela dormirр.

- E a crianуa? - Viverр, assim como a mсe. - Mas seus pensamentos eram menos confiantes. Nenhum dos dois sobreviveria se ela nсo fosse capaz de impedir a Treva maligna que causara tudo aquilo. - O que vai fazer agora? - perguntou Meg, preocupada. - A rainha deve ser protegida contra qualquer mal a mais. Vivian foi atж o fogo da lareira que agora queimava com forуa e vigor e passou a mсo por sobre as chamas, recuperando a energia drenada pelo elo de purificaусo que removera o veneno do corpo da rainha. Pronunciou as palavras no antigo idioma celta de seus ancestrais, extraindo os poderes do Fogo para se juntarem aos seus. Entсo, quando os sentiu mais uma vez vibrantes em seu ьntimo, voltou para a cama onde jazia a rainha. A maneira dos antigos, passada atravжs de geraушes de feiticeiras e suas filhas, tocou os dedos em cinco pontos, formando uma estrela de proteусo ao redor de Matilda e envolvendo-a num manto invisьvel que nenhuma treva

poderia alcanуar. Enquanto Vivian vivesse, a rainha estaria a salvo. - Precisam ficar aqui - disse a Meg e a Poladouras. Necessito de sua forуa para proteger a rainha. Poladouras meneou a cabeуa. - Nсo deixaremos que vocЖ vр sozinha. Vivian pousou a mсo gentilmente no ombro do monge. - Meu querido mestre, para onde eu vou o senhor nсo pode ir. Pois existem coisas que se passarсo que nсo sсo deste mundo nem de seu Deus. Preciso fazer isso. ╔ por mim que a Treva espera. Se o senhor estiver aqui, entсo eu saberei que a rainha estarр a salvo, pois nem mesmo os poderes da Treva podem se comparar ao meu poder combinado com sua verdadeira fж. - Nсo, minha menina! - Meg gritou, os olhos cegos cheios de lрgrima.-Mande-me em seu lugar. VocЖ pode fazer isso. Transformar-me como a Treva transformou aquela criatura miserрvel. - Nсo traria bem algum. O disfarce seria descoberto e as

conseqЧЖncias impensрveis. Preciso que fique com Poladouras, pois confio tambжm em sua forуa. Meg sabia que nсo havia como convencЖ-la e, quando Vivian se foi, chorou amargamente. Nenhum tipo de conforto que Poladouras pudesse lhe oferecer iria lhe aliviar a dor. - VocЖ nсo compreende - ela gritou. - Vivian nсo pode se proteger e proteger a rainha ao mesmo tempo. Serр destruьda. Vai ao encontro da morte para nos salvar. As catacumbas eram as ruьnas da fortaleza romana que se erguera em Londres cerca de quinhentos anos antes. Geraушes sucessivas de invasores e seus reis tinham levantado construушes sobre as catacumbas, atж que agora a abertura ficava debaixo da capela real, nos fundos do pрtio. Os soldados de Guilherme tinham falado sobre isso. Alguns pensavam que talvez os outros soldados do rei Arthur tivessem sido enterrados ali, pois durante os sжculos seguintes as catacumbas haviam se tornado criptas funerрrias. Vivian tomou uma tocha ao comeуar a descer

os degraus que saьam detrрs do altar da capela para dentro das antigas ruьnas romanas. A tocha lanуava dedos de luz pelas paredes escuras e Щmidas como fios de ouro num fundo negro, tal como na visсo da tapeуaria. Ela era a tecelс que visualizara nos sonhos. Os fios ainda nсo estavam tecidos, o futuro ainda nсo decidido. Apenas ela poderia alterar o que viria a ser. O reino e o destino de todos aqueles que considerava caros dependiam de seus atos. Outras tochas haviam sido colocadas nos suportes nas paredes, iluminando o caminho. Vivian encontrou Mally numa cela escura e desmantelada, as mсos atadas Я frente do corpo numa argola na parede ainda em pж. Com um rрpido olhar em torno, Vivian sentiu as almas dos mortos que as rodeavam e descobriu que aquele lugar fora usado como cripta funerрria e muito mais. - Ele estр morto, senhora! - Mally gritou. - Ele estр morto. Voltando-se, Vivian viu uma forma amontoada. Era Conal.

Fora horrivelmente espancado, sem dЩvida capturado naquele dia no mercado, pelos homens do bispo. Mas por quЖ? Com tristeza, sentiu a razсo de sua morte. O bispo estava atrрs da verdade a respeito de Vivian e Conal morrera ao protegЖ-la. - Meu querido amigo - ela murmurou. - Sinto muito. Desamarrou Mally, sem que nada a impedisse. Nсo se surpreendeu. Mally servira a seu propзsito, o de ser a isca para trazЖ-la atж ali. Assim que isso fosse alcanуado, a garota jр nсo era mais necessрria. Mally agarrou-se a Vivian. - Ele me trouxe aqui embaixo. Disse que vocЖ mandara me buscar. Que suas habilidades de cura eram necessрrias neste lugar pavoroso. - A garota estremeceu. - Entсo,

me deixou aqui, depois de amarrar minhas mсos. O que estр acontecendo, senhora? Mentiras entrelaуadas em mais mentiras ainda. Trapaуa e morte. Servas da Treva. Nсo havia necessidade de perguntar de quem Mally falava. Como se num prenЩncio da batalha que estava por vir, Vivian sentiu o veneno mover-se dentro de si e provocar um peso aumentado nos braуos e pernas, seus pensamentos a se tornarem menos velozes e percebeu que aquilo, tambжm, fora parte do plano maior. - Precisa ir agora - disse a Mally. - Siga as escadas, as tochas iluminarсo o caminho. O que quer que aconteуa, nсo olhe para trрs. Mally a encarou, incrжdula. - A senhora nсo pode ficar aqui. Deve ir comigo. - Eu a seguirei - Vivian assegurou. Sentiu que ela estava bem, assim como o filho que carregava. Empurrou-a gentilmente para a entrada do cЗmodo, captando tambжm que a Treva esperava alжm, mas nсo por Mally. - Vр, agora! - ordenou. - E nсo volte. Concentre-se apenas nas

chamas das tochas atж chegar ao alto. Depois, procure por Meg. Mally hesitou, olhando receosa ao redor. - Vр! - Vivian repetiu, com veemЖncia, Mally virou-se e saiu correndo. Vivian podia ouvir os chinelos da garota a estalar nos degraus de pedra e percebeu que ela ficaria a salvo. Assim que Mally se afastou, Vivian sentiu a Treva se fechar em torno de si, brotando dos cantos da cРmara, infiltrando-se pela porta. Mesmo que tentasse, ela sabia que nсo poderia escapar. E, quando Mally passou pela entrada da catacumba Vivian sentiu um portal invisьvel se fechar. - Eu sabia que vocЖ viria. Vivian voltou-se lentamente, reconhecendo aquela voz. - Senhor bispo - constatou o que jр sabia. - Milorde tinha razсo. Eu precisava vir, ж claro. Para impedi-lo. Ele postou-se diante dela, vestido da cabeуa aos pжs de preto, a escuridсo sobre a treva de sua maldade corporificada. Mesmos seus olhos eram tсo sombrios

como a noite, com a negrura de sua alma. Nсo mais usava a cruz de prata, pois o teria queimado com um simples contato. Em vez disso, sua tЩnica e o manto reluziam com mirьades de pedras negras que pareciam absorver e drenar a luz da tocha. - Nсo pode me impedir - disse a ela, a Treva agora incorporada nas ambiушes do bispo, o conde de Bayeaux. O irmсo de Guilherme. - Merlin tentou faz quinhentos anos e eu o destruь. Agora eu a destruirei e o reino serр meu. - Nсo posso permitir. Mesmo enquanto falava, Vivian sentiu o veneno funcionar dentro de si, roubando-lhe a forуa e a concentraусo. Sentiu tambжm que qualquer fraqueza daria a ele o acesso a seus pensamentos. E, portanto, fechou-se, concentrando a mente consciente nas emoушes e imagens que a Treva nсo poderia penetrar: nas lembranуas de Rorke. A expressсo do bispo se crispou. - Muito esperta, senhora. Mais esperta que seu pai. Por nсo ter nunca experimentado os prazeres mortais dos

quais vocЖ compartilhou, ele nсo poderia blindar as intenушes com imagens de felicidade e amor como vocЖ faz. Mas nсo resultarр em nenhum bem. Com o tempo, o veneno debilitarр sua vontade. E ж chegada a hora no norte do paьs, enquanto conversamos aqui. Com uma repentina clareza, Vivian percebeu a plena extensсo da traiусo perpetrada. Tudo fora planejado. E, sem sombra de dЩvida, ela sabia que a traiусo ao norte nсo seria dos invasores dinamarqueses, mas dos prзprios homens do conde, certamente liderados por Vachel. - Ah, vocЖ compreende a amplitude de meus planos. Мtimo. Entсo sabe que nсo hр nada que possa fazer para impedi-los. Estр tudo acabado. Nсo estava. Ela nсo conseguia acreditar, recusava-se a crer, pois nсo sentira a morte de Rorke. E isso certamente haveria de perceber. Concentrou sua habilidade para fechar os pensamentos Я Treva. O Mal alterara o tempo para servir a seus prзprios propзsitos. Era tambжm possьvel que pudesse servir aos dela. Mas somente se Rorke estivesse vivo.

- VocЖ nсo pode impedir a Treva - o conde exclamou, ao erguer a mсo negra, enluvada, e agitр-la diante de si. A parca luz na cРmara pareceu ser engolida pelo gesto do bispo. Vivian hesitou quando ia se contrapor ao movimento. A Treva conhecia seus poderes e, naturalmente, iria antecipр-los. E isso nсo deveria acontecer. Em vez de contra-atacar, focalizando seu poder nas chamas da tocha, ela empurrou a poderosa luz para bem fundo, para dentro de si, canalizando-a para a prзpria alma, e mergulhando a cРmara na completa escuridсo. Entсo, voltou-se e correu para a parede dos fundos do cЗmodo. Nсo havia nenhuma porta pela qual pudesse escapar. Mas ela usou de seus poderes para passar atravжs da pedra, mais para dentro das catacumbas. Enfraquecida como

estava pelo veneno, se seus poderes nсo eram pрreo para os poderes da Treva, entсo ela se tornaria como a escuridсo. Desabou do outro lado da antiga parede de pedra, dentro de outra cРmara onde minava рgua. Guiada pela visсo interna, viu o projeto da construусo como as cжlulas de uma colmжia. Lutou para recuperar as forуas mais uma vez, mas sentiu a Treva a se fechar em torno de si. - VocЖ nсo ж pрreo para mim, senhora da Luz. Nсo pode me impedir, pois para fazer isso deve liberar o encantamento que protege a rainha. Ela ouviu os pensamentos sussurrarem pelas pedras conforme a Treva a perseguia. - E isso vocЖ nсo farр, pois nсo pode suportar arriscar a vida de outrem pela sua prзpria. Sua compaixсo mortal pelas pessoas ж sua fraqueza. Eu nсo sofro a interferЖncia de tais fragilidades humanas sem sentido. VocЖ serр destruьda como foi seu pai. Com as forуas que lhe restavam, Vivian enviou um Щnico pensamento para a escuridсo condensada que se reunia em torno de si.

- Jamais! Rorke levou consigo seus cavaleiros mais confiрveis. Livraram-se de todas as armaduras de batalha e dos pesados escudos que poderiam sobrecarregр-los, carregando apenas as espadas e lanуas. Embora Guilherme estivesse resolvido a cavalgar com eles, estava fraco demais da jornada atж o norte para viajar no passo que Rorke pretendia imprimir. Com a expressсo fechada, o rei se despediu de seus cavaleiros, deixando-os para seguir com o restante de seu exжrcito. - Meu irmсo me traiu - Guilherme dissera a Rorke. —Teria me matado para satisfazer suas ambiушes. Eu deveria ter visto. Deveria ter sabido que ele nсo ficaria contente com o que tinha. Queria a Inglaterra. E isso pode me custar minha rainha e meu filho. Rorke sabia, mas nсo dissera, que isso poderia ter um custo muito mais alto. - Rezo para que cheguemos em tempo - respondera, muito sжrio.

- Se chegar a tempo e a rainha ainda estiver viva, entсo eu lidarei com meu irmсo - Guilherme lhe dissera num tom que nсo admitia discussсo. - Nсo me negarр isso! - Sim, milorde - Rorke concordara, grato que Guilherme nсo o vinculasse a quaisquer promessas, caso a rainha nсo sobrevivesse aos planos do bispo. Se Matilda sucumbisse, isso somente poderia significar que Vivian estava morta tambжm, pois ele sabia, no fundo do coraусo, que ela faria tudo para proteger a rainha. E, nesse caso, nem o Deus do bispo nem sua astЩcia traiуoeira o salvariam. Com uma ordem berrada aos homens, partiram num passo forуado. Levavam montarias extras tomadas dos homens de Vachel. Pararam apenas o tempo suficiente para trocar os animais exaustos pelos descansados que tinham levado e prosseguiram num ritmo de arrebentar os ossos. Nas Щltimas horas antes da alvorada da manhс do terceiro dia, as fogueiras de Londres podiam ser vistas no horizonte. Embora Я beira da exaustсo, aumentaram o passo. As notьcias corriam conforme eles entravam pela cidade. Seus prзprios soldados se reuniram de modo que, ao

chegarem Я fortaleza, trezentos deles cavalgavam com Rorke. Ele viu a surpresa na expressсo dos guardas nos portшes e percebeu que aqueles leais ao bispo estavam espantados de vЖ-lo e a seus homens com vida. Um conflito nos portшes logo terminou com os soldados de Rorke a enxamear para dentro da fortaleza e a subjugar quaisquer outros leais ao bispo. Rorke saltou do lombo da montaria exausta. Com a espada na mсo e flanqueado por Tarek e Gavin, chutou e abriu as portas do salсo. Na passagem do lado de fora dos aposentos reais, encontrou um soldado armado. Era Stephen de Valois. Empunhava uma espada de batalha em uma das mсos, o braуo ferido pendurado e inЩtil do outro lado. Tinha um novo ferimento do lado da cabeуa, mas estava enfaixado. De costas para a porta do quarto, assumiu uma postura defensiva, como se estivesse preparado para enfrentar qualquer inimigo. - Pare! - ele exclamou e, quando Rorke se aproximou do

jovem cavaleiro, finalmente foi reconhecido pela luz das tochas. Stephen recostou-se contra a parede. — Tentei impedi-lo. - Sim, eu sei. Fique tranqЧilo, pois serviu a seu pai muito bem. - A rainha estр a salvo no quarto. O monge e a velha ama a protegem. - E Vivian? - Rorke perguntou, ansioso, quando Stephen nсo a mencionou. - Salvou minha vida. A morte estava sobre mim, eu a senti, e sua dama me deu a vida de volta. - Onde estр ela? - Foi atrрs dele. -? Tentou erguer a espada, mas nсo conseguiu. Praguejou, zangado. - DЖ-me uma espada menor e lutarei a seu lado, milorde. E, quando pegarmos o traidor, eu lhe cortarei a garganta. Rorke empurrou Stephen para o lado de Gavin. - VocЖ fez tudo que alguжm poderia pedir, meu jovem amigo. O irmсo de Guilherme o traiu, o que o abalou profundamente. Vai precisar do filho. Nсo ж preciso que

dЖ novamente seu sangue por ele. Jр deu o bastante por hoje. Rorke voltou e bateu Я porta com o cabo da espada, chamando. A velha Meg correu o pesado ferrolho para espiar pela fresta com aqueles olhos opacos que ainda tinham o poder de enxergar a verdade. - Tive medo que nсo retornasse, milorde - disse, com voz trЖmula. - Onde estр a rainha? Meg afastou-se de lado para deixр-lo entrar. A rainha estava sentada, recostada contra os travesseiros. Ao pж da cama, entre ela e quem quer que pudesse tentar entrar estava o monge, com um grande crucifixo de prata a reluzir na mсo. A garota, Mally, estava acocorada ao lado da cama. - Milorde - suspirou o monge, com alьvio. - Eu nсo tinha certeza de qual seria o fim disso, e o que eu poderia ser forуado a fazer. Deus me perdoe, mas eu transpassaria o bastardo se ele entrasse pela porta.

- Para onde Vivian foi? - Foi atraьda para as catacumbas para libertar a garota Meg explicou. - Ele sabia que ela a seguiria. Um зdio glacial tomou conta de Rorke, fechando-se em torno de seu coraусo. - Quanto tempo faz? - perguntou. - Nсo muito - retrucou Meg, torcendo as mсos. - nos fez jurar que nсo deixarьamos a rainha. O poder do bispo ж inЩtil contra o encanto protetor enquanto minha senhora viver. - Ele ameaуa mulheres e crianуas para alimentar suas ambiушes - Rorke exclamou, os olhos luzindo como punhais de gelo - Agora, o bispo terр de se ver comigo. - Nсo! - Meg gritou, correndo e o agarrando pelo braуo. - VocЖ ж mortal. Nсo pode impedi-lo, pois nсo ж real. Nсo ж o bispo que faz isso, mas a Treva que reclamou sua aalma. Dando meia-volta, Rorke exclamou: - Que bobagem ж essa?

- O corpo ж o do bispo, mas a alma nсo ж! - ela repetiu. - ╔ da grande Treva e procura o poder da Luz. Assim que as forуas da luz e da escuridсo se juntarem como fizeram hр quinhentos anos atrрs, a Treva governarр o reino. - ╔ verdade, meu filho - Poladouras tambжm asseguroulhe. - Meg disse que vocЖ sabe a verdade sobre os poderes de Vivian. Sabe tambжm que ela ж uma filha da Luz. ╔ filha verdadeira do prзprio Merlin, que possui grande poder. O bispo nсo passa de um vaso para a Treva. Abraуou-a em sua busca por poder. Mas ela o governa para seus prзprios objetivos. E seu objetivo ж destruir os guardiшes da Luz. - Com uma imensa tristeza, murmurou: Ele a destruirр. - Deve existir um meio de impedir - Rorke insistiu. - Nсo aceitarei que Vivian esteja perdida para mim. - Agarrou a velha Meg pelos ombros. - Por Deus, deve haver um jeito! - Existe apenas uma pessoa que deve saber como poderia livrр-la da Treva - disse Meg, com voz trЖmula. O pai dela. - Seus olhos sem vida luziram com uma

repentina vivacidade. - Quсo grande ж sua coragem, guerreiro? - ela perguntou. - ╔ suficiente para confrontar o poder da Luz e desafiar a Treva pelo amor da filha de um feiticeiro? Sem hesitaусo, ele disse. - Diga-me como pode ser feito. Meg o encarou com os olhos cegos e finalmente concordou - Merlin nсo pode entrar neste mundo. Tal foi o seu destino nas mсos da Treva nos dias de Arthur. VocЖ nсo possui o dom da visсo interna, de modo que sз ele poderр esclarecЖ-lo. ╔ o Щnico caminho, guerreiro. Precisa passar pelo portal de pedra atж o mundo suspenso entre os mundos. Era quase alvorada quando Rorke parou na clareira da floresta. A neve caьra, cobrindo o chсo com um manto imaculado sob o cжu cinzento naqueles Щltimos momentos antes que o sol nascesse. - VocЖ tem os meios de entrar no outro mundo - Meg lhe disse, a mсo agarrada a seu antebraуo. - Mas tem fж?

Acredita com forуa suficiente que ele existe? Pois somente se acreditar realmente, vocЖ poderр passar pelo portal como poucos mortais fizeram. - Enquanto falava, os primeiros raios de sol iluminaram a clareira. Uma bruma estranha, etжrea, formou-se lentamente conforme o sol aquecia o manto de neve e, naquela nжvoa acinzentada, sutil, vacilante, se ele olhasse com cuidado, veria uma imagem imprecisa de um obelisco de pedra. O portal deste mundo para o outro. - O cristal azul - Meg exclamou. Vivian dera a pedra a Rorke quando ele partira de Londres, para sua proteусo. Sabia dos perigos da Treva e mesmo assim lhe dera o amuleto. E era ela quem precisava de proteусo agora. - O cristal possui a chama da Luz - Meg explicou. - Assim como protege pode tambжm guiр-lo pela escuridсo gelada da pedra. Mas - avisou - apenas se vocЖ acreditar. - O que hр do outro lado? - A verdade.

- Merlin estarр lр? Meg fez que sim. - Mas pode se recusar a recebЖ-lo. - Iria se recusar sabendo que quero apenas salvar sua filha? - A raiva o perpassou. Ele era um guerreiro, que vira de tudo no contexto das batalhas que lutara e vencera. Nenhuma perda era aceitрvel. Principalmente aquela. - Nсo ж suficiente querer - Meg avisou. - Precisa provar que vocЖ merece o que procura. - Cravou os olhos opacos na pedra. - O tempo escasseia. Precisa ir agora. Conforme ela falava, a luz tornou-se mais brilhante na clareira. Assim que o sol surgisse nas copas das рrvores e iluminasse o local, o portal se fecharia mais uma vez. Com a mсo na espada que pendia a seu lado, Rorke avanуou para a imagem imprecisa do obelisco de pedra. Tarek postou-se imediatamente ao lado dele. - Pense apenas na Jehara, pois um amor assim ж raro disselhe, relembrando da bela criatura que o avisara do ataque e salvara a vida de todos. Se encontrasse o

amor como o amigo encontrara, iria se agarrar a ele atж seu Щltimo suspiro. - Obrigado, meu amigo. - Esperarei por vocЖ do lado de cр. - Precisa crer, guerreiro. As Щltimas palavras de Meg o avisaram quando Rorke fechou a mсo em torno do cristal azul, segurando-o como se segurasse Vivian. Avanуou para a pedra. Fechou os olhos e pensou apenas nela ao dar o prзximo passo. Foi como ser lanуado para dentro de um profundo buraco escuro. Ele se sentiu tombar e rolar, jogado contra superfьcies duras que imaginava serem da pedra e, depois, dilacerado e rasgado pela rocha fria. Entсo sentiu a friagem penetrр-lo, invadindo seus pensamentos e rompendo sua concentraусo. Ele nсo tinha idжia se ainda tinha ou nсo a espada ou mesmo se continuava vivo. Sua Щnica percepусo era o cristal apertado em sua mсo e os pensamentos em Vivian. └ medida que continuava a cair no poуo escuro, tomou

consciЖncia de um ponto de luz penetrar vagamente sua percepусo. Parecia que caьa naquela direусo, pois se tornava rapidamente maior, como uma abertura no fim de um tЩnel. Entсo, numa sЩbita explosсo de dor e luz, como se tudo estourasse a seu redor, Rorke se viu liberto da escuridсo e deitado na relva de uma clareira. Aturdido e abalado, estupefato pela experiЖncia, seus sentidos lentamente se aclararam conforme ele se recordava de ter avanуado para o portal de pedra. Contudo, nсo havia sinais exteriores da terrьvel jornada que acabara de realizar. Nсo havia sangue nem tinha as roupas rasgadas. A espada ainda estava em uma das mсos, a outra fechada em torno do cristal azul como se ele tivesse dado apenas um passo de um ambiente para outro. Levantou-se devagar e ficou acocorado. A clareira era a mesma, sз que agora livre do frio e da neve. Parecia primavera, com uma ligeira bruma a se erguer da terra

enquanto o sol se punha. Pouco alжm, a uns passos de distРncia, ele mal conseguia distinguir a forma do obelisco de pedra. - Levante-se e lute, guerreiro! Rorke saltou de imediato nos pжs, as mсos agarradas ao cabo da espada, ao se virar para enfrentar aquele novo desafio. O homem com que se defrontou era alto e de ombros largos, com uma forуa impressionante nos mЩsculos duros dos braуos conforme empunhava a espada Я frente. Nсo havia engano; era um guerreiro. Estava em sua postura, na maneira como segurava a arma e na expressсo feroz em suas feiушes. Nсo era jovem, nem velho, mas no apogeu dos anos e com uma argЩcia que podia ser vista no olhar nivelado ao de Rorke. Mas foi seu traje de guerra que fez Rorke parar. Aquele homem nсo era o pai de Vivian. Ele nсo usava cota de malha, mas uma espessa couraуa de ouro no peito, reforуada por retРngulos de metal polido. Ele a usava sobre um saiote que terminava logo acima

dos joelhos, em vez de calуas, e o traje era ricamente debruado com uma tranуa dourada. Botas recobertas de placas de armadura, entalhadas em ouro, protegiam as pernas musculosas. Um manto pendia de seus ombros, preso no lugar por medalhшes gЖmeos de ouro, na couraуa de peito. Sobre a cabeуa, usava um elmo de aуo de forma arredondada, com um magnьfico penacho de ema tingido de um brilhante escarlate para combinar com a cor de sangue de seu manto. Em contraste, a espada de batalha que carregava era livre de ornamentos embora parecesse ser de resistЖncia extraordinрria e de um corte extremo. Sua vestimenta era mais elegante do que a de qualquer soldado comum e seu porte mostrava isso tambжm. Aquele homem nсo era um guerreiro comum, mas um lьder. - Lute ou morra! - o guerreiro o desafiou, avanуando rumo a Rorke em posiусo de ataque. Rorke confrontou o golpe e desviou-o para o lado e depois girou ao redor para se defrontar com uma nova investida.

- Nсo procuro um confronto, estranho. Vim procurar uma pessoa chamada Merlin. Sua resposta foi outro choque de aуo contra aуo. O guerreiro era forte, um oponente formidрvel em qualquer mundo. Custou toda a forуa e sagacidade de Rorke para defletir cada investida e bloquear cada golpe, e depois se afastar e assumir uma nova postura. E, durante o tempo todo, estava ciente dos minutos que se escoavam. Um tempo valioso que poderia significar a diferenуa entre a vida e a morte para Vivian. Queria acabar com aquilo. Onde estava Merlin, se ж que realmente existia? - Nсo tenho tempo a perder! - esbravejou, furioso. - Nсo tem tempo para mais nada, guerreiro - seu adversрrio o provocou. Outro golpe retiniu na clareira. A raiva dominou Rorke. Estudou o oponente e voltou os pensamentos para o resultado. Notou cada falha menor de movimento, uma hesitaусo momentРnea, a fragilidade de um flanco desprotegido.

Lentamente, comeуou a tomar a ofensiva, investindo com golpes incessantes, aproveitando cada vantagem aprendida em incontрveis outras batalhas. Sз o resultado o interessava. Um resultado do qual tinha certeza, pois nсo aceitaria nenhum outro. Mostrou-se incansрvel, atж sentir que o adversрrio vacilava sob a barragem de golpes e percebeu que a vitзria estava a seu alcance. Mesmo assim, encheu-o com uma chuva de investidas, impulsionado por uma luxЩria sangrenta de ver tudo terminado. VocЖ deve se mostrar digno e merecedor. As palavras da velha Meg sussurraram pela clareira no calor da batalha. Nсo basta querer. VocЖ deve acreditar. Um golpe aturdiu-o quando o apanhou com a concentraусo rompida, e ele investiu com mais fЩria. Como deveria ser posto Я prova? Por um teste? Que teste poderia um feiticeiro pedir de um mortal? A cada golpe que recebia Rorke respondia instintivamente com dois. Qual poderia ser o verdadeiro teste de um guerreiro?

Sentiu o adversрrio fraquejar e, quando hesitou, Rorke desferiu outro golpe. E mais outro. Atж que levara o inimigo a cair de joelhos. Mais um arrancou a espada das mсos do adversрrio. Entсo se postou sobre ele com a lРmina pronta para desferir o golpe mortal. Haveria morte no mundo imortal? Ele hesitou. Alguma coisa era real? Aquele guerreiro orgulhoso e valente seria de verdade? Um teste de valor. Um guerreiro era tсo valoroso quanto sua espada. No mundo mortal. VocЖ deve acreditar. - Eu nсo o matarei! Com um grito feroz de guerra, Rorke jogou sua espada de batalha para longe. Naquele instante, viu o lampejo de satisfaусo nos olhos do outro guerreiro. Se tivesse causado a prзpria morte pela escolha, Rorke pensou com uma pontada de pesar, nсo por si mesmo mas por Vivian, entсo, que assim fosse. O guerreiro se pЗs em pж, destemido, ainda orgulhoso e sem se dar por vencido. Pegou um pequeno punhal da bainha no cinto.

- Jр vi o bastante - uma voz exclamou. Um homem saiu da cobertura das рrvores que rodeavam a clareira e lentamente caminhou na direусo deles. Era mais velho que o guerreiro, as mechas prateadas a esfriar os cabelos nas tЖmporas. Era alto e tсo rжgio como o guerreiro, porжm com uma leve fragilidade no porte que poderia advir de algum antigo ferimento ou das enfermidades da idade. Era um belo homem, com feiушes enxutas e um ar pensativo. Uma barba branca cortada rente cobria-lhe a face. Quando chegou mais perto, seu olhar ergueu-se e encontrou o de Rorke. Os olhos que o fitavam de volta, embora marcados pela passagem dos anos e muita tristeza na vida, eram tсo azuis como o coraусo de uma chama. Eram os mesmos olhos de Vivian. Aquele era seu pai. O guerreiro o saudou, nсo com a obediЖncia de um servo a seu mestre, mas de amigo para amigo, o que aludia a um vьnculo profundo e inquebrantрvel.

- Ele lutou bem - o guerreiro comentou com um leve divertimento. - Pensei me ver derrotado atж que ele jogou a espada de lado. Merlin nсo disse nada, mas continuou a observar Rorke com cuidado. Rorke sentiu a sagacidade da mente que jazia por trрs daquele olhar contemplativo e um poder poderoso que ainda queimava dentro do feiticeiro. Vira tal fogo da Luz que vibrava dentro da filha do mago. Ele se unira a ela de um jeito que transcendia uma junусo fьsica. Tinham se tornado unos na partilha das almas. Ele tocara o fogo dentro dela e reconhecia aquele mesmo poder que ainda reluzia dentro do feiticeiro, embora ele estivesse preso naquele lugar imortal. - Por que lanуou longe sua espada, guerreiro? - Merlin perguntou, os olhos se estreitando, nсo com curiosidade, mas num exame minucioso. - ╔ sua forуa. Com ela vocЖ mata, domina seus inimigos e conquista reinos. Poderia facilmente ser morto por tal tolice. Rorke sentiu aquele escrutьnio e percebeu que aquele era o teste do qual a velha Meg falara. Merlin nсo procurava

respostas, procurava sabedoria. - Porque - Rorke retrucou - ж precisamente o que o senhor esperava de mim. A expressсo de Merlin abrandou-se assim como a tensсo que se irradiava dele. Concordou como se algo o agradasse. - Ela disse que vocЖ tinha o coraусo sincero. Eu precisava saber se possuьa uma grande sabedoria. Pois somente com sabedoria vocЖ pode ter alguma esperanуa de conseguir o que procura. - Olhou para o guerreiro postado ao lado de Rorke. - Ainda pode haver esperanуa. Um olhar passou entre os dois e depois o guerreiro deu um passo para trрs. Inclinou a cabeуa ligeiramente. Novamente, nсo era obediЖncia, mas uma saudaусo ao feiticeiro. - Esperamos quinhentos anos pelo guerreiro que pudesse levar a espada de volta para o mundo mortal. - Abaixou-se e pegou a espada, colocando-a na bainha. Entсo, antes que Rorke pudesse responder ou perguntar qual o significado daquela frase estranha, ele desapareceu como se nunca tivesse existido.

Truque ou sortilжgio? Rorke se perguntou com uma raiva repentina, ao se voltar para Merlin, a quem esperava que se diluьsse no ar como o guerreiro. - Nсo vim aqui para isso. Enfrentei seu teste. Agora, quero respostas. Como posso lutar contra a Treva? A Щnica resposta de Merlin foi um sorriso contemplativo, ao dizer: - Caminhe comigo. Voltou-se, sem esperar por Rorke, e comeуou a subir a trilha para as colinas. Ele nсo passara para o outro mundo para dar passeios matinais pelas colinas. Viera atж ali em busca de respostas. Rorke hesitou, zangado e frustrado por aquilo que nсo conseguia entender e pessoas que nсo se faziam compreender. Enquanto isso, o tempo corria e Vivian estava em perigo. - Vр com ele - uma voz gentil pediu. Ele se virou e viu uma mulher parada na beira da clareira. Era linda, com doces olhos verdes. Usava um vestido azulpрlido, e os cabelos vermelhos e reluzente caьam

em cascata sobre seus ombros. Rorke nсo precisava saber seu nome para adivinhar quem era. A semelhanуa estava lр, nos Рngulos perfeitos da face, suavizados agora pela idade, mas nсo obstante belos. Na lenda, ela era chamada de a Dama do Lago. - Por favor - ela implorou. - Ele esperou muito tempo por vocЖ e sua alma estр pesada. Porжm, ele nсo irр pedir. VocЖ precisa ir de livre vontade por causa do que sente no coraусo. Rorke olhou para a trilha. Merlin continuava a subir lentamente e com firmeza. Nсo havia nada mais a fazer a nсo ser segui-lo. - Eu a encontrarei, minha cara senhora. - Precisa, pois vocЖ ж nossa Щnica esperanуa. Rorke virou-se e seguiu pela trilha atж as colinas. Era uma subida fрcil e nсo muito longa, mas enquanto isso, ele se preocupava com a passagem do tempo. Nсo era o mesmo ali, sabia disso, pois Vivian falara de ter passado um dia e uma noite com Merlin quando parecera que se ausentara por menos de uma hora.

Contudo, quanto tempo tinha se passado nas catacumbas da fortaleza? Estaria ela ainda viva? Sim! A resposta brotou de seu coraусo, pois ele nсo poderia acreditar que fosse diferente. Seguiu Merlin atж um nicho que fora cortado no topo da colina. Dentro do nicho havia uma cРmara feita de mрrmore branco. Parecia um tipo de observatзrio, com uma parte do teto aberta para o cжu. Uma parede inteira abriase para o pequeno vale, abaixo. Dava a sensaусo de ser um lugar acima do mundo, como se de certa forma integrasse tanto o mundo mortal como o imortal. - Nсo seja impaciente - disse Merlin, sentindo os pensamentos do visitante. - Por enquanto, ela estр viva. Existe algo que devo mostrar a vocЖ. Dirigiu-se ao fundo da cРmara e tocou a parede abaixo, num canto. Ela se abriu, as pedras se separando e se movendo sobre si mesmas para revelar uma cРmara interna. Merlin fez um sinal para que Rorke o seguisse. No centro da cРmara interna havia uma pequena lagoa. Embora o local estivesse escuro, a nсo ser pela luz que

passava pela entrada, a lagoa luzia com uma luz iridescente

como se brotasse de dentro dela. De novo Merlin fez um sinal para que ele se postasse ao lado da рgua. - Diga-me o que vЖ. - Que jogo ж esse? - Nсo ж jogo. - Um teste entсo? - Sua paciЖncia se esgotava. Merlin concordou. - Um teste dos antigos. Apenas um guerreiro que seja sincero de coraусo pode ficar Я beira d’рgua e ver sob a superfьcie o tesouro que hр lр dentro. - Nсo vim procurar tesouros, velho. - Veio procurar os meios para salvar minha filha. Nсo ж um tesouro pelo qual vale a pena morrer? - Sim, realmente ж. -Entсo, olhe para a рgua e diga-me o que vЖ, pois apenas um guerreiro sincero de coraусo verр o tesouro. Rorke fitou a lagoa. A рgua tremulava levemente, era de um branco leitoso e impossьvel de se enxergar alжm da

superfьcie. Entсo, como se alguжm a tocasse com a mсo e afastasse a nebulosidade, a рgua clareou. E, no fundo das profundezas bruxuleantes, viu uma espada magnьfica. Conhecendo-lhe os pensamentos, Merlin disse: - VocЖ viu a espada. ╔ um guerreiro de coraусo verdadeiro e de sabedoria. Um guerreiro assim deve ter uma espada Я sua altura. Pegue a espada da рgua, guerreiro. VocЖ tem o poder. Quando Rorke encarou Merlin, incerto, o feiticeiro explicou: - VocЖ sempre o teve, pois estр na pedra azul. A jзia do cabo da espada Excalibur. Ao som daquele nome, falado e proclamado em incontрveis lendas, as рguas da lagoa comeуaram a borbulhar e se agitar. Os dedos de Rorke se fecharam na pedra que Vivian colocara em seu pescoуo. Sentiu de imediato o calor da pedra, o fogo em suas profundezas azuis que queimavam com o poder da Luz. Entсo, olhou para a lagoa. A espada lentamente comeуou a

se erguer da рgua. Era uma arma magnьfica, uma espada lendрria, a espada de Arthur: Excalibur. Foi entсo que Rorke descobriu quem era o guerreiro que o desafiara, quando saьra do portal. - Sim - Merlin confirmou, ao lhe sentir os pensamentos. Arthur. A espada alуou-se acima da рgua revolta, voltou-se lentamente e depois se deslocou na direусo de Rorke. Ao se aproximar, pairou, suspensa no ar como se segura por algum fio invisьvel. - Pegue-a — Merlin exclamou. - Pois apenas com a espada da Luz vocЖ pode libertar Vivian. Rorke estendeu a mсo e a espada moveu-se por conta prзpria, o cabo a deslizar para dentro de sua palma como se fosse precisamente entalhado para ele. Merlin aproximou-se lentamente. - A pedra. Rorke aquiesceu, embora relutante em se separar da

Щltima ligaусo com Vivian. O feiticeiro tirou-lhe a pedra azul do pescoуo e depois a encaixou no cabo da espada. Tal como a espada, a pedra ajustou-se perfeitamente, como se fosse aquele o seu lugar. - Dei a pedra da espada para minha primeira filha, para protegЖ-la quando a mandei para longe deste lugar. Sempre esperei que pudesse ser devolvida um dia, quando

um guerreiro precisasse dela. - Fechou as mсos sobre a de Rorke, apertada no cabo da espada. - Por quinhentos anos a espada foi julgada perdida. A mсe de Vivian a trouxe para mim, e eu a mantenho escondida desde entсo. A espada tem o poder da Luz, o poder de ver e saber, mas o verdadeiro poder jaz no homem que a empunha. Apenas com grande sabedoria e um coraусo sincero, ж que se pode realmente fazer uso dela. - Mas Arthur era um grande guerreiro - Rorke protestou, precisando de algo mais para lhe dizer como isso deveria ser feito se ele tivesse alguma chance de derrotar a Treva. - O coraусo de Arthur estava cheio da amargura por causa da traiусo. A amargura tornou-se uma arma que se voltou contra ele. VocЖ deve fechar os olhos e enxergar com o coraусo, guerreiro. Entсo, serр vitorioso. Voltaram juntos para a clareira no pomar. A Dama do Lago os esperava. Lрgrimas inundaram-lhe os olhos quando viu a espada nas mсos de Rorke. Mas nсo disse nada.

Nсo era necessрrio. Tudo que ela sentia era evidente no olhar, cheio de amor pela filha. - Precisa voltar agora - Merlin disse a ele. - O tempo passa e a Treva se torna ainda mais ousada na busca para destruir Vivian. Era como se o tempo na clareira nсo tivesse passado. Contudo, na lembranуa de Rorke, parecia que perdera horas preciosas. Avanуou para a pedra, que reluzia debilmente sob a luz da manhс. Pela primeira vez, as feiушes de Merlin fraquejaram. E ele pousou as mсos nos ombros de Rorke. - Nсo a deixe perecer. VocЖ ж a Щnica esperanуa de Vivian. Rorke relanceou os olhos mais uma vez para a dama que os observava e entсo se voltou e passou pelo portal de pedra. Desta vez nсo houve o dilacerante tormento de dor, nem o calvрrio de uma queda por uma longa e sombria passagem. E ele percebeu que, tambжm, aquilo fora um teste. Nсo sentiu raiva ou ressentimento por isso. Tinha apenas um pensamento ao pisar na clareira coberta de neve com

a lendрria espada Excalibur presa nas mсos. Vivian. Capьtulo XI

- Tive medo que pudesse nсo voltar, meu amigo - Tarek o saudou, com ar de preocupaусo. - Encontrou o que procurava? - Encontrei Merlin - Rorke disse, com secura. - Entсo a lenda ж verdadeira? Rorke ergueu a espada diante de si e os olhos de Tarek luziram, tсo azuis como a pedra no cabo da arma. Mas foi a velha Meg que murmurou o nome lendрrio com uma mistura de devoусo e incredulidade, como se a tivesse nas mсos. - Excalibur! Ele lhe deu a espada de Arthur - disse, admirada. - Rezei para que seu coraусo pudesse ser verdadeiro, milorde. - Cжus! - Poladouras exclamou, com reverЖncia. - Por Deus, eu sempre acreditei, pois os poderes de Vivian eram inegрveis. E a lenda vive no coraусo de todo inglЖs.

Mas ver a espada e saber que ж real, que Arthur era real… isso restaura a fж de um homem de que existe mais neste mundo do que podemos ver. Dр esperanуa. - Ele nсo a cedeu facilmente - Rorke admitiu. - Merlin ж tсo sagaz como diz a lenda. Tive de conquistar a espada. - Uma disputa? - Tarek exclamou com voz de espanto e seu olhar percorreu o amigo em busca de sinais de ferimento. - Sim - Rorke retrucou, sem se vangloriar. - Fui forуado a lutar com um rei pelo direito Я espada. Arthur vive naquele mundo entre os mundos. Rezo para que eu seja merecedor da confianуa de todos. Seu olhar era tсo sombrio como o cжu plЩmbeo. O portal desvaneceu-se com a alvorada que se abriu, tьmida, entre as nuvens, como um prenЩncio de uma grande escuridсo que se assomava. - Quanto tempo se passou? - ele perguntou com uma nova urgЖncia, ao colocar a espada na bainha e deixar a clareira. - Nсo mais que alguns instantes, meu amigo - Tarek assegurou-lhe, ao voltarem para os cavalos a fim de seguirem para a fortaleza.

Os portшes estavam novamente controlados pelos homens de Rorke. A armaria tambжm, com os aliados do conde aprisionados dentro, atж o retorno de Guilherme. Nсo havia tempo a perder nem ele poderia esperar pelo retorno de Guilherme. Rorke saltou do cavalo e rumou para o canto do pрtio onde as pedras antigas indicavam a entrada das catacumbas que um dia tinham abrigado um exжrcito romano. Talvez atж mesmo Arthur e seus homens tivessem vivido dentro daquelas paredes antigas quinhentos anos atrрs, antes de Tintagel, antes que a Treva traьsse um jovem rei, antes da Batalha de Camlann, onde Arthur fora mortalmente ferido e depois levado para um lugar chamado Avalon, e a mьtica espada com o poder da Luz lanуada dentro de um lago. Tarek apressou-se a segui-lo, mas Rorke o impediu com a mсo em seu ombro. - Esta batalha devo lutar sozinho. - Tenho lutado a seu lado desde Antioquia - protestou o persa. - Devo-lhe a vida. Por tudo que ж sagrado perante

seu Deus e o meu, eu tenho o direito. - Sim, meu amigo, vocЖ tem o direito. Por isso eu lhe peуo que fique de lado desta vez. - Viu a recusa nos olhos azuis de Tarek e procurou dissuadi-lo. - O que eu procuro nсo ж desta terra, meu amigo. Posso falhar. Nсo temo a morte, mas nсo gostaria de ser a causa da sua, contra as forуas da Treva. Se eu falhar e morrer, Stephen precisarр de vocЖ. - Nсo pedia por Guilherme, pois o futuro do duque da Normandia jр estava escrito, mas pelo jovem que era como um irmсo, e cujo destino ainda estava em aberto. - Nсo posso proibi-lo de ir. Mas peуo como amigo a quem me julgo ligado pelo sangue partilhado nos campos de batalha. - Acredita que essa espada o protegerр? - Tarek perguntou. - Creio que a Jehara me protegerр, pois ela ж minha vida. Tarek concordou, por fim. - Por isso ficarр me devendo um grande favor, que pretendo pedir para que retribua, e que vocЖ nсo poderр me negar. - De acordo.

Poladouras adiantou-se e pousou a mсo no ombro de Rorke. - Leve isto - disse, e deu a Rorke o crucifixo que normalmente pendia de sua cintura. - Tenho grande fж nele. Tem um poder sз seu. - A voz do monge vacilou e seus olhos reluziram de lрgrimas. - Traga Vivian de volta e farei a uniсo de vocЖs dois neste mundo ou em qualquer um de sua escolha. Meg foi a Щltima a se aproximar, depois que todos tinham se despedido. Ele a fitou, os olhos sem vida cheio daquela sabedoria de uma vida dedicada aos mestres da Luz. - Nсo hр nenhuma magia que eu possa lhe dar, guerreiro disse. - Sз posso lhe dar conselhos e rezar para que as forуas da Luz o protejam. - Entсo, entoou a profecia da visсo de Vivian naquele dia em Amesbury: - Cuidado com a fж que nсo tem coraусo, milorde. E a espada que nсo tem alma. - Por fim, o relembrou: - A Treva pode assumir vрrias formas. Tentarр enganр-lo. Nсo confie naquilo que verр ou ouvirр. Como Merlin o testou, assim farр a Treva, pois tudo estр em jogo. - Aproximou-se

e estendeu a mсo frрgil, pousando-a no coraусo de Rorke. - Seja honesto de coraусo, guerreiro. Creia no poder da Luz. - Entсo, recuou. - Eu a trarei de volta, senhora. - Deus queira que possa. Rorke seguiu para a entrada das catacumbas. Com apenas uma coisa em mente, tirou Excalibur da bainha de couro. - Ouуa-me, doce filha do fogo. Capte os meus pensamentos, saiba o que existe em meu coraусo e descubra o meu amor por vocЖ. Nсo ouviu nenhuma resposta, nem esperava por uma. Era Vivian que possuьa o poder de conhecer os pensamentos dos outros. Mandou os seus para ela e rezou para que ainda estivesse viva para ouvi-los. Entсo, segurando a espada em uma das mсos e uma tocha na outra, comeуou a descer os degraus das antigas ruьnas. Queria apressar os passos, mas as palavras de Meg e sua Prзpria cautela o refrearam. Poderia pЗr tudo a perder ao agir com pressa ou imprudЖncia. PaciЖncia e cautela, pensou, seguindo com cuidado pelos degraus desgastados pelo tempo.

O caminho estava iluminado por tochas colocadas nos suportes, ao mesmo tempo uma isca e um aviso de que havia alguжm a esperar por ele. Rorke seguia silenciosamente, o olhar Я frente de um halo de luz para o seguinte, alerta para as sombras traiуoeiras nos limites da visсo e atento ao outro aviso de Meg: a Treva poderia tomar qualquer forma. Entсo, acalmou os pensamentos, protegendo-os para nсo pensar em nada que pudesse traь-lo. Pois se Vivian poderia ter acesso a seus pensamentos, entсo a Treva tambжm os conheceria. Como Arthur fora traьdo, ele tambжm poderia ser. No momento em que pisou na cРmara, soube que Vivian estivera ali. Sentiu a essЖncia de sua presenуa, um resquьcio de calor dentro das paredes de pedra. Rorke fechou os olhos e pЗde senti-lo ainda mais forte, uma lembranуa daquele mesmo calor que os rodeara quando seus corpos tinham se unido e ele se sentira completo de uma forma que nсo conseguira nem entender nem explicar.

Ali, nas sombras mudas da cРmara, capaz de ver apenas dentro da poуa de luz da tocha, seus outros sentidos se tornaram mais fortes e compensaram o que ele nсo conseguia enxergar. Ouviu o sutil fluir de рgua conforme escorria das pedras, sentiu a umidade de sжculos no ar que o envolvia e penetrava por sua pele em correntes invisьveis de movimento. Abriu os olhos devagar mais uma vez e procurou perceber de que forma ela havia fugido dali. Descobriu no fundo da cРmara, onde a parede desabara, que se abria para outro espaуo. Pedras e entulho bloqueavam qualquer passagem, mas ele viu que Vivian passara por aquele caminho, escapando atravжs da parede, deixando um rastro de uma dжbil luz em vрrias pedras. Ele saiu correndo da cРmara, desceu pelo corredor e entrou num cЗmodo seguinte, e no outro, atж que encontrou uma passagem de ligaусo. Lр dentro descobriu o que

estava procurando, as pedras desabadas na parede do fundo da primeira cela e mais pontos de luz nas paredes. Ela passara por aquele caminho. Era um labirinto, uma confusсo de tocas que um dia haviam sido um posto militar que abrigara o antigo exжrcito de Roma. Os sons de рgua e o ar estagnado enchiam as celas como vozes sussurradas, conforme ele corria de uma passagem para a outra com a sensaусo de que estava sendo atraьdo para o fundo dos subterrРneos da fortaleza, guiado por um lampejo de luz bruxuleante, de uma pedra aqui para outra ali. Atж que dobrou uma esquina e descobriu outra parede. Ele recuou, procurando outros sinais de que Vivian passara por aquele caminho. Ela tambжm fora atraьda mais para dentro das catacumbas com uma finalidade que se tornara de repente clara para Rorke. Ali havia apenas a luz da tocha que ele carregava. A Luz era a fonte da forуa e do poder de Vivian. O fluido vital que a renovava e reabastecia de energias. Sem ela… Vivian poderia morrer. Se a Luz era vida, entсo a Treva, privada de toda luz, seria

como a morte para ela. Rorke continuou a procurar por um sinal de que ela passara por algum outro caminho, mas nada encontrou. Com uma frustraусo crescente percebeu-se a retornar para a parede de pedra que bloqueava a passagem depois da curva. Os traуos iridescentes luziam na lateral e depois sumiam de repente. Talvez ela tivesse passado atravжs da parede do fundo como fizera na primeira cela. Com a espada na mсo, Rorke procurou, primeiro numa parede, depois na seguinte. A luz da tocha incidiu na pedra azul do cabo de Excalibur e refletiu-se em milhares de pontos pelas paredes, a nсo ser na parede que bloqueava a passagem. Rorke passou o cabo da espada diante da parede vрrias vezes, inclinando-o para que captasse a luz da tocha. Nсo havia reflexo de luz. Com um pensamento sЩbito, ele enfiou a mсo pela parede. Para seu espanto, a mсo passou como se as pedras nсo existissem. Vivian possuьa o poder de atravessar as pedras. Fora assim que fugira da fortaleza naquela manhс em que escapara para a floresta. Ele porжm nсo possuьa tais poderes. Mesmo assim, sua mсo achara um espaуo alжm. Incerto

daquilo que poderia encontrar do outro lado ou mesmo se poderia chegar lр, Rorke respirou fundo e caminhou para a parede. Diferentemente de sua jornada atravжs do portal, nсo experimentou qualquer sensaусo. Era como se tivesse simplesmente dado um passo a mais pela passagem. Era uma ilusсo! A Treva tentarр enganр-lo. As palavras da velha Meg voltaram-lhe Я mente. Na parede ele viu traуos dжbeis de luz, um sinal que Vivian passara por ali. A ilusсo da parede tinha o intuito de enganр-lo para que voltasse atrрs. A Treva sabia que ele a seguia. Empunhando Excalibur adiante de si, Rorke continuou a descer a passagem, sem ouvir qualquer ruьdo, a nсo ser das correntes de ar e da рgua. - VocЖ nunca a encontrarр, guerreiro - as paredes pareciam murmurar conforme ele passava. - Ela estр alжm de suas mьseras emoушes mortais. Vivian serр encerrada numa

tumba na escuridсo, seus poderes banidos para sempre. As palavras pareciam escorrer das paredes, assombrando-o, tentando minar sua confianуa. Fechou a mente e lutou para ocultar as emoушes ao avanуar para dentro das catacumbas. Entсo ouviu outras vozes muito perto, misturadas ao som de uma risada feminina, que ele reconheceu. O som acariciava as paredes da passagem, atraindo-o e o fazendo recordar da paixсo que tinham compartilhado. Fez a volta numa passagem e estacou de repente. Entсo a viu, tсo bela como nunca vira. Ela estava num leito, a cabeуa jogada para trрs, o corpo nu sob o de um homem, enquanto se uniam com uma violЖncia lasciva tсo urgente que aquilo o transpassou como uma faca. Uma onda de ciЩme e зdio o invadiu. Suas mсos se fecharam no cabo da espada, ao erguЖ-la sobre a cabeуa para atacar. Entсo o homem virou a cabeуa na direусo de Rorke e a face que ele viu era a sua. E, com uma repentina percepусo, ele se deu conta de que se tivesse baixado a espada

teria causado a prзpria morte. Vivian tambжm virara a cabeуa para encarр-lo. Mas, a despeito da perfeiусo nua de seu corpo, os olhos que o fitavam nсo eram cheios do brilhante fogo azul, mas sombrios e negros como a morte. Ele soltou uma praga e baixou Excalibur abruptamente ao perceber a armadilha da mortal ilusсo. A luz de uma tocha na parede cintilou na pedra do cabo e a ilusсo desapareceu numa explosсo de retinir nos ouvidos que sз poderia ser uma explosсo de raiva. As sombras escuras rastejaram pelas paredes e se dispersaram para os cantos distantes, procurando fugir da cela conforme a luz da pedra no cabo da espada brincava pelas paredes como se as caуasse. - A Luz da espada! - Rorke murmurou, com uma nova percepусo, ao se dar conta de que a Treva fugira diante da Luz de Excalibur. - VocЖ nсo ж invencьvel. Saiu da cela com uma nova confianуa. Havia um meio de enfrentar a Treva. Porжm, para encontrar Vivian antes que fosse tarde demais, ele precisava ser tсo esperto

como a Treva. Continuou a procurar incansavelmente atж que a chama da tocha comeуou a falhar e morreu. Mesmo assim, ele continuou andando, seguindo os vestьgios nas paredes, sabendo que a Treva nсo poderia enganр-lo com traуos de luz. Sз Vivian poderia deixр-los. - Rorke, estou aqui! O som daquela voz o fez parar. Rorke voltou-se e a viu numa passagem apenas uns poucos passos de distРncia. Cauteloso a princьpio, olhou para a parede e viu os rastros de luz. - Acabou - disse ela, enquanto caminhava lentamente em sua direусo. - Ele nсo foi pрreo para mim. - Onde estр o bispo? - Rorke perguntou, cжtico, duvidando que tudo tivesse terminado tсo facilmente depois dos avisos de Merlin e de Meg, e, mesmo assim, com um enorme e quase avassalador alьvio ao ver que Vivian estava a salvo. - Aqui perto - ela respondeu, ao estender a mсo para ele. -

Percebeu que nсo podia competir comigo. Acabou. A Treva se foi. - Aconchegou-se aos braуos dele, o corpo macio e cheio de desejos. - Estou com medo - murmurou, compri-mindo-se e roуando os seios no peito de Rorke. O simples gesto o fez franzir a testa. Nunca soubera que Vivian tivesse medo de alguma coisa. E, no entanto, sentia aquele corpo contra o seu, os prзprios temores a se mesclarem a um desejo crescente. Deixou os dedos escorregarem pelos cabelos dela, enquanto ela lhe acariciava o braуo da espada. Entсo ergueu a face, os lрbios entreabertos Я espera de um beijo. Sua mсo fechou-se sobre a cabeleira que lhe pendia pelas costas, e ele inclinou-lhe a cabeуa para trрs, para tomarlhe a boca. Entсo ela o segurou pelo punho, os dedos a se fecharem em torno do cabo da espada. - Estр acabado - ela murmurou outra vez, a boca tсo perto da dele que ele podia sentir a excitaусo sensual. Mas… onde estava aquele doce fogo da inocЖncia?, imaginou, desconfiado. - VocЖ nсo precisa mais da espada. - Os dedos da jovem

tentaram soltar os dele do cabo de Excalibur. Assim que aqueles lрbios tocaram os seus, Rorke torceu brutalmente os cabelos que tinha entre os dedos, aprisionando a jovem, ao mesmo tempo em que sua outra mсo se fechava sobre o cabo de Excalibur e afastava a espada para longe. Os olhos que o encararam entсo eram negros e sombrios. - Quer a espada? - ele perguntou, com um rosnado feroz, empurrando a criatura para longe. Ela caiu no chсo, pareceu estremecer e depois desapareceu como as outras ilusшes tinham desaparecido. - VocЖ nсo pode tЖ-la - gritou para a Treva. - Pois eu nсo me deixarei trair por suas ilusшes. Eu encontrarei Vivian, nсo importa que forma vocЖ assuma. Eu a encontrarei! Mais uma vez as trevas correram pelas paredes da passagem, como figuras sombrias, fantasmagзricas, a fugir diante da luz. Desta vez, Rorke as perseguiu, sentindo que o atraьam para um confronto final. A passagem terminou, abrindo-se para o que poderia ter

sido algum tipo de arena. Ali, havia vрrias tochas colocadas nos suportes ao longo das paredes de pedra, revelando as aberturas sombrias de outros corredores, que confluьam para lр como os eixos de uma roda. A arena era grande, com degraus de pedra se abrindo em leque do centro, entre aquelas aberturas de passagem, como as ondulaушes concЖntricas num lago, para os espectadores sentarem e assistirem Яs lutas e festas. Ele sabia que fora atraьdo deliberadamente para aquele lugar. Quando a Treva descobrira que nсo o enganaria facilmente, o trouxera ali. - Vamos comeуar - Rorke disse a si mesmo. Preferia o confronto aberto para o qual fora treinado a vida inteira. Seus dedos se fecharam no cabo da espada enquanto seu olhar esquadrinhava cada entrada. - Entсo que comece e termine, guerreiro - veio a voz em resposta. E, conforme Rorke fez meia-volta na direусo do som, seu olhar caiu sobre o adversрrio. Era um oponente formidрvel, tсo alto quanto Rorke e vestido num traje do mais fino trabalho de cota de malha.

Sua tЩnica era negra, assim como as calуas. Mesmo a armadura era preta, como tambжm eram a espada que empunhava, as mсos enluvadas fechadas sobre o cabo, e o elmo com visor que lhe escondia as feiушes. Investiu num primeiro golpe, dirigido Я cabeуa de Rorke. Rorke desviou e saltou fora do alcance do segundo, que sabia que se seguiria, investindo contra um braуo protegido por cota de malha. Esquiva, investida, estocada. Os golpes choviam conforme ambos atacavam, para depois rapidamente se reposicionarem e em seguida investirem novamente. O som de aуo em aуo retinia pela arena. Rorke devolveu golpe apзs golpe, o aуo de Excalibur tсo sзlido em suas mсos como a firmeza de propзsitos que o impulsionava, atж que suas investidas comeуaram a fazer seu dano. Um contra-ataque veio segundos mais lento, a postura do oponente nсo mais ajustada para aparar o prзximo ataque, atж que o adversрrio comeуou a ceder terreno, lutando na defensiva. Mesmo assim, Rorke o fez

recuar ainda mais. Avanуou atж ultrapassar o ponto da exaustсo, superar os mЩsculos que travavam e queimavam de fadiga, e desferiu um ataque apзs o outro, o senso de finalidade a impulsionр-lo dando-lhe forуas para mais um golpe atж ter certeza de nсo encontrar mais resistЖncia. Em breve, nсo haveria mais investidas em resposta. Seu oponente podia apenas sustentar a forуa para bloquear Excalibur. Entсo, mesmo esses fracos esforуos comeуaram a falhar, e o braуo de espada mal conseguia se erguer enquanto Excalibur cintilava cada vez mais perto do elmo do guerreiro a cada ataque. A espada do adversрrio despencou dos dedos entorpecidos. O guerreiro negro caiu de costas contra o muro que cercava a arena, sem a arma, vulnerрvel, o visor do elmo caьdo para trрs. Rorke ergueu Excalibur para o golpe fatal. Mate! O pensamento despontou como um espectro sombrio, cegando-o para tudo a nсo ser a Рnsia de destruir.

Naquele momento, contudo, Rorke olhou para o oponente. Queria ver a morte na face do guerreiro. Queria senti-la cair sobre ele e perceber o instante exato em que sua vida findasse. Mas o olhar que o fitou de volta nсo era negro e sombrio como o da Treva que vira antes. Era de um azul brilhante, da cor do coraусo da chama. Nсo o negrume da Treva, mas o olhar iluminado de uma filha da Luz. Ele podia sentir a Treva em volta de si, invadindo seus pensamentos, enroscando-se em seu coraусo, murmurando em seu ombro, fechando-se sobre suas mсos como se estivesse postada atrрs, impelindo-o a desferir o golpe. Podia sentir o Mal, tсo real como carne e osso vivente. - Nunca! - ele gritou, com um feroz grito de batalha. Livrouse daquele envolvimento maligno, virou ao redor e embora nсo pudesse ver claramente sua forma, percebeu que ela estava ali. Com toda a forуa, Rorke desferiu um golpe descendente atravжs das sombras mutantes que pairavam onde ele estivera apenas instantes atrрs. Um grito de agonia encheu o ar.

Rorke sentiu a lРmina escorregar por vestimentas grossas, e depois deslizar para dentro da maciez da carne, chocar-se com um baque cego no osso e finalmente pender com o peso que puxava a ponta para baixo. Apoiando-se com forуa sobre a espada, ele esforуou-se por ficar em pж. Ao fitar o corpo que jazia a sua frente, o sangue a escorrer pelos trajes elegantes do bispo, Rorke endireitou-se e puxou a arma para trрs. O bispo gemeu, mas nсo se levantou. Rorke cambaleou de exaustсo e se voltou. A Treva invasiva desaparecera. Desaparecera tambжm a ilusсo do guerreiro com quem Rorke se confrontara. Em seu lugar, Vivian estava amontoada no chсo, contra a parede. Seus longos cabelos caьam sobre os ombros e a face quando ela lentamente se ergueu, apoiada nas mсos. Encarou-o, a luz de uma tocha a incidir nas feiушes pрlidas, a rutilar nos cabelos vermelhos e a resplandecer como uma chama azulada em seus olhos. Ele correu atж ela e puxou-a para os braуos fortes enquanto caьa de joelhos.

- Rorke! - ela exclamou, os braуos a se fecharem em seu pescoуo. - VocЖ veio me buscar. Suas mсos lhe empalmaram a face, e Rorke fitou as profundezas azuis daqueles olhos. Acariciou-lhe os cabelos e depois o rosto, como se quisesse confirmar que ela era de carne e osso, e nсo uma ilusсo. - Como nсo viria? - ele perguntou, as lрgrimas a derreterem o cinza gжlido de seus olhos. As sombras fugiram diante da luz radiante do bravo guerreiro e de sua dama do fogo, protegidos por uma espada lendрria. Seus lрbios se fecharam sobre os dela quando ele a beijou com ardor. - Eu morreria por vocЖ, Vivian de Amesbury. - Waes hael! O brinde ecoou pelo grande salсo da corte real de Guilherme. Era a Щltima noite do ano, e logo um novo ano se iniciaria. Novos tempos. Pelo menos por aquela noite, a corte estava animada com risadas e celebraушes, em meio Я mЩsica de flautas,

tambores e oboжs. Um fogo forte tremulava na lareira. Chamas das tochas ao longo das paredes brilhavam com vigor. Centenas de velas estavam sobre as longas mesas preparadas para a festa. Acrobata se apresentavam no centro do salсo, diante da plataforma e da mesa de Guilherme. Os cavaleiros do rei sentavam-se em torno dele, os cрlices erguidos em incontрveis outros brindes por boa saЩde, um longo reinado e outro, mais sзbrio, em cumprimento por sir Galan e todos que tinham sucumbido diante da traiусo do bispo no norte do paьs. Rorke FitzWarren se sentava do lado direito de Guilherme com Vivian do outro lado, e Tarek depois dela. Os outros cavaleiros, uma dЩzia de leais seguidores de Guilherme, sentavam-se de ambos os lados da longa mesa. A rainha descansava em seus aposentos com o filho recжm nascido. Em seu lugar, um lugar de honra e reconhecimento por ter arriscado a vida pela rainha, sentava-se

Stephen de Valois. Ao ver pai e filho juntos, Vivian pensou que a semelhanуa era impressionante e desejou que pudesse se criar, depois de tudo que acontecera, um elo entre os dois homens. Poladouras tinha um lugar de destaque na posiусo anteriormente ocupada pelo irmсo de Guilherme, o bispo, conde de Bayeaux. O bispo sobrevivera, embora fosse carregar o aleijсo de um ombro ferido pelo resto da vida. Guilherme nсo ordenara sua morte, mas o banira da corte, em desgraуa. Tсo logo os ferimentos estavam suficientemente curados, ele tivera de retornar Я Normandia, onde deveria permanecer em reclusсo monрstica pelo resto da vida, um destino pior que a morte para aqueles que sabiam de suas ambiушes. Os poderes da Treva, que usara as ambiушes do bispo para se apossar do reino, tinham desaparecido por ora. Enquanto isso, existia um frрgil equilьbrio no universo. Mas a sensaусo de Vivian era de que ainda nсo tinha acabado. Com a espada Excalibur, Rorke enfrentara a Treva, mas

nсo a destruьra. E, nesse aspecto, jazia o temor de Vivian, pois Merlin a advertira de que seria preciso destruir o mal para que o reino ficasse a salvo. Porжm, naquela noite, Guilherme sentia-se benevolente. Um novo ano assomava, distante apenas uns poucos minutos. Seu trono e sua rainha estavam em seguranуa. Ele dera ao filho recжm-nascido um nome saxсo para destacar o significado do laуo entre a Inglaterra e seu rei normando. Os conflitos civis continuavam. Vivian sabia que muitos distЩrbios pairavam adiante, como indicara sua visсo. Guilherme nсo governaria a Inglaterra facilmente, mas, como Rorke certa vez dissera, seu legado jр estava tecido na tapeуaria da Histзria. Havia outros fios ainda nсo tecidos e, enquanto ela se sentava ao lado de Rorke, sabia que apenas o tempo mostraria o desenho ainda nсo desenrolado dos fios por tecer. Quanto Яqueles de seu prзprio futuro, nсo tinham se revelado ainda. Vinho, trazido da Normandia, fluьa em abundРncia, e Guilherme chamou seu senescal e o escriba para documentarem suas palavras e fazer um registro oficial de seu

pronunciamento. Prometera terra e tьtulos a seus cavaleiros e nobres em troca de homens, armas e cavalos para seu exжrcito. Agora era hora de cumprir sua promessa. A voz de Guilherme ressoou ao chamar seus cavaleiros, para lhes conceder vрrios tьtulos e domьnios, de acordo com a posiусo e a importРncia da lealdade que representavam.

A uns poucos favorecidos ele permitiu escolherem os domьnios que desejavam, sempre cioso dos barшes e viЩvas saxшes que se sentavam Я corte. Um por um, esses poucos fizeram seus pedidos, atentos tambжm em nсo ultrapassarem os limites da generosidade de Guilherme, a menos que quisessem ser publicamente censurados diante de seus companheiros. Vivian estava fascinada pela maneira que Guilherme assegurava tanto a lealdade de normandos como a de saxшes, deixando claro que aceitara seu conselho sobre o assunto, ao mesmo tempo, profundamente triste pelas mudanуas cataclьsmicas que se antecipavam para toda a Inglaterra. A seu lado, Rorke ouvia em silenciosa contemplaусo. Quando ele a encontrara nas catacumbas e se defrontara com a Treva, tendo nas mсos a espada Excalibur, Vivian soubera que dentro dele havia um coraусo verdadeiro. E se permitira acreditar que seu amor por ela era tсo grande como o dela por ele. Porжm, depois do retorno de Guilherme, tinham tido pouco tempo para conversar.

Assim que Londres ficara mais uma vez segura sob o controle de Guilherme, incontрveis reuniшes tinham se realizado, e Rorke passara longas horas com o rei. Ela o vira poucas vezes e apenas quando ele voltava para o quarto, Я noite. Por algumas horas entсo, era possьvel encerrar do lado de fora as perturbaушes e rivalidades, e fingir que o mundo existia apenas dentro daquelas quatro paredes. O amor que os unia assumira um significado mais profundo, com uma percepусo aguda do quanto necessitavam um do outro. No entanto, nсo tinham falado do futuro. Agora, sentada ali, ouvia os cavaleiros falarem do futuro, inclusive Tarek ai Sharif. - Que recompensa gostaria de ter, Tarek ai Sharif, por sua lealdade ao rei Guilherme? - a voz do senescal soou em meio aos risos de celebraусo. Tarek sentava-se Я ponta da mesa. E Vivian surpreendeuse mais uma vez pela beleza incomum daquele guerreiro moreno que tinha voltado do norte mudado, de alguma forma. Conversara com ela logo depois do desenlace da traiусo do bispo, sobre um encontro com uma jovem que o avisara do ataque dos traidores.

- Ela era como a bruma, os cabelos de um ouro pрlido e olhos em que um homem poderia se perder dentro. E entсo, desaparecera, como se jamais tivesse estado ali. - Tarek fitara Vivian entсo, com uma expressсo pensativa. - Ela me recordou alguжm, embora eu nсo saiba dizer quem. - Talvez tenha sido um sonho - Vivian sugerira, guardando para si suas intuiушes, pois jр ouvira falar daquele lugar chamado Brecon. - Sim, um sonho, mas de carne e osso. Juro que a encontrarei. Naquele momento, seus amigos cavaleiros mal se calaram quando ele apresentou o seu pedido, pois os desejos do persa eram bem conhecidos. Uma recompensa em ouro para continuar a procura pelo pai, e o desejo de estar em qualquer lugar do mundo, a nсo ser naquele lugar hostil e frio chamado Inglaterra. - A regiсo norte nсo estр segura - disse Tarek, enquanto as lembranуas de uma criatura etжrea e loira lhe enchiam os pensamentos.-Gostaria de um domьnio lр e homens de minha confianуa para defendЖ-lo em seu nome - pediu

a Guilherme. De repente, o silЖncio caiu em torno da mesa pelo salсo conforme se espalhava a notьcia de seu pedido. Cavaleiros e soldados o encararam, incrжdulos. - E - emendou, com um sorriso sЩbito - calуas forradas de pele. O salсo explodiu em risadas, os comentрrios a fervilharem. - Concedido! - Guilherme bateu o punho na mesa com satisfaусo. - Nсo sei o que o fez mudar de idжia, Tarek ai Sharif, mas eu o saЩdo como um leal guerreiro. Terр suas terras, com homens e armas e meu nome para carregar ao norte. Que domьnio deseja? - Fica perto de um lugar chamado Brecon, onde seus cavaleiros morreram. - Sim - exclamou Guilherme, num tom sombrio. Defenderam as terras com o sangue. Rezo para que vocЖ nсo seja forуado a dar o seu para mantЖ-las. Entсo, em vez de perguntar a Rorke qual era seu pedido, o olhar de Guilherme cravou-se em Vivian.

- Lady Vivian - disse, animado -, nсo tenho o hрbito de conceder recompensas a damas, mas acho que estou em dжbito para com a senhora, tanto por meu reino como pela vida de minha rainha. Certa vez, pedi-lhe para dizer que prЖmio queria por ter salvado minha vida - ele a relembrou. - Quero que diga qual ж agora, pois a vincularia a mim como vinculei os outros. Descobri que tenho grande necessidade de sua sabedoria. Vivian ficou espantada. Em torno da mesa, viu os olhares especulativos dos cavaleiros de Guilherme, alguns deles agora noivos de jovens saxсs. Desde aquele dia em Amesbury, havia apenas uma coisa que Vivian queria: que os aldeшes nсo sofressem nenhum mal por sua causa. Agora, ela pensou, a oportunidade estava Я mсo, se Guilherme cumprisse com a palavra dada. E certamente cumpriria. - Gostaria de ter a vila de Amesbury, a abadia e os campos e florestas das redondezas - disse e, diante da surpresa que cruzou a expressсo de Guilherme, apressouse em explicar - Nсo ж grande coisa, milorde. Os aldeшes sсo pobres, a abadia estр quase em ruьnas. Eu nсo o

privaria de grandes riquezas, mas, para mim, ж de grande valor, pois ж meu povo. Guilherme franziu a testa, a boca repuxada nos cantos ao fitar o copo de vinho. Entсo seu olhar procurou o dela. - Nсo posso conceder o que me pede, senhora - disse, com pesar na voz. - Deve escolher outro prЖmio. - Nсo quero nenhum outro, milorde - ela insistiu. - Pode voltar a Amesbury, ж claro - Guilherme asseguroulhe. - A qualquer tempo que desejar. Mas acho que eu gostaria de ter minha sрbia conselheira por perto, pois hр muitas coisas que pode me ajudar a compreender. Escolha outro prЖmio enquanto me sinto generoso. Ela nсo se atreveu a recusar. - Obrigada, milorde. Vivian nсo queria ouvir mais nada. Estava desapontada demais por ter o pedido recusado. Ouviu apenas vagamente quando o rei pediu a Rorke que dissesse qual seria a recompensa que desejava.

Anjou, ela pensou com crescente tristeza, pois vira o que estava no coraусo e na alma de Rorke na visсo que tinham compartilhado. - Jр falamos sobre isso, milorde - Rorke disse a Guilherme. - Ah, realmente, falamos - concordou Guilherme. - Nсo mudou de idжia, entсo. - Nсo. Vivian levantou-se abruptamente da mesa, assustando Meg, que se sentara uma mesa atrрs da de Guilherme. Mally estava com a velha ama e, ao lado, Justin, o escudeiro. Os dois estavam noivos, depois de terem a autorizaусo de sir Gavin. - Nсo estр se sentindo bem? - a velha perguntou, preocupada, ao estender a mсo para Vivian. - Nсo ж nada ?- ela apressou-se a assegurar, enquanto pousava a mсo na cintura e sentia uma luz frрgil de uma nova vida luzir em seu ventre. Nсo estava doente, estava grрvida. Do filho de Rorke. Tinha de arranjar uma desculpa, pois nсo queria que Meg soubesse disso agora, embora fosse impossьvel esconder o fato dela. - Estр muito

abafado aqui dentro. Preciso de ar fresco. - Irei com vocЖ - Meg disse, levantando-se. - Nсo - Vivian retrucou. - Estр muito frio para vocЖ. Queria ficar sozinha. Nсo poderia suportar ficar ali e ouvir Rorke pedir aquilo que guardava no coraусo. Com a desculpa de ver a rainha, Vivian saiu do salсo. Assim que passou pelas portas principais, seguiu para as escadas que levavam Яs ameias mais altas, de onde vira Rorke e seus homens partirem para o norte, sem saber se ele voltaria ou nсo. Naquele instante, Rorke a observou sair e viu a direусo que tomava. Nсo para os aposentos da rainha, mas do lado oposto. Dando uma desculpa a Guilherme, deixou para Tarek a funусo de explicar sua escolha, pois todos julgavam que ele enlouquecera. Ao se levantar da cadeira, pousou a mсo no ombro de Meg. - Fique sentada, senhora, beba um pouco de vinho e nсo nos siga, pois quero falar com sua senhora a sзs. Onde ela foi? E nсo me olhe assim, ou lhe negarei o prazer

de cuidar do nascimento de meu primogЖnito. Onde foi Vivian? - repetiu. Meg pensou por uns instantes e entсo se decidiu. - Disse que precisava de ar fresco. Estava muito, abalada porque Guilherme lhe negou Amesbury. - Ela falou para onde ia? - Nсo. Ela nсo pensa em atravessar as muralhas de pedra, embora eu nсo poderia culpр-la se quisesse. Vivian deveria ir embora deste lugar. - Isso ж precisamente o que eu tenho em mente, senhora. Entсo, ele indagou, irritado. - Para onde ela foi? - Quando o senhor partiu para o norte, ela passava muitas horas nas ameias - Meg finalmente disse. Foi onde Rorke a encontrou. No alto do parapeito do baluarte da nova torre do rei, ela estava na ponta dos pжs e estendia os braуos pela borda como se quisesse pegar as estrelas do cжu. Vivian ofegou quando um braуo forte a envolveu pela cintura, puxando-a contra o corpo musculoso. Outro braуo fechou-se, segurando-a com firmeza.

- Pensa talvez em voar para o cжu, minha doce feiticeira? Ele ainda tinha o poder de enchЖ-la de anseios e de uma paixсo tсo forte que ela gostaria de fitр-lo e implorar para que nсo partisse da Inglaterra. Mas nсo podia. Vivian recostou-se contra o peito de Rorke e fechou os olhos, deixando que os sentidos se enchessem com a essЖncia mрscula do amado, como se pudesse absorvЖ-lo na prзpria alma. - Nunca aprendi a voar - ela confessou e, em seguida, emendou. - Nunca foi necessрrio. - Ouviu a tensсo na prзpria voz, sufocada pelas lрgrimas, e calou-se. - Talvez nсo - ele concordou. - Para quem tem o poder de atravessar muralhas, ver o pensamento dos outros e extrair o poder da chama, suponho que voar seja um problema trivial. Ele continuou a abraур-la, recusando-se a soltр-la quando Vivian tentou dar um passo atrрs. Ergueu-lhe o queixo, franzindo a testa diante das lрgrimas que escorriam pelo belo rosto. - Esta ж uma noite para celebraусo e no entanto vocЖ estр chorando. Por quЖ? Deveria estar contente. Guilherme a

honrou com um belo tьtulo, lady Vivian. - Ele foi muito generoso - ela murmurou, desviando o olhar. - Estou contente. - Estр tсo contente que suas lрgrimas vсo nos afogar. E, para alguжm que nunca mente, vocЖ ж uma pжssima mentirosa. - Fitou-a dentro dos olhos. - Pensei que quisesse voltar a Amesbury. Entсo todos os arranjos jр tinham sido feitos. Ela seria mandada para Amesbury. Talvez seu filho nascesse lр. - Sim, ж claro. - Mas terр de esperar, naturalmente, atж que seja construьdo um castelo adequado, pois eu nсo gostaria de viver num casebre de pedras ou numa abadia arruinada, embora seja duvidoso que qualquer invasor pudesse querer cercar um monte de pedras. Alжm disso, nсo quero que meu filho nasуa lр. O olhar espantado de Vivian procurou o dele. Seu filho? Como era possьvel que soubesse? Como se sentisse seus pensamentos, ou talvez os

adivinhasse, ele sorriu. - Acha que poderia esconder isso de mim por muito tempo? Uma velha senhora me falou a respeito. Meg, pensou Vivian, percebendo que a velha ama soubera quase ao mesmo tempo em que ela. - Mas… o que quer dizer com um castelo adequado? - ela perguntou, sem compreender. - Ora, para o senhor e a sra. de Amesbury. - Diante da confusсo de Vivian, Rorke sorriu com ternura e meneou a cabeуa. - Para alguжm tсo cheio de dons, minha cara, ж bastante cega. Guilherme nсo pЗde lhe dar Amesbury porque eu a reivindiquei para mim. E o rei precisa de castelos fortificados para abrigar seus cavaleiros e soldados. - Mas… nсo pode ser! - ela exclamou, incrжdula. - E quanto a Anjou? ╔ tudo o que vocЖ quis todos esses anos, desde a infРncia. Eu vi dentro de vocЖ. - Viu a raiva dos sonhos perdidos e a vinganуa, minha doce Vivian. - Acariciou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. - VocЖ me libertou da raiva do passado com a dрdiva de sua visсo.

- Eu nсo o prenderia com magia ou sortilжgio, ou com o fardo de um filho - ela murmurou, a garganta fechada por um nз de emoусo. - Somente por aquilo que existe em seu coraусo. Rorke tomou-lhe a mсo na sua e colocou-a sobre o peito. - Entсo, conheуa o meu coraусo, Vivian de Amesbury. Vivian abriu seus sentidos para ele e divisou o sentimento forte e poderoso que pulsava ali, um amor puro e verdadeiro que desafiara a Treva e a repelira. A mсo de Rorke deslizou atж seu ventre, e ele murmurou, com uma ternura infinita: - Meu futuro estр aqui. Vivian experimentou uma sensaусo de plenitude, como se ele pudesse acalentar o filho ainda em seu ventre. Rorke beijou-a, extraindo dela o ardente calor e depois o devolvendo no deslumbramento da descoberta, enquanto seus sentidos se abriam para ela e os dois se tornavam um sз. Da remota fortaleza do castelo, dos campos em que

cuidavam de seus rebanhos, dos barcos com linhas lanуadas em рguas escuras e das forjas incandescentes, os homens olharam para o alto e viram uma brilhante estrela azul no cжu da meia-noite, como uma jзia reluzente suspensa entre o cжu e a Terra. Um sinal, alguns disseram, conforme a estrela riscou o cжu, um poderoso farol que ilumina o caminho, o olho de um dragсo que enxerga alжm das brumas do tempo…
Quinn Taylor Evans - O legado de Merlin 1 Filha do fogo

Related documents

490 Pages • 77,714 Words • PDF • 935.1 KB

14 Pages • 926 Words • PDF • 517.1 KB

268 Pages • 143,532 Words • PDF • 2.3 MB

6 Pages • 1,748 Words • PDF • 239.6 KB

303 Pages • 92,720 Words • PDF • 1.7 MB

142 Pages • 79,636 Words • PDF • 916.6 KB

227 Pages • 74,092 Words • PDF • 940.6 KB

16 Pages • 3,911 Words • PDF • 840.8 KB

149 Pages • 37,233 Words • PDF • 725.5 KB

10 Pages • 1,308 Words • PDF • 2.3 MB

238 Pages • 71,075 Words • PDF • 2.6 MB