Sherry Thomas - Trilogia Londres 03 - Promessas de Amor

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Ficha Técnica Título original:His at Night Título: Promessas de Amor Autor: Sherry Thomas Tradução: Maria João da Rocha Afonso Revisão: Domingas Cruz Design de capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda ISBN: 9789898228963 QUINTA ESSÊNCIA uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda. uma empresa do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © Sherry Thomas, 2010 e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

E-mail: [email protected] www.quintaessencia.com.pt www.leya.pt

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico

Para a minha querida amiga Janine Ballard, minha guia na história, meu bom-senso e o vento por baixo das minhas asas. O dia 15 de maio de 2003 será para sempre um dos dias da minha vida com mais sorte.

1 de Vere era um homem de poucas palavras. Tal facto espantaria O marquês toda gente, exceto alguns amigos seletos e conhecidos especiais de entre os muitos que tinha. O consenso geral era que Lorde Vere falava. E falava. E falava. Não havia assunto na Terra, por mais exótico ou abstruso, sobre que não se aventurasse a emitir uma opinião, ou mesmo dez, sempre com o maior entusiasmo. Para dizer a verdade, ocasiões havia em que ninguém conseguia evitar que pontificasse sobre aquela recém-descoberta classe de substâncias químicas a que deram o nome de Pré-Rafaelitas ou sobre os curiosos hábitos gastronómicos das tribos de pigmeus do interior da Suécia. Lorde Vere era também um homem que guardava os seus segredos com o maior cuidado. Se alguém fosse iludido ao ponto de ousar dar voz a tal afirmação, ver-se-ia rodeado de damas e cavalheiros rebolando-se no chão a morrer de riso. E tudo porque era crença generalizada que Lorde Vere não conseguia distinguir um segredo de um porco-espinho. Não só era tagarela, como, por iniciativa própria, divulgava as informações mais íntimas antes de pensar duas vezes. De bom grado relatava as suas desventuras na corte que fazia a jovens damas: era rejeitado logo de início e com grande frequência, não obstante a sua posição de par do reino. Sem a menor hesitação declarava o estado das suas finanças, apesar de se ter descoberto que não fazia a mínima ideia do valor dos fundos postos à sua disposição, atuais e futuros, tornando as suas conjeturas altamente inconsequentes. Ele até se aventurava – claro que não no meio de uma companhia mista – a comentar o tamanho e grossura do seu atributo masculino: invejável em ambos os parâmetros, tendo as medidas sido confirmadas pela experiência das alegres viúvas que o procuravam para esporádicas incursões entre lençóis. Por outras palavras, Lorde Vere era um idiota. Não um idiota alucinado, uma vez que a sua sanidade raras vezes fora posta em causa. E não tão estúpido que não fosse capaz de atender às suas necessidades quotidianas. Era, isso sim, um idiota divertido, tão ignorante e inchado como uma almofada, palerma

até mais não, mas simpático, inofensivo e muito apreciado pelos Dez Mil da Alta1 pela diversão que proporcionava, bem como pela sua incapacidade de se lembrar de qualquer coisa que alguém lhe dissesse e que não afetasse as suas refeições, o seu sono de beleza, ou o orgulho e alegria que habitavam a sua roupa interior. Não era capaz de dar um tiro a direito e as balas que disparava só por acidente acertavam numa perdiz. Raras vezes falhava em fazer girar maçanetas e alavancas ao contrário do que devia. E como o seu dom em estar no local errado à hora errada era lendário, ninguém pestanejou quando se soube que fora testemunha de um crime, sem ter a menor ideia do que vira, com toda a certeza. Nos treze anos que se seguiram ao infeliz acidente de cavalo mostrara-se um idiota tão extraordinário que ninguém que não estivesse familiarizado com as suas atividades mais clandestinas notara a sua proximidade a alguns dos mais sensacionais casos criminais da alta sociedade, pouco tempo antes de serem resolvidos e os criminosos presentes à justiça. Era uma vida interessante, para não dizer mais. Por vezes, os raros agentes da Coroa que conheciam o seu verdadeiro papel interrogavam-se quanto ao que sentiria por fazer figura de parvo durante a maior parte do tempo. Nunca descobriram porque era um homem de poucas palavras, que guardava os seus segredos com o maior cuidado. É claro que nenhum segredo se mantém secreto para sempre… o início do fim do segredo de Lorde Vere resultou, literalmente, da emboscada de uma jovem senhora de linhagem questionável e métodos igualmente duvidosos. Uma jovem senhora que, numa estranha reviravolta da fortuna, pouco tempo depois viria a ser a marquesa de Vere, sua esposa. Os ratos foram ideia de Vere. Eram a sua noção de piada, para ser mais preciso. Estava-se no final da temporada e Londres esvaziava-se. No início do dia, Vere fora despedir-se do irmão ao comboio, no dia seguinte, ele próprio iria

para o Gloucestershire. Não havia época melhor do que o início de agosto para aparecer inocentemente numa mansão no campo para a qual poderia não se ter sido convidado… e afirmar que se fora. Bem vistas as coisas, o que era um convidado mais numa casa onde já vagueavam cerca de trinta? Mas o encontro daquela noite prendia-se com Edmund Douglas, o eremita proprietário de minas de diamantes, suspeito de extorsão aos negociantes de diamantes de Londres e Antuérpia. – Precisamos de uma forma melhor para entrar naquela casa – dissera Lorde Holbrook, o contacto de Lorde Vere. Holbrook era uns anos mais velho que Vere. No tempo em que Oscar Wilde fora a celebridade literária mais importante do país, Holbrook usara o cabelo comprido e cultivara um certo ar de ennui intelectual. Agora que Wilde partira, em desgraça, para o exílio, o langor de Holbrook fazia-se acompanhar de um cabelo mais curto e de uma exibição de niilismo mais direta. Vere serviu-se de uma fatia de bolo Saboia. O bolo era fofo e leve e tinha a consistência certa para aguentar uma colherada de compota de alperce. Holbrook conseguia manter os seus esconderijos – uma série de propriedades espalhadas por toda a cidade de Londres – bem abastecidos pelo que, quando um dos seus agentes necessitava de usar um deles, havia sempre boa bebida e tudo o que era necessário para um chá decente. Na outra ponta da espalhafatosa sala de estar – esta casa em particular ficava em Fitzroy Square e fora em tempos habitada por uma série de amantes de vários homens –, Lady Kingsley chegava a ponta de um guardanapo ao canto dos lábios. Era uma morena bonita, mais ou menos da mesma idade que Holbrook, filha de um baronete e viúva de um cavaleiro. As mulheres tinham vantagens enquanto agentes secretos. Vere e Holbrook viam-se forçados a assumir personagens diferentes do que eram, de forma a não serem levados a sério, necessidade imperiosa quando, em nome da Coroa, se andava a fazer perguntas acerca de assuntos delicados. Mas uma mulher, mesmo inteligente e capaz como Lady Kingsley, arranjava muitas vezes maneira de ser tida em pouca consideração sem mais motivo que por causa do

seu sexo. – Eu já te disse, Holbrook – afirmou. – Temos de usar a sobrinha de Douglas. Holbrook, esparramado numa cadeira forrada a veludo vermelho e com uma franja dourada, deu um piparote no relatório mais recente do caso que tinha sobre o peito. – Pensava que a sobrinha não saía de casa há anos. – Precisamente. Imagina que és uma rapariga de vinte e quatro anos, que já ultrapassaste há muito a altura em que, como menina da sociedade, devias ter casado e estás isolada de toda a alegria e divertimento da sociedade que interessa. Qual seria a coisa que mais te tentaria? – Ópio – respondeu Holbrook. Vere sorriu e não disse nada. – Não. – Lady Kingsley revirou os olhos. – Quererias ter oportunidade de te encontrares com homens jovens solteiros, tantos quantos fosse possível enfiar debaixo de um mesmo teto. – E onde, minha senhora, tenciona ir desencantar uma molhada de solteiros desejáveis? – perguntou Holbrook. Lady Kingsley fez um leve gesto de repúdio com a mão. – Essa é a parte fácil, reunir os engodos masculinos. O problema é que não posso aparecer em Highgate Court, sem mais nem menos, e apresentar os cavalheiros… já fez três meses que aluguei a casa mais próxima e ainda não consegui encontrar-me com ela. – Posso? – Vere apontou para o relatório pousado no peito de Holbrook. O amigo atirou-lho. Vere apanhou-o e folheou-o. A propriedade de Edmund Douglas, em que mantinha residência desde 1877,

era uma mansão construída segundo as suas indicações. Por todo o país, havia centenas de novas casas parecidas, mandadas construir por proprietários donos de fortuna, ganha devido à prosperidade da Idade do Vapor. Era uma propriedade bastante vulgar, mas, no entanto, revelara-se difícil entrar lá dentro. Um simples assalto não lograra resultados. Uma tentativa de infiltração no pessoal também não tivera sucesso. E, dada a fraca saúde de Mrs. Douglas, a família raras vezes convivia com a sociedade local, tornando inúteis as rotas para o presbitério socialmente mais aceitáveis. – Arranje um desastre doméstico em sua casa – disse Lorde Vere a Lady Kingsley. – E fica com uma desculpa para a abordar. – Eu sei. Mas estou hesitante em danificar o telhado, ou a canalização, de uma casa arrendada. – E os teus criados não podem apanhar qualquer coisa horrível mas não infeciosa? – indagou Holbrook. – Um caso de diarreia generalizada? – Tem juízo, Holbrook. Não sou farmacêutica e não vou envenenar o meu próprio pessoal. – E que tal uma infestação de ratos? – sugeriu Lorde Vere, mais por piada do que por qualquer outra razão. Lady Kingsley estremeceu. – O que quer dizer com isso, uma infestação de ratos? Lorde Vere encolheu os ombros. – Solte uma ou duas dúzias de ratos na casa. Os seus convidados vão fazer uma gritaria, a pedir para serem evacuados. E os ratos não provocam danos permanentes na casa, desde que arranje alguém para os caçar com relativa rapidez. Holbrook endireitou-se na cadeira.

– Mas que esplêndida ideia, meu caro. Dá-se o caso de conhecer um homem que cria ratos e ratazanas para abastecer os laboratórios científicos. Tal não constituiu surpresa para Lorde Vere. Holbrook tinha à sua disposição uma grande variedade de contactos bizarros e de utilidade igualmente bizarra. – Não. É uma ideia horrível – protestou Lady Kingsley. – Au contraire, acho que é de puro génio – declarou Holbrook. – Dentro de duas semanas, Douglas viaja até Londres para se encontrar com o seu solicitador, não é verdade? – Certo. – Deve dar tempo suficiente. – Holbrook reclinou-se de novo na sua cadeira de veludo vermelho. – Considera-o feito. Lady Kingsley fez uma careta. – Odeio ratos. – Pela rainha e pelo país, minha senhora – disse Lorde Vere, pondo-se de pé. – Pela rainha e pelo país. Holbrook bateu com a ponta do dedo nos lábios. – É interessante que tenha falado na rainha e no país, senhor: acabei de saber de uma chantagem sobre um certo membro da família real e… Contudo, Lorde Vere já tinha abandonado a sala. 1 Expressão criada em 1852 por Nathaniel Parker Willis, um poeta americano, para descrever as classes altas de Nova Iorque e, por extensão de sentido, a de outras grandes cidades. (N. da T.)

2 Duas semanas mais tarde iss Elissande Edgerton estava de pé à frente da mansão de Highgate Court. A chuva batia com força no seu guarda-chuva preto; um nevoeiro cinzento e frio cobria tudo exceto o caminho de acesso à casa.

M

Estavam em agosto, mas já parecia novembro. Sorriu para o homem à sua frente. – Tenha uma boa viagem, meu tio. Edmund Douglas devolveu-lhe o sorriso. Para ele, esta fachada afetuosa não passava de um jogo. Nesta casa não há choradeiras, percebes, minha querida Elissande? Põe os olhos na tua tia. Não é suficientemente forte ou inteligente para sorrir. Queres ficar como ela? Logo aos seis anos, Elissande soubera que não tinha o menor desejo de vir a ser como a tia, aquele espetro pálido e lacrimoso. Não percebia a razão do choro da tia. Mas sempre que as lágrimas da tia Rachel se soltavam, sempre que o tio passava o braço sobre os ombros da mulher e a conduzia para o quarto dela, Elissande esgueirava-se para fora da casa e corria para tão longe quanto se atrevia, com o coração aos saltos de medo, repulsa e uma fúria que a queimava como carvão ardente. Portanto, aprendera a sorrir. – Muito obrigado, minha querida – respondeu Edmund Douglas. Contudo, ele não fez menção de entrar na carruagem que o aguardava. Gostava de prolongar as despedidas – ela suspeitava que o tio sabia muito bem o quanto ela ansiava por que se fosse. Elissande alargou o sorriso.

– Trata bem da tua tia enquanto eu estiver fora – disse ele, levantando o olhar para a janela do quarto da mulher. – Sabes como me é preciosa. – Claro, meu tio. Ainda a sorrir, ela inclinou-se para lhe dar um beijo na face, controlando a sua aversão com uma mestria que lhe apertou a garganta. Ele exigia esta demonstração de afeto perante os criados. Não era qualquer homem que conseguia esconder a sua vileza tão bem que enganava o seu próprio pessoal. Na aldeia ouviam-se rumores acerca das beliscadelas que o fidalgo Lewis dava em alguns traseiros ou acerca da água que Mrs. Stevenson misturava na cerveja que dava aos criados. Mas o único sentimento que circulava na aldeia em relação a Mr. Douglas era uma admiração uniforme pela sua paciência de santo, coitado, já que Mrs. Douglas era tão frágil e não totalmente certa de cabeça. Ele acabou por subir para a carruagem. O cocheiro, enrolado na sua capa, fez estalar as rédeas. As rodas rangeram na gravilha molhada do caminho. Elissande ficou a acenar até a carruagem dobrar a curva; então, deixou cair o braço e esqueceu o sorriso. Vere nunca dormia tão bem como num comboio em andamento. Na sua vida, houvera ocasiões em que apanhara o Expresso Especial Escocês, entre Londres e Edimburgo, sem outra razão que não as oito horas de sono sem sonhos que lhe proporcionava. A viagem até ao Shropshire levava menos de metade do tempo e implicava várias mudanças de comboio. Mesmo assim, apreciou-a: fora provavelmente o bocado que mais apreciara desde as sestas que dormira a caminho do Gloucestershire, ido de Londres, onde passara as duas semanas anteriores a recuperar um plano de contingência para uma invasão que o Ministério dos Negócios Estrangeiros «perdera», não se sabia como. Uma missão delicada, considerando que o alvo do plano era o Sudoeste Africano, na posse dos alemães e, no mínimo, as relações com a Alemanha andavam tensas. Cumprira a sua missão sem o mais pequeno indício de escândalo

internacional. Contudo, o prazer que retirou do seu sucesso foi contido. Levava aquela vida dupla em busca da justiça e não para safar idiotas que não conseguiam guardar documentos sensíveis longe do perigo. Mas, mesmo quando os casos alimentavam a sua fome de justiça, ainda assim a sua satisfação era oca, durava pouco, o pálido brilho das brasas que estavam prestes a transformar-se em cinza, e era seguida de uma exaustão que perdurava algumas semanas. Um vazio que nem o sono mais profundo, mais reparador, era capaz de apagar. A carruagem que Lady Kingsley enviara para o ir buscar atravessou com rapidez vários quilómetros de paisagem campestre verdejante. Já não estava capaz de dormir e ainda não queria pensar no seu próximo caso. Era verdade que o estado geral de reclusão de Edmund Douglas necessitara de uma invulgar dose de planeamento, mas a investigação não passava de mais uma numa carreira recheada de casos pouco ortodoxos que a polícia local não podia resolver e de que, muitas vezes, nem sequer tinha conhecimento. Olhou pela janela, para o exterior. Em vez de prados bem tratados, ainda molhados da chuva mas rebrilhantes sob um sol da tarde recém-aparecido, viu uma paisagem totalmente diferente: vagas que se desmoronavam, penhascos altos, a charneca vermelha da urze em flor. À sua frente, estendia-se um carreiro que ia até ao alto da encosta; uma mão, cálida e firme, segurava a sua. Conhecia o carreiro. Conhecia os penhascos, a charneca e o mar, as costas de Somerset, do Norte do Devon, e da Cornualha eram locais excecionalmente bonitos que visitava tantas vezes quantas podia. A mulher que lhe segurava a mão, contudo, existia apenas na sua imaginação. Mas ele conhecia os seus passos leves e ágeis. Conhecia a sua saia de lã grossa: restolhava suavemente ao ritmo do andar dela, num som que ele só conseguia escutar quando o ar estava parado e o caminho era alto, longe do estertor das vagas. E conhecia a linha da nuca dela, por baixo do chapéu de aba larga que lhe protegia a pele do sol. Muitas vezes pusera o seu casaco sobre os ombros dela, quando o dela se mostrara pouco adequado ao tempo

frio e instável da costa. Ela era uma caminhante infatigável, uma amiga serena e, durante a noite, uma amante complacente e doce. As fantasias são como prisioneiros, têm menos probabilidades de se revoltarem se lhes for concedida uma dose sensata de exercício controlado. Portanto, ele evocava-a com alguma frequência: quando não conseguia dormir, quando estava demasiado cansado para pensar em qualquer outra coisa, quando temia regressar a casa após semana atrás de semana a desejar silêncio e solidão. Ela só tinha de pousar a mão no braço dele, num toque pleno de calor e compreensão, e ele ficava bem, o seu cinismo acalmava-se, a sua solidão amenizava-se, os pesadelos eram esquecidos. Era suficientemente lúcido para não lhe dar um nome ou imaginar a sua aparência física até ao mais ínfimo pormenor, desta forma, era-lhe possível fingir que, um dia, acabaria por encontrá-la num canto discreto de uma sala de baile profusamente iluminada e pejada de gente. Mas era suficientemente fraco para ter imaginado o sorriso dela, um sorriso de tal perfeição e encanto que ele não conseguia impedir-se de ficar feliz na sua presença. Ela não sorria muitas vezes, porque ele também não conseguia ser feliz com grande frequência, mesmo que em imaginação. Mas, quando ela sorria, o que sentia no seu coração era como ter de novo seis anos e estar a correr para o oceano pela primeira vez. Todavia, naquele dia, ele não queria emoções, mas uma companhia calma. Por isso, caminharam juntos, por um caminho que trilhava sozinho na vida real. Na altura em que a carruagem atravessou os portões de Woodley Manor, a propriedade que Lady Kingsley arrendara, ele estava de pé ao lado dela nas ruínas do castelo do rei Artur, com a mão pousada nas costas dela, olhando para os carneirinhos de espuma no mar, lá no fundo. E poderia ter ali ficado durante bastante tempo – ele era bastante bom a dizer olás e adeus enquanto se mantinha no seu mundo de sonho – não fora ver o irmão à frente da casa, a acenar-lhe. Aquilo trouxe-o bruscamente de volta à realidade.

Saltou da carruagem, tropeçando na bengala. Freddie amparou-o. – Cuidado, Penny. Quando respirara pela primeira vez, Vere já era visconde de Belgrave. Aos dezasseis anos, por morte do pai, tornara-se marquês de Vere. Com exceção da mãe, já falecida, de alguns amigos de longa data e do irmão, ninguém usava a alcunha, um diminutivo de Spencer, o seu nome de batismo. Abraçou Freddie: – Como vai isso, meu velho? Era raro Vere pensar que se estava a meter em perigos. As investigações que fazia não exigiam armas e a sua personagem pública protegia-o de suspeitas indevidas. Mas nunca tivera Freddie por perto quando se preparava para dar início a um caso. Freddie era a única coisa que correra bem na vida de Lorde Vere. O rapaz ansioso que, em tempos, o preocupara crescera e era agora um belo homem, de vinte e oito anos: o mais esplêndido homem de entre todas as relações de Lorde Vere. O homem mais esplêndido das relações de qualquer pessoa, pensou, com um orgulho absurdo. Duas semanas no campo tinham avermelhado a pele clara de Freddie e aclarado os caracóis louros vários tons. Ele apanhou a bengala que Vere deixara cair e, discretamente, endireitou a gravata do irmão, que andava sempre torta uns trinta graus. – O Kingsley perguntou-me se eu queria vir visitar a tia dele. Disse que sim quando soube que tu também tinhas sido convidado. – Não sabia que os Wrenworth tinham convidado o Kingsley para casa deles.

– Bem, eu não estava em casa dos Wrenworth. Saí de lá na quinta passada e fui para casa dos Beauchamp. E lá devia ter ficado. Não obstante a substancial ausência de perigo corporal que a sua atividade implicava, Vere teria ficado mais satisfeito se não tivesse Freddie por perto. – Pensava que gostavas imenso de estar com os Wrenworth. Porque te vieste embora tão cedo, desta vez? – Oh, não sei – Freddie desenrolou as mangas de Vere, que ele, não raras vezes, mantinha enroladas a alturas diferentes. – Estava a apetecer-me uma mudança de cenário. Isto deu uma pausa a Lorde Vere. Não costumava associar Freddie a inquietação, a menos que ele estivesse preocupado com qualquer coisa. Um grito do tipo donzela-encontra-dragão soou na calma bucólica. – Valha-me Deus, o que vem a ser isto? – exclamou Vere, com uma muito credível nota de surpresa na voz. A pergunta teve vários gritos por resposta. Miss Kingsley, a sobrinha de Lady Kingsley, correu para fora de casa a guinchar a plenos pulmões. E chocou em cheio com Lorde Vere, ele tinha um talento excecional para se meter no caminho das pessoas. Agarrou-a. – O que se passa, Miss Kingsley? Miss Kinglsey debatia-se, tentando libertar-se da mão dele. Por um instante, parou de gritar, mas foi apenas para inspirar de novo. A seguir, escancarou a boca e emitiu o guincho mais demoníaco que Vere alguma vez escutara. – Dá-lhe um estalo – implorou a Freddie. Freddie ficou chocado.

– Não posso bater numa mulher! Por isso, Vere bateu. Miss Kingsley parou de gritar e perdeu energia. Ofegante e a piscar os olhos, olhou para ele com um olhar vago. – Miss Kingsley, está bem? – perguntou Freddie. – Estou… estou… meu Deus, os ratos, os ratos… E irrompeu em soluços. – Segura-a. – Vere atirou-a para os braços mais amáveis e compassivos de Freddie. Correu para dentro de casa e imobilizou-se no meio do vestíbulo. Uma ou duas dúzias de ratos, fora o que dissera a Holbrook. Mas havia centenas, correndo como riachos ao longo de paredes e corredores, trepando pelos corrimãos e descendo pelos cortinados, derrubando um grande vaso de porcelana, que tombou com estrondo, enquanto Vere ficou ali, paralisado, a um tempo revoltado e fascinado com o que via. – Saiam da minha frente! Kingsley, o sobrinho de Lady Kingsley, apareceu a correr, de espingarda na mão. No preciso momento em que cruzava o centro do vestíbulo um ratinho saltou do candelabro. – Kingsley, por cima de ti! – gritou Vere. Demasiado tarde. O rato aterrou na cabeça de Kingsley. Kingsley gritou. Lorde Vere atirou-se para o chão ao mesmo tempo que a espingarda de Kingsley disparava. Kingsley gritou outra vez. – Raios, está dentro do meu casaco!

– Não chego nem perto de ti se não pousas imediatamente a espingarda! E não atires com ela, que pode disparar outra vez. – Aaaaahh! – Com um baque surdo, a espingarda caiu no chão. – Ajuda-me! Contorcia-se violentamente, como se fosse a marioneta de um louco. De um salto, Vere chegou perto dele e arrancou o casaco de Kingsley. – Acho que está dentro do colete. Deus do céu, não deixes que se enfie dentro das minhas calças! Vere rasgou em dois o colete de Kingsley. E lá estava o bicharoco, preso nos suspensórios do rapaz. Vere agarrou-o pela cauda e atirou-o para longe, antes que conseguisse virar-se e morder-lhe. Kingsley saiu disparado porta fora, em mangas de camisa. Vere abanou a cabeça. De uma sala à sua esquerda vinham mais gritos. Avançou naquela direção com rapidez, abriu a porta e, de imediato, teve de se agarrar à parte de cima da porta, e tirar os pés do chão, quando uma torrente de ratos passou por si a correr. Lady Kingsley, três jovens senhoras, dois cavalheiros e um lacaio estavam de pé em cima da mobília, sobre um oceano de ratos, duas das senhoras gritavam que nem possessas e Mr. Conrad acompanhava-as com igual entusiasmo e volume. Lady Kingsley, empoleirada em cima do piano, usava a estante de música para atacar com violência qualquer rato que se atrevesse a trepar para a sua ilha de segurança. O lacaio, de atiçador de lareira em punho, defendia as jovens senhoras. Quando um número suficiente de ratos tinha já abandonado a sala, Lorde Vere ajudou os sitiados hóspedes de Lady Kingsley a sair dos seus lugares elevados. Miss Beauchamp tremia tanto que ele teve de a carregar para o exterior. Quando voltou, deu com Lady Kingsley de pé, apoiada à parede com uma mão e com a outra sobre o abdómen e os dentes cerrados com força.

– Está bem, minha senhora? – Penso que não vou ter de me esforçar muito para ter um ar aflito quando for falar com Miss Edgerton – disse numa voz que pouco mais era do que um sussurro. – E o Holbrook é um homem morto. – No ponto mais elevado do planalto está a capelinha de Santa Maria del Soccorso, onde um alegado eremita tem um livro de visitas e vende vinho. Daquele ponto, a vista é especialmente bonita e esmagadora. O precipício é absolutamente vertical e, em todas as direções, a linha da costa é de uma beleza absoluta… Elissande via-a com toda a nitidez: a ilha de Capri, elevando-se, qual sereia, do Mediterrâneo. Ela própria, caminhando ao longo dos penhascos abruptos, com o cabelo a voar ao vento e um ramo de cravos selvagens na mão. Nenhum som, com exceção do mar e das gaivotas, ninguém a não ser os pescadores que, lá no fundo, remendavam as redes e nenhuma outra sensação que não a clareza e serenidade de uma liberdade completa e absoluta. Por pouco não conseguiu apanhar a tia quando ela deslizou do seu assento na retrete para o chão. Tinham já passado mais de quarenta e oito horas desde que a tia Rachel evacuara pela última vez – efeitos de uma existência de inválida. À força de lisonjas, Elissande persuadira a tia a sentar-se durante um quarto de hora a seguir ao almoço, e ela própria se sentara perto, a ler em voz alta um guia de viagem do Sul de Itália, para ajudar o tempo a passar. Mas, quer tal se devesse à sua leitura nada estimulante, ou ao láudano que não era capaz de negar à tia, em vez disso, a tia Rachel adormecera com o recipiente por baixo de si preocupantemente vazio. Ela meio puxou, meio carregou a tia Rachel para fora da sanita. Nos seus braços, a velha senhora pesava pouco mais do que um feixe de paus e tinha mais ou menos a mesma mobilidade e coordenação. O tio era especialista em descobrir o que desagradava aos que dele dependiam e fazia-os suportá-lo. Por essa mesma razão, a camisa de noite da tia Rachel tinha um intenso cheiro a cravinho, que ela detestava.

Que ela detestara. Havia já uns anos que a tia Rachel se mantinha numa névoa quase perpétua de láudano e quase já não reparava em mais nada, desde que tivesse a dose seguinte de tintura a tempo. Mas Elissande ainda se importava, trouxera uma camisa de noite sem cheiro do seu quarto. Cuidadosamente, depositou a entontecida tia na cama, lavou as mãos e a seguir trocou-lhe a camisa de noite e verificou que estava deitada sobre o lado direito. Mantinha um cuidadoso registo das horas durante as quais a tia Rachel estava deitada para cada lado: as escaras surgiam com facilidade em pessoas que passavam a esmagadora parte do seu tempo na cama. Aconchegou a coberta sobre os ombros da velha senhora e apanhou o guia que tombara no chão, na sua pressa de agarrar a tia Rachel. Já não sabia em que parte do livro ia. Mas não tinha importância. Sentia-se igualmente feliz a ler algo sobre a encantadora Manfredónia, na costa do Adriático, povoação fundada por um herói da guerra de Troia. O livro voou-lhe das mãos e foi esmagar-se no quadro que estava na parede em frente à cama da tia – o quadro que Elissande fazia os maiores esforços por não ver – caindo no chão com uma pancada sonora. Levou a mão à boca. Virou a cabeça e olhou para a tia Rachel. Mas esta mal se mexeu. Rapidamente, Elissande apanhou o livro do chão e verificou se tinha alguns danos. Claro que se danificara: a última página fora arrancada da contracapa. Fechou o livro e agarrou-o com força. Havia três dias, agarrara na escova do cabelo e estilhaçara o seu espelho de mão. Duas semanas antes, estivera a olhar durante muito tempo para uma embalagem de arsénico – veneno para ratos – que encontrara no armário das vassouras. Teve medo de estar a perder a sanidade mental. Ela não quisera transformar-se na enfermeira da tia. A sua ideia fora sair dali assim que tivesse idade para procurar uma ocupação, fosse onde fosse. Mas o tio soubera da sua intenção. Contratara enfermeiras para que ela visse

a tia Rachel encolher-se de medo, aos gritos, devido aos loucos tratamentos «médicos» e ela vira-se forçada a assumir os cuidados, pelo que a lealdade e a gratidão, por regra belos sentimentos, se haviam transformado em correntes feias e barulhentas que a prendiam àquela casa, numa existência debaixo da bota dele. Até tudo o que lhe restava para se escapar serem uns poucos livros. Até os seus dias girarem em torno da regularidade, ou falta dela, dos intestinos da tia. Até atirar com o seu precioso guia do Sul de Itália contra a parede, dado que o seu autocontrolo, a única coisa com que pudera contar, se estava a desfazer sob o peso da sua prisão. O som de uma carruagem a subir o caminho até à casa fê-la agarrar nas saias e correr para fora do quarto da tia Rachel. O tio gostava de dar datas falsas de regresso: ao voltar mais cedo, cortava o alívio que a sua ausência provocava; ao voltar mais tarde, ela ganhava a esperança de que ele tivesse encontrado um muito merecido final enquanto estava fora. E já fizera isto antes: inventara uma viagem só para dar uma volta pelo campo e regressar umas horas mais tarde, afirmando que tinha mudado de ideias porque sentia demasiadas saudades da família. Já no seu quarto, enfiou o guia de viagem na gaveta onde guardava a sua roupa interior. Três anos antes, o tio fizera uma purga na casa e eliminara todos os livros escritos em inglês, com exceção da Bíblia e de meia dúzia de tomos de sermões a prometer o fogo do inferno. Já depois disso, ela encontrara alguns livros que, por acaso, tinham escapado à erradicação e guardara-os com o cuidado de uma mãe-pássaro que fez o ninho numa casa de gatos. Com o livro em segurança, chegou-se à janela mais próxima, que dava para o caminho de acesso à casa. Inusitadamente, o que estava parado em frente da porta não era a carruagem do tio, mas uma vitória aberta, com bancos estofados a azul-ferrete. Ouviu uma leve pancada na porta. Virou-se. Mrs. Ramsay, a governanta de Highgate Court, estava na entrada.

– Menina, está cá uma Lady Kingsley para falar consigo. Ocasionalmente, alguns fidalgos rurais e membros do clero local visitavam o tio. Mas Highgate Court quase nunca recebia visitas femininas, uma vez que nas redondezas se sabia que o estado de saúde da tia era excecionalmente delicado e, graças aos comentários estratégicos do tio em público, que Elissande era inseparável da cama de doente da primeira. – Quem é Lady Kingsley? – Arrendou Woodley Manor, menina. Elissande tinha uma vaga ideia de ter ouvido dizer que Woodley Manor, a cerca de três quilómetros para norte de Highgate Court, fora arrendada algum tempo antes. Com que então, Lady Kingsley era a nova vizinha. Mas uma nova vizinha não devia deixar um cartão antes de se aventurar a apresentar-se em pessoa? – Diz que houve uma emergência em Woodley Manor e pede-lhe que a receba – disse Mrs. Ramsay. A ser assim, Lady Kingsley viera ter com a pessoa errada. Se Elissande pudesse fazer qualquer coisa por alguém, já há muito tempo que teria fugido e levado a tia consigo. Além do mais, o tio não iria gostar que recebesse convidados sem a sua autorização. – Diga-lhe que estou ocupada a tratar da minha tia. – Mas, menina, ela está muito transtornada, a Lady Kingsley. Mrs. Ramsay era uma mulher decente que, ao longo da totalidade dos quinze anos que passara em Highgate Court, ainda não reparara que as duas senhoras da casa também estavam bastante transtornadas – o tio era bastante hábil a contratar criados lealmente pouco observadores. Em vez de manter a cabeça bem alta e comportar-se com um mínimo de dignidade, talvez Elissande devesse ter também sucumbido à depressão uma vez por outra.

Respirou fundo. – Nesse caso, faça-a a entrar para a salinha. Não tinha por hábito fugir de mulheres transtornadas. Lady Kingsley estava quase fora de si enquanto contava a história vagamente bíblica de uma praga de ratos. A seguir ao seu recital, teve necessidade de uma chávena inteira de chá preto e quente, antes de conseguir que o tom esverdeado lhe abandonasse a face. – Lamento muito saber do seu tormento – disse Elissande. – Penso que ainda não ouviu a pior parte – respondeu Lady Kingsley. – A minha sobrinha e o meu sobrinho estão de visita e trouxeram um grupo de sete amigos com eles. Nenhum de nós tem onde ficar. O fidalgo Lewis tem em casa vinte e cinco convidados seus. E a estalagem da aldeia está cheia: segundo parece, há um casamento dentro de dois dias. Por outras palavras, ela queria que Elissande recebesse nove… não, dez estranhos. Elissande abafou um ataque de riso histérico. Era um enorme favor a pedir a qualquer vizinho que se conhecesse tão minimamente. E Lady Kingsley não fazia a mínima ideia do quanto estava a pedir a esta vizinha, em especial. – Durante quanto tempo a sua casa estará inabitável, Lady Kingsley? – Pareceu-lhe ser educado perguntar. – Espero que fique própria para habitar dentro de três dias. Três dias. O tempo que esperava que o tio estivesse fora. – Nunca me passaria pela cabeça apresentar-lhe um tal pedido, Miss Edgerton, mas estou atada de pés e mãos – disse Lady Kingsley com grande sinceridade. – Ouvi grandes coisas acerca da sua admirável dedicação a Mistress Douglas. Mas certamente que se torna solitário de vez em quando não ter a companhia de pessoas da sua idade… e eu tenho comigo quatro amáveis

meninas e cinco encantadores jovens cavalheiros. Elissande não precisava de companheiros; precisava de fundos. Sozinha, dispunha de vários caminhos à sua frente: podia tornar-se governanta, datilógrafa, trabalhar numa loja. Mas com uma inválida para alimentar, abrigar e tratar, necessitava de dinheiro vivo para ter alguma hipótese de sucesso na fuga. Quem lhe dera que, em vez de companhia, Lady Kingsley lhe oferecesse cem libras! – Cinco encantadores jovens solteiros. A vontade de rir histericamente regressou. Um marido. Lady Kingsley pensava que Elissande desejava um marido quando o casamento fora a maldição da vida da tia Rachel. Nos seus sonhos de liberdade nunca havia um homem; fora sempre só ela, numa gloriosa e esplêndida solidão, preenchida de e por si própria. – E já mencionei – prosseguiu Lady Kingsley – que um dos jovens que está em minha casa, a bem dizer, o mais encantador de todos, é também marquês? O coração de Elissande saltou com violência. Não tinha qualquer interesse no encanto – o tio era um homem bastante encantador. Mas um marquês era um homem importante, com poder e ligações. Um marquês podia protegê-la – e à tia – do tio. Desde que casasse com Elissande dentro de três dias ou em qualquer curto espaço de tempo antes do regresso do tio. Fácil, não era? E depois de ter recebido dez hóspedes que o tio não convidara – um espalhafatoso gesto de revolta como nunca se atrevera – e de não ter conseguido alcançar o seu objetivo, o que aconteceria? Seis meses antes, no dia do aniversário da morte de Christabel, ele escondera o láudano da tia Rachel. Durante três dias, a tia sofrera como uma mulher forçada a suportar uma amputação sem clorofórmio. Elissande, proibida de ir fazer companhia à tia, dera murros às almofadas da sua cama

até já não conseguir levantar os braços e mordera os lábios até fazer sangue. Depois, claro, ele desistira da sua tentativa de afastar a tia Rachel do láudano, um mal a que ele a habituara. Pura e simplesmente, já não aguento vê-la sofrer – dissera, à frente de Mrs. Ramsay e de uma criada. E elas tinham acreditado nele, sem fazer perguntas, não lhes importando que não fosse a primeira, a segunda ou mesmo a quinta vez que tal acontecia. Nessa noite ao jantar, ele tinha murmurado, Pelo menos, não está viciada em cocaína. E Elissande, que nem sequer sabia o que era cocaína, ficara tão gelada que passara o resto da noite aninhada junto da lareira, no seu quarto. As hipóteses de sucesso: infinitesimais. O preço do falhanço: impensável. Pôs-se de pé. Das janelas da salinha viam-se claramente os portões da propriedade. Havia muitos anos que, pela última vez, se aventurara para fora daqueles portões. Duas vezes o tempo desde que a sua tia deixara a casa pela última vez. Os seus pulmões debateram-se no ar subitamente rarefeito. O estômago estava cheio de vontade de expulsar o almoço. Agarrou-se com força ao caixilho da janela, tonta e agoniada, enquanto nas suas costas, Lady Kingsley continuava a perorar acerca da simpatia e afabilidade dos seus hóspedes, do tempo maravilhoso que iriam passar todos juntos. Ora, Elissande não teria de se preocupar sequer em arranjar provisões para toda a gente. A cozinha de Woodley Manor, bastante afastada da casa, fora poupada aos ratos. Devagar, Elissande virou-se. E sorriu, com um daqueles sorrisos que oferecia ao tio quando ele anunciava que não, apesar de tudo não ia para a África do Sul, quando, por fim, ela já estava convencida de que ele ia realmente, após meses e meses de preparativos que testemunhara com os seus próprios olhos. Perante aquele sorriso, Lady Kingsley calou-se.

– Terei o maior prazer em ajudar – disse Elissande.

3

A tia Rachel não teve qualquer reação às novidades. Continuou a dormitar. Elissande prendeu algumas madeixas grisalhas sem vida por trás das frágeis orelhas da velha senhora. – Vai correr tudo bem, prometo. Estendeu um outro cobertor de lã macia por cima da tia Rachel, a tia, magra como as papas de aveia num asilo de pobres, estava sempre gelada. – Precisamos de fazer isto. É uma oportunidade que não vai voltar a surgir. Enquanto falava, apreciava, maravilhada, a notável coincidência da praga de ratos de Lady Kingsley, era quase como se os ratos tivessem sabido da hora da partida do tio. – Não tenho medo dele. Fosse como fosse, a verdade não importava. O que importava é que ela acreditasse na sua própria valentia. Ajoelhou-se ao lado da cama e tomou nas mãos a cara pequena, de ossos estreitos, da tia Rachel. – Eu vou tirar-te daqui, minha querida. Vou tirar-nos às duas daqui. As hipóteses de sucesso eram infinitesimais, mas não eram nulas. Para já, teria de ser o bastante. Depôs um beijo na face encovada da tia Rachel. – Felicita-me, vou casar. – Temos de nos casar – disse Vere ao irmão.

Lady Kingsley tinha duas carruagens mas só uma parelha de cavalos. Portanto, as senhoras tinham partido para Highgate Court primeiro, deixando os cavalheiros à espera do seu transporte. – Ainda somos novos – respondeu Freddie. Os senhores Conrad e Wessex jogavam uma partida de vingt-et-un2; Kingsley estava sentado em cima da bagagem, a ler um exemplar do The Illustrated London News; Vere e Freddie caminhavam calmamente pelo carreiro de acesso à casa. – Tenho quase trinta anos. E não estou a ter sucesso nenhum. Era fácil falhar quando a pessoa se declarava exclusivamente às debutantes mais requestadas da temporada, especialmente quando as propostas vinham acompanhadas de copiosos derrames de punch3 sobre os corpetes das referidas debutantes. Vere estava convencidíssimo de que devia ser encarado como um homem desejoso por assentar: o esforço conferia grande autenticidade ao seu papel – o pobre e querido idiota, demasiado palerma para perceber que devia pôr as suas expectativas um pouco mais abaixo. – Deixa que uma rapariga te conheça melhor antes de lhe propores casamento – disse Freddie. – Não vejo que seja possível uma mulher não se apaixonar por ti se lhe deres algum tempo. Treze anos e Freddie ainda falava com Vere como se nada tivesse mudado e Vere fosse ainda o mesmo irmão que havia protegido Freddie do pai. Vere esperara a habitual sensação de culpa, o que não esperara fora ter de virar a cara para esconder as lágrimas que, de súbito, lhe encheram os olhos. Era melhor tirar uma longa licença sabática no fim do caso Douglas, a vida que levava começava a causar-lhe estragos. Mas a resposta de Freddie deu a Vere a deixa por que esperava: – Então achas que devo propor casamento a Mistress Canaletto? Conheceme desde sempre.

– Não! – gritou Freddie, que logo corou. – Quer dizer, é claro que ela te ama, mas só como irmão. – Raios. E tu? Achas que ela também te ama só como a um irmão? – Eu… ah… ummm… O talento para a mentira e o fingimento, que Vere possuía em tão grande abundância, passara completamente ao lado de Freddie. Era absolutamente imprestável em qualquer tipo de prevaricação. – Não tenho a certeza – Freddie lá acabou por dizer. – Porque não lhe perguntas e descobres? – perguntou, jovial, Vere. – Já sei; podemos perguntar-lhe os dois ao mesmo tempo. De outra forma, como posso ter a certeza de que ela não alimentou uma grande, enorme e secreta ternura por mim durante estes anos todos? Kingsley, farto do jornal, aproximou-se para pedir um cigarro a Vere e Freddie viu ser-lhe poupada a necessidade de responder à pergunta. Mas Vere já tinha respostas que bastasse. *** A simpatia das suas hóspedes encantou Elissande. Estavam muito satisfeitas por a conhecer, muito gratas que lhes tivesse aberto a porta e muito encantadas por serem acolhidas, tão inesperadamente, com o estilo e o conforto a que estavam habituadas. L’affaire des rats tinha sido verdadeiramente traumático, confirmaram em uníssono a Elissande. Mas eram mais jovens e tinham uma memória mais curta do que Lady Kingsley. Já pensavam naquilo como uma aventura extraordinária. Miss Kingsley troçou de si própria pela maneira como gritara tão desatinadamente e, não fora o caso de Lorde Vere lho ter dito mais tarde, ela nunca teria vindo a saber que ele lhe havia dado uma estalada para interromper a sua histeria. Miss Beauchamp também contou que estava quase

desmaiada quando Lorde Vere a viera salvar e a carregara nos braços, com ela agarrada com unhas e dentes à lapela do casaco dele. Os animados risos do grupo deixaram Elissande atónita. Não lhe pareciam bem reais, aquelas mulheres rosadas e robustas, tão despidas de temor e medo, como se nunca lhes tivesse ocorrido que o divertimento acarretava consequências e, portanto, deveria manter-se tão escondido quanto o desgosto. Mal sabia o que fazer em tão animada companhia. Por isso, regressou aos seus hábitos e sorria. Em contrapartida, elas armaram um grande escarcéu à sua volta. Os seus dentes, entrevistos quando sorria, foram admirados. A alvura da pele dela, intocada pelos efeitos da equitação, remo e partidas de ténis, bastante invejada. Como foi o vestido que envergava naquela tarde e que Miss Kingsley declarou ter visto num manequim na montra da loja de Madame Elise, em Regent Street, mas que a mãe se recusara a comprar-lho. Elissande perguntou-se quanto tempo persistiria o entusiasmo de Miss Kingsley por vestidos se ela tivesse de usar a última moda todos os dias à hora do chá e ao jantar, com o tio. – É uma pena que não tenha estado em Londres durante a temporada que passou – disse Miss Beauchamp. – Oh, as festas do Jubileu! – Foram demasiadas – declarou Miss Duvall. – Dei cabo dos pés de tanto dançar. – E eu devo ter engordado uns seis quilos – afirmou Miss Melbourne, que era magra como um espeto. – Miss Edgerton, não preste atenção ao que diz Miss Melbourne – avisou Miss Kingsley. – Sempre que bebe um gole de água, ela jura que os botões do corpete rebentam. – Valha-me Deus – disse Elissande. – Nesse caso, os cavalheiros devem formar longas filas para oferecer bebidas a Miss Melbourne. As jovens olharam para Elissande assombradas e irromperam em gargalhadas, com Miss Melbourne a rir-se mais do que todas, dobrada, dada a

força da sua alegria. Elissande quase que se lhes juntou. Acabou por não o fazer, uma vez que o riso em si lhe era ainda mais estranho do que ouvi-lo nos outros. De súbito, Miss Beauchamp ergueu as mãos. – Shiu! Penso que os cavalheiros estão a chegar. Dito isto, todas as jovens senhoras correram para a janela e Elissande foi arrastada por Miss Kingsley. A caleche aberta ainda não tinha chegado junto da casa, mas já os olhos de Elissande eram atraídos para um cavalheiro em particular, um homem com um bom aspeto revoltante e feições de uma força, masculinidade e simetria perfeitas. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para trás, para melhor olhar para a casa. E, naquele momento, virou-se para o cavalheiro sentado a seu lado e sorriu com notório afeto. Por um instante, ela esqueceu-se da tarefa impossível que tinha pela frente. Dentro dela, um prazer intenso como nunca conhecera desabrochou, um prazer que tinha origem numa coisa tão inconsequente como a forma como o sol da tarde incidia na aba do chapéu dele, ou a maneira como as suas mãos descansavam no topo da bengala equilibrada descontraidamente entre os seus joelhos. – Saia daí agora – disse Miss Kingsley, mais uma vez a puxar pela manga de Elissande. – Não queremos que nos vejam aqui como um bando de rapariguinhas de escola patetas. Elissande deixou que Miss Kingsley a conduzisse a uma cadeira. Não tinha dúvidas quanto à identidade dele – o mais encantador de todos. O coração dela disparou numa explosão de felicidade capaz de lhe dar cabo dos nervos. Ele salvava jovens damas de pragas de ratos; ele tinha amigos encantadores; ele tinha o aspeto de um herói da Antiguidade Clássica. E era marquês, um homem importante que podia protegê-la a ela e à tia.

Sentia-o. A mudança da maré, a reviravolta da fortuna, o inexplicável salto do destino, que ganhava ímpeto. Era aquilo. Era ele. Os seus três dias começavam naquele preciso momento. A carruagem deteve-se à frente do edifício de três andares, construído no estilo gótico revivalista, que, duas décadas antes, ainda se mantinha popular. Na frente da casa, a hera estendia-se, luxuriante, conferindo-lhe um aspeto de maior autenticidade e mais idade. As janelas eram verdadeiros arcos ogivais, em vez de simples retângulos com uma fachada de arcos quebrados por cima. Havia mesmo gárgulas para escoar a água do telhado fortemente inclinado. A mansão era mais do que respeitável: era grandiosa. Todavia, e não obstante o esplêndido jardim geométrico, havia qualquer coisa estéril na sua aparência. Uma propriedade no campo mais antiga, como aquela em que Lorde Vere crescera, era um viveiro de horticultura e criação de animais. Haveria um pomar murado capaz de fornecer fruta e vegetais para setenta pessoas, uma vinha que produziria centenas de quilos de uvas e meia dúzia de estufas especializadas que produziriam, entre outras coisas, morangos no Natal e ananases em janeiro. E ao passo que a coutada proporcionava caçadas de lazer, o lago dos patos, o galinheiro e o pombal serviriam propósitos estritamente utilitários. Todavia, Highgate Court não passava de uma casa e jardins rigorosamente tratados no meio de nada. De verdadeiramente nada: Shropshire era uma região rural pouco povoada e Highgate Court ocupava uma das zonas mais vazias de todas. Viu de relance as jovens reunidas junto de uma das janelas antes de desaparecerem, como aves que levantam voo. – Tenho de arranjar uma mina de diamantes – disse Wessex, que andava sempre sem dinheiro, numa admiração exasperada, enquanto entravam na mansão.

– Os diamantes nascem em minas? – perguntou Vere. – Pensei que vinham nas ostras. – Isso são as pérolas, Penny – esclareceu Freddie, com a paciência habitual. – São? – Vere coçou a cabeça. – Seja lá como for, bela casa. – É tudo Luís XIV – disse Kingsley, referindo-se ao mobiliário do espaçoso e elegante vestíbulo. E Kingsley sabia dessas coisas. As paredes e os estofos precisavam ainda de ganhar a patina – na realidade, a sensação – do tempo. Mas, para além disso, era impossível não sentir a sensibilidade do gosto do dono da casa, que não sucumbira a nenhuma das espalhafatosas exibições de riqueza e brilho que Vere esperara de um homem com uma fortuna tão recente. Relembrou rapidamente os poucos factos conhecidos acerca da vida de Edmund Douglas. O pai fora dono de um bar ou estivador, em Liverpool. Tivera duas ou três irmãs e o nascimento da última fora a causa da morte da mãe. Ele fugira de casa aos catorze anos, num momento muito oportuno, pois a gripe matara a família toda pouco tempo depois. Acabou por ir parar à África do Sul, criou uma reputação de zaragateiro e lucrou bastante com a descoberta de diamantes. Nada do que Vere sabia sobre Douglas indiciava subtileza ou moderação. Em Kimberley, na África do Sul, as pessoas ainda recordavam as festas loucas, quase orgias, que organizou, quando, de um dia para o outro, ficou rico. Claro que, apercebeu-se Vere pela primeira vez, também nada do que sabia acerca de Douglas sugeria que, posteriormente, se viesse a transformar num recluso. Deu mais uma vista de olhos pelo vestíbulo, reparando nas passagens que dele saíam, e seguiu os outros cavalheiros até à salinha. Quando Freddie saiu da sua linha de visão, teve oportunidade de olhar diretamente para Miss Edgerton, num atraente vestido amarelo rainúnculo. Lady Kingsley dissera-lhe que era bonita e tinha um sorriso formidável. Era

realmente muito bonita, possuía um cabelo louro-arruivado, brilhante, olhos castanho-claros, uma combinação invulgar, e os traços suaves, elegantes, quase melancólicos de uma Madonna de Bourgereau. Parecia vagamente esmagada com a quantidade de homens que se apinhavam na sua salinha e os olhos saltavam-lhe de um cavalheiro para o outro. Depois, o olhar dela pousou nele e não voltou a desviar-se. Ao fim de um instante, os lábios dela, muito suaves, flexíveis, afastaram-se e curvaram-se, revelando uma fila de dentes regulares, de um branco notável. A seguir surgiram as covinhas, fundas, redondas, encantadoras. E, por fim, um fulgor de prazer estonteante, impossível, nos seus olhos muito, muito abertos. Havia tantas coisas a fazer quando se entrava pela primeira vez numa sala daquelas. Tinha de se avaliar onde seria possível dar uma queda sem correr o risco de dar cabo dos joelhos, que «curiosidades»4 poderia derrubar por acidente sem correr o risco de as partir e sempre, quando visitava uma casa numa situação profissional, identificar uma saída de qualquer sala para o que desse e viesse. Desta vez, esqueceu tudo. Limitou-se a ficar ali, de pé, a olhar. Aquele sorriso. Céus, aquele sorriso. Reconheceu-o pela vaga de alegria profunda, que só faltou atirá-lo de costas. Seria verdade que tinha pensado ser impossível gozar de uma felicidade permanente? Enganara-se, oh!, quanto! Nunca se fartaria daquele doce júbilo. Queria mergulhar nele, nadar nele, bebê-lo em grandes goles, até que mais nada a não ser a bem-aventurança lhe corresse nas veias. A rapariga dos seus sonhos. Por fim, encontrara-a. Lady Kingsley aproximou-se. – Miss Edgerton, permita que lhe apresente o marquês de Vere. Lorde Vere, Miss Edgerton. – Encantada por conhecê-lo, Vossa Graça – disse a rapariga dos seus

sonhos, ainda a sorrir. Mal conseguia falar, tal era a felicidade que o assaltava. – O prazer é todo meu, Miss Edgerton. O prazer, o privilégio e uma colossal boa sorte. Todos dele. Quebrou de imediato a sua política de longa data de estabelecer imediatamente a sua boa fé imbecil e, em vez disso, deixou-se ficar a cerca de três metros dela, deliciando-se com a sua presença, pouco falando enquanto se serviu o chá e as sanduíches. Mas, mesmo silencioso, ela reparou nele. Várias vezes o olhou e sorriu. E de cada vez que ela sorria, ele sentia-a, a paz que há tanto lhe fugia por mais males que ajudasse a desenterrar e punir. Chegou demasiado depressa a hora em que as senhoras tiveram de recolher aos quartos para mudarem de roupa para o jantar. – Estejam à vontade para passear pela casa como desejarem – disse Miss Edgerton aos cavalheiros quando se pôs de pé. – Mas peço-lhes que não entrem no escritório do meu tio. É o seu santuário privado e ele não gosta que o perturbem, mesmo durante a sua ausência. Pouco ficou registado na mente de Lorde Vere a não ser o sorriso que ela lhe concedeu, já estava na porta quando se virou e lhe sorriu diretamente. Ele vagueou de uma ponta da sala para a outra, afofando as cortinas, rearrumando o bricabraque e passando os dedos distraidamente pelas prateleiras e as costas das cadeiras. Lady Kingsley viu-se forçada a vir pessoalmente buscá-lo para o acompanhar até ao escritório de Edmund Douglas, de modo a que ele efetuasse uma primeira busca. Ele cumpriu a sua rotina habitual e descobriu dois compartimentos secretos na escrivaninha: num deles havia um revólver, no outro, centenas de libras em notas amachucadas e manchadas, coisas que um homem tinha toda a liberdade de possuir.

Os copiosos armários do escritório estavam atafulhados de documentos. Um dos armários continha os livros de registos ligados à administração da propriedade. Todos os outros eram dedicados ao arquivo de cartas, telegramas e relatórios dos gestores da mina de diamantes, um quarto de século de registos da origem e continuidade da fortuna de Douglas. Lady Kingsley aguardava-o do lado de fora da sala – ficara de vigia. – Alguma coisa? – Excelente arquivo de registos e tudo dentro da lei – comentou. – Alguma vez lhe disse que é um prazer trabalhar consigo, minha senhora? Ela franziu a testa. – Sente-se bem? – Nunca me senti melhor – respondeu e passou adiante. 2 Jogo de cartas muito fácil. Joga-se com dois baralhos e o objetivo é conseguir uma mão que some vinte e um ou o mais próximo possível. Também conhecido por blackjack. (N. da T.) 3 Bebida alcoólica consistindo numa mistura de vinho ou champanhe, sumo e pedaços de fruta. Servido geralmente em grandes taças, de onde é retirado com uma concha. (N. da T.) 4 No século XIX eram habituais as coleções de objetos mais ou menos invulgares e exóticos – curiosidades –, que se exibiam em vitrinas próprias ou espalhadas por cima dos móveis. (N. da T.)

4 que os diamantes vêm de minas e não das ostras? – perguntou à –É verdade sua imagem refletida no espelho, por cima da bacia do lavatório. Raios. – Ou é verdade que, quando se abre uma pérola, se encontra lá dentro um diamante? Bolas. Estava tudo ao contrário. Ali estava a mulher com a qual ele percorrera a costa da zona oeste durante mais de uma década, a mulher que compreendia todos os seus estados de espírito e desejos, o seu porto, o seu refúgio. Não lhe importava que o tio dela fosse, quase de certeza, um criminoso. Não se importava de ter agora de constranger o seu comportamento aos limites que a sociedade considerava aceitáveis. Mas, por que razão, que Deus o ajudasse, tinha de a conhecer durante um caso quando não podia pôr em risco o seu papel? Sendo o homem presente com o título mais importante, ao jantar teria de se sentar à direita da anfitriã. E teriam de conversar. Possivelmente durante bastante tempo. E ele tinha de fazer o papel de idiota por mais que desejasse outra coisa. Penteou o cabelo com os dedos e o júbilo da última hora transformava-se agora num feixe de nervos esgotados. Não havia como evitá-lo. Ia começar por desapontá-la. Só podia esperar que fosse um desapontamento pequeno e que, dada a sua simpatia, ela o ignorasse e, em vez disso, decidisse apreciar a sua amabilidade – era capaz de representar lindamente a amabilidade, copiando-a, como era o caso, da personalidade de Freddie. Depois de se vestir, sentou-se e tentou engendrar uma linha de ação melhor: uma estupidez subtil, se é que tal coisa era possível. Mas o seu pensamento desviava-se constantemente, regressando aos penhascos, à charneca, à

espantosa costa da zona ocidental. O Sol punha-se, incendiando o céu. O vento fustigava o casaco e as fitas do chapéu dela. Quando lhe passou o braço sobre os ombros, ela virou-se para ele. E que encantadora era, com olhos da cor de um chá delicado, um nariz comprido e direito e lábios tão suaves como um murmúrio. Conhecê-la em pessoa talvez não fosse, apercebeu-se, num novo ataque de ansiedade, a tal absoluta boa sorte como, a princípio, acreditara. Ela tinha agora um rosto, um nome, uma história e identidade próprias. Há tanto tempo que eram um só. Agora, eram entidades separadas, tão separadas que ela mal o conhecia. E cabia-lhe a ele devolvê-los àquela unidade perfeita que tanto amara. No papel de idiota, nem mais nem menos. – Estás com bom aspeto, Penny – cumprimentou-o Freddie, enquanto atravessavam o vestíbulo em direção à salinha. Vere nunca gostara do seu aspeto – tinha uma parecença indesmentível com o seu falecido e não lamentado pai. Mas, nessa noite, tinha esperança de que a sua aparência lhe concedesse alguma vantagem. Nessa noite, necessitava de todas as armas ao seu dispor. Assim que entrou na salinha, Lady Kingsley puxou-o de lado. Falou-lhe em voz baixa e ele não ouviu uma única palavra: o grupo afastava-se, revelando Miss Edgerton. Estava de costas viradas para ele, envergando um vestido de noite de tule azul pálido, bordado com pérolas. A saia, muito justa nas ancas e coxas, abriase depois em folhos ornamentados com pérolas minúsculas, como se fosse Vénus recém-nascida das ondas, com uma renda de espuma do mar ainda colada às pernas. E, nessa altura, como se sentisse a força do olhar dele, virou-se, fazendo cintilar o vestido no movimento. O corpo do vestido tinha um corte discreto.

Mas mesmo o decote mais cerimonioso se revelaria incapaz de esconder a magnificência do seu peito, o mesmo acontecendo com o fundo decote, que se revelou uma absoluta surpresa, uma vez que nunca baixara os olhos para além do queixo dela. O coração deu-lhe um salto. Claro que já tinha feito amor com ela antes, mas sempre com gentileza, mais como um prelúdio para adormecer nos braços dela do que pelo mero prazer. Nunca imaginara que ela lhe despertasse um tal desejo animal. Bem, nesse campo não se ralava nada de estar enganado. Ela sorriu. E foi um espanto que ele não tivesse batido com a cabeça nas nervuras do teto abobadado, de certeza que estava a levitar bem alto, acima do chão. Alguém disse qualquer coisa à rapariga. Ela virou a cara para a pessoa. Uma dor aguda no braço fê-lo soltar um som sibilante – Lady Kingsley bateralhe com força, com o leque. – Lorde Vere! – sussurrou, com uma voz carregada de desaprovação. – Ouviu alguma coisa do que eu disse? – Perdão? – Olhe para mim quando estou a falar consigo. Relutante, desviou o olhar de Miss Edgerton. – Diga? Lady Kingsley suspirou. – Ela acha que o senhor é inteligente. – Acha? – um arrepio de entusiasmo percorreu-o de uma ponta à outra. – Mas não é isso que se pretende, lembra-se? Temos trabalho a fazer,

senhor. A sua imaginação estava a revelar-se ser de segunda categoria. Quantas vezes tinha passeado de braço dado com ela? Ao longo de quantos quilómetros seguidos? E, contudo, nunca reparara que ela cheirava a mel e a rosas, nem que a sua pele tinha o brilho das pérolas de Vermeer. Mas a entrada na sala de jantar fê-lo ter um sobressalto de espanto e sair do seu atordoamento. Por cima da lareira havia um grande e, para não dizer mais, peculiar quadro: um anjo de cabelo louro, em pleno voo, com uma veste negra solta, asas negras abertas e uma espada sangrenta na mão. Muito mais abaixo, no solo, jazia um homem, de barriga para baixo na neve, tendo junto de si uma rosa vermelha, completamente desabrochada. Vere não foi o único hóspede a reparar no invulgar e inquietante quadro. Mas a animação geral do grupo era tanta e Miss Edgerton tão simpática que os hóspedes, em peso, decidiram ignorar o tema óbvio da morte que a pintura evocava. Miss Edgerton proferiu a ação de graças. Vere rezou para que a Fortuna lhe deitasse um olhar benevolente. Fosse ele capaz de caminhar naquela linha estreita que separa a amorosa palermice da idiotia completa e fazer bem o seu caminho. – Miss Edgerton – disse, quando serviram a sopa –, por acaso, faz parte da família de Mortimer Edgerton, de Abingdon? – Não, na realidade não, Lorde Vere. A família do meu falecido pai é de Cumberland, não de Berkshire. Havia um tão grande encanto e calor na sua voz! Os olhos dela cintilavam. A sua atenção estava toda e completamente focada nele, como se, durante toda a vida, tivesse esperado por aquele momento. Quis declarar-se naquele mesmo instante e fugir com ela. Outra pessoa que se preocupasse com Edmund Douglas. No outro extremo da mesa, Lady Kingsley pousou ruidosamente o copo de

água na mesa. Vere apertou os dedos em torno da colher de sopa e forçou-se a prosseguir. – E o irmão do velho Mortimer, o Albemarle Edgerton? É da família dele? Seria aqui que o ânimo dela cederia pela primeira vez. Mas ela pensaria que ele estava a brincar ou tinha feito uma trapalhada estúpida. Iria dar-lhe o benefício da dúvida. Mas, contudo, a alegria dela não deu sinais de diminuir. – De Mister Albermarle Edgerton também não, lamento. – E dos primos dele, os Brownlow-Edgerton, que vivem no condado aqui ao lado? Tem de pertencer à família deles. Não havia engano possível. Agora ela veria que ele não só tinha uma inteligência abaixo da média como não fazia a mínima ideia de que a tinha. Mas ela continuava a irradiar prazer, como se ele lhe tivesse perguntado se descendia em linha direta de Helena de Troia. – Não, de todo, não. Mas parece conhecê-los muito bem. São então uma família importante? Teria percebido alguma coisa do que ele lhe dissera? Como era possível que não tivesse a mínima reação? Era humano responder a uma estupidez claramente óbvia com, no mínimo, uma pausa. Onde andava a pausa dela? – É verdade, conheço-os muito bem. E tinha a certeza de que descendia de um deles. São pessoas verdadeiramente maravilhosas; é pena que nem o Mortimer nem o irmão tenham casado. E as primas são todas solteiras. No início da noite, nunca lhe teria passado pela cabeça que iria atirar-se deliberadamente de cabeça para uma burrice deliberada. Mas não fora capaz de se conter. Ela assentiu com a cabeça, com todo o entusiasmo.

– Mais uma razão para terem tido filhos. Nada de pausa. Nada de hesitações. Nem o menor sinal de que tivesse reparado no seu absurdo. Sorveu um pouco da sua sopa numa tentativa de ganhar tempo para pensar e descobriu que não era capaz. A cabeça estava em estado de paralisia. Não era assim que esperava que as coisas corressem. E ele não podia – não queria – perceber o que significava. Sorveu mais duas colheradas de sopa, que parecia ter saído diretamente do Tamisa, e deitou uma olhadela na direção da rapariga. A sua compostura e perfeição arrasaram-no. O que haveria de errado no seu interior? Como conseguia manter uma conversa com ele como se não houvesse nada de errado? Os olhos dele pousaram no quadro por trás dela. – A pintura… é A Libertação de São Pedro, de Rafael? – Havia de conseguir uma reação, nem que tal o matasse. – Acha, senhor? – perguntou ela, no mesmo tom, com uma admiração que ele certamente não merecera. Por um momento pensara, na realidade, quase esperara, que talvez ela fosse também pateta. Mas exagerara na admiração do seu olhar. Estava a tentar fisgá-lo. Não era nada que nunca tivesse acontecido. Ele era rico, titular e, de vez em quando, uma rapariga já com cinco temporadas à sua conta e sem perspetivas, tentava a sorte junto dele. Mas ele, que idiota fora, nunca julgara possível que ela se juntasse às fileiras de oportunistas. – Bom, A Libertação de São Pedro tem um anjo e um homem – respondeu. Por uma fração de segundo, ela olhou para trás para ver o quadro, mas

depois voltou-se para ele e disse alegremente: – E esta também. Oh, ela era boa. Muito boa. Se ele fosse mesmo idiota, teria ficado encantado. Bem, ele tinha sido mesmo idiota ao longo daquela noite, não tinha? Um sorriso e ele quase lhe declarara o seu amor eterno. Como poderia ter sido tão estúpido? Porque fora tão lesto em sobrepor uma mulher dissimulada, que conhecera cinco minutos antes, à rapariga sem complicações dos seus sonhos? Não eram a mesma pessoa. Nunca tinham sido. Miss Edgerton lançou-lhe uma olhadela. E sorriu de novo, um sorriso suficientemente luminoso para poder ser o candeeiro de mesa do próprio Deus. Quase de imediato, ele sentiu-o – a alegria, o regozijo, um crescendo de felicidade. E, no segundo seguinte, um desalento descontrolado. Uma parte ilógica e infantil de si não compreendia que ela era uma atriz hábil e esperta. Só via o mesmo sorriso que o deixara em êxtase antes. – Não quer falar-me mais dos seus amigos Edgerton? – perguntou ela. A pergunta irritou-o – a pergunta, o sorriso, a sua própria estúpida incapacidade de separar os factos das ilusões. Nunca antes atormentara as mulheres que disputavam a sua mão, eram, por regra, gente trapalhona, sem ânimo e muito envergonhada. Contudo, Miss Edgerton… a brilhante, confiante e astuta Miss Edgerton, não exigia dele a mesma terna simpatia. Inclinou-se ligeiramente para a frente. – Certamente – respondeu. – Posso continuar durante horas. *** E continuou durante horas, não, dias. Décadas, possivelmente. Com o passar do tempo, a face de Elissande foi-se enrugando e descaindo.

Os Edgerton de Abingdon, os Brownlow-Edgerton do condado vizinho, os Edgerton-Featherstonehaugh do outro condado vizinho, e os Featherstonehaugh-Brownlow, dois condados à frente. Eram uma família com muitos ramos e descendentes e Lorde Vere conhecia intimamente cada folhinha daquela árvore frondosa. Ou, pelo menos, assim o cria. À medida que ia traçando a linhagem da família, nem uma única pessoa que mencionava mais do que uma vez conseguia manter-se na mesma posição. As filhas tornavam-se filhos; os filhos passavam a ser netos; um casal com doze filhos ficara, de repente, sem prole. Mulheres que nunca tinham casado eram posteriormente referidas como viúvas. Um rapaz em especial nascera em duas ocasiões distintas e morrera depois uma vez em Londres, uma em Glasgow e, como se ainda não bastasse, uma vez mais, cinco anos depois, em Espanha. E Elissande tentou vezes sem conta negá-lo. Quando ele entrara pela porta da salinha, ela sentira-se arrebatada. Ele não só era bonito como era bem constituído. Até àquele instante, nunca tivera consciência de que queria que um homem tivesse algum tamanho: ele dava corpo perfeito ao seu cavaleiro, seu baluarte, sua fortaleza. Ele parecera estar a sentir precisamente o mesmo, tendo-se imobilizado quando a viu pela primeira vez. Depois, e enquanto se mantiveram na salinha, ele olhara-a como se ela fosse ar, água e poesia… E a tentativa do final da tarde de sentar a tia Rachel na sanita provara ser frutuosa! Elissande não poderia ter pedido um augúrio mais favorável. Chegara ao jantar vibrante, quase numa euforia temerosa, com os gongos do destino a soarem-lhe, com força, aos ouvidos. Ele era tão bonito de perto como ao longe, tinha umas feições impecavelmente talhadas: nem demasiado grosseiras, nem demasiado finas. Os olhos eram de um azul lindo, quase índigo à luz dos candelabros. E os lábios, Deus lhe acudisse, os lábios faziam-na sentir tímida por uma razão que não

descortinava. Até se terem sentado à mesa e aqueles lábios terem começado a mover-se. À medida que ia falando, ele ia fazendo cada vez menos sentido. Infelizmente. E, quanto mais infeliz ela ia ficando, mais alheada se fazia e aumentava o seu sorriso, reflexo de uma vida inteira que não se sentia capaz de alterar do pé para a mão. Ele era a sua esperança. A sua oportunidade. Estava desesperada para que a conversa entre os dois se endireitasse, que as gafes dele provassem ser o resultado de um problema de nervos. Mas o pedido para ouvir mais acerca dos Edgerton, pensara que pô-lo a falar de gente que conhecia e de quem gostava iria ajudar, revelara-se um erro tremendo da parte dela. Em vez de anedotas de família, ele soltara uma angustiante e dolorosa enxurrada de factos adulterados relativos a nascimentos, casamentos, filhos e mortes. Mesmo assim, ela ainda tivera esperança de que as coisas melhorassem até que Lionel Wolseley Edgerton bateu a bota pela terceira vez, momento em que ela perdeu a esperança. Sorriu-lhe. E porque não? Que mais poderia fazer? – Já lhe disse qual é o lema dos Edgerton? – perguntou-lhe ele, após um brevíssimo silêncio. – Creio que não. – Pedicabo ego vos et irrumabo.5 À frente dele, Lorde Frederick tossiu, num grande ataque de tosse, como se se tivesse engasgado com a comida. Sem a mais pequena angústia, Lorde Vere levantou-se, aproximou-se do irmão e deu-lhe algumas pancadas entre as omoplatas. Lorde Frederick, vermelho, murmurou um vago agradecimento. Lorde Vere voltou calmamente para o seu lugar.

– «Também nós espalhámos setas.» Não é o que significa o lema dos Edgerton, Freddie? – A… acho que sim. Lorde Vere coçou-se por baixo do braço e assentiu, satisfeito. – Bem, aí tem, Miss Edgerton. Contei-lhe tudo o que sei acerca dos Edgerton. Estava grata pelo torpor em que o tratado de genealogia que ele debitara a lançara. Não estava capaz de pensar. Portanto, ainda não conseguia sentir o horror de saber que cometera o pior erro da sua vida. Mas o marquês ainda não tinha terminado. – Acabou de me ocorrer, Miss Edgerton: não será um tanto inapropriado que receba tantos cavalheiros como nós, estando sozinha em casa? – Inapropriado? Com Lady Kingsley sempre debaixo dos nossos pés? – Lançou-lhe um sorriso radioso, ao mesmo tempo que serrava com toda a energia o pedaço de caça que tinha no prato. – Claro que não, Lorde Vere. Além do mais, a minha tia também está em casa. – Está? Peço desculpa. Devo ter-me esquecido de a ter visto. – Não se preocupe, senhor. Ainda não a viu. Tem uma saúde frágil e não está com forças suficientes para receber visitas. – Muito bem. Muito bem. Portanto, são apenas a menina e a sua tia viúva nesta grande casa. – A minha tia não é viúva, senhor. O meu tio está vivo e recomenda-se. – Está? Peço desculpa pelo meu erro. Também tem uma saúde frágil? – Não, está fora. – Estou a ver. Tem saudades dele?

– Claro – respondeu. – Ele é a alma e o coração desta família. Lorde Vere suspirou. – É o meu desejo. Um dia, também gostaria que a minha sobrinha dissesse que eu sou a alma e o coração da minha família. Foi o momento em que Elissande se viu forçada a concluir que Lorde Vere não só era idiota como a sua idiotia tinha proporções incalculáveis. – Estou certa de que dirá. – Conseguiu fazer um sorriso tranquilizador. – Tenho a certeza de que será um tio encantador, se é que já não é. Ele bateu as pestanas. – Minha cara Miss Edgerton, o seu sorriso é tão divino…! Os sorrisos dela eram a sua armadura. Eram uma necessidade. Mas, claro, um homem como ele não saberia ver a diferença. Por isso, concedeu-lhe mais um. – Muito obrigada, Lorde Vere. É muito amável e eu estou muito feliz por o ter aqui. Lorde Vere acabou por se virar para o outro lado para falar com Miss Melbourne. Para se acalmar, Elissande bebeu um pouco de água. Ainda tinha a cabeça entorpecida, mas a sensação de desânimo no seu estômago já era bastante horrível. – Tenho estado a analisar o seu quadro tão curioso, Miss Edgerton – disse Lorde Frederick, que passara a maior parte da noite calado. – Mas não consigo identificar o artista. Por acaso, sabe dizer-me quem é? Elissande olhou para ele, cautelosa. A idiotia era hereditária, não era? Mas ele fizera uma pergunta razoável e, por mais que lhe apetecesse enfiar-se debaixo de um cobertor e entorpecer-se com láudano, não podia deixar de lhe

responder. – Lamento, mas acho que nunca perguntei. – Os quadros, havia três com o mesmo tema, sempre ali tinham estado. E ela sempre envidara os maiores esforços para não os ver. – Quem pensa que seja? – Penso que deve ser alguém da Escola Simbolista. – O que é a Escola Simbolista, se é que posso fazer a pergunta? Porque não era possível explicar a Escola Simbolista isolada do seu contexto – estava ligada mas era diferente do Movimento Decadentista6, que, por sua vez, nascera de uma reação contra o Romantismo e a sua ligação incondicional com a natureza –, Elissande depressa percebeu que Lorde Frederick era muito versado em arte, em especial, em arte do seu tempo. Ao fim de três pratos a ouvir os desconchavos cada vez mais parvos de Lorde Vere, era um alívio e um prazer deparar-se com uma conversa inteligente e relevante. Após dispor de algumas informações preliminares acerca das ideias e motivos da Escola Simbolista, perguntou a Lorde Frederick: – Então o que pensa dos símbolos do quadro? Lorde Frederick pousou os talheres. – O quadro tem nome? – Chama-se A Traição do Anjo. – Interessante – disse Lorde Frederick, encostando-se às costas da cadeira para melhor apreciar a tela. – Comecei por pensar que era o Anjo da Morte. Mas o papel específico do Anjo da Morte é retirar a vida do homem. O que não está de acordo com a ideia de traição. – Pensa que o homem fez um acordo com o Anjo da Morte, talvez e, depois, o anjo voltou atrás?

– É uma ideia interessante. Ou talvez o homem não tivesse a mínima ideia do tipo de anjo que era. Talvez pensasse que era daqueles gentis, que tocam harpa. Elissande pensou naquilo por um instante. – Mas um anjo desses não deveria ter asas e veste brancas? – Sim, devia, não era? – Lorde Frederick afagou o queixo com o indicador e o polegar. – Talvez se transforme? Se eu pintasse este tema, talvez o mostrasse a meio da transformação, com a veste branca e as asas a ficarem negras enquanto voa para longe do homem. Se ele pintasse o tema. – Também é artista, senhor? Lorde Frederick pegou no garfo e na faca e inclinou a cara para o prato, num aparente gesto de timidez quanto às suas inclinações artísticas. – Gosto de pintar, mas não iria ao ponto de afirmar que sou artista. Nunca expus. Gostava dele, apercebeu-se Elissande. Não fora abençoado com o aspeto apolíneo do irmão, mas tinha feições e atitudes muito agradáveis, para já não referir que, comparado a Lorde Vere, era um gigante intelectual. – E Shakespeare ainda não era poeta antes de publicar o primeiro livro? Lorde Frederick sorriu. – É muito amável, Miss Edgerton. – Pinta retratos, temas clássicos ou, talvez, cenas bíblicas? – Fiz um ou dois retratos. Mas prefiro acima de tudo pintar pessoas no exterior. A passear, fazer piqueniques ou apenas a sonhar acordadas. – Pareceu ficar atrapalhado. – Coisas muito simples.

– Parece encantador – afirmou ela, com sinceridade. Passara uma parte tão grande da sua vida fechada naquela casa que as atividades simples que Lorde Frederick dava por garantidas lhe eram infinitamente atraentes. – Seria um privilégio poder ver a sua obra, um dia. – Bem – a sua tez avermelhada pelo sol ganhou um tom ainda mais intenso –, talvez se, um dia, for a Londres. O facto de ter corado tornou-o ainda mais simpático aos olhos dela. De súbito, apercebeu-se de outra coisa: Lorde Frederick também daria um bom marido para si. Não era marquês, mas era filho e irmão de marqueses, o que era quase igualmente bom, já que teria a influência e as ligações da família a apoiá-lo. Além do mais, sentia que podia confiar em que ele compreenderia uma situação delicada. Se o tio fosse fazer-lhes uma visita, sem dúvida que Lorde Vere concordaria que Mrs. Douglas estaria ansiosa por voltar para a sua própria casa e, bem, aqui está ela, e não se importava de a ajudar a subir para a carruagem? Lorde Frederick, um homem de discernimento muito superior, sentiria a maldade do tio e ajudaria Elissande a garantir o bem-estar futuro da tia Rachel. – Oh, vou tentar – disse. – Com toda a certeza que vou. 5 Primeiro verso do poema Carmen 16, de Catulo, conhecido pela sua obscenidade. «Sodomizar-te-ei e fornicar-te-ei de frente.» (N. da T.) 6 Movimento particularmente forte em Inglaterra, no final do século XIX. Entre os seus membros mais notáveis contavam-se, entre outros, Oscar Wilde e Aubrey Beardsley. (N. da T.)

5 foi uma verdadeira festa numa casa de campo até Lorde Vere se ter N ãoenganado e ter entrado num quarto que não era o seu. Tinha muito por onde escolher. Miss Melbourne seria quem gritaria mais alto, Miss Beauchamp quem se riria mais e Conrad quem soltaria os maiores resmungos. Por isso, claro, escolheu o quarto de Miss Edgerton. Já estivera no quarto dela: quando as senhoras saíram para a salinha depois do jantar, ele abandonara os outros cavalheiros, alegando ter de ir ao seu quarto buscar o seu charuto colombiano especial. Aproveitara a oportunidade para fazer o mapa dos quartos e seus ocupantes. Mas o que realmente precisava era de um momento de solidão, que passara no corredor vazio, encostado à porta do seu quarto e com a mão a tapar a cara. Não perdera nada: para começar, como poderia perder qualquer coisa que nunca existira? E, contudo, tudo perdera. Já não podia pensar na sua companheira de sempre da maneira como sempre fora, calorosa, apoiante e compreensiva. Agora só via a beleza predadora de Miss Edgerton, o brilho lisonjeiro nos olhos dela, igual ao sol que brilha nos dentes de um crocodilo. Agora percebia finalmente a razão por que os rapazinhos atiravam, por vezes, pedras às raparigas bonitas. Era esta fúria sem palavras, a dor das esperanças despedaçadas. Estava ali para atirar pedras a Miss Edgerton. Ela estava sentada à frente do toucador, de perfil para ele, a pentear-se, lenta e distraidamente. Quando erguia o braço para chegar ao alto da cabeça, a manga curta e larga da camisa de noite escorregava, expondo a parte de cima do braço e, por uma fração de segundo que lhe fazia parar o coração, a curva do seu seio. – Miss Edgerton, o que faz no meu quarto? – disse da porta, que abrira sem

fazer barulho. Ela levantou os olhos, sobressaltada, e saltou da cadeira. À pressa, deitou a mão ao roupão e apertou-o com força ao corpo. – Senhor, está enganado. Estou no meu quarto. Ele inclinou a cabeça para um lado e troçou. – É o que todas dizem. Mas a menina, Miss Edgerton, ainda não é casada. Para si, não há brincadeiras. Agora, ponha-se a mexer. Ela olhou para ele, de boca aberta. Bem, pelo menos não estava a sorrir. Não ficara mais feliz pelo facto de, ao longo do resto da noite, ela nunca se ter aproximado dele e, em vez disso, ter ficado a jogar às cartas com Freddie, Wessex e Miss Beauchamp por entre demasiados sorrisos. A parte estúpida e ilógica de si ainda desejava os sorrisos dela; pior, experimentava um sentimento de absoluta propriedade em relação a ela. Entrou no quarto e sentou-se aos pés da cama dela, o que o pôs cara a cara com o quadro que estava pendurado na parede em frente. Era uma tela de cerca de noventa centímetros por um metro e vinte, a explosão de cor de uma única rosa vermelha e os seus espinhos, afiados que nem facas. Na extremidade viam-se o braço e o ombro de um homem, deitado de barriga para baixo na neve, uma longa pena preta, perto da sua mão inerte, claramente relacionado com o quadro que estava na sala de jantar. Vere alargou a gravata e tirou-a. – Senhor! – As mãos dela agarravam o roupão com força, mantendo-o bem junto ao corpo. – Não pode… não deve despir-se aqui. – Claro que não vou despir-me mesmo, enquanto aqui estiver, Miss Edgerton, claro que não vou. E, a propósito, porque é que ainda aqui está? – Já lhe disse, senhor. Este quarto é meu.

Ele suspirou. – Se insiste, eu beijo-a. Mas não faço mais nada. – Não quero ser beijada. Ele sorriu-lhe. – Tem a certeza? Para sua surpresa, ela corou. A sua própria reação foi uma vaga de calor intenso. Ficou a olhar para ela. – Por favor, saia – pediu ela, numa voz trémula. – Penny! Penny! Estás no quarto errado – Freddie, o bom velho Freddie, chamava-o do lado de fora da porta aberta. Ela voou até junto dele. – Oh, muito obrigada, Lorde Frederick. Estava a ter dificuldade em explicar a Lorde Vere que cometeu um erro terrível. – Não, não, eu provo aos dois – argumentou Vere, em voz bem alta. – Vejam, eu ponho sempre um cigarro por baixo da coberta para poder dar umas fumadelas antes de dormir. Marchou até junto da cama e, acompanhado por um grito abafado da rapariga, atirou a coberta para trás. Claro que não estava lá nada. Ele arregalou os olhos. – Fumou a minha beata, Miss Edgerton? – Penny! Este não é mesmo o teu quarto!

– Oh, está bem – disse Vere, erguendo as mãos ao alto. – Que chatice. Gosto deste quarto. – Agora, anda – insistiu Freddie. – Já é tarde. Eu levo-te ao teu quarto. Estava pronto para se ir embora, mas, à porta, Freddie agarrou-o por um braço. – Penny, não devias dizer qualquer coisa a Miss Edgerton? – Claro que sim. – Virou-se. – Tem um quarto encantador, Miss Edgerton. Freddie deu-lhe uma cotovelada. – E apresento-lhe as minhas desculpas – acrescentou. Com algum esforço, ela debateu-se para afastar o olhar de Freddie. – É um erro perfeitamente compreensível, senhor… os nosso quartos são próximos um do outro. Os quartos eram próximos, pois eram. O dele era na diagonal do corredor, em relação ao dela. Os outros hóspedes que estavam próximo, Freddie e Lady Kingsley, tinham os quartos a duas portas de distância. Ainda mais uma indicação dos cuidados planos dela para se encontrar com maior facilidade com o marquês que tencionava agarrar. Como que para mostrar que não albergava qualquer ressentimento pelo faux-pas dele, ela dirigiu-lhe um sorriso tão sereno e gracioso como qualquer um dos outros com que o tinha agraciado ao longo de todo o dia. – Boa noite, Lorde Vere. Mas ele já sabia que aqueles sorrisos não tinham qualquer significado. Sabia que ela os construía tal como um falsário que fabricava notas de vinte libras, novinhas em folha. E ainda assim não conseguia evitar aquela nova

vaga daquele muito antigo desejo. – Boa noite, Miss Edgerton. – Curvou-se. – Mais uma vez, as minhas desculpas. A princípio, a altitude entusiasmou Elissande. Era uma montanha verdadeira, tão acima das planícies distantes que bem podia estar na varanda de Zeus. O ar era rarefeito. O sol era brilhante e forte. Longe, uma pinta negra descrevia círculos no céu. Levantou a mão para proteger os olhos do brilho intenso do sol. Mas a mão deslocou-se apenas uns centímetros. Olhou para ela, consternada, e piscou os olhos. Uma algema negra apertava-lhe o pulso. Desta algema saía uma corrente e cada elo era do tamanho do seu punho. A outra ponta da corrente estava fixa na encosta da própria montanha. Olhou para o outro pulso. O mesmo. Agrilhoada como Prometeu. Deu um sacão com o pulso. Doeu. Deu um sacão com mais força. Só conseguiu que lhe doesse mais. O pânico começou a subir, como a água que inunda uma cave. O coração batia-lhe com toda a força. A sua respiração tornou-se curta e arquejante. Por favor, não. Tudo menos isto. Tudo menos isto. Um grito agudo atravessou o ar. A pinta negra ganhou tamanho, enquanto picava a direito sobre ela. Era uma ave – uma águia, com um bico tão afiado como uma faca e estava quase em cima dela. Debateu-se freneticamente. Os pulsos ficaram a escorrer sangue, mas ela não conseguiu libertar-se. A águia soltou um novo grito e mergulhou o bico na barriga dela. No meio daquela agonia, ela nem sequer era capaz de gritar, só debater-se que nem uma louca. Acordou ainda a agitar-se violentamente.

Foram precisos alguns minutos para que o terror residual que sentia desaparecesse. Com dedos ainda trémulos, acendeu a vela que tinha junto da cama e escavou a gaveta da roupa interior, à procura do guia de viagens do Sul de Itália. «A ocidente da aldeia ergue-se um precipício, uma parede de calcário quase vertical que separa os terrenos no planalto de Anacapri da parte oriental de Capri», leu, baixinho, para si própria. «Antigamente, a única maneira de subir até Anacapri era ir da praia e trepar os oitocentos degraus grosseiros, escavados na rocha, provavelmente construídos antes do período do domínio romano. Nos nossos dias, existe já uma estrada muito boa para carruagens que vai até Anacapri. A vista que se desfruta desta estrada é maravilhosa.» Vere tinha-se juntado ao caso Douglas a pedido de Lady Kingsley. Não levantou objeções, devia-lhe um favor em troca da ajuda no caso Haysleigh, mas não estava totalmente convencido da culpa de Douglas. Por duas vezes, Douglas estivera hospedado no Hotel Brown quando a pista dos diamantes extorquidos conduzira até aí. De ambas as vezes, ele viajara de Londres para Antuérpia, onde um grande número de negociantes de diamantes fora sujeito a táticas extorsionistas. Mas Douglas tinha legítimas razões para visitar tanto Londres como Antuérpia, centros importantes do comércio de diamantes. E até mesmo Lady Kingsley, que tinha a certeza de que ele era o homem certo, não se revelava capaz de explicar como é que alguém que já nadava em diamantes queria mais pedras. – Uma das razões é ele ter menos do que se pensa, deve ter exagerado no valor da sua descoberta – Lady Kingsley sussurrou a Vere, no fim de terem passado três horas a analisar os papéis de Douglas, no escritório daquele. – Corre o boato que a jazida era tão extraordinária que cada balde de terra trazia uma fortuna colossal. Mas a realidade pode não ser bem assim. Vere enfiou uma caixa de documentos no compartimento a que pertencia. – Talvez a gerência tenha feito alguns desvios.

– Existe sempre essa possibilidade. Mas se foi essa a conclusão a que chegou, não foi lá em pessoa verificar o que se passava. Pelo menos, o capataz e os contabilistas nunca referiram qualquer visita dele. – Lady Kingsley levantou a sua lanterna bastante alto para que Vere visse bem onde devia meter a caixa seguinte. – E as contas da casa? Lady Kingsley tinha um jeito especial para documentos comerciais; nessa noite, Vere viera como ajudante, com o propósito de ficar de sentinela e levantar volumes mais pesados. Mas ela tinha sido forçada a um pequeno descanso, dado estarem a trabalhar com uma luz tão fraca, e Vere aproveitara a oportunidade para estudar os registos das contas domésticas. – A propriedade não tem muitas terras: poucos rendimentos e muitas despesas – fez o seu relatório. – Mas, ainda assim, despesas normais. Nada que lhe desse um motivo para se envolver em atividades criminosas. – Há quem o faça por causa da adrenalina. – E a maior parte não o faz. – Vere ajustou as caixas para ficarem alinhadas umas com as outras, da mesma maneira que as encontrara. – Viu alguma referência a diamantes artificiais? – Não, nada. O caso contra Edmund Douglas começara por um mero acaso: um suspeito que a polícia belga prendera gabara-se de esfolar os negociantes de diamantes de Antuérpia, a soldo de um inglês. Para a polícia belga não fora prioritário investigar o que considerou ser um caso de descarada fanfarronice, apesar de Vere ter a suspeita de que a falta de interesse da polícia se devia mais ao facto de os negociantes de diamantes de Antuérpia fazerem parte de uma comunidade de judeus. Não obstante a apatia da polícia belga, a correspondente indiferença da Scotland Yard e o silêncio teimoso das alegadas vítimas de Douglas, por alguma razão, o caso atraíra o interesse de Holbrook e, posteriormente, encontrara uma defensora em Lady Kingsley, cujo pai se suicidara quando

deixara de conseguir manter o seu extorsionista feliz. Ao longo de vários meses, ela empenhara-se dedicadamente no caso e compilara um extenso dossiê. E, desde o início, uma coisa intrigara Vere naqueles documentos: a razão que o criminoso belga alegara para a chantagem aos negociantes de diamantes e que fora estes estarem a passar diamantes falsos por verdadeiros. Tanto quanto Vere sabia, apesar de o químico francês Henri Moissan ter publicado os resultados da experiência bem sucedida em que, usando um forno elétrico a arco, conseguira sintetizá-los, a verdade é que ninguém fora capaz de replicar os resultados. Os diamantes sintéticos ainda não eram uma realidade. E, mesmo que fossem, o mundo não estava em risco de ficar sem diamantes naturais. Os negociantes de Antuérpia não tinham qualquer razão para traficar as gemas feitas pelo homem. Lady Kingsley foi a primeira a abandonar o escritório. Vere esperou um bom par de minutos antes de se dirigir para a escada de serviço. A porta no patamar conduzia para a ala oriental da casa, onde ficavam os quartos do senhor e da senhora da casa. Pôs-se à escuta junto da porta do quarto do dono da casa e a seguir esgueirou-se lá para dentro. O quarto de um homem era palco de um fluir constante de criados para fazerem a cama, limpar a lareira, escovar-lhe a roupa e limpar o pó à mobília. Era improvável que Douglas deixasse ali algo relevante, mas Vere estava com esperança de aprender qualquer coisa acerca da personalidade do homem. Tirou do bolso uma caneta de tinta permanente e, com todo o cuidado, desenroscou-a pelo meio. A caneta tinha uma pequena quantidade de tinta e conseguia escrever alguns parágrafos, mas a sua verdadeira utilidade residia na pilha e pequena lâmpada montados onde deveria estar o depósito de tinta. Com o feixe de luz, varreu rapidamente o aposento, era muito mais limpo do que andar com uma vela ou uma lanterna, apesar de a luz não durar muito tempo e a pilha estar sempre a precisar de descanso. A sua luz deteve-se na fotografia emoldurada sobre a mesinha de cabeceira de Douglas, a única

fotografia com que, até ao momento, Vere se deparara naquela casa. Dobrou-se para a frente no intuito de a ver melhor. Era uma fotografia do casamento de um casal excecionalmente bonito. A mulher tinha uma beleza etérea, onírica; o homem, de estatura média e elegante, tinha um ar igualmente requintado. Na moldura estava gravada: «Como te amo? Deixa-me contar as formas7.» A cara da mulher tinha qualquer coisa de familiar. Já a vira, algures, e havia pouco tempo. Mas onde? E quando? Tinha boa memória para caras e nomes. Mas, mesmo que não tivesse, nunca se esqueceria de uma mulher daquelas. De repente, percebeu: a estranha pintura na sala de jantar. A cara do anjo. A noiva seria Mrs. Douglas? Tal facto implicaria que o noivo seria Edmund Douglas. Claro, seria ridículo um homem ter a fotografia do casamento de outro homem na sua mesinha de cabeceira. Mas Vere estava a ter dificuldades em conjugar o homem da fotografia, elegante e de uma beleza quase delicada, com o que sabia acerca de Edmund Douglas. Não deveria ter um físico um pouco mais robusto? Se Vere não estava enganado, Douglas fora pugilista. E, mesmo que tivesse sido um lutador magro, onde estavam as cicatrizes e o nariz partido? No quarto de Mrs. Douglas, Vere deparou-se com um intenso e nítido odor a láudano. Mrs. Douglas estava a dormir: a respiração era lenta e o seu corpo tão magro que quase parecia bidimensional. Aproximou a luzinha junto da cara dela. A beleza era um bem de resistência notavelmente falível, mas, mesmo assim, o aspeto de Mrs. Douglas chocou-o. Era uma paródia mumificada à sua anterior pessoa, com pouco cabelo, olhos encovados e boca entreaberta devido ao torpor induzido pelo láudano, um rosto que assustaria criancinhas desprevenidas que se deparassem com ela. Mas era a natureza da vida. Nem todos os diamantes de África conseguiam garantir a um homem que a mulher, com o tempo, não se transformaria num espantalho.

Também existia uma fotografia na mesinha de cabeceira dela. O retrato de um bebé minúsculo, num pequeno caixão. Rodeada de flores e rendas: uma memória fúnebre. Em baixo, estava gravado: A Nossa Adorada Christabel Eugenia Douglas. Vere pousou a fotografia e ergueu a luz. O que viu a seguir fê-lo imobilizarse durante um bom bocado. Era o terceiro elemento de A Traição do Anjo, pintado de um ponto de vista abrangente, a meio caminho entre os outros dois. O homem estendido, inconsciente, na neve ocupava a maior parte da tela; a seu lado, onde deveria estar uma poça do seu sangue, a rosa escura florescia numa exuberância zangada. Do anjo via-se apenas a extremidade de uma asa negra e a ponta de uma espada ensanguentada, no canto superior direito. Com as pontas dos dedos enluvados, Vere tateou a moldura, por cima e por baixo. Lá estava a lingueta. O quadro deslocou-se da parede, revelando um pequeno cofre. Fazia sentido: a falta de saúde de Mrs. Douglas proporcionava uma desculpa legítima para manter os criados afastados pelo que o seu quarto era o melhor local para esconder coisas. Tirou as gazuas do bolso interior do colete. Segurando a luz entre os dentes, lançou-se ao trabalho, tentando sentir os pernos. Ao fim de poucos minutos, a fechadura deu um estalido e ele abriu a porta do cofre, descobrindo uma segunda porta com uma fechadura de combinação americana. Soaram passos no corredor. Vere fechou o cofre, puxou o quadro até ele ficar preso de novo no lugar e afastou-se para o mais longe da cama possível, enfiando a caneta no bolso enquanto se afastava. A porta abriu-se. Os passos dirigiram-se para a cama. Espalmou-se contra a parede, escondido atrás de cortinas semicerradas, na esperança de que a mulher, os passos leves pertenciam a uma mulher, não se aproximasse mais. Ela deteve-se do lado oposto da cama. Ali se deixou ficar durante um longo minuto. Ele teve dificuldade em respirar levemente. A presença dela estava a agitá-lo.

– Não vou desistir, sabes – disse ela numa voz estranhamente frouxa e sem vida. Precisou do segundo em que o seu coração parou para perceber que ela não se estava dirigir a ele, mas à sua semicomatosa tia. – Vai ser possível, não vai? – perguntou à insensível Mrs. Douglas. O que seria? O que queria ela? Ela dobrou-se, beijou Mrs. Douglas e saiu. De manhã, Elissande mandou que servissem o pequeno-almoço nos quartos a toda a gente exceto a Lorde Frederick. Depois, instalou-se na sala do pequenoalmoço à espera que este chegasse para poderem gozar de algum tempo livre juntos. Ia pedir-lhe que lhe falasse mais de arte e talvez qualquer coisa acerca de Londres. Escutá-lo-ia com a maior atenção, assentindo com a cabeça enquanto bebia um ou outro golinho de chá. E depois… o quê? Gostava de Lorde Frederick. Muito. Mas não fazia a mínima ideia da melhor forma de o cortejar ao contrário de… Não valia a pena negá-lo. Com Lorde Vere não se preocupara com os pormenores da conversa. A única coisa importante era diminuírem a distância entre os dois, toda a sua pessoa ansiava por se encontrar mais perto dele. Até toda a sua pessoa ter sido repelida por ele. Mesmo assim, quando, cavalheirescamente, tinha afirmado que a beijaria… Não, ela não tinha sentido nada com os seus desadequados galanteios, nada a não ser ultraje e aversão. Lorde Frederick surgiu à porta. Excelente, o seu plano tinha funcionado. Sorriu-lhe. No segundo seguinte, o sorriso gelou-se-lhe na cara. Lorde Vere vinha atrás dele, a caminho da sala do pequeno-almoço… Lorde Vere que

tinha montes de lama nas botas e bocados de palha agarrados ao cabelo. – Oh, olá Miss Edgerton – trinou Lorde Vere. – Fui dar um grande passeio. Quando vinha de regresso encontrei o Freddie, que vinha a descer as escadas. E cá estamos nós, com o nosso apetite e as nossas adoráveis pessoas para lhe fazermos companhia. Ela devia ter pena dele: não conseguia evitar ser um idiota. Mas a única coisa que sentiu foi uma ardente irritação. A presença dele estava a estragarlhe os planos que tão cuidadosamente gizara. – Que amável da vossa parte – forçou-se a dizer. – E eu, que estava aqui sozinha. Por favor, encham os pratos e sentem-se. Mas como haveria de salvar o pequeno-almoço? Teria de bombardear Lorde Frederick com perguntas sobre arte, especialmente a dele, no instante em que ele se sentasse. Mas, de novo, Lorde Vere lhe contrariou os planos, dando início ao seu monólogo quando ainda estava de pé, junto do aparador, a atafulhar o prato de ovos estrelados, arenques grelhados e pãezinhos com manteiga. O seu tópico de conversa foi a criação de animais. Ao que parecia, tinha estado numa ou duas feiras de agricultura e considerava-se uma autoridade. Durante um período considerável, perorou acerca da ovelha do Shropshire, sobre os seus méritos e deméritos e, de seguida, comparou-a à ovelha para abate de Southdown, de Oxford Down e do Hampshire, cujos carneiros, na sua opinião, tinham narizes romanos. Não obstante ter sido educada no campo, Elissande não sabia nada de ovelhas. Mas até ela conseguia perceber os disparates atrozes que ele proferia. Ainda lhe apetecia agarrá-lo pelos ombros, sacudi-lo e perguntar-lhe como seria possível ter A Libertação de São Pedro, de Rafael, pendurado na sua sala de jantar, uma vez que se tratava de um fresco do palácio do Vaticano, parte integrante da arquitetura dos próprios aposentos papais. A determinada altura, Lorde Vere desviou o seu interesse das ovelhas para o

gado em geral. Não só tinha visitado feiras de agricultura como vira mesmo os próprios cartões de avaliação. – Caramba, os animais passaram por um exame rigoroso, cabeça, corpo, quarto dianteiro, quarto traseiro. Mas sabe qual é o aspeto mais importante na avaliação de uma vaca leiteira? – Não, estou certa que não, senhor – respondeu, apunhalando com a faca o pãozinho que tinha no prato. – O desenvolvimento mamário, Miss Edgerton, que vale uns espantosos trinta e cinco por cento da avaliação global. O úbere tem de ser bastante grande e muito flexível. As tetas têm de ser de bom tamanho e estarem bem distribuídas. As veias do leite, grandes; as cisternas com boa capacidade. Já não estava a olhar para a cara dela mas para o seu peito. – Penso que nunca mais olhei para uma vaca leiteira da mesma forma. Agora, quando vejo vacas, em vez de dizer para mim mesmo «Oh, olha, vacas», analiso os seus úberes e tetas, para ver se estão conformes aos bons princípios da criação de gado… e pelo simples prazer de estudar úberes e tetas, claro. Elissande não estava a acreditar no que ouvia. Os olhos arredondaram-selhe um pouco mais e ela assentiu com um pouco mais de energia. Depois, deitou um olhar na direção de Lorde Frederick, certa de que estaria a franzir o sobrolho aos disparates de Lorde Vere na tentativa de avisar o irmão de que a sua conversa ultrapassara todos os limites do que era aceitável. Mas Lorde Frederick não estava a prestar a mínima atenção. Comia devagar, com os olhos pregados no prato e, obviamente, a cabeça muito longe dali. Lorde Vere continuou a sua arenga acerca de úberes e tetas, de olhos fixos no tronco dela. No meio daquele entusiasmo deixou cair dois garfos e uma colher, entornou a chávena e por fim fez com que um ovo estrelado fosse aterrar diretamente sobre as suas pernas, fazendo-o levantar-se de um salto e derrubar a cadeira com estrondo. O ovo que estava nas calaças caiu no chão,

mas não sem antes deixar uma mancha de gema amarela, perfeitamente redonda, num sítio para onde ninguém devia olhar. A agitação acabou por arrancar Lorde Frederick às suas divagações. – Penny, mas que…? – Oh, céus – disse Elissande. – É melhor ir mudar-se rapidamente, senhor, se não quer que a sua bela roupa fique estragada. Por uma vez, Lorde Vere fez a coisa sensata e desapareceu. Devagar, Elissande relaxou as mãos que tinha enclavinhadas uma na outra por baixo da mesa. No entanto, precisou ainda de alguns segundos antes de conseguir dominar-se e sorrir para Lorde Frederick. – Como se sente esta manhã, senhor? O tabuleiro do pequeno-almoço no seu quarto e a ausência de um outro no quarto de Lorde Frederick disseram a Vere tudo o que precisava saber: Miss Edgerton tinha planeado tomar o pequeno-almoço só com Freddie. Não podia criticar-lhe o gosto: Freddie era o melhor dos homens. Já ela, com os seus sorrisos abundantes e planos manipuladores, estava a milhas de merecer Freddie. Deixá-la tentar. Ele frustraria, baralharia e destruiria todos e cada um dos planos dela. Contudo, de momento, tinha de falar com Lady Kingsley. Fez deslizar um papel por baixo da porta do seu quarto. Cinco minutos mais tarde, ela juntouse-lhe na curva da grande escadaria, de onde ninguém podia aproximar-se sem ser notado. – Pedi ao Holbrook que me mandasse o Nye – disse Vere. Nye era arrombador de cofres. Depois de ter abandonado o quarto de Mrs. Douglas, Vere mudara de roupa, escrevera uma nota aparentemente incoerente, mas que Holbrook saberia decifrar, e caminhara até à aldeia mesmo a tempo da abertura do posto do telégrafo. No caminho de regresso, apanhara boleia de

uma carroça de feno e pousara a cabeça para uma agradável soneca depois de uma noite sem dormir, tendo chegado a Highgate Court no momento em que Freddie descia as escadas para ir tomar o pequeno-almoço. – Onde é o cofre? E ainda tem palha no cabelo. – No quarto de Mistress Douglas, por trás do quadro do morto – disse Vere, passando os dedos pelo cabelo. – Já sabe os movimentos dos criados? – Não vão ao quarto de Mistress Douglas a menos que sejam chamados. Duas vezes por semana, Miss Edgerton senta-a numa cadeira de rodas e passeia-a pelo corredor. É quando os criados limpam o quarto, mudam a cama e outras coisas do género. A não ser nestas ocasiões, só Miss Edgerton, e, calculo, o próprio Douglas, entra no quarto. – Nesse caso, o Nye pode começar a trabalhar assim que Miss Edgerton desça para o jantar. Lady Kingsley olhou para cima e acenou à sobrinha, que lhe devolveu o aceno antes de desaparecer pelo corredor, provavelmente para visitar uma das suas amigas. – De quanto tempo é que ele vai precisar? – Já abriu um cofre de combinação numa curta meia hora. Mas, nesse caso, pôde usar uma broca. Aqui não pode. Lady Kingsley franziu o sobrolho. – Ontem à noite, quando as senhoras se retiraram, Miss Edgerton foi ao quarto de Mistress Douglas antes de ir para o dela. – Temos de garantir que esta noite não se recolhe tão cedo. – E garantimos – respondeu Lady Kingsley. – E consigo inventar uma razão para a reter junto de mim depois de todas as outras se terem retirado, mas não por muito tempo.

Miss Kingsley reapareceu no topo das escadas. – Lorde Vere, posso pedir-lhe a minha tia emprestada por um instante? Miss Melbourne não consegue decidir que roupa usar hoje. – Faça o que puder e eu encarrego-me do resto – disse Vere, num tom de voz apenas audível para Lady Kingsley. Levantou a voz. – Claro que pode, Miss Kingsley. Veja, é toda sua, com os meus cumprimentos. Foi uma boa conversa, a que tiveram acerca de vários locais de Londres e dos campos à sua volta, onde Lorde Frederick gostava de pintar. Mas não foi uma conversa excitante. Não que Elissande estivesse amplamente familiarizada com conversas excitantes, mas, mesmo assim, sentiu a falta de uma centelha. Lorde Frederick não olhava para ela como se ele fosse uma cabeça de gado esfomeada e ela um molho de feno fresco e odorífero e, Deus do céu, porque é que estava a pensar em termos de criação de gado quando, em toda a sua vida, nunca o fizera? Lorde Frederick era educado e amável, mas não mostrava o mínimo sinal de preferência por Elissande. A culpa era toda de Lorde Vere, pensava ela, especialmente quando regressara demasiado cedo, ainda vestido com a mesma roupa suja de ovo. O interminável discurso acerca das ovelhas para carne devia ter esgotado toda a vida e a verve de Lorde Frederick, que o escutara sabe Deus por quantos milhares e milhares de horas ao longo de toda a vida. – Penny, esqueceste-te de mudar de calças – avisou Lorde Frederick. – Então é isso! – gritou Lorde Vere. – Fui lá acima ao meu quarto e, pela minha vida, não fui capaz de me lembrar porque tinha lá ido. Bolas. Idiota! – E que tal fazer outra tentativa? – sugeriu Elissande, recurvando os lábios no desejo que os sorrisos fossem setas. Lorde Vere ficaria com mais furos do que São Sebastião.

– Oh, agora já não vale a pena. Esqueço-me outra vez – Lorde Vere afastou a ideia com ligeireza. – Posso bem esperar até à hora de mudar de roupa para a caçada. E, já agora, que tal é a caça por aqui, Miss Edgerton? Estava outra vez a olhar para o peito dela? Claramente, os seus olhos não encontraram os dela. – Lamento, mas não temos coutada de caça, senhor. Os olhos dele mantiveram-se fixos no mesmíssimo ponto. – Não? Hmmm, calculo que tenhamos de jogar ténis. – Lamento, mas também não temos campo de ténis. – E tiro com arco? Não sou um arqueiro muito terrível. Nas costas dele, Lorde Frederick ficou pouco à vontade. – Com a frágil saúde da minha tia e o cuidado que o meu tio tem por ela, não temos nada que possa causar ruído ou excitação. Em vez disso, talvez lhe agrade fazer uma caminhada, Lorde Vere? – Eu já fiz uma caminhada antes do pequeno-almoço… não se recorda, Miss Edgerton? Calculo que possa entreter-me com um jogo de croquet8. Como conseguia ele fazer aquilo? Manter uma conversa com ela sem nunca desviar os olhos, firmemente aninhados entre os seus seios? – Peço desculpa. Não temos o equipamento necessário para um jogo de croquet. – Bem – retorquiu Lorde Vere, finalmente exasperado a ponto de desviar o olhar para o rosto dela. – Então, o que faz por aqui, Miss Edgerton? Ela ofereceu-lhe um sorriso que podia ter-lhe dado cabo da vista. – Cuido da minha tia, senhor.

– Muitíssimo admirável, mas de um tédio insuportável, não é?, sem nenhum entretenimento aqui nas redondezas? Ela conseguiu manter o sorriso, mas não sem um considerável esforço. Como a irritava, qual pedra num sapato. – O tédio não entra num… Parou. O som temido: uma carruagem a aproximar-se. – Com licença – disse, pondo-se de pé. – Está à espera de visitas? – Lorde Vere seguiu-a até à janela. Não respondeu, muda de alívio. Não era o tio. Não reconheceu a carruagem. Como também não reconheceu a mulher de meia-idade, e feições duras, envergando um vestido azul de viagem, que desceu da carruagem. – Não é Lady Avery, Freddie? – perguntou Lorde Vere. Lorde Frederick aproximou-se da janela com rapidez. Lorde Vere cedeu-lhe o lugar. – O que está ela a fazer aqui? – Resmungou Lorde Frederick. Praguejou baixinho, depois lembrou-se de onde estava e virou-se para Elissande. – Peço desculpa, Miss Edgerton. Não quis ser indelicado acerca da sua visita. Que perfeito cavalheiro! – Pode ser tão indelicado quanto queira, senhor. Garanto-lhe que nunca vi esta visitante em particular. – Oh, vejam. Trouxe bagagem – comentou, imperturbável, Lorde Vere. – Acham que veio para ficar? Lorde Frederick deu uma palmada com a mão no lambril da janela e de novo pediu desculpa a Elissande.

– Não faz mal – respondeu Elissande. – Mas quem é ela? 7 Primeiro verso de um célebre soneto de Elizabeth Barrett Browning, publicado em Sonnets from the Portuguese. (N. da T.) 8 Jogo de relvado, de origem francesa, que consiste em fazer avançar bolas com pequenas tacadas e fazê-las passar por baixo de arcos espetados no chão. Muito popular em Inglaterra. (N. da T.)

6

Lady Avery era uma mexeriqueira. A noção de mexerico não era totalmente estranha a Elissande: na aldeia, Mrs. Webster fora uma delas, sempre pronta a falar da mulher do talhante ou do novo jardineiro do vigário. Mas Lady Avery considerava-se muito superior a boateiras provincianas como Mrs. Webster: ela era uma mulher do mundo, com entrada livre nos melhores círculos da sociedade. À sua chegada, Lorde Frederick desapareceu com prontidão. Para desespero crescente de Elissande. A bem dizer, o seu desespero começara já antes da chegada de Lady Avery: Lorde Frederick não mostrava qualquer urgência em se apropriar da mão dela e o tempo de que dispunha, já de si tão limitado quanto a inteligência de Lorde Vere, encolhia com rapidez a cada segundo que passava. Lady Avery também não ajudou nada, ao começar logo a moer a paciência a Elissande, na tentativa de saber a proveniência dos Douglas, e recusando-se a admitir que era mesmo verdade que Elissande não sabia nada das origens do tio e só um pouco mais das da tia. – Os Douglas de West Cheshire? – perguntou Lady Avery. – De certeza que é da família dos Douglas de Cheshire. Seria Lady Avery aluna da escola particular de exploração genealógica de Lorde Vere? – Não, minha senhora. Nunca ouvi falar deles. Lady Avery aclarou a garganta. – Muitíssimo irregular. Então, quem é a sua família? Os Edgerton do Derbyshire? Bem, ao menos isso, ela sabia.

– Os Edgerton de Cumberland, minha senhora. As sobrancelhas de Lady Avery uniram-se. – Os Edgerton de Cumberland. Os Edgerton de Cumberland – murmurou. Depois, triunfante, gritou. – É neta do falecido Sir Cecil Edgerton, não é? Por parte do filho mais novo? Elissande olhou para ela em estado de choque. Julgara que o saber mexeriqueiro de Lady Avery seria tão válido quanto o saber de Lorde Vere em criação de gado. – Sir Cecil era meu avô, sim. – Ah, bem pensava – declarou Lady Avery, satisfeita. – Foi um belo escândalo quando o seu pai fugiu com a sua mãe. E um fim tão triste, morrerem com três anos de intervalo. Lady Kingsley, Miss Kingsley e Miss Beauchamp entraram na salinha. De repente, Elissande ficou tão alarmada quanto Lorde Frederick devia ter ficado. A história dos seus pais não só fora trágica como também não era própria para conversa num grupo de gente requintada, como insistia, repetidas vezes, o tio. E se Lady Avery decidisse revelar os pormenores mais suculentos a quantos estavam presentes? – Lorde Vere diz que assustou e fez fugir o irmão – disse, em voz bem alta e alegre, Miss Kingsley. – Disparate. Durante a temporada, já arranquei a Lorde Frederick tudo quanto havia a saber. De momento, não tem nada a temer de mim. Miss Beauchamp sentou-se ao lado de Lady Avery. – Oh, conte, cara senhora. O que foi que arrancou a Lorde Frederick? – Bem… – Lady Avery prolongou aquela sílaba durante uns bons três segundos, gozando obviamente o seu papel como fonte de petiscos saborosos.

– Ele esteve com ela em junho, quando ela veio à cidade tratar do casamento daquela herdeira americana, a Miss Van der Waals. E, não vão acreditar, mas estiveram juntos em Paris, Nice e Nova Iorque. Toda a gente ficou com um ar chocado, incluindo ela própria, pensou Elissande. Quem era esta «ela»? – Estiveram? – exclamou Lady Kingsley. – E o que pensa Lorde Tremaine? – Bem, aparentemente aprova. Os dois homens jantaram juntos. Lady Kingsley abanou a cabeça. – Valha-me Deus, será que as maravilhas não têm fim? – De facto, não. Perguntei a Lorde Frederick se ela lhe parecia estar bem e ele perguntou-me quando é que ela não tinha parecido bem. – Oh, céus! – guinchou Miss Beauchamp. Por favor, que não seja verdade. – Lorde Frederick está comprometido com uma pessoa? – Elissande aventurou-se a fazer a pergunta. – As minhas desculpas, esqueci-me de que não sabe, Miss Edgerton. Lorde Frederick esteve comprometido com a marquesa de Tremaine. E, na primavera de noventa e três, ela estava pronta a divorciar-se do marido para ficar com ele. Ia ser um grande escândalo, mas o divórcio não chegou a ter lugar. Ela reconciliou-se com o marido e retirou a petição. – Pobre Lorde Frederick. – Miss Kingsley suspirou. – Não, felizardo Lorde Frederick – Lady Avery corrigiu-a. – Assim, ele pode casar com uma bela jovem, como aqui Miss Edgerton, em vez de com alguém que seria sempre referida como «aquela divorciada». Não concorda, Miss Edgerton?

– Não me parece que Lorde Frederick tenha qualquer plano de casar comigo – respondeu Elissande, infelizmente sem a menor sombra de falsa modéstia. – Mas, em geral, penso que é mais… conveniente não existir um divórcio no passado de um dos esposos. – Excelente – disse Lady Avery. – Minha querida Miss Edgerton, compreende o cerne da questão. Nesta vida não se pode ser romântico. Veja os cínicos: em tempos, todos foram românticos. – E… e agora, Lorde Frederick é um cínico? – Não, o céu o proteja, ainda é um romântico, quem diria! Calculo que nem todos os românticos desiludidos se transformem em cínicos. Era tão bom homem, Lorde Frederick. Quem dera a Elissande conseguir levá-lo a pedir a sua mão: ela amá-lo-ia muito mais do que a infiel Lady Tremaine. Na realidade, ela seria a melhor esposa de toda a história do casamento. Vere precisava de estar dentro da casa. Mas quando Freddie chegara ao pé dele, desejoso de companhia, não fora capaz de recusar. Caminharam vários quilómetros pelos campos, remaram numa das lagoas que pontilhavam a extremidade mais a norte do Shropshire e almoçaram na estalagem da aldeia. – Vou voltar – disse Vere, no final do almoço, levantando-se da mesa ao mesmo tempo que bocejava. Tinha de saber que instruções Holbrook lhe enviara e combinar com Lady Kingsley a forma de fazer Nye entrar e sair da casa. – Preciso de uma sesta. Não dormi bem na noite passada. – Pesadelos? – Freddie também se levantou e dispôs-se a acompanhar Vere. – Não, já não costumo tê-los muitas vezes. – No seu último ano em Eton, Freddie vira-se forçado a ir ao quarto de Vere quase todas as noites para o abanar e acordar. – Seja como for, podes deixar-te ficar por aqui, se quiseres.

Alugo a carruagem da estalagem para me levar de regresso. – Vou contigo – disse Freddie, baixinho. Vere sentiu outra pontada de culpa. Sem dúvida que Freddie tinha vontade de se manter fora de casa durante o dia todo, Lady Tremaine eram águas passadas, contudo, Lady Avery ainda o atacava como se ele tivesse acabado de valsar com o Escândalo. Mas Freddie também fazia questão de acompanhar Vere onde quer que ele fosse, sempre que estavam num local que não lhe era familiar. Vere apertou brevemente o ombro de Freddie. – Anda daí, então. De regresso à casa, Vere encontrou Lady Kingsley, que o esperava, impaciente. Nye chegaria pouco antes da hora de jantar. Combinaram que Vere o faria entrar pelas portas que davam da biblioteca para uma varanda na ala leste da casa, a ponta mais afastada da cozinha, e, por isso mesmo, onde era menos provável que os criados dessem por ele. – E o que fazemos depois de eu libertar Miss Edgerton, caso o Nye ainda não tenha terminado? – perguntou Lady Kingsley. – Eu penso em qualquer coisa. – Atenção, não faça nada de que se arrependa – advertiu-o Lady Kingsley. Tinham passado umas meras vinte e quatro horas desde que, pela primeira vez, pusera os olhos em Miss Edgerton. Não era de espantar que a recordação do seu entusiasmo ainda estivesse fresca na mente de Lady Kingsley. Mas, para Vere, parecia já estar a uma distância impossível, num tempo de inocência há muito perdida. – Terei cuidado – respondeu num tom frio. Ciente do objetivo de Miss Edgerton, assim que terminou a sua conversa a

sós com Lady Kingsley foi à procura do irmão. Encontrou Freddie, e Miss Edgerton, na sala de jantar, onde não estava mais ninguém. Freddie espreitava para dentro da sua máquina Kodak n.º 4 e Miss Edgerton, num adorável vestido de passeio alperce pálido, lançava olhares de adoração a Freddie. O ardor dos olhos dela esfriou consideravelmente quando reparou na presença de Vere. – Lorde Vere. Vere ignorou a sensação cáustica no seu coração. – Miss Edgerton. Freddie. Freddie puxou o botão de metal no topo da caixa da máquina para levantar o obturador. – Então, Penny. Que tal foi a tua sesta? Passaram só – deitou uma olhadela ao relógio – três quartos de hora. – A minha sesta foi fantástica. E que estás tu a fazer? – A tirar algumas fotografias a este quadro. Miss Edgerton teve a gentileza de me dar autorização. – Seria uma grosseria da parte de Miss Edgerton não te dar autorização, não seria? – Vere dirigiu-lhe um sorriso. Ela devolveu-lhe o sorriso, com uma expressão tão radiosa como a dele. – De certeza que sim. Além do mais, nunca tinha visto uma máquina fotográfica. – Eu já vi toneladas. E fazem todas precisamente o mesmo – respondeu ele, em tom de desprezo. – A propósito, Miss Edgerton, Miss Kingsley e as outras senhoras gostariam que as acompanhasse numa volta pelo jardim. – Oh! – disse ela. – Tem a certeza, Lorde Vere?

– Claro. Vi-a ainda não há três minutos na sala cor de rosa. Ele tinha visto Miss Kingsley nem três minutos antes, na sala cor de rosa. Contudo, Miss Kingsley estava ocupada num jogo de gamão com Conrad, o seu admirador… e não tinha a mínima intenção de ir onde quer que fosse. Mas, quando Miss Edgerton percebesse isto, seria demasiado tarde; Vere já teria escondido Freddie num sítio seguro, pelo menos mais seguro do que ao alcance da sua atitude calculista. – E fazia questão de ter a sua companhia – acrescentou Vere. – Então, talvez seja melhor ir ter com ela – afirmou Miss Edgerton, relutante. – Muito obrigada, Lorde Vere. Com a sua licença, Lorde Frederick. Vere observou-a. Quando chegou à porta, ela olhou para trás. Mas Freddie estava já ocupado com a próxima fotografia. Os olhos dela encontraram os de Vere. E ele assegurou-se de que o seu olhar deslizava ostensivamente para o peito dela. Elissande saiu apressadamente logo a seguir. Voltou a sua atenção para Freddie. – Apetece-te um jogo de snooker, meu velho? Claro que Lorde Vere estava enganado. Claro. Entre gargalhadas, Miss Kingsley e Mr. Conrad disseram a Miss Edgerton que não se preocupasse. Talvez tivesse sido outra pessoa a pedir a Lorde Vere que transmitisse a mensagem e Lorde Vere, com a sua memória levemente desajustada, uma forma mais do que caridosa de pôr a coisa, ter-se-ia enganado tanto na origem como na destinatária da mensagem. Amavelmente, Miss Kingsley chegou mesmo a levantar-se e oferecer-se para acompanhar Elissande numa volta pelo jardim, se ainda estivesse na disposição de o fazer. Elissande, que nunca tivera tal vontade, agradeceu profusamente a Miss Kingsley e desculpou-se aos dois por tê-los interrompido, pedindo-lhes que retomassem o jogo e se divertissem.

Quando Elissande regressou à sala de jantar, Lorde Frederick já lá não estava. Encontrou-o na sala de bilhar quinze minutos mais tarde, mas a sala estava cheia de homens, segundo parecia, estavam ali todos, exceção feita a Mr. Conrad. – Miss Edgerton, quer juntar-se ao jogo? – perguntou Lorde Vere, alegremente. Os outros cavalheiros riram baixinho. Mesmo sem experiência que a guiasse numa situação daquelas, Elissande apercebeu-se de que nunca deveria aceitar o convite. Daria uma impressão errada do seu caráter a Lorde Frederick, rigorosa, há que dizê-lo, e não podia ser. – Muito obrigada, senhor – retorquiu no que esperou ser um tom animado. – Mas não, obrigada. Estou só de passagem. Ainda lhe restava o jantar, quando teria Lorde Frederick sentado a seu lado. Infelizmente, o golpe seguinte veio precisamente nesse instante. Lady Kingsley preparara a distribuição de lugares na noite anterior, já que Elissande nunca lidara com as regras de precedência. Ela tinha esperanças de que nada mudasse e os lugares se mantivessem os mesmos. Todavia, para seu desgosto, Lady Kingsley apareceu com uma nova distribuição de lugares para essa noite, uma arrumação que punha Lorde Frederick a três lugares de distância de Elissande. Ela mal comeu. O nó que sentia na garganta evitava que fosse capaz de engolir qualquer coisa que se visse, fora-se um dia inteiro e ela não fizera o mínimo progresso. O regresso do tio, cada vez mais próximo a cada hora que passava, era um arrepio de frio nas suas costas, entre as omoplatas, um frio que nenhum casaco ou carvão conseguiriam debelar. A única vantagem era que Lorde Vere também ficara afastado dela. Sorte dele. Se ela o apanhasse mais uma vez a olhar-lhe para o peito, era bem capaz de lhe abrir a cabeça com o centro de mesa. Depois do jantar, o grupo jogou às charadas até às nove e quarenta e cinco.

Quando o tio estava em casa, era esta a hora em que Elissande, aliviada, lhe desejava as boas-noites e se escapava para o refúgio do seu quarto. Na noite anterior, as senhoras, depois da provação dos ratos, tinham-se retirado mais ou menos por volta daquela hora. Contudo, Lorde Vere estava determinado a mudar o estado de coisas. – A noite ainda é uma criança – declarou. – Vamos jogar a outra coisa qualquer. De pronto, Miss Kingsley aceitou o repto. – Oh, sim, vamos. Podemos, tia querida? Lady Kingsley pareceu hesitar. – Oh, vá lá, Lady Kingsley – tentou convencê-la Lorde Vere, num tom adulador. Não há nenhuma regra gravada na pedra que diga que as senhoras têm de estar na cama ao bater das dez. Elissande rangeu os dentes. Aparentemente, acontecia-lhe fazer aquilo sempre que Lorde Vere estava presente. – É bem verdade. Eu também sou a favor de jogarmos a outra coisa. – Miss Beauchamp juntou-se à campanha. – Bom, a decisão não me cabe a mim – afirmou Lady Kingsley. – Gozamos da gentil hospitalidade de Miss Edgerton. Um coro de pedidos chegou aos ouvidos de Elissande. Não havia muito mais que pudesse dizer além de: – Claro que podemos jogar a outra coisa. Mas a que vamos jogar? – Que tal «Passa o Embrulho»? – perguntou Miss Melbourne. – Não preparámos embrulho nenhum – disse Miss Duvall. – Eu proponho La Vache Qui Se Tâche.

– La Vache Qui Se Tâche faz-me dores de cabeça – queixou-se Lorde Vere. – Nunca sei quantas pintas tem cada pessoa. Uma coisa mais simples, por favor. – Às escondidas – sugeriu Mr. Kingsley. – Não, Richard – declarou a tia. – Nem pensar. Ninguém vai andar a correr pela casa a incomodar Mistress Douglas. – Já sei! Vamos jogar ao «Guincha, Porquinho» – sugeriu Miss Kingsley. De imediato, Mr. Conrad secundou a sugestão, seguido por Lorde Vere. O resto do grupo também manifestou a sua concordância. – Bem – disse Lady Kingsley –, não é um jogo que eu aprove totalmente, mas penso que estando eu e Lady Avery presentes, vocês não se podem meter em grandes sarilhos. As jovens senhoras bateram as palmas por poderem ficar a pé até mais tarde. Os cavalheiros dispuseram as cadeiras. Elissande, que não sabia nada de jogos de sala, perguntou a Miss Beauchamp: – Peço desculpa, mas como é que se joga ao «Guincha, Porquinho»? – Oh, é muito simples – respondeu Miss Beauchamp. – Sentamo-nos numa roda. Pomos uma venda numa das pessoas, que vai para o centro da roda. É o fazendeiro e os outros são os porcos. Alguém faz o fazendeiro girar três vezes e a seguir o fazendeiro tem de ir até junto de um porco e sentar-se no colo dele. O porco guincha e o fazendeiro tem de adivinhar a identidade do porco. Se acertar, o porco passa a fazendeiro. Se não, o fazendeiro joga outra vez. – Estou a ver – disse Elissande. Não admirava que Lady Kingsley quisesse duas chaperones. Tantos rapazes e raparigas solteiros a sentarem-se nos colos uns dos outros à vez era, se não absolutamente impróprio, pelo menos muito menos do que decoroso. Mr. Wessex ofereceu-se para ser o primeiro fazendeiro. Mr. Kingsley

vendou-lhe os olhos e fê-lo dar não três, mas pelo menos seis voltas sobre si mesmo. Mr. Wessex, que bebera uns bons copos de vinho ao jantar, oscilou perigosamente. Tropeçou na direção de Miss Kingsley. Esta guinchou e esticou os braços para evitar que ele chocasse diretamente com a sua pessoa. Deliberadamente, Mr. Wessex apoiou o peso nas mãos dela. Miss Kingsley guinchou outra vez. As outras jovens riram-se. Mr. Wessex, tendo subitamente deixado de estar tão vacilante, virou-se e sentou-se no colo de Miss Kingsley. – Muito bem, meu querido porquinho, grunhe lá para mim. Toda a gente riu, exceto Elissande. Uma coisa era ouvir a descrição do jogo, outra, completamente diferente, era vê-lo acontecer. A extensão do contacto entre Miss Kingsley e Mr. Wessex deixou-a assombrada. A atmosfera subitamente pouco digna da sala desgostava-a e, ao mesmo tempo, deixava-a curiosa. Miss Kingsley guinchou de novo. – Hmm, sim, sei que porquinho é este. Mas parte de mim quer continuar a ser fazendeiro, durante mais um bocadinho. – Mr. Wessex cruzou a perna e meditou. – Dilema, dilema. Miss Kingsley tapou a boca com as mãos e riu em silêncio. Com toda a energia, Mr. Conrad opinou que os outros também deviam ter oportunidade de serem fazendeiros. Mr. Wessex cedeu à pressão e identificou Miss Kingsley que, como nova fazendeira, caiu de pronto no colo de Mr. Conrad e ali ficou o que pareceram ser uns minutos intermináveis, a ponderar nas escolhas que tinha. Deus lhe acudisse, era indecente. E Lady Kingsley e Lady Avery permitiam aquilo? Sim. Estavam sentadas um pouco atrás de Elissande, afastadas da roda do jogo, com Lady Avery a falar animadamente como era seu hábito. – … Há muitos anos, num jogo de cabra-cega, ela estava escondida e ele foi

o primeiro a descobri-la e enfiou-se no armário com ela. Devem ter pensado que ninguém ia descobrir o esconderijo ou distraíram-se por completo. Devia ter visto o estado da roupa dela... e a dele!... quando fui ao armário. Por isso, claro, tiveram de casar. – Lady Avery suspirou. – Adoro um bom jogo de cabra-cega. Elissande quase gritou quando alguém se sentou inopinadamente no seu colo. Era Miss Beauchamp, que soltava risinhos como se lhe tivessem dado uma pouco saudável dose de gás de riso. – Já posso dizer que não é um cavalheiro – afirmou entre acessos de gargalhadas. – Como sabe? – perguntou Lorde Vere, com absoluta sinceridade. Atrás da cabeça de Miss Beauchamp, Elissande revirou os olhos. – Que pateta, senhor. É claro que sei. As minhas costas estão magnificamente acolchoadas. Tenho quase a certeza de que não preciso que este porquinho guinche para eu saber quem é. Um peito tão maravilhoso só pode pertencer à nossa anfitriã. É Miss Edgerton. Acertei? Elissande viu-se forçada a responder. – Sim, acertou, Miss Beauchamp. Miss Beauchamp saltou do colo de Elissande e arrancou a venda dos olhos. – Eu sabia. Agora a venda foi colocada sobre os olhos de Elissande. Fizeram-na girar, pelo menos foi a impressão com que ficou, quatro vezes e meia para a esquerda e, a seguir, duas vezes e meia para a direita. Por isso, devia estar virada mais ou menos na mesma direção em que estava quando se erguera da cadeira. Mesmo à sua frente estava Lorde Vere. Com toda a certeza que não queria ir

naquela direção. Tentou virar-se um pouco para a direita. Um pouco mais. Ainda mais um pouco, talvez? Lorde Frederick estaria ali? Qual seria a vantagem de se sentar no colo dele, Elissande não sabia. Mas, se tinha de aterrar no colo de alguém, que fosse no dele. Com cuidado, avançou na direção que escolhera, com as mãos estendidas à sua frente. Mas após alguns passos, parou. Ouvira o crepitar da lareira. O som vinha das suas costas, o que queria dizer que não estava a avançar na direção de Lorde Frederick. Deu um quarto de volta para a esquerda. À sua frente, alguém soltou um assobio e, à sua direita, uma mulher riu. Seria Miss Kingsley? Se ela estava a dirigir-se para Lorde Frederick, Miss Kingsley não deveria estar mais para a sua esquerda do que para a direita? Recuou um ou dois passos. Estaria de regresso ao centro do círculo? Deu mais dois passos e tropeçou nos pés de alguém, tendo caído para trás. Sobressaltou-se e ofegou. E tornou a respirar, ofegante, quando um par de mãos fortes a agarrou pela cintura. Com destreza, ele endireitou-a, era um ele; até aí, ela tinha a certeza. Ela não tinha a constituição de um passarinho: nenhuma das senhoras presentes seria capaz de aguentar o seu peso com tanta facilidade. – Muito obrigada – proferiu. Não houve resposta, mas, algures, Lady Avery disse: – Ora, ora, Miss Edgerton, não se pode ir embora assim. A menina ia para o colo dele. E nada de protestos, senhor. Ela ia para o seu colo. Não pode desviá-la. Lady Avery estava a deslocar-se, atravessando a sala. Elissande não conseguia perceber de onde vinha a voz dela. Ficou imóvel, sem saber muito bem o que fazer a seguir.

– Oh, vá lá, senhor. Sabe o que tem a fazer – incitou Lady Avery. Aparentemente, sabia, pois ergueu-a em peso, como se não pesasse mais do que um gatinho, e sentou-a, não no seu colo, mas na própria cadeira, entre as suas pernas abertas. Ela engoliu em seco, alarmada com a sensação de estar tão próxima de um homem, com as coxas encostadas às dele. Havia nele uma fisicalidade, algo que ia para além do simples espaço que ocupava, como se o corpo dele fosse engolir o dela com facilidade, caso ela não tivesse o cuidado de se defender. Estendeu os braços, procurando os braços da cadeira. Mas apenas tocou nas mãos dele, nuas e quentes e já ocupando os apoios da cadeira. Ela afastou as suas com um sacão. Aquele movimento fez o corpo dela saltar para trás, de encontro ao peito dele. Estava enganada; o corpo dele não ia engolir o dela, já o tinha engolido. Estava rodeada por ele, pela sua presença silenciosa e imóvel, enquanto ela se remexia e atrapalhava, incapaz de lidar com aquele contacto da forma descontraída que se esperava dela. Ele tocou-lhe de novo, pousou as mãos nos seus antebraços, imobilizando-a. Afastando o tronco dela do dele, para dizer a verdade. Talvez tivesse acabado por tropeçar em Lorde Frederick. Sentia que podia confiar que ele manteria um sentido de dignidade e decoro no meio de todo aquele desbragamento fútil. Para o ajudar nesse esforço, ela fez escorregar o rabo um pouco mais para a frente. E quase caiu da cadeira. Apressou-se a escorregar para trás… direita ao corpo dele. Desta vez nem sequer podia arquejar. Atrás do rabo dela ele estava, oh, Deus, ele estava… Duro.

As faces escaldaram-lhe. Não foi capaz de perceber mais nada. Ficou paralisada ali: não conseguia pensar, nem podia falar, não era capaz de mover um único músculo para sair dali. Mais uma vez, ele assumiu o controlo da situação, levantando-a e, desta vez, quando desceu ela pousou no colo dele, um pouco mais afastada daquela parte que lhe causava sobressaltos. Mas não suficientemente longe, não com a sensação das coxas fortes dele ainda vividamente impressa no seu traseiro. Com franqueza, quem tivera a ideia de se ver livre das anquinhas? – E… e o que é que tenho de fazer agora? – suplicou. – Dizer «guincha, porquinho, guincha» – respondeu alguém. Ela não era capaz de dizer nada parecido ao homem por trás de si. Em circunstâncias normais, já era bastante ridículo. Nesta situação seria absolutamente errado. Teria de adivinhar a identidade dele sem a ajuda de mais pistas. Parecia ser mais para o alto, o que eliminava Mr. Kingsley. E, quase de certeza, não era Mr. Wessex, que usava uma colónia intensa cujo aroma o precedia. O homem atrás de si tinha apenas um leve odor a charuto e, por baixo disso, a pó de barbear. – Estou a ver que Miss Edgerton gosta de estar sentada no colo do porquinho – afirmou Miss Beauchamp, entre risinhos. A voz de Miss Beauchamp veio de muito perto, imediatamente à esquerda de Elissande, para dizer a verdade. E à direita de Miss Beauchamp estivera… – Lorde Vere – murmurou. E levantou-se de imediato. Ele começou a bater palmas ainda antes de ela ter tempo de arrancar a venda.

– Como descobriu que era eu? – perguntou, ainda a bater palmas, com um sorriso tão intensamente franco, que bem poderia ser um dos dela. – Ainda nem sequer guinchei. – Tive sorte – respondeu. Miss Beauchamp tivera razão: ela tinha gostado da espantosa, estranha, humilhante mas não totalmente desagradável sensação de estar praticamente envolvida por ele. Mas agora sentia repulsa, dele, de si própria, da sensualidade cega do seu corpo. Contudo, a repugnância não impediu a renovada consciência dele. Da suavidade do seu cabelo quando lhe atou a venda, da largura dos seus ombros quando o fez girar, da firmeza e musculatura dos seus braços quando o impediu de cair sobre si, tão estonteado ficou com as voltas que o fez dar. O jogo prosseguiu, atingindo a sua conclusão barulhenta e animada por volta das onze horas, com Miss Beauchamp firmemente sentada ao colo de Lorde Vere e os dois a rirem como se nunca se tivessem divertido tanto. Já passava de meia-noite e meia quando Elissande abandonou o quarto de Lady Kingsley. A senhora tinha tropeçado num degrau quando iam a subir a escada principal juntas e Elissande tinha-a amparado. Lady Kingsley não se queixara de nada, mas Miss Kingsley sussurrara, ansiosa, a Elissande que a mãe sofria ocasionalmente de terríveis enxaquecas e que talvez a excitação da noite tivesse sido demasiado para ela. Por isso, Elissande e Miss Kingsley tinham ficado sentadas junto de Lady Kingsley até que, por fim, ela adormeceu. Depois, Elissande acompanhou uma Miss Kingsley que não parava de bocejar até ao quarto dela. Ela também ia a bocejar, enquanto se dirigia para o quarto da tia Rachel, no extremo oposto da casa. Deteve-se em pleno bocejo. Alguém cantava, arrastando convictamente o animado refrão de uma canção horrível. – «O papá não quer dar-me um ão-ããããõoo! Ão-ããããõoo! O papá não quer

dar-me um ão-ããããõoo! Ão-ããããõoo! Tenho um tareco! E gosto muito dele. Mas prefiro um ão-ããããõoo! Ão-ão, ão-ão!» Dobrou a esquina. Lorde Vere. Claro. Balançava, oscilava e agarrou-se à parede, mesmo junto da porta do quarto da tia Rachel. – «Em tempos tive dois cachorrinhos» – cantava –, «uns amores. Mas o papá vendeu-os porque mordiam as orelhas um do outro.» Ela forçou-se a descerrar os dentes. – Por favor, Lorde Vere, vai acordar toda a gente. – Ah, Miss Edgerton. Encantado por a ver, como sempre. – É muito tarde, senhor. Devia recolher-se. – Recolher? Não, Miss Edgerton. Está uma noite de cantorias. Não canto tão bem? – Canta maravilhosamente. Mas não pode cantar aqui. – E onde andava Lorde Frederick que não estava ali para a salvar desta vez? – Então, onde posso cantar? – Tem de ir lá para fora se tem mesmo de cantar. – Muito bem. Avançou um bocado aos tropeções e estendeu a mão para a porta do quarto do tio. Ela voou atrás dele e arrancou-lhe a mão da maçaneta. – O que está a fazer, Lorde Vere? – Mas isso é a porta para ir lá para fora. – É claro que não, senhor. É o quarto do meu tio.

– É? Peço desculpa. Não costumo fazer asneiras destas, garanto-lhe, Miss Edgerton; normalmente, tenho o mais impecável sentido de orientação. Ai, tinha, pois não tinha? – Talvez pudesse ensinar-me o caminho da rua? – pediu. Ela inspirou profundamente. – Claro. Venha atrás de mim. E, por favor, mantenha o silêncio até termos abandonado a casa. Ele não desatou a cantar, mas também não se manteve exatamente em silêncio. Falou enquanto caminhava, aos ziguezagues, ao lado dela. – Não foi a coisa mais monumentalmente divertida jogarmos ao «Guincha, Porquinho, guincha» esta noite? – Nunca me diverti tanto. – E guardarei sempre a sensacional lembrança do seu traseiro no meu colo. Ela não gostava da recordação da rigidez dele, encostada ao seu rabo; para dizer a verdade, ela sentia-se enojada consigo própria devido ao golpe de calor que a lembrança lhe fazia subir à cara. Como era possível ter sentido o mais ténue frémito de emoção por ele? Uma estupidez como a dele devia tornar-se óbvia ao toque, inconfundível como um febrão. Ou a lepra. Acelerou o passo. Sabe-se lá como, ele acompanhou-a. – Porque imagina, por exemplo, que a sensação do seu traseiro no meu colo é mais sensacional do que a de Miss Melbourne? Se ela tivesse a mais leve indicação de que ele falava com deliberada ordinarice, ter-se-ia virado e esmurrado Lorde Vere. Talvez até lhe tivesse ferrado um pontapé. Mas ele estava imerso naquela irritante inconsciência que lhe era tão própria e seria o mesmo que bater num bebé ou espancar um cão.

– Sem dúvida porque o meu traseiro tem o dobro do tamanho do de Miss Melbourne – respondeu, incisiva. – Tem? Maravilhoso. Porque não pensei nisso? Chegaram à porta da frente da casa. Ela destrancou-a e conduziu-o para o exterior, até alguma distância da casa. No momento em que pararam, ele começou a cantar. Ela virou-se e preparou-se para o deixar. – Não, não, Miss Edgerton. Não pode ir-se embora. Deixe-me cantar para si, insisto. – Mas estou cansada. – Então vou cantar para si por baixo da sua janela. Não é romântico? Ela preferia enfiar objetos afiados nos ouvidos. – Nesse caso, fico aqui a ouvi-lo. Ele cantou interminavelmente. O tempo suficiente para um casamento hindu. O tempo suficiente para um caracol poder escalar o Monte Branco. O tempo suficiente para a Atlântida surgir das águas e afundar-se outra vez. Estava vento e frio – a temperatura rondava os quatro graus. Ela tremia, no seu inadequado vestido de noite, de ombros desnudos e os braços arrepiados de frio. Ele cantava alto e numa desafinação embriagada. Até mesmo o céu noturno conspirava contra ela: não apareceu chuva que o forçasse a entrar em casa e ir para a cama e havia demasiadas nuvens para que fosse possível ver as estrelas. De súbito ele parou. Ela olhou-o, atónita. Já admitira a hipótese de ele nunca vir a parar. Ele fez uma vénia, e quase caiu, e olhou para ela numa atitude de expectativa. Aparentemente, devia bater palmas. Ela bateu. Faria qualquer coisa para se ver livre dele. Os aplausos deixaram-no feliz e ele não teve hesitações em declará-lo:

– Fico muito contente por ser fonte de divertimento aos seus olhos, Miss Edgerton. Vou dormir melhor por saber que a sua vida ficou mais rica e mais bela por causa da minha voz. Ela não lhe bateu. O que um dia viria a constituir a base em que assentaria a sua beatificação, pois só um santo não lhe teria infligido feridas profundas naquele momento. Acompanhou-o até à porta do quarto, dando-se mesmo ao trabalho de lha abrir. – Boa noite, boa noite, a separação é uma dor tão doce9. – Tornou a fazer uma vénia e tropeçou para o lado, batendo no aro. – Uma pessoa que está bem morta, senhor. – Suspeito que tenha razão. Muito obrigada, Miss Edgerton. Proporcionoume uma noite inolvidável. Ela empurrou-o para dentro do quarto e fechou a porta. Claro que a tia Rachel estava a dormir, o láudano permitia-lhe fugir à vida. Por vezes, bastantes vezes, nos últimos tempos, Elissande também se sentia tentada. Mas tinha medo de ser agarrada pelo láudano. A liberdade era o seu objetivo único. Não havia liberdade se estivesse miseravelmente dependente de uma tintura, mesmo sem ter o tio pronto a reter a garrafa a seu bel-prazer. Já só lhe restavam um dia e uma noite. A sua liberdade não estava agora mais perto do que dois dias antes. Para dizer a verdade, estava infinitamente mais longe do que estivera durante aquelas horas estonteantes em que vira Lord Vere, mas não o escutara com vagar. E Lorde Frederick, o simpático, o bom, o amável Lorde Frederick, era, a seu modo, tão inatingível como a Lua. A sua aposta de ou-tudo-ou-nada parecia condenada ao fracasso. Pura e simplesmente, não sabia que mais fazer.

– Vai – sussurrou, inesperadamente, a tia Rachel. Elissande abeirou-se da cama. – Disse alguma coisa, senhora? As pálpebras da tia Rachel estremeceram, mas não se abriram. Estava a murmurar durante o sono. – Vai, Ellie. E não voltes para trás! Uma vez, quando tinha quinze anos, Elissande fora-se embora. E aquelas eram as mesmíssimas palavras que a tia lhe havia sussurrado ao ouvido antes de ela fazer, a pé, os cerca de sete quilómetros até Ellesmere. O ramal em Ellesmere tinha-a conduzido até Whitchurch. A linha regional em Whitchurch levara-a até Crewe. Em Crewe, estava a apenas três horas de Londres. Todavia, em Crewe fora-se abaixo. No final do dia estava de regresso a casa, depois de caminhar os mesmos sete quilómetros até chegar a Highgate Court, meia hora antes da chegada do tio. A tia Rachel não proferira uma palavra. Só chorara. Tinham chorado juntas. – Vai – repetiu a tia Rachel, desta vez mais baixinho. Elissande pousou as mãos no rosto dela. Tinha de pensar com mais força. Não podia deixar que um pormenor tão insignificante como a sua incapacidade de atrair uma proposta de casamento lhe obstruísse o caminho. Com toda a certeza, Deus não tinha enviado uma praga de ratos a Lady Kingsley para nada. Levantou a cabeça. O que fora que Lady Avery dissera durante a noite? Que tinha apanhado um homem e uma mulher dentro de um armário com a roupa num grande desalinho e que eles tinham tido de casar. Lady Avery poderia apanhar Elissande e Lorde Frederick com a roupa em grande desalinho. E, então, eles teriam de casar.

Mas como poderia fazer uma coisa daquelas a Lorde Frederick? Como poderia armar-lhe uma ratoeira deliberadamente? O tio era quem tinha a subtileza, a crueldade e a capacidade de manipulação. Ela nunca quisera ser como ele. – Ellie – murmurou a tia no seu sono atormentado. – Ellie. Vai. Não voltes para trás. Elissande sentiu o coração apertado. Aparentemente, toda uma vida debaixo do tacão do tio não a deixara imaculada. Porque era capaz. Era capaz de fazer isto a Lorde Frederick. Era capaz de o usar para se salvar a si e à tia Rachel. E iria fazê-lo. No seu quarto, Lorde Vere vigiava o regresso de Miss Edgerton ao dela. Depois de a luz por baixo da porta do quarto dela ter desaparecido, esperou cinco minutos antes de se aventurar no corredor, batendo uma vez na porta do quarto de Lady Kingsley quando passou. Mrs. Douglas estava a dormir. Ele soltou a lingueta que prendia o quadro e fê-lo girar. Lady Kingsley chegou a tempo de segurar na luz, enquanto ele usava as gazuas para reabrir a porta exterior do cofre. Tinha dado instruções a Nye para fechar o cofre antes de sair ou o quadro não ficaria bem preso no seu lugar. Desta vez, só precisou de um minuto para abrir a fechadura. Lady Kingsley, que ficara de guarda a Nye enquanto Lorde Vere mantinha Miss Edgerton longe dali, tinha os números da combinação da fechadura. Ela girou o botão e abriu a porta de dentro. Valera bem o esforço. Os papéis que estavam no cofre documentavam a história do falhanço de Edmund Douglas. A mina de diamantes era autêntica. Mas após esta descoberta notável na África do Sul, os seus empreendimentos subsequentes para tentar pôr a render a sua nova fortuna não tinham conseguido mais nada que não fossem consideráveis prejuízos.

– Valha-me Deus, o homem anseia pela autoflagelação, não é? – maravilhouse Lady Kingsley. Era verdade e, aos olhos de Vere, aquilo não fazia o mínimo sentido. Porque persistia Douglas naqueles investimentos? Após cinco ou sete vezes, o homem não deveria ter aprendido que a descoberta da mina de diamantes fora uma sorte dos diabos e que não devia continuar a tentar recapturar o relâmpago? – Se juntarmos tudo, ele é bem capaz de estar endividado – sussurrou, excitada, Lady Kingsley. – Veja, ele precisa de dinheiro. Cá está o nosso motivo. O que excitou ainda mais Lady Kingsley foi a descoberta de um processo cifrado num código muito mais complicado do que a mera alteração da ordem das letras. Se uma pessoa partisse do princípio que o próprio Edmund Douglas tinha registado os seus segredos em código, então ele tinha uma letra belíssima. Quanto mais Vere descobria acerca de Douglas, mais improvável o homem se tornava. Casa discreta, aparência requintada, caligrafia elegante, para já não falar no discurso educado – o discurso da sobrinha não tinha qualquer vestígio das docas de Liverpool. Seria possível que uma fortuna feita na África do Sul mudasse realmente tanto um homem? – Cem libras em como as provas de que necessitamos estão aqui – disse Lady Kingsley. Vere anuiu. Tateou o interior do cofre. Mas ainda não tinham esgotado todos os seus segredos. Havia um fundo falso. O compartimento por baixo do fundo falso continha apenas uma bolsa atada com um cordel. Vere estava à espera de encontrar diamantes, mas, em vez disso, deparou-se com joias prontas. – Bastante vulgares, não acha? – perguntou Lady Kingsley, passando um dedo por um colar de rubis. – Diria que estão aí umas mil libras no total, no

máximo. De súbito, veio-lhe à cabeça a imagem de Miss Edgerton com o seu pescoço despido, pulsos nus, dedos sem nada. Nunca se tinha apercebido daquilo antes, mas ela não usava uma única joia, nem sequer um camafeu. Uma coisa estranha e bizarra na sobrinha de um homem que explorava uma mina de diamantes. Todavia, quando repunha a bolsa no compartimento, reparou que se tinha enganado. Havia outra coisa no compartimento secreto, uma chave minúscula, com menos de três centímetros de comprimento e muitos entalhes ao longo de um espigão tão fino quanto um palito. Lady Kingsley ergueu a chave à frente da luz. – Se isto se destina a uma fechadura, então trata-se de uma fechadura que eu consigo partir ao meio só com as mãos. Puseram tudo no lugar com exceção do processo cifrado com que Lady Kingsley queria ficar. – Vai levá-lo para Londres, amanhã de manhã? – sussurrou Vere, evitando usar as suas exaustas cordas vocais. – Não posso abandonar os meus hóspedes e sair durante oito horas. E é melhor que o não faça também. Ou as suspeitas de Douglas vão recair direitinhas em cima de si, caso descubra que isto falta antes de conseguirmos metê-lo de volta no cofre. Ela saiu primeiro, levando o processo consigo. Vere fechou e trancou o cofre. Depois de tornar a pôr o quadro no sítio e prendê-lo, virou-se… e gelou. Quando Miss Edgerton viera ver se a tia estava bem, devia ter posto mais carvão na lareira. À luz das chamas, Mrs. Douglas estava a olhar para ele, de olhos arregalados. Outra mulher qualquer teria desatado aos gritos. Mas ela ficou

estranhamente quieta, mesmo tendo os olhos salientes de pavor. Vere deslocou-se com o maior cuidado, centímetro a centímetro, em direção à porta. Ela fechou os olhos, todo o seu corpo tremia. Ele respirou profundamente, deslizou porta fora e pôs-se à escuta. Se Mrs. Douglas recuperasse a voz e desatasse aos gritos, fá-lo-ia naquele momento. As escadas de serviço eram perto e ele fugiria por ali, evitando os hóspedes que os seus gritos assustadores de certeza atrairiam. Mas do quarto de Mrs. Douglas não saiu qualquer som, nem um arquejo, uma respiração difícil, ou mesmo um gemido. Regressou ao seu quarto completamente transtornado. O relógio de pé bateu as horas, três badaladas metálicas que retiniram no ar escuro e parado. Eram sempre três horas. O corrimão de bronze dourado estava frio. As altas palmeiras em que o pai tinha tanto orgulho eram agora fantasmas, com longos braços oscilantes. Uma fronde roçou nas costas da sua mão. Ele tremeu de pavor. Ainda assim, continuou a descer, procurando o chão com o pé, um passo de cada vez. Ao fundo das escadas, havia uma luz ténue. Sentia-se atraído por ela como um bebé por um poço fundo. Viu primeiro os pés dela, delicados, em sapatos de dança azuis. O vestido cintilava, vagamente iridescente sob uma luz que vinha de nenhures. Havia um braço, com uma luva branca comprida que subia até depois do cotovelo, atravessado sobre o seu tronco. O xaile branco caía, drapejado e frouxo, dos ombros dela. Tinha o penteado arruinado, com plumas e travessas espetadas de qualquer maneira num emaranhado de nós escuros. O muito invejado colar de safiras de cinco voltas tinha saltado e enfeitava-lhe agora a boca e o queixo, uma mordaça coberta de

joias. Então, e só então, reparou no ângulo impossível do pescoço dela. Sentiu o estômago dar uma volta. Mas era a sua mãe. Estendeu a mão para lhe tocar. Os olhos dela abriram-se de repente, olhos vazios mas petrificados de medo. Recuou, o calcanhar bateu no primeiro degrau da escada e ele desceu. Desceu, desceu, desceu… Vere sentou-se na cama de um salto, ainda a respirar com força. O sonho era recorrente, mas nunca fora assim. Não sabia como, tinha sobreposto o olhar aterrorizado de Mrs. Douglas ao seu velho pesadelo. A porta abriu-se. – Está bem, Lorde Vere? Ouvi um barulho. Miss Edgerton, uma silhueta recortada no escuro, estava junto da porta. Por um instante, foi assaltado pelo louco desejo de a ter junto de si, a mão dela acariciando-lhe a face, dizendo-lhe que tudo não passara de um sonho. Ela convencê-lo-ia a deitar-se, aconchegar-lhe-ia a roupa, sorriria… – Oh, não, credo, não, estou bem! – forçou-se a dizer. – Odeio este sonho. Sabe, aquele sonho em que andamos por todo o lado à procura de uma casa de banho e não existe nem uma em toda a casa... e não há bacios e nem sequer um balde decente. E há multidões de gente em todas as divisões, nos jardins, no relvado e... oh, valha-me Deus, espero não ter… Ela soltou um som abafado. – Oh, graças a Deus – continuou. – Os seus lençóis estão salvos. Mas, se me permite, eu tenho… A porta fechou-se com determinação.

Na manhã seguinte, toda a gente foi até Woodley Manor para ver a repugnante montanha de ratos mortos. O caçador de ratos, com os seus exaustos cães apanha-ratos, um furão triunfante e um sotaque ininteligível, revirava, orgulhoso, o exuberante bigode escuro enquanto fazia uma pose para a máquina de Lorde Frederick, comemorando a ocasião. – O meu pessoal já está a trabalhar a toda a força – disse Lady Kingsley a Elissande. – Ainda há muito para fazer, mas garantem-me que a casa estará pronta a ser habitada amanhã. Prometo que nos mudaremos no preciso momento em que tal acontecer. Elissande viu as palavras escritas na parede. Já não havia tempo. Alguma coisa tinha de acontecer. Ela tinha de fazer com que acontecesse. Deus ajuda os que se ajudam a si próprios. 9 William Shakespeare, Romeu e Julieta, na cena da varanda, quando se despedem. (N. da T.)

7 herdara algumas coisas dos pais: um conjunto de travessas de E lissande cabelo de prata da mãe, um frasco de perfume criado especificamente para Charlotte Edgerton pela Parfumerie Guerlain, o pincel da barba do pai, um maço de cartas atadas com uma fita lilás e um pequeno óleo de um nu feminino. Tinha a certeza de que Lorde Frederick ia gostar de ver o quadro. Ainda não lho tinha mostrado por uma razão muito válida: temia que a modelo pudesse ser a mãe e uma pessoa não anda por aí a mostrar a mãe naquela posição aos cavalheiros. Mas, agora, deitara todos esses escrúpulos ao ar. – Deus do céu, mas é um Delacroix! – exclamou Lorde Frederick. Ela não conhecia o nome; os livros de arte que a biblioteca abrigara em tempos concentravam-se na arte da Antiguidade Clássica e Renascença. Mas, a julgar pela expressão na cara de Lorde Frederick, de prazer e reverência, um Delacroix não devia ser nada de desprezar. – Acha mesmo, Lorde Frederick? Que é um Delacroix? – Tenho quase cem por cento de certeza. – Aproximou o quadrinho dos olhos. – A assinatura, o estilo, o uso da cor... ficaria chocado se não fosse um Delacroix. O entusiasmo dele contagiou-a. Devia ser um sinal dos céus. De outra forma, como seria possível que o seu amado cofre, que não continha nada de valor, a não ser de valor sentimental, se revelasse tão espantosamente útil naquele dia em particular? – É lindíssimo – murmurou Lorde Frederick, extasiado. Olhou para ele, também extasiada com o seu súbito e inesperado golpe de

sorte. – E como arranjou um Delacroix? – perguntou Lorde Frederick. – Não faço a mínima ideia. Imagino que o meu pai o tenha comprado. Ele viveu em Paris no início dos anos setenta. – Não me parece – troçou Lorde Vere. Lady Kingsley tinha de escrever umas cartas. Lady Avery e as jovens tinham ido até Ellesmere. A maioria dos cavalheiros tinha saído para disparar sobre qualquer perdiz que existisse em Woodley Manor. Lorde Frederick escusarase, referindo grande falta de interesse em atormentar as pobres aves. Lorde Vere, que inicialmente manifestara intenção de ir, tinha, para crescente irritação de Elissande, alterado o seu plano inicial para ficar a fazer companhia ao irmão. Em resultado disso, sentara-se no outro extremo da saleta, a fazer paciências. Elissande fizera todo o possível para ignorar a sua presença, mas agora não lhe restava alternativa senão virar a cabeça na sua direção. Ele não levantou os olhos das cartas que tinha disposto na mesa, e não era uma paciência, mas uma simples e longa fieira de cartas de que, agora, virava algumas ao acaso. – Como diz, senhor? Não acredita que o meu pai tenha vivido em Paris? – Oh, tenho a certeza que sim, mas não me parece que tenha adquirido o Delacroix de uma forma honesta – replicou Lorde Vere, num tom despreocupado. – Lady Avery esteve a atazanar-me os ouvidos na noite passada. Contou-me que o seu avô era um grande amante de arte e que o seu pai lhe roubou algumas peças antes de fugir com a sua mãe. Por um momento, Elissande ficou completamente aturdida. O tio dissera-lhe imensas coisas desagradáveis acerca dos pais, mas, pelo menos, nunca acusara o pai de roubo. – Por favor, não fale mal dos mortos, senhor – respondeu, com a voz tensa

de fúria. – Dizer a verdade acerca de coisas que se passaram não é falar mal dos mortos. Além do mais, trata-se de uma história fascinante, a sua mãe ter estado por conta de alguém e tudo. Sabia que também foi amante do seu tio-avô antes de casar com o seu pai? É claro que sabia. O tio assegurara-se de que ela compreendia bem a ignomínia da sua ascendência. Mas era uma falta de maneiras clamorosa de Lorde Vere falar do assunto em público, sem se preocupar com possíveis consequências. Pela primeira vez, Lorde Frederick, vermelho até às orelhas, dirigiu uma censura ao irmão. – Penny, já basta. Lorde Vere encolheu os ombros e reuniu as cartas para as baralhar de novo. Seguiu-se um longo e desconfortável silêncio. Lorde Frederick quebrou-o – querido, querido Lorde Frederick. – Peço desculpa – disse, baixinho. – Por vezes, o meu irmão baralha as histórias. Tenho a certeza de que está enganado acerca da sua família. – Obrigada – murmurou ela, agradecida. – Não, sou eu que tenho de lhe agradecer, pela oportunidade de, quando menos o esperava, admirar um Delacroix. – Devolveu-lhe o quadro. – Que alegria nos traz uma tal beleza! – Encontrei-o, ontem à noite, entre as coisas do meu pai. Temos imensos malões com as coisas dele. Talvez ainda consiga descobrir mais. – Eu adoraria ver o que mais encontrar, Miss Edgerton. – Ela não tem nada vestido – afirmou Lorde Vere de súbito ao lado dela. – Não o tinha ouvido levantar-se da cadeira.

– É um nu, Penny – explicou Lorde Frederick. – Pois, sim, bem vejo: ela não tem nada vestido. – Lorde Vere dobrou-se um pouco mais. – À exceção de um par de meias brancas, quero dizer. O braço dele quase roçou o cabelo dela. Seria de esperar que ele cheirasse a molho de tomate – tivera um acidente com os miúdos de vitela ao almoço. Mas tinha apenas um odor fresco e limpo. – É um estudo do corpo feminino. Não é lascivo – afirmou Lorde Frederick. – Não se espera que seja lascivo. Por estranho que pareça, Lorde Frederick corou. Mas depressa se recompôs. – E mais uma vez muito obrigado, Miss Edgerton, pelo privilégio. Espero que encontre mais tesouros escondidos. Mal posso esperar por os ver. – Tratarei de que os veja tão logo eu os encontre – respondeu. Sorriu e levantou-se. Ainda havia muito, muito a fazer. Lorde Vere dirigiu-se-lhe em voz alta: – Eu também gostava de os ver, se forem como esta, só de meias! Ela não lhe atirou com uma jarra à cabeça. A sua canonização estava agora assegurada. Os movimentos e gestos de Miss Edgerton intrigavam Lorde Vere. A maneira como, por vezes, ela brincava com os folhos das mangas. O gesto de levar a mão ao cabelo, como se, deliberadamente, estivesse a querer chamar a atenção para aquela massa suave e brilhante. A maneira como escutava Freddie, com um dedo encostado ao maxilar, o tronco ligeiramente inclinado, dando a nítida, mas discreta, impressão de que desejaria estar mais próximo. Mas nada incitava, e repelia, Vere tanto como os seus sorrisos. Quando ela sorria, e apesar de tudo o mais, o coração dava-lhe um salto.

Havia uma ciência e uma arte dos sorrisos fabricados. Também ele tinha alguma prática de sorrir por muito pouco que o sentisse. Mas ela… ela era o teto da Capela Sistina, o padrão glorioso, eterno, inultrapassável. Como conseguira alcançar o charme ingénuo e o brilho exímio? Como conseguia manter a ingenuidade honesta e a posição relaxada do maxilar? Os sorrisos dela ofuscavam tanto que, por vezes, ele não conseguia lembrar-se do aspeto dela sem eles. Mas ela não sorrira quando descobrira que se tinha sentado no colo dele. Não sorrira uma única vez ao longo dos noventa minutos em que a sua exibição de embriaguez a mantivera afastada do quarto da tia. Não lhe sorrira um momento antes, enquanto ele se entretinha com a sua bastante indesejável família. E, para ela, não sorrir equivalia ao sair de casa sem saiotes de outra mulher. Era o que ele queria, não era, exasperar-lhe tanto os nervos que ela fosse aos gritos para o manicómio? Então porque o excitava tanto? Estava até irritado com Freddie, objeto do mais que óbvio afeto dela, porque Freddie não se importava nada com o que acontecesse, fosse o que fosse, e Freddie quase nunca lhe causava ressentimentos. – Vou lá acima por um instante, Penny – disse Freddie, levantando-se da escrivaninha a que estivera sentado, escrevendo uma carta desde que Miss Edgerton saíra. – Preciso dos meus cartões. – Vou contigo – respondeu Vere. – Não tenho nada melhor que fazer. Há horas que trabalhava na decifração do código utilizado no processo de Douglas, com letras marcadas nos cantos das cartas que tinha estado a ordenar sucessivamente, à procura de padrões. Ou, pelo menos, era esse o objetivo. Nesse campo não tinha conseguido nada, estando a sua atenção frouxa como tinha estado durante o dia todo. Além do mais, Miss Edgerton ainda estaria à espreita, algures na casa. – Porque queres os teus cartões? Vamos visitar alguém? – perguntou

enquanto subiam as escadas. – Não – respondeu Freddie. – Estou a escrever uma carta para o Leo Marsden. Está de regresso da Índia. – Quem? – Tu lembras-te, estávamos todos na mesma casa em Eton. Tenho a morada dele no meu porta-cartões. Já no quarto de Freddie, este abriu a gaveta da mesinha de cabeceia e coçou o queixo. – Que estranho. Os meus cartões não estão aqui. – Quando foi a última vez que os viste? – Esta manhã – Freddie franziu a testa. – Talvez esteja a fazer confusão. Freddie estava a ser muito caridoso: a maioria dos cavalheiros lançaria as suspeitas sobre os criados. Sem sucesso, Vere ajudou Freddie a procurá-los pelo quarto todo. – Devias dizer a Miss Edgerton que te falta uma coisa. – Calculo que sim. No entanto, não tornaram a ver Miss Edgerton antes de toda a gente regressar a casa para um chá e conversa sobre os acontecimentos do dia. Miss Edgerton mostrou a devida mistura de choque e consternação por uma coisa daquelas ter ocorrido em sua casa e prometeu fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para localizar o porta-cartões e devolvê-lo a Lorde Frederick. Mas, enquanto ela exprimia o seu empenho preocupado, pura que nem um cordeiro e meiga como um gatinho, de repente, Lorde Vere suspeitou dela. Para que quereria ela o porta-cartões de Freddie era algo que ultrapassava a imaginação de Vere. Só sabia que, quando ela não sorria, havia uma dureza no seu olhar… uma crueldade, quase.

E sabia que o seu instinto quase nunca se enganava. A atitude de Lady Avery durante o jantar aumentou o desconforto de Vere, que passou de uma vaga inquietação para um alarme bem vivo. Conhecia Lady Avery muito bem: um homem com a sua profissão seria um idiota se não acolhesse uma tal fonte de informações. E ele reconhecia aquele ar de cão de caça: olhos semicerrados, narinas quase frementes, pronta a saltar sobre um escândalo suculento, tão depressa fosse capaz de farejar o seu caminho até à fonte da agradável transgressão. Havia qualquer coisa no ar. Só por si, tal não era estranho, mas, fosse o que fosse, surgira de repente. À hora do chá, Lady Avery não exibira qualquer sinal da caçada, contentando-se em atormentar os ouvidos de Miss Melbourne e Miss Duvall com mexericos demasiado impróprios para ouvidos virginais. O que poderia ter alertado assim Lady Avery? As raparigas, não obstante a sua juventude e gosto pelos divertimentos, não constituíam um grupo especialmente atreito ao escândalo. O principal interesse de Miss Melbourne era a sua silhueta; o de Miss Duvall, a música. Miss Beauchamp nutria uma intensa ternura pelo seu segundo primo, que não se contava entre os presentes. E Miss Kingsley, apesar do seu namorico com Conrad, estava mais empenhada na educação do que no casamento, esperava-se que regressasse a Girton em outubro. O que deixava de fora a anfitriã. Vere manteve-se colado a Freddie. Nada aconteceu. O jantar veio e foi-se. Os divertimentos do serão foram calmos e adequados. As senhoras recolheram-se a uma hora decente. Quando o relógio bateu as onze e meia, ele começava a acreditar que talvez, excecionalmente, tivesse tido uma reação exagerada; que o que pensara ser a sua sensibilidade instintiva às correntes subterrâneas do grupo não passara de um descontrolado caso de paranoia. E então, dois minutos mais tarde, um lacaio sonolento entrou na salinha trazendo uma bandeja de prata onde estava pousado o porta-cartões de Freddie e um recado selado.

Vere pôs-se em pé de um salto, atravessou a sala a correr, detendo-se mesmo a tempo de evitar derrubar o lacaio com um encontrão, mas não tão depressa que evitasse atirar com a bandeja ao chão. – Perdão! – gritou e acocorou-se para apanhar as coisas destinadas a Freddie. Depois, endireitou-se e deu uma palmadinha no ombro do lacaio. – As minhas desculpas, bom homem. Fiquei demasiado excitado. Andámos o dia todo à procura do porta-cartões. Vá: vai para a cama e eu levo isto ao meu irmão. É para ele, não é? Apontou para Freddie. – É sim, milorde. Mas tenho ordens para só entregar tudo nas mãos de Lorde Frederick. – Não há problema. – Vere deu um salto para junto de Freddie e entregoulhe o porta-cartões. – Vê, entregue em mão a Lorde Frederick. – Muito obrigado, senhor – disse o lacaio e saiu. Freddie verificou o conteúdo. – Onde será que o encontrou? – Amanhã perguntas-lhe – disse Vere. – Pelo menos, agora já podes endereçar a tua carta para Marsden. Aguardou alguns minutos antes de abandonar a salinha e ler a mensagem selada, que metera ao bolso com um hábil golpe de mão. Caro Lorde Frederick Aqui tem o seu porta-cartões, que uma das criadas encontrou nas escadas de serviço. E, se posso pedir-lhe um minuto do seu tempo, acabei de descobrir, entre as coisas do meu pai, um esboço de tal beleza e perícia,

assinado por um nome tão imponente que não me atrevo a passá-lo a escrito por medo de fazer uma triste figura. Posso pedir-lhe o incómodo de lhe deitar uma olhadela? O meu entusiasmo recusa-se a deixar-me esperar. Se fizer a gentileza de, dentro de quinze minutos, vir ter comigo à sala verde, ficar-lhe-ei muito agradecida. Elissande Edgerton Elissande. Um nome bonito. Quase cortante, como um punhado de gemas de arestas vivas. E a encantadora, esperta Elissande desejava encontrar-se com Freddie perto da meia-noite, bem depois de as senhoras se terem recolhido, longe da salinha e da sala de bilhar, onde os cavalheiros ainda permaneciam. Um encontro a dois, numa parte afastada da casa, com Lady Avery num estado de ansiosa e profunda excitação. Subestimara em absoluto o interesse de Miss Edgerton por Freddie, segundo parecia. Elissande tremia. O que a deixava nervosa. Era a tia quem tremia, não ela. Ela tinha mãos e olhos firmes, que se mantinham imperturbavelmente límpidos, por mais aterrorizada que estivesse. Talvez pudesse usar as tremuras em seu favor. Uma dama que se encontra com um cavalheiro a uma hora pouco ortodoxa devia tremer um bocadinho, não devia? O tremor conferiria um toque de autenticidade à súbita paixão desenfreada e, por outro lado, poderia incitar Lorde Frederick a uma resposta mais sentida. Levou as mãos aos ombros. Tinha desfeito os pontos que uniam o corpo da sua camisa de noite. Por baixo do roupão, a roupa estava literalmente presa por um fio. Um puxão, por pequeno que fosse, rasgá-la-ia em dois e mandaria as metades soltas para o chão. E o que foi que encontrou desta vez, Miss Edgerton? – perguntaria Lorde

Frederick. E ela olharia para ele como se ele fosse o próprio Cristo regressado à Terra. Oh, perdoe-me, senhor. Sei que não devia ter feito isto, mas desde que nos conhecemos que não consigo deixar de pensar em si. Pelo menos, esta última parte era basicamente verdadeira. Respirou profundamente, ar para dentro e para fora, para dentro e para fora. Chegara a hora. Apertou o roupão com força, rezou para que a camisa de noite não se desprendesse antes de tempo e saiu do quarto, em direção à sala verde. A luz da sala estava acesa. As paredes estavam cobertas de gravuras japonesas retratando as quatro estações do ano. As jarras e os queimadores de incenso de jade refletiam o tom de folha de lótus da seda das paredes. Grandes garrafas transparentes, postas à altura do peito em peanhas feitas à medida, continham modelos de barcos de uma construção intricada, prisioneiros, tal como ela. E ela estava sozinha na sala. Piscou os olhos. Tencionara chegar uns minutos depois de Lorde Frederick. Ele já deveria lá estar, um tanto espantado pela sua roupa informal, talvez, mas ansioso e impaciente por ver exatamente que tesouro bom-de-mais-para-serverdade ela descobrira. Não havia fogo na lareira. Ao fim de dois minutos a andar de um lado para o outro que nem louca, percebeu que estava a tremer muitíssimo mais, tanto devido ao frio como por causa de um súbito ataque de pânico – sem Lorde Frederick, o seu plano não valia de nada. Levou as mãos até junto da vela que trouxera consigo, ansiando pelo seu pouco calor. A sua respiração estava acelerada e era superficial. No ar pairava o cheiro a terebintina da cera que as criadas tinham usado nos móveis. O relógio na pedra por cima da lareira deu as horas fazendo-a saltar de

susto. Estava na hora que indicara na nota anónima, com a cera do selo já quebrada, que deixara do lado de fora da porta do quarto de Lady Avery. Meia-noite. A sala verde. O meu coração suspira por si. E sabia que Lady Avery tinha encontrado a mensagem deixada cair, aparentemente por acaso, porque durante toda a noite ela observara com a maior atenção toda a gente, tentando descobrir que par louco de amor se atrevia a marcar uma entrevista amorosa mesmo debaixo do seu nariz. E fora tudo em vão. Entorpecida, Elissande apagou a luz da sala e dirigiu-se para o escritório do tio, para evitar dar de caras com Lady Avery, que, com toda a certeza, viria da direção da entrada da frente. Por trás do escritório ficavam as escadas de serviço. Regressaria ao quarto por ali. Parou, feita estátua, à frente do escritório. Tinha especificamente informado os hóspedes de que o escritório era reservado. Mas a porta estava aberta e a luz acesa. Empurrou a porta até ao fim. Lorde Vere estava de pé à frente dos armários fechados, abrindo um atrás de outro, enquanto cantarolava baixinho. – Lorde Vere, o que faz aqui? – Oh, olá, Miss Edgerton – retorquiu, animado. – Ando à procura de um livro. Gosto de ler antes de dormir, sabe. É muito melhor do que o láudano. Duas páginas, às vezes, dois parágrafos, e durmo que nem um bebé. Não há nada que se lhe compare, especialmente se for poesia em latim. Um bocadinho de poesia em latim e não salto da cama antes das dez da manhã. Ficou surpreendida por ele sequer saber ler, muito mais latim. – Lamento, senhor, mas está no sítio errado. Os livros estão na biblioteca, não aqui. – Ah, não admira. Pensava que isto era a biblioteca... estava precisamente a dizer para mim próprio como é uma biblioteca bizarra. – Saiu para o corredor.

– Já agora, Miss Edgerton, o que faz aqui? As senhoras não se foram já deitar? – Esqueci-me de uma coisa. – O que é? Posso ajudá-la a procurar? Ia responder-lhe que já a tinha encontrado quando se apercebeu que só trazia a palmatória consigo. – Eu arranjo-me, senhor, obrigada. – Por favor, deixe-me dar-lhe uma ajuda. Era a última coisa de que precisava, a possibilidade de ser apanhada com ele por Lady Avery. Mas Lady Avery ainda não chegara. A julgar pela ausência de passos a aproximar-se, não chegaria no próximo minuto ou dois, tempo mais do que suficiente para Elissande regressar à sala verde, ali ao lado, agarrar numa quinquilharia qualquer, declarar que a tinha encontrado e ver-se livre de Lorde Vere. Por isso, foi o que fez, com Lorde Vere atrás de si. Uma vez na sala verde, tendo por única iluminação a vela que trazia na palmatória, ela foi direita à prateleira por cima da lareira, agarrou no objeto mais próximo e disse: – Cá está. Já o tenho. – Oh, mas que bonito globo de neve – exclamou Lorde Vere. Ela podia ter pegado noutra coisa qualquer. No castiçal de malaquite, por exemplo. Na urna chinesa, sem ornamentos, onde guardavam as mechas de papel usadas para acender o fogo na lareira. Mas ela não tinha agarrado noutra coisa qualquer, agarrara no globo de neve que tinha dentro uma aldeia em miniatura: igreja, rua principal, casinhas cobertas de neve, o último presente de Natal que a tia Rachel lhe dera, oito anos antes. Nevara, naquele dia de Natal. O tio, num dos seus ataques de mau humor, desaparecera sozinho. Elissande tinha persuadido a tia Rachel, cuja saúde

melhorara substancialmente graças aos cuidados de Elissande, a sair e dar um passeio na neve. Tinham feito um boneco de neve trapalhão. E depois, não sabia como, haviam começado uma batalha de bolas de neve. Fora uma batalha animada. A tia Rachel tinha boa pontaria, quem diria? E o casaco de Elissande ficara coberto dos restos esmigalhados das bolas de neve que a haviam atingido em cheio. Mas ela também não se saíra nada mal. E como a tia Rachel tinha fugido dela aos gritos e, depois, como se tinha rido histericamente quando fora atingida em pleno rabo. Ainda conseguia ver a tia, com o cabelo ainda não grisalho a escapar-lhe do carrapito, a cara rosada do esforço, dobrando-se para fazer uma outra bola de neve. Para, de repente, se imobilizar, ainda de cócoras, quando percebeu que o marido tinha regressado. Elissande nunca esqueceu a expressão da cara do tio: ira, seguida de um assustador relâmpago de prazer, de expectativa. Com o seu riso, as suas faces rosadas, o mero facto de estar a brincar, a tia Rachel tinhase traído. Não estava completamente destruída. Ainda havia juventude e vitalidade dentro dela. Claro que o tio não podia permitir que tal ofensa passasse em claro. A tia Rachel nunca mais saíra de casa. Elissande olhou para Lorde Vere, aparentemente fascinado pelo globo de neve, que ela não conseguia suportar ver. Ele estava muito perto de si. Ela reparou nos seus ombros largos, no pescoço forte e na quase inacreditável curva perfeita das sobrancelhas dele. Naquela noite, não cheirava a charuto, apenas a folhagem e foi quando reparou na botoeira dele: um ramo de bagas verdes, presas a uma folha de abeto. Seria capaz de casar com ele, sabendo que não havia mais nada ali, um vazio absoluto por trás daqueles olhos já vazios? Conseguiria tolerar uma vida inteira de convívio com as suas conversas ocas e olhadelas para o seu peito? Seria capaz de lhe sorrir para o resto dos seus dias? As mãos fecharam-se com força em torno do globo de neve. Pensava que seria um pouco maior, dissera-lhe a tia quando Elissande abanou o globo pela primeira vez. Queria dar-te uma coisa bonita.

Desespero. Pensava que o conhecera durante toda a vida. Nunca o conhecera verdadeiramente até àquele momento. Passos distantes. Lady Avery aproximava-se. Pousou a palmatória e o globo de neve e sorriu a Lorde Vere. Estava de novo a tremer. Excelente. Os tremores eram condizentes com as palavras que saíam aos tropeções dos seus lábios. – Oh, querido senhor, perdoe-me. Eu não devia. Mas desde que nos conhecemos que não consigo deixar de pensar em si – disse, desatando a faixa da cintura e atirando com o roupão para trás das costas. Os olhos de Lorde Vere arredondaram-se. Ela não perdeu tempo e pisou com força a bainha da camisa de noite. Os fios nos ombros partiram-se. A camisa de noite sussurrou enquanto deslizava pelo seu corpo nu abaixo.

8 uma vez sem exemplo, Lorde Vere não precisou de fingir que estava P oratónito. Ficou sem palavras, com os braços e pernas feitos pedra, o cérebro transformado em papa. Os seus olhos, no entanto, continuavam perfeitamente funcionais. Ela era a perfeição em pessoa, um nu de Degas, toda ela curvas e suavidade e mistérios sombrios. E, depois, aproximou-se dele, de lábios entreabertos, com a sua pele macia e encantadora, os mamilos transformados nos pontos em que a escuridão beijava a luz da chama da vela. Levantou os braços e passou-os por trás do pescoço dele. Cheirava, como sempre, a mel e rosas. A boca dela, fresca e fremente, aflorou a dele. Um ímpeto de reação atravessou todo o seu corpo. Luxúria, uma espantosa quantidade, mas não só luxúria. Teve finalmente o choque que o fez sair da paralisia. Como era possível ter-se enganado tanto? A tia era uma mulher destruída que já nem sabia gritar, nem mesmo quando aterrorizada. A própria Miss Edgerton era capaz de sorrir em quase toda e qualquer circunstância. Tudo apontava para que o tio fosse um monstro. Ela não queria apenas um marido. Ela queria uma forma de fugir daquela casa. E estava tão desesperada que até mesmo ele servia. Desembaraçou-se dos braços dela e recuou, afastando-se. Ela seguiu-o. Sem pensar, ele arrancou a cortina que tinha à mão dos laços que a prendiam e atirou-lhe para cima dez metros de musselina dupla. Ela debateu-se dentro da tenda de pano, transformada na múmia-menina das fantasias de um pornógrafo. Ele correu. Mas, apesar de atrapalhada, ela atirou-se a ele. Com força. O peso dela abatendo-se sobre ele foi suficiente para o desequilibrar, fazendo os dois caírem sobre o braço curvo, acolchoado, de uma espreguiçadeira, e derrubar, pelo meio, uma peanha.

Um objeto de vidro quebrou-se com estrondo, um dos barcos dentro de garrafas. Outra coisa também se quebrou, a palmatória. A sala mergulhou na escuridão. Ele tentou tirá-la de cima de si, mas ela era tão diabolicamente forte como um dos polvos gigantes de Júlio Verne e soldara os braços em torno do corpo dele. Ele pôs um pé no chão, virou-se de maneira a encostá-la ao espaldar da cadeira e empurrou com força. Sim, o abraço dela estava a afrouxar. Ele fez mais força. Ela soltou um grito de frustração abafado. Ou seria de dor? Não quis saber. Tinha de se ver livre dela. Ela lutou com vigor renovado. Deus do céu, por pouco o joelho dela não lhe acertou no baixo-ventre. Não percebeu bem o que aconteceu, mas, de repente, a espreguiçadeira virou-se no sentido do comprimento, despejando os dois no chão, sobre o tapete. Rebolaram uma volta e meia antes de se deterem, ela mais uma vez por cima dele, mas desta vez sem a cortina. O cabelo dela soltara-se completamente durante a refrega. Estava ofegante. Os lindos seios dela subiram e desceram. E, mal se vendo por trás da cascata do seu cabelo, dois pequenos, espetados mamilos… Como era possível que estivesse a vê-los? A vela não se tinha apagado? Os seus olhos procuraram a fonte de luz, subiram, subiram, com as suas entranhas a reconhecer o que a sua mente não queria aceitar. Havia mais alguém na sala. – Oh, céus. Oh, valha-me Deus – murmurou Lady Avery. A seguir, soltou uma risadinha. – Tenho de dizer que não estava à espera de vos ver aos dois. Agora sim, Miss Edgerton saiu de cima dele de um salto. Agora embrulhouse na cortina de musselina. Agora tartamudeou: – Não… não é o que pensa. – Não? O que acha que é isto, Lady Kingsley?

Raios, Lady Kingsley também, não. Os olhos dos dois encontraram-se. – Eu… ah… – gaguejou Lady Kingsley, num estado de choque quase tão grande como o do próprio Vere. – É, com certeza, uma situação pouco conveniente. – Inconveniente, Lady Kingsley? Inconveniente é quando o seu lacaio parte uma perna e a senhora só tem a sua criada de sala para servir o chá às visitas. Isto é escandaloso. E pensar que o seu pai, Lorde Vere, foi colega de escola de Sir Bernard Edgerton, tio de Miss Edgerton. Até ela ter mencionado o seu falecido pai, não ocorrera a Vere que ser apanhado no esquema de Miss Edgerton abria um caminho que terminaria no altar. No fim de contas, ele só a conhecera três dias antes. Em boa verdade, nem sequer lhe tocara. E, por amor de Deus, ele era um idiota: com toda a certeza que o facto mereceria alguma consideração. Mas, segundo parecia, não, de acordo com a maneira como funcionava a mente de Lady Avery. Ele comprometera uma jovem senhora de boa posição, não importava que a jovem senhora tivesse tido uma mãe desprovida de princípios; não importava que a jovem senhora tivesse engendrado todo aquele encontro, pelo que o casamento devia vir a seguir. E Vere, pelo menos em público, era um idiota simpático, dócil e nada do tipo de se afastar e ficar a ver uma rapariga ser «arruinada». Arvorou a sua expressão bovina mais fechada, pôs-se de pé aos tropeços e resmungos e olhou à sua volta. – Peço desculpa pelo barquinho da garrafa, Miss Edgerton. – Não faz mal – respondeu ela, baixo. – Combinações, crianças, combinações – insistiu Lady Avery. – Há coisas a combinar. O arcebispo de Cantuária não é seu primo em segundo grau, Lorde Vere? Sem dúvida que ele terá todo o prazer em lhe passar uma licença

especial. – Oh, é? Meu primo em segundo grau? Não fazia ideia. Talvez seja melhor não o incomodar, não se dê o caso de não sermos primos. – Então, banhos? – perguntou, hesitante, Miss Edgerton. Ela fazia aquilo bem, aquela timidez virginal. – Não, absolutamente. Muito pitoresco, mas não é de todo o que há a fazer. Especialmente nestas circunstâncias – proclamou Lady Avery. – Devia dizer ao seu tio que peça uma licença especial para si, Miss Edgerton. – Oh, não sei… – Quando o seu tio regressar a casa, vai explicar-lhe o que se passou. Ele falará com Lorde Vere. E arranjará a licença. Depois, todos teremos o maior prazer em ir ao vosso casamento. Miss Edgerton não respondeu. – Muito bem, agora tudo para a cama – disse Lady Avery, satisfeita. – E nada de mais encontros secretos entre os dois. Vão casar. O que significa que os vossos dias de amores clandestinos estão terminados. Mas o fim daquela provação ainda vinha longe. Os outros cavalheiros tinham-se reunido do lado de fora da saleta, atraídos, sem dúvida, pelos estrondos assustadores que Vere e Miss Edgerton tinham provocado durante a luta. Lady Avery e Lady Kingsley, depois de terem vestido o roupão a Miss Edgerton, levaram-na rapidamente, deixando para trás Vere a ter de se defender sozinho. – Que aconteceu? – perguntou Wessex, mesmo sendo mais do que óbvio. Vere ignorou a pergunta, passou por Wessex, saiu pela porta da rua em passo de marcha e não parou até dar consigo no meio do jardim. E, mesmo ali, parou só para tirar e acender um cigarro.

– Peço desculpa – disse Freddie, que o tinha seguido. – Devia ter-te dito qualquer coisa. Vere expeliu uma grande quantidade de fumo. – E que terias tu dito? – Pensei… pensei dizer-te que tivesses cuidado. Que ironia. – Eu, ter mais cuidado? Freddie enterrou as mãos nos bolsos do casaco. – Ontem à noite andei a passear na rua até tarde… e vi-os aos dois, sozinhos, a regressar à casa. E, de manhã, pensei que podias ter voltado a ter o teu pesadelo. Mas, quando abri a porta do meu quarto, vi-a sair do teu. Vere chupou o cigarro com força. Jesus! – Na altura pensei que, de certeza, existia uma explicação perfeitamente inocente para tudo, sabes, que ela tivesse ouvido o teu pesadelo e fosse ver o que se passava… Vere deitou fora o cigarro e esmagou-o com o tacão da bota. Freddie suspirou. Tirou a cigarreira e a caixa de fósforos do bolso de Vere, acendeu outro cigarro e estendeu-o a Vere. Vere suspirou e aceitou a oferta do irmão. Como podia zangar-se com ele? – Desculpa – repetiu Freddie. Vere abanou a cabeça. – A culpa não é tua.

Freddie, que não costumava fumar, acendeu um cigarro para si mesmo. Ficaram a fumar em silêncio. – Ficas bem? – perguntou Freddie, depois de cada um deles ter fumado dois cigarros. Vere levantou os olhos para o céu estrelado. – Fico bem. – Bem... Disse, hesitante, Freddie –, eu já reparei na maneira como olhas para ela. E uma vez que ela te devolve a estima… quer dizer, há já algum tempo que andas à procura de uma mulher, não é? Algum homem já teria sido atingido com tanta perfeição pelo seu próprio tiro? Quando desse por si, haveria gente genuinamente feliz por ele, a bem ou a mal, ter acabado por fisgar uma mulher. E assim que olhassem para a beleza do seu busto, seria objeto de milhares de palmadas de congratulação nas costas. – Ela é muito animada – continuou Freddie. – E escuta, quando falas. Quando tu falas, quis retorquir Vere. Arrancou a gravata. – Se não te importas, acho que vou dar uma volta. Como veio a verificar, um passeio só não chegou. Lady Kingsley estava à espera dele no seu quarto, a cabecear, quando ele regressou às duas da manhã. A conversa que ela queria ter exigia uma outra volta para fora de casa. Pensou que ela queria discutir as implicações para a investigação em curso. Mas não era de todo o caso. – Agora mesmo, ela veio ao meu quarto e pediu-me ajuda – disse. Ele lançou-lhe um olhar zangado.

– Ela afirma que o tio a mata se souber o que se passou. Quer estar fora de Highgate Court antes da chegada dele. – E a senhora aceitou ajudá-la? – Eu sei que não é desses, mas o mundo está cheio de homens que fazem coisas indescritíveis às mulheres que deles dependem. Não tenho razões para não acreditar nela. E já que, seja lá como for, têm de casar, disse-lhe que arranjaria uma licença especial para os dois e que partiríamos para Londres mal o Sol raiasse. – É tudo? – indagou com frieza. – Ela quer levar a tia. – Bem, então, quantos mais, melhor. Lady Kingsley olhou-o, indecisa, e pousou uma mão na manga dele. – Não sei se hei de consolá-lo se felicitá-lo. Sei que o senhor não estava a pensar em casamento quando foi para esse encontro amoroso. Mas, se ela o entusiasmou assim tanto, o casamento não é o resultado mais trágico. Esperara mais de Lady Kingsley. Tivera esperança de que ela percebesse que tudo aquilo não correspondia, de todo, à sua personalidade e, portanto, tivesse no mínimo algumas suspeitas de jogo traiçoeiro da parte de Miss Edgerton. Em vez disso, deparava-se com um outro Freddie, sugerindo que Vere era em grande parte, se não mesmo totalmente, responsável. – Vai-me perdoar – disse. – Estou exausto.

9 fez as malas, primeiro no seu quarto, depois no quarto da tia. E lissande Acontecia a tia Rachel acordar a meio da noite e tomar outra dose de láudano, o que lhe dificultava o despertar matinal, e Elissande tinha de evitar que tal acontecesse. Acabou de fazer as malas às quatro e quarenta e cinco. Às cinco da manhã, começou a tratar da tia. Ela estava confusa e entorpecida. Mas Elissande estava determinada. Concluiu as abluções matinais da tia, deu-lhe uma boa dose de pudim de araruta e lavou-lhe os dentes. Foi só quando tirou dos armários roupa a sério que a tia Rachel percebeu que a casa dos Douglas não ia ter um dia normal. – Vamos embora – Elissande respondeu à pergunta que a tia não formulara. – Nós? – coaxou a tia Rachel. – Sim, a senhora e eu. Vou casar e preciso da sua ajuda para organizar a minha nova casa. A tia Rachel apertou as mãos de Elissande nas suas. – Casar? Com quem? – Se quiser conhecê-lo, vista-se e acompanhe-me. – Onde… para onde é que vamos? – Para Londres. – Lady Kingsley dissera-lhe que a ajudaria a arranjar uma licença especial junto do bispo de Londres. – E… e o teu tio sabe? – Não.

A tia Rachel estava a tremer. – E se… o que acontece quando ele souber? Elissande abraçou a tia. – O meu noivo é marquês. O meu tio não poderá fazer-me mal a partir do momento em que esteja casada. A tia vem comigo e nunca mais o vemos: Lorde Vere protege-nos. A tia Rachel tremia ainda mais. – Tens… tens a certeza Ellie? – Tenho. – Era uma fantástica mentirosa. Os sorrisos eram as suas melhores mentiras, mas também não era perra nas palavras. – Podemos ter toda a confiança em Lorde Vere. É um príncipe entre os homens. Não ficou a saber se tinha ou não convencido completamente a tia Rachel. Mas a tia ficou dócil e ela não teve dificuldade em vestir-lhe um vestido simples de seda verde pálido, debruado a chiffon branco e em pôr-lhe um chapéu de veludo verde, a condizer. Por infelicidade, a roupa de sair sublinhava ainda mais a palidez acinzentada da tia, a sua extrema magreza e aquela peculiar capacidade de se encolher, que sugeria uma ânsia permanente de invisibilidade, mas ficou com um ar bastante apresentável. Por causa da tia Rachel, Elissande rezava a todos os santos que Lorde Vere aparentasse a metade da magnificência com que ela o descrevera. A tia Rachel espantou-se ao conhecer o seu novo futuro sobrinho. Elissande identificava-se bem com aquele sentimento de deliciosa surpresa. Olhando para ele com os olhos de uma estranha, era-lhe impossível negar que era um homem muitíssimo bem-parecido. Estava vestido com extrema elegância: os botões todos alinhados com as respetivas casas, calças sem nódoas de comida e uma gravata impecavelmente

direita. Falou muito pouco, reduzido a um silêncio quase total pela enormidade da situação, ela não tinha a menor dúvida. E, como devia, proclamou-se respeitosamente honrado e encantado por lhe ter sido «concedida a mão de Miss Edgerton». Quando ela lhe tinha enfiado a tal mão pela garganta abaixo, bem fundo. Ele deitou-lhe um olhar, uma rápida análise da sua pessoa. Ela estava recatadamente vestida de chiffon cinzento de belíssima qualidade, não que ela pudesse enganar outra vez Lorde Vere quanto ao tipo de mulher que era. De repente, ocorreu-lhe que talvez não tivesse sido necessário ter-se despido completamente, que poderia ter bastado ser apanhada nos braços dele, vestida apenas com a roupa interior. Em vez disso, ele vira tudo o que tinha. Engoliu em seco, baixou os olhos e ficou feliz por Lady Kingsley mandar toda a gente subir para a carruagem. Vere tratou de tudo para que ele e Freddie viajassem num compartimento diferente, afastados das mulheres. Dormiu enquanto, a seu lado, Freddie ia fazendo uns esboços. Quando chegaram a Londres, Lady Kingsley avisou-o para não se afastar muito de casa para que ela pudesse informá-lo da hora e local do casamento. As mulheres partiram para fazer o que as mulheres fazem quando se veem confrontadas com umas núpcias iminentes. Vere recusou a oferta de companhia de Freddie e mandou uma nota a Holbrook, pedindo-lhe que se encontrassem no mesmo esconderijo da semana anterior. O bordel, a alcunha que davam àquele esconderijo em particular, sempre divertira Vere com as suas cores sem delicadeza e as esforçadas e trapalhonas tentativas de elegância. Mas naquele dia, o tapete de pele de tigre falsa e os seus abat-jours arroxeados irritavam-lhe excessivamente o olhar. Holbrook chegou pouco depois. Vere atirou-lhe o processo cifrado.

– Do cofre do Douglas. Por hoje é seu. – Muito obrigado, milorde. Bom trabalho, como sempre – respondeu Holbrook. – Será um instante enquanto o mando copiar. Estendeu a Vere um copo de Poire Williams – Holbrook era obcecado por licores de fruta de todos os géneros. – Já ouvi dizer que é tempo de felicitações. Vere absteve-se de mencionar que Holbrook dificilmente teria razão para felicitar outro homem pelo seu casamento, dado que, uma vez, a falecida Lady Holbrook o traíra. – Muito obrigado, senhor. – O que aconteceu? Vere acendeu um cigarro, puxou uma fumaça e encolheu os ombros. – Não é um momento de orgulho numa carreira até agora notável, pois não? – foi o comentário ocioso de Holbrook. Vere sacudiu as quase inexistentes cinzas do seu cigarro. Holbrook brincou com as franjas de contas de uma forra de sofá. – E com a sobrinha do suspeito, nem mais nem menos. – O meu encanto é universal. – Vere emborcou o licor. Bastava de tagarelice. – Havia uma parente com quem Douglas viveu, quando estava em Londres, não é verdade? – É. Mistress John Watts. London Street, Jabob’s Island. – Holbrook era senhor de uma memória infalível. – Mas há muito tempo que morreu. – Obrigado. – Vere levantou-se. – Saio sozinho. – Tem a certeza, senhor? No dia do seu casamento?

Que mais haveria de fazer num dia como aquele? Ir às putas e fazer uma farra? Beber até cair no fundo de um poço? Criar uma dependência do ópio? – Mas claro – respondeu em voz baixa. – Que maneira melhor de festejar este dia e tudo o que virá com ele? – Ainda me custa a crer. O Penny vai casar – disse Angelica Carlisle, a amiga mais antiga de Freddie, entre risos. Estava a tomar café com Freddie, o seu novo hábito continental, na salinha da casa da cidade que em tempos pertencera à mãe dela. Freddie estivera ali em muitos chás e jantares, lera a maior parte dos livros que estavam no escritório e fizera visitas dominicais regulares, naquele dia da semana estritamente reservado para familiares e amigos chegados. Angelica já referira as mudanças que queria fazer no interior da casa. Mas ainda estava a instalar-se, regressara a Inglaterra apenas um mês antes. A casa permanecia imutável. E a própria familiaridade do cenário, o papel de parede de rosas e hera, confortavelmente desbotado, as aguarelas de tias solteiras há muito desaparecidas amorosamente preservadas, os pratos comemorativos do Jubileu de Prata de Sua Majestade, trinta e cinco anos antes, sublinhava a espantosa mudança que se operara na pessoa dela. Sempre a considerara atraente, com ossos fortes e feições bem vincadas, notável mais do que bonita. Mas, durante os breves anos do seu casamento e viuvez, adquirira uma certa sedução. Os olhos, em vez de redondos, sempre alerta, como os recordava, eram agora velados pelas pálpebras e misteriosos. Os sorrisos, por regra apenas um pequeno revirar das comissuras dos lábios, irradiavam também um indefinível ardor, como se, ao mesmo tempo que se comportava com irrepreensível decoro, ela albergasse pensamentos muito maliciosos por trás daquela fachada de decência. E ele, pela primeira vez na vida e para sua grande consternação, começava a pensar nela como objeto de desejo. Angelica, que sempre fora como uma irmã para ele, uma irmã mais nova incómoda, franca, direta e impiedosa, que lhe dissera que o alfaiate dele era cego e incompetente, que ele tinha de escovar

os dentes durante mais de três minutos e que, se tivesse bebido mais de duas gotas de champanhe, não tinha autorização para dançar a valsa, dado o risco para a segurança pública. Ela bebeu um pouco de café, riu-se outra vez e abanou a cabeça. Um caracol do cabelo, solto num acaso fingido, roçou-lhe a linha do queixo, conferindo uma suavidade nova às suas feições angulosas. Como se consciente do fascínio que o caracol tinha sobre ele, ela agarrou-o com dois dedos, puxou-o e depois soltou-o. Incompreensivelmente, ela incutia a cada movimento, por mais pequeno que fosse, toda a energia dos seus novos poderes, toda a sedução de Eva. Percebeu que não lhe tinha dado resposta e apressou-se a fazê-lo: – O Penny tem vinte e nove anos. Algum dia teria de casar. – Claro, é assim mesmo. O que me choca é o escândalo. Por mais que possa revirar os olhos a algumas das excentricidades do Penny, ele não é pessoa para se meter em grandes sarilhos. – Bem sei – respondeu Freddie. – Talvez eu não devesse ter baixado a guarda. Tinha quinze anos quando Penny tivera o acidente de cavalo. Acontecera numa das raras semanas de verão em que se separaram: ele estava com a prima da mãe em Biarritz, Penny no Aberdeenshire com Lady Jane, a tia-avó paterna. Durante os primeiros meses após o acidente, Freddie andara morto de preocupação. Mas, ao fim de um tempo, tornara-se evidente que, se bem que Penny nunca mais fosse capaz de, em termos lúcidos, contar a história do Conselho de Plebeus ou de estabelecer uma argumentação diabolicamente persuasiva a favor do voto feminino, também não tinha necessidade de uma enfermeira durante as vinte e quatro horas do dia. Fora uma pequena mercê no meio de uma devastadora reviravolta da sorte, cuja injustiça ainda atormentava Freddie. O seu brilhante e bravo irmão, que, perante o pai,

assumira como seus os erros de Freddie, e que poderia ter vindo a fazer uma notável carreira no parlamento, reduzido a perito em pouco mais do que a sua rotina diária. – Dizes que não pensaste que Miss Edgerton andasse atrás do Penny apenas por causa do título e da fortuna. – O tio dela tem uma mina de diamantes na África do Sul e não tem filhos. Pelo menos, não penso que ela andasse atrás da fortuna dele. Angelica mordiscou o seu bolo de limão. Observou-a enquanto, distraída, limpava a manteiga que o saboroso bolo lhe deixara nos dedos, quase como se estivesse a acariciar o guardanapo. Imaginou a carícia daqueles dedos nele. – Então, o que achas de Miss Edgerton? – perguntou ela. Ele teve de afastar a ideia dos pensamentos sensuais, e até mesmo escandalosamente explícitos, a que, nos dias que iam correndo, tinha tendência a entregar-se, pensamentos que, sem falha, incluíam Angelica em vários estádios de nudez. – Miss Edgerton, ah, bem, é muito bonita, amável, sorridente. No entanto, não tem muito a dizer, exceto para concordar com quem estiver a falar. – Deve ser bom para o Penny. Ele gosta que as pessoas concordem com ele. O que nenhum dos dois disse, por lealdade a Penny, foi que uma rapariga de inteligência mediana e não muitos pensamentos originais era o máximo a que Penny poderia aspirar. – Já passaram treze anos desde o acidente – disse Angelica. – Ele tem-se saído bastante bem. Também lidará com isto. Freddie sorriu-lhe. – Tens razão. Eu devia ter mais fé. Durante um ou dois minutos não disseram nada, ela a mordiscar outra fatia

de bolo, ele a revirar um biscoito de amêndoa entre os dedos. – Bem – exclamaram, ao mesmo tempo. – Tu primeiro – propôs ele. – Não, não, tu primeiro. És uma visita; insisto. – Eu… eu queria pedir-te um favor – disse ele. – Em tantos anos que nos conhecemos, não consigo recordar uma única ocasião em que me tenhas pedido um favor. Tenho de admitir que talvez tenha alguma coisa que ver com o facto de eu estar sempre a atirar as minhas opiniões e desejos para cima de ti. – Os olhos brilharam-lhe. – Mas, por favor, continua; estou muitíssimo intrigada. Ele adorou a forma da boca dela quando quase sorriu. Porque nunca reparara na atração magnética do seu quase-sorriso? – Vi um quadro muito interessante em casa de Miss Edgerton. Ninguém conhece a identidade do artista. Creio já ter visto um trabalho parecido na técnica e tema. Mas não me consigo lembrar de quando ou onde – explicou. – A tua memória para estas coisas é muito superior à minha, tal como os teus conhecimentos. – Hmmm, elogios. Adoro elogios... a lisonja levar-te-á longe, jovem. – Sabes bem que eu não sou capaz de lisonjear ninguém. – Dez anos antes, Angelica era já uma notável conhecedora de arte. No tempo presente, a sua erudição era excecional. – Tirei umas fotografias ao quadro. Posso vir mostrar-tas assim que estiverem reveladas? Ela inclinou a cabeça para um lado e pôs-se outra vez a brincar com o caracol junto à linha do queixo. – Mas eu ainda não concordei em ajudar-te. Acho que primeiro quero ouvir a tua resposta ao meu pedido de um favor. Se bem te lembras, estou há

semanas à espera de uma resposta. E, durante semanas, ele não fora capaz de pensar noutra coisa. Corou, apesar de não ter intenção de o fazer. – Estás a falar do retrato? O nu dela que queria que ele pintasse. Quando insistira com Penny que não havia nada de lascivo num estudo do corpo feminino, a sua cabeça enchera-se de visões muito carnais de Angelica. – Sim, estou. Ela era franca e descontraída, enquanto ele se sentia desastrado, fora do seu elemento e cheio de calor. – Sabes que eu não sou um especialista no corpo humano. – Sempre foste demasiado modesto Freddie, meu querido. Não te teria pedido se não tivesse confiança nas tuas capacidades. Já vi estudos feitos por ti: sais-te muito bem no corpo humano. Tinha razão, não obstante ser escolha sua não pintar o corpo humano muitas vezes. Ele próprio fora uma criança desastrada, atreita a acidentes, e como tal mantinham-no dentro de casa, quando ele preferiria andar ao ar livre, a correr, a dar voltas e mais voltas, ou muito simplesmente a estender-se na relva para observar as constantes mudanças de cor do céu. Pintar o corpo humano significava enfiar-se no estúdio, quando preferia estar en plein air, a tentar captar o exuberante rosa da cerejeira em flor ou as ligações subliminares de uma conversa a dois, no meio de um piquenique. Contudo, enquanto olhava para ela, na sua cabeça ele já media a quantidade de ocre de Nápoles e vermelhão que deveria juntar ao branco-prata para se aproximar do tom quente e saudável da pele dela. – Disseste que era para a tua coleção privada.

– É essa a minha intenção. – Então não vais querer exibi-lo? – Tanta preocupação com a minha modéstia. – Sorriu, arreliadora. – Porque não sou eu capaz de mostrar metade desse decoro? – Quero uma promessa. Ele era, em quase tudo, uma pessoa bastante flexível. Mas, neste ponto, não cederia. – Quero-o como registo da minha juventude, para que um dia possa olhar para ele e suspirar pela minha beleza perdida. Prometo-te solenemente que não só não o exibirei em sítio nenhum, como nem sequer o vou pendurar na minha própria casa. Em vez disso, vou fechá-lo num caixote, que só será aberto no dia em que vir uma velha bruxa no espelho. – Sorriu de novo. – Satisfeito? Ele engoliu em seco. – Muito bem então. Eu pinto-te. Ela pousou a chávena de chá e olhou-o, olhos nos olhos. – Nesse caso, estou disposta a ajudar-te a descobrir a proveniência desse quadro misterioso. Mrs. Watts morrera um quarto de século antes. Vere considerou-se muito afortunado por conseguir localizar, em apenas algumas horas, alguém que a conhecera. A sua investigação levara-o de Bermondsey a Seven Dials. A pouco mais de um quilómetro e meio dos amplos largos de Mayfair, o entroncamento de Seven Dials ficara conhecido pelo crime e pobreza que aí existiam no início do século. Nos últimos anos, o ambiente do bairro melhorara, se bem que Vere ainda não sentisse grande inclinação por andar pelas ruas secundárias sozinho

durante a noite. Mas, naquele momento, estava em plena luz do dia. Em St. Martin’s Lane, que levava diretamente para o bairro, havia uma grande barulheira de pássaros, pois era onde os vendedores de pássaros se reuniam. Passou por uma loja cheia de aves canoras em gaiolas: piscos, cotovias e estorninhos a pipilar e chilrear, nervosos. Outra loja estava a abarrotar de grades e grades de pombos roliços, a arrulhar. Falcões, mochos e papagaios aumentavam a cacofonia: sentiu-se agradecido sempre que passou por uma ou outra loja especializada em animais aquáticos ou coelhos, animais abençoadamente silenciosos. Jacob Dooley vivia em Little Earl Street, onde havia uma multidão atarefada num animado mercado de rua, apesar de Vere não ver muita coisa à venda que não fosse em segunda ou terceira mão. Nos tempos que iam correndo, que utilidade poderia ter para uma mulher uma armação de crinolinas era coisa que ele não sabia, mas viu não uma, nem duas, mas três a serem anunciadas como «A moda do momento!» O apartamento de Dooley ficava no último andar de um edifício de quatro pisos. A fachada do edifício, coberta de letras grandiosas, anunciava o merceeiro do rés do chão – Lacticínios, Talho de Família, Fornecedor de Leite, Vendas por Grosso. No interior, a escada estreita e escura cheirava a urina aqui e ali. A pancada de Vere invocou um homem na casa dos sessenta, gordo e hirsuto, com uma cabeça coberta por um cabelo grisalho e com uma barba de cores igualmente mistas. Deixou-se ficar atrás da porta entreaberta, cauteloso, a examinar Vere. Este mudara de fato e de personagem. Era agora um rude carroceiro com uma barba que, em exuberância, quase batia a de Dooley. As suas roupas grosseiras tinham o cheiro adequado: partes iguais de cavalo e cerveja. – Quem é você? E porque anda a perguntar pela Mistress Watts? – as origens irlandesas de Dooley revelavam-se no seu discurso. Vere tinha a resposta e o sotaque nortenho a postos.

– A Mistress Watts er’á tia do mê pai, poix era. Foi o c’a ’nha mãe ma disse. O mê pai fugiu p’a Londres p’a ’ver c’a Mistress Watts. Os olhos de Dooley ficaram redondos. – Mas o Ned era um miúdo quando veio viver com ela, ai isso é que era. Eu cá nunca o vi. Mas a Mag, a Mistress Watts, ela disse que ele tinha catorze quando veio e dezasseis quando se raspou. – Bom, ele pôx a ’nha mãe grávida antes de xe raspar de Liverpool. É o c’a ’nha mã penxa. Dooley recuou um passo. – Entre lá. Eu dou-lhe uma chávena de chá. A casa tinha apenas uma divisão com uma cortina amarela fina no meio, a dividir a zona de estar da de dormir. Dooley tinha uma mesa com um ar inusitadamente pesado, duas cadeiras e uma estante feita em casa, onde guardava pilhas de jornais bem arrumados e dois livros, um deles parecia ser uma Bíblia, o outro, talvez, um missal. Dooley juntou água de um jarro e uma mancheia de folhas de chá numa panela e pendurou a chaleira improvisada sobre uma lamparina de álcool. – Ainda tens a tua mãe? – Perdi-la em Dexembro. Antes de morrer, ela dixe-me do meu pai verdadeiro. Tenh’andado a preguntar por ele desde c’a enterrei. – Tens sorte, rapaz – declarou Dooley, de pé, junto da lamparina. – A última vez que ouvi dele, estava rico na África do Sul. Diamantes. Vere reteve a respiração durante vários segundos. Ergueu para Dooley uns olhos cheios de esperança. – Na ’xtá a mangar comigo, poix não, Mixter Dooley?

– Não. Da última vez que vi a Maggie, a tua Mistress Watts, foi depois dela arreceber um telegrama dele. O homem estava podre de rico e vinha p’ra casa p’ra fazer dela uma grande dama. Olha, eu fiquei contente por ela, mas fiquei muito chateado por mim. Eu queria que ela casasse comigo. Tinha um bom par de anos mais do que eu. Mas era uma boa mulher, a Maggie Watts, e cantava mesmo bem, pois cantava. Mas não queria um marinheiro pobre como eu, quando tinha um sobrinho que lhe ia construir um palácio à maneira no campo e ia arranjar modos dela ser apresentada à rainha, pois não? «Zarpei num barco a vapor para San Francisco. E, quando voltei… – Dooley cerrou os dentes. – Quando voltei ela já estava debaixo da terra. – Tenho muita pena. – Vere não precisou de falsear a sua simpatia. Conhecia demasiado bem a dor e o sofrimento da perda. Durante um bom bocado, Dooley não lhe respondeu, mas tirou para fora duas chávenas, a que não estava lascada foi para Vere, e cortou às fatias metade de um pão. Dooley fervera as folhas de chá com a água, mas o chá que serviu era pouco mais escuro do que limonada, como tudo o mais que estava à venda lá em baixo, na rua, as folhas eram também em segunda mão. – ’brigado, xenhor – Vere agradeceu-lhe o chá. Dooley sentou-se pesadamente. – A morte dela fez-me comichão estes anos todos… ainda hoje faz. – Xe poxo perguntar, xenhor, com’é qu’ela morreu? – O relatório do juiz disse que tomou muito cloral. Caiu a dormir e nunca mais acordou. Tentei dizer ao juiz que ela nunca tinha nada daquilo. Era uma mulher trabalhadora que dormia como um cepo à noite: devia tê-la ouvido a roncar. Claro que não ma ajudou nada ter dito aquilo, pareceu que ela era uma mulher depravada. O juiz, aquele idiota, disse que a mulher devia guardar aquele tipo de coisas quando recebia um homem no seu «local de domicílio» e que eu devia deixar a causa da morte para os homens de ciência.

– Atão na acha que foi cloral? Dooley ficou com uma expressão perturbada. – Perguntei a todos os vizinhos. Havia duas rapariguinhas. Disseram que ela estava fria, não fria como uma pedra, mas mesmo fria, e ainda a respirar quando a encontraram. Chamaram um médico, mas o médico era um charlatão e não sabia nada. Abandonou o seu lugar e foi à prateleira buscar o livro que Vere pensara ser um missal. Na realidade, intitulava-se: Venenos: Seu Efeito e Deteção – Manual para Uso dos Analistas Químicos e Peritos em Análises. Dooley abriu o livro num sítio em que as folhas estavam muito dobradas. – A maneira como ela estava a dormir, e a ficar cada vez mais fria, era cloral. E se o médico fosse um médico a sério, dava-lhe um pouco de estricnina e salvava-a. Por regra, a estricnina causava convulsões musculares mortais. Contudo, era precisamente por isso mesmo que era o antídoto para uma dose excessiva de cloral, ajudando o coração a funcionar e pondo fim à descida de temperatura. Uma injeção de estricnina fora o que o médico fizera no caso Haysleigh, no qual Vere necessitara de bastante ajuda da parte de Lady Kingsley para conseguir salvar Lady Haysleigh. – Atão foi mêmo cloral? – Foi. Mas estava capaz de jurar em tribunal que ela nunca usava aquilo. O médico-legista disse que ela tomou uns bons trinta gramas, até me amostrou o frasco. – Dooley fechou o livro, cabisbaixo. – Se calhar, não a conhecia tão bem como pensava. – Tenho pena – repetiu Vere. Enquanto bebericava o seu quente mas bastante insípido chá, lembrou-se de repente de um caso há muito parado, relativo a um homem chamado Stephen Delaney. Também Delaney morrera de uma dose excessiva de cloral. Mas

como Delaney não era uma pobre mulher metida numa situação de que o juiz não gostava, antes um homem de ciência, asceta, para já não referir que era irmão de um bispo, a sua morte recebera muito mais atenção da lei, quando a família argumentara energicamente que ele nunca possuíra cloral. A investigação não lograra resultados. Quando Vere lera o processo, sete anos antes, estava coberto por uma década de pó imperturbado. E até ele teve de concordar, quando acabou a sua leitura, que não havia nada em que uma pessoa pudesse pegar para avançar no caso. – E cá estou eu outra vez – disse Dooley –, apanhado a falar da minha pobre Maggie quando tu queres saber do teu pai. – S’é mê pai, ela é ’nha tia tamém, ’nha tia-visavó. – Pois é. Pois é. – Dooley apoiou as suas mãos fortes, calosas, no livro dos venenos. – Mas não te posso dizer muito mais. – Na dixe qu’ele vinha p’ra casa p’ra fazer dela uma grande dama? – Nunca veio. O secretário dele sim, mas ele não. Vere teve de se esforçar para soar desanimado. – O xecretário? – Foi o que a Fanny Nobb disse. Ela contou que um cavalheiro muito fino veio ver a Maggie uns dias antes dela morrer. O teu pai teve de ficar em Kimberley, nos campos de diamantes, por isso mandou o secretário para tratar das coisas em Londres. O secretário devia arranjar uma casa toda chique para a Maggie e levá-la a comprar tudo o que ela tivesse na vontade. Talvez tenha sido por isso que ela precisou do cloral, demasiado excitada para dormir. O coração de Vere deu um salto. Em vez do arruaceiro do Douglas, em seu lugar viera «um cavalheiro muito fino». E pouco tempo depois, Mrs. Watts morrera com uma dose excessiva de uma substância que o seu amante tinha a certeza que ela nunca usara.

Se as suas suspeitas estivessem certas, se Douglas nem sequer tivesse descoberto a mina de diamantes por um acaso da fortuna, então, à sua maneira retorcida, a fome de sucesso em outras áreas de negócio fazia todo o sentido. Estava a tentar provar que tinha o que era preciso para prosperar sem a ajuda do seu lado criminoso – só que não tinha. – Atão e o mê pai veio p’ró funeral da Mixtress Watts? – perguntou Vere. – Não houve tempo, estás a ver? Ela morreu em julho; tiveram de a pôr debaixo do chão à pressa. Mas ele amandou o dinheiro p’ró funeral, disse a Fanny. – E o xecretário, tamém na veio ao funeral? – Não te sei dizer. Eu estava em San Francisco, bêbado que nem um cacho. Ai estava, estava. – O velho suspirou. – Pensei nisso várias vezes, ir à procura do teu pai e dizer-lhe da minha Maggie, talvez. Mas nunca fui. Nunca o ajudei nada, e não quis que ele pensasse que eu andava atrás do dinheiro dele. Vere concordou com a cabeça e pôs-se de pé. – ‘brigado, Mixter Dooley. – Tenho pena de não te dizer mais nada. – Dixe-me munto, xenhor. Dooley estendeu a mão a Vere. – Boa sorte, rapaz. Vere apertou a mão áspera de Dooley, ciente de que era a altura em que o seu disfarce poderia falhar: não tinha as mãos de um trabalhador. Mas Dooley, ainda preso ao passado, não reparou. Para Dooley nunca haveria justiça suficiente: ele já perdera a mulher que amava. Mas Vere podia ainda vir a descobrir toda a verdade acerca do

desaparecimento de Mrs. Watts. E era o que ia fazer.

10 da igreja era de pedra, em estilo românico normando. Uma luz O interior cinzenta e húmida descia das janelas do clerestório. Aqui e ali, a escuridão fria do santuário era afastada pela luz dourada de grossos círios brancos, erguendo-se bem alto, em candelabros da altura de Vere. Freddie, que estivera à espera no exterior, entrou com Mrs. Douglas e ajudou-a a sentar-se num dos bancos. Lady Kingsley foi até ao altar e fez um pequeno aceno de cabeça a Lorde Vere, ela seria a madrinha. A porta da igreja abriu-se e fechou-se, acompanhada por uma corrente de ar húmido e cortante, chegava a mulher que dentro de pouco tempo seria Lady Vere. Vere engoliu em seco, agitado, mesmo contra a sua vontade e não só de virtuosa indignação. Ela já vinha a meio da nave quando, por fim, ele olhou para ela. Vestia o vestido de casamento mais simples que alguma vez vira, sem qualquer adorno tipo renda, pluma ou brilho. Os adereços consistiam num pequeno ramo de violetas na mão, um véu que lhe cobria o cabelo e o sorriso dela. Não gostava dela, mas via-se forçado a admirá-la, pois era o sorriso mais bonito que alguma vez vira no rosto de uma noiva. Não tinha nada de vaidoso ou arrogante, apenas uma alegria tímida e serena, como se estivesse prestes a casar com o homem dos seus sonhos e lhe custasse a crer na sua boa fortuna. Ele desviou o olhar dela. A cerimónia durou um tempo infinito, o clérigo era do tipo palavroso, daqueles que não viam razão para abreviar as suas homilias, mesmo quando a natureza irregular da cerimónia se metia pelos olhos dentro. A chuva, que começara ao mesmo tempo que a cerimónia, aumentara, transformando-se numa chuvada persistente que ainda caía quando Vere e a noiva saíram da igreja, de braço dado. Ele deu-lhe a mão, para a ajudar a subir para a carruagem que os esperava,

e subiu atrás dela. Ela admirou-se quando a porta se fechou nas costas dele. O seu olhar saltou para a cara dele. Na súbita rigidez da sua postura ele sentiu a compreensão dela, bem funda, do que ser casada significava. Que ficaria sozinha com ele e que não haveria ninguém para lhes fazer companhia. Ninguém que dissesse o que ele podia ou não podia fazer. Ela sorriu-lhe, um sorriso muito apropriado de noiva venturosa, era o seu modo de exercer controlo sobre qualquer situação. E, contudo, ele, que devia saber – e sabia – como eram as coisas, sentiu, mais uma vez, um injustificado alvoroço de alegria. Tentou chamar à ideia a sua outrora fiel companheira, mas já não conseguia formar uma imagem impoluta dela. A sua simplicidade fora estragada pela cumplicidade de Lady Vere, o seu à-vontade caloroso distorcido pelo frio calculismo de Lady Vere. Não devolveu o sorriso à mulher com quem casara. Ocorreu-lhe que havia mais do que tempo suficiente no caminho para o hotel, eram apenas três quilómetros, mas de certeza que a chuva iria causar atrasos no trânsito, para a possuir. Isso apagaria o sorriso da cara dela. Os dedos dela sacudiram as gotas de chuva que tinham pousado na seda lustrosa da sua saia. O tecido era pesado e casto. Envolta em roupa dos pés à cabeça, tapara muito bem cada centímetro a sul do queixo. Até mesmo o cabelo estava bastante invisível por baixo do véu. Mas ele já sabia qual era o aspeto desta mentirosa de ar doce despida, não sabia? Se baixasse as cortinas da carruagem, podia despi-la naquele instante, da cabeça aos pés, ou dos pés à cabeça, conforme lhe desse na gana. As ações tinham consequências. Seriam, as consequências dela: horror, repulsa, e, por fim, excitação; a nudez dela separada dos elementos pelas simples paredes forradas a cabedal negro de uma carruagem Clarence; os sons que soltaria debaixo dele, abafados pelo pesado tamborilar da chuva na capota, pelos estalos e chiadeira da torrente de carruagens e pelo estridor permanente que

era Londres a ser Londres. Ela virou-se e espreitou pela janela de trás. – Vêm mesmo atrás de nós. Como se isso importasse. Não lhe respondeu e virou a cara para o mundo exterior ensopado, enquanto a sua noiva se deixava ficar imóvel, respirando com um cuidado calmo e meticuloso. Elissande estava na varanda da sua suíte, no andar de cobertura do Hotel Savoy. Londres era um murmúrio distante e abafado. As luzes de Victoria Embankment tremeluziam refletidas nas águas escuras do Tamisa. As grandes agulhas da cidade elevavam-se, altas e escuras, contra as sombras da noite. Há quatro horas que estava casada. Descreveria o seu casamento até àquele momento como silencioso. Também o descreveria como comprido. O silêncio dele durante o regresso para o hotel arrasara-lhe os nervos. Lá chegados, ela descobriu que nem Lady Kingsley nem Lorde Frederick jantariam com eles. A primeira estava cheia de pressa em se juntar aos seus hóspedes, o segundo, tendo acabado de aceitar uma encomenda, precisava de ir tratar do material necessário para dar início ao seu trabalho. Depois de ter tratado do jantar da tia Rachel e tê-la ajudado a meter-se na cama, ela e Lorde Vere tinham jantado numa sala privada e ele não lhe dissera uma única palavra, nem uma única palavra, além do quase inaudível «Ámen» no final da oração de graças. E, agora, aquela espera interminável na suíte dos dois, que, apesar de em termos de tempo absoluto ainda estar longe da duração do jantar, já a pusera num estado de tensão que lhe fazia latejar a cabeça. Ou talvez fossem os três copos de champanhe que ela despejara, um atrás do outro.

Se nunca tivesse lido o livro sobre código matrimonial que, em tempos, estivera na biblioteca do tio, talvez se regozijasse agora por estar casada e abençoadamente sozinha. Mas com a sabedoria vinha o medo: um casamento por consumar acarretava graves riscos. Teria o tio regressado a Highgate Court? Já saberia o que acontecera e se lançara na perseguição das duas? Estaria em Londres, à procura delas? E onde estava Lorde Vere? A fumar? A beber? Teria saído sozinho, apesar de terem vindo entregar à suíte uma pequena maleta com as coisas dele? E se o tio localizasse o seu marido, se sentasse com ele para uma conversa e lhe sublinhasse as óbvias razões por que ele não queria estar casado com Elissande? Uma vez tendo convencido Lorde Vere, era um pequeno passo até à anulação, que a deixaria sem marido, sem proteção e nem sequer com o direito de se gabar de já ter sido casada. De repente, a altura do hotel tornou-se entontecedora. Regressou à relativa segurança da sala de estar e sentou-se à frente da mesa onde estava um bolo pequeno com uma bonita cobertura e pálidas rosas de maçapão florindo por entre folhas verde-escuras de videiras de maçapão: o seu bolo de casamento, com os cumprimentos do hotel. Com o bolo chegaram uma faca, guardanapos, pires para servir o bolo, uma garrafa de champanhe e uma garrafa de Sauternes. E ninguém com quem o dividir. Ela estivera convencida de que alguma coisa correria mal durante a cerimónia. Lorde Vere trocaria os votos. Diria o nome de outra senhora qualquer. Ou, Deus não o permitisse, decidiria no último momento que não era capaz de ir para a frente com o casamento, arruinando a reputação dele e a dela. Em vez disso, ele estivera solene e firme. E fora ela que se enganara no nome dele – Spencer Russel Blandford Churchill Stuart era um nome complicado – e se atrapalhara nos votos não uma, mas duas vezes.

Casada. Ainda não se atrevia a compreender aquilo a fundo. A maçaneta da porta fez um leve ruído. Ela pôs-se em pé de um salto. Trancara a porta da suíte com medo que o tio aparecesse. – Quem é? – A voz saiu-lhe trémula. Quase sem fôlego. – É o quarto de Lady Vere? Lorde Vere, era a voz do seu marido. Fechou os olhos por um segundo e avançou. Sorri. Já tinha o sorriso no sítio quando abriu a porta. – Boa noite, Lorde Vere. – ‘noite, Lady Vere. Envergava ainda o casaco formal, cinzento-escuro, com que casara, e que, não se sabia como, se tinha mantido miraculosamente imaculado. – Posso entrar? – perguntou, educadamente, de chapéu na mão. Apercebeu-se de que estava a bloquear-lhe o caminho, de olhos fixos nele. – Claro, peço desculpa. Será que ele repararia na sua tez afogueada? Talvez sim, se olhasse para ela. Mas ele passou por ela, avançou até ao meio da sala e olhou à sua volta. A suíte fora decorada como se fosse o lar de um cavalheiro, com papel de parede de um azul pálido e mobília sólida, mas não imponente. Na suíte da tia Rachel havia jarrões chineses com pinturas cor de tijolo, aqui havia pratos de

Delft azuis, dispostos em semicírculo por cima de uma cómoda de mogno. – Tem aí o bolo – disse por dizer, trancando a porta de novo atrás de si. Ele virou-se, não tanto devido às palavras dela, mas por causa do ruído da porta a trancar-se, pois foi onde o seu olhar se dirigiu antes de vir pousar no rosto dela. Ele interpretara mal a razão por que ela trancara a porta. Pensou que estava a indicar estar pronta para se tornar verdadeiramente sua mulher. No olhar dele surgiu um certo sarcasmo, quase um desafio. Ela sentiu que não era capaz de suster o olhar dele. Em vez disso, os olhos dela focaram-se na botoeira da sua lapela, uma única flor de delfínio azul, de um azul tão intenso e rico que quase parecia roxo. – Tem aí o bolo – repetiu-se. – Quer que o corte? – Seria uma pena comê-lo, é tão bonito. Ela aproximou-se da mesa e agarrou na faca de cortar bolos. – Até mesmo uma coisa tão bonita será um desperdício se não for comida. – Que profundo – murmurou ele. Teria notado alguma ironia na voz dele? Deitou-lhe um olhar e só então percebeu que ele trazia uma garrafa de uísque na mão esquerda, segurando-a pelo gargalo. Engoliu em seco. Claro que ele não estava feliz. Sofrera um abuso abominável. Ele sabia muito bem que tinha sido apanhado numa armadilha. Qualquer idiota o saberia. Fez uma careta à linguagem dos seus pensamentos, baixou o rosto e atacou o bolo, enchendo o prato dele com uma fatia enorme. Ele pousou a garrafa de uísque, aceitou o bolo e atravessou a sala em direção à varanda.

Teve vontade que ele retomasse a sua atitude tagarela. Nunca imaginara que o silêncio dele fosse tão difícil de ignorar, ou de preencher. – Quer beber qualquer coisa a acompanhar o bolo? – perguntou. – Talvez um uísque? – O uísque não combina com o bolo. – A voz dele tinha um toque de impaciência. – Um Sauternes? Ele encolheu os ombros. Olhou para a garrafa de Sauternes. Por baixo do lacre, havia uma rolha. Calculou que exigisse um saca-rolhas. E, de facto, tinham trazido um, que estava entre as duas garrafas. Pegou nele e fê-lo girar na palma da mão. Como se usaria? Em casa, a tarefa de abrir as garrafas cabia aos criados. – Chamo alguém? – perguntou, timidamente. Ele regressou para junto da mesa e pousou o bolo em que não tocara. Tiroulhe o saca-rolhas da mão, espetou-o na rolha. Com algumas voltas hábeis do pulso e um puxão decisivo, a rolha saiu com um estalo bem claro. Encheu um copo até acima e pousou-o à frente dela, encheu um copo de uísque até à borda para si próprio e regressou à varanda, levando apenas a bebida. Quando ela regressara à suíte, depois do jantar, a chuva tinha diminuído e transformara-se numa chuvinha miúda, quase um nevoeiro. Mas agora levantara-se um vento forte e as nuvens pareciam estar outra vez prestes a desfazer-se em água. Ele foi bebendo lenta, mas determinadamente. A luz elétrica, velada, da sala de estar iluminava-lhe o perfil contra o céu escuro e carregado por trás de si. Ele devia estar a mexer-se, a tamborilar com os dedos no vidro ou a arrastar os pés no chão, para trás e para a frente. Não estava a contar que se tornasse uma figura forte, quase agoirenta, à frente de uma tempestade que se

aproximava. Não conseguia tirar os olhos dele. Para se distrair, levantou o seu próprio copo. Não gostava especialmente de vinho ou bebidas alcoólicas, mas o Sauternes era doce, por si só, quase uma sobremesa. Numa sede nervosa bebeu e, um minuto mais tarde, estava de olhos postos no fundo do copo. – Foi um dia comprido – disse ele. Tinha um pé de cada lado da soleira da porta entre a varanda e a sala de estar. – Acho que me vou deitar cedo. Seria uma indicação de que iria levá-la para a cama? Teve a sensação de que alguém tinha agarrado o seu estômago pelas pontas e o torcera, se bem que não com tanta violência como receara. Devia ser do Sauternes e do champanhe ao jantar. Sentia apenas um vago pânico. – Não quer provar o bolo? – disse, sem saber bem o que dizer a seguir. Boa noite? Vou já ter consigo? – Não, obrigado. – Pousou o copo vazio e passou a mão pelo cabelo. Ela achara que ele tinha cabelo castanho com madeixas de um louro-escuro. Estava enganada. Era ao contrário, tinha sobretudo cabelo louro-escuro e algumas madeixas cor de avelã aqui e ali. – Boa noite, Lady Vere. E desapareceu para a casa de banho da suíte. Ela serviu-se de outro copo de Sauternes. Alguns minutos mais tarde, quando estava de novo a olhar para o fundo do copo vazio, ele saiu da casa de banho, dirigiu-se para um dos dois quartos de dormir e fechou a porta. Saindo trinta segundos mais tarde, para vir buscar a garrafa de uísque que estava à frente dela e desaparecer de novo, com um aceno de cabeça negligente.

Ficou desconcertada. Não queria ir para a cama com ele, mas, dada a maneira como ele olhara para ela enquanto estavam em Highgate Court, e dentro da carruagem naquela mesma tarde, não considerara a hipótese de a ignorar por completo na noite de núpcias. Bom, não podia ser. Não podia dar ao tio uma oportunidade tão fácil quanto um casamento não consumado. Ele não ia correr os tribunais com um qualquer argumento forjado, declarando a invalidade da cerimónia do casamento e, depois, espetar esta falta de consumação debaixo do nariz dos juízes. No mínimo, ele teria de se esforçar para provar que ela não era totalmente racional. O casamento seria consumado, e pronto. Mais fácil dizer do que fazer. Meia hora e o resto do Sauternes mais tarde, Elissande ainda permanecia no mesmo sítio, sozinha na sala de estar. Bom, de que estava à espera? A consumação não acontecia por si só. Se ele não vinha ter com ela, ela tinha de ir ter com ele. Não se mexeu. Era muito ignorante deste tipo de coisas. E, para dizer com franqueza, a ideia de um renovado contacto físico com Lord Vere mantinha-lhe o rabo colado firmemente à cadeira. Tinha de se convencer a si própria. Tinha de evocar, de facto, a imagem do tio, quando tentara bani-la ao longo de toda a sua vida: os olhos frios, o nariz aquilino, os lábios finos, a ameaça de contornos suaves que estava na origem de todos os seus pesadelos. Respirou profundamente várias vezes e pôs-se de pé. E baloiçou tanto que teve de tornar a sentar-se. O tio desprezava as mulheres que bebiam. Até Lady Kingsley ter chegado com o seu próprio fornecimento, nunca se servia vinho em Highgate Court. Subestimara em absoluto o efeito de uma garrafa de Sauternes, mais três

taças de champanhe, na sua estabilidade. Levantou-se de novo, agarrada à mesa, desta vez com muito mais cuidado. Vá, estava direita. Avançou um pouco ao longo da beira da mesa, sem olhar para baixo, qual alpinista inexperiente a tentar escalar a face norte do Matterhorn. A outra borda da mesa estava mais próxima do quarto de Lorde Vere. Virouse de maneira a ficar de costas para a mesa e, com grande cautela, propôs-se negociar a forma de percorrer os três metros de distância até ao quarto dele. Parecia que caminhava sobre água. Não admirava que ele tivesse andado aos trambolhões depois de beber demasiado; a pessoa não conseguia evitá-lo, quando o chão subia e descia sem o menor aviso. Junto à porta, agarrou-se à maçaneta com gratidão e apoiou o peso, por um instante, na ombreira. Que o céu lhe valesse, o quarto deslizava para trás e para a frente, era melhor avançar antes de ficar demasiado tonta. Fez girar a maçaneta. Ele já estava deitado, nu da cintura para cima. Ela pestanejou para que ele parasse de deslizar para trás e para a frente no seu campo de visão. Quem diria que uma coisa tão doce como um xarope tivesse um efeito oftalmológico tão fascinante? Lentamente, ele foi ficando focado. A periferia da sua pessoa tornou-se menos difusa, o torso ganhou nitidez e definição. Deus lhe valesse, ele devia ser um Cristão Musculado10, pois musculado era certamente, e tinha um físico que Miguel Ângelo não teria dúvidas em aprovar, já que o mestre nunca pintara nenhum jovem que não tivesse um corpo assim. E, olha, tem um livro com ele. Recordou vagamente ele ter dito qualquer coisa acerca de usar os livros como anestesia. Não, não fora assim. Láudano, era isso. Ele usava os livros como láudano. Mas agora não importava. Aquele grande livro que tinha no colo dava-lhe um ar meio inteligente.

Gostou. – Senhor – disse. Os olhos dele estreitaram-se, ou teria sido um efeito ótico? – Senhora. – É a nossa noite de núpcias. – Era muito importante afirmar o óbvio, não fosse ele tê-lo esquecido. – Pois é. – Por isso, vim fazer-lhe companhia – pronunciou, em tom grandiloquente. Sentia-se corajosa, cumpridora e expedita ao mesmo tempo. – Muito obrigado, mas não vai ser necessário. Que parvoíce. – Lamento discordar. É absolutamente necessário. O tom dele foi mordaz. – Porquê? – Para o êxito do nosso casamento, claro, senhor. Ele fechou o livro e levantou-se. Hmmm, não devia ter-se levantado quando ela entrara? Não foi capaz de decidir. – O nosso casamento foi um choque para os dois. Abomino impor-me a si quando tudo foi tão apressado e… bizarro. Porque não avançamos a um ritmo mais calmo? – Não. – Ela abanou a cabeça. – Não temos tempo para isso. Ele deitou-lhe um olhar próximo do sarcasmo.

– Temos a vida toda, pelo menos, foi o que disse o ministro. No futuro, tinha de ter cuidado com o seu consumo de Sauternes. Não só os seus olhos estavam a funcionar de forma mais do que duvidosa, como a sua língua se tornara pesada e desajeitada. Ela tinha na cabeça um argumento coerente para justificar a urgência da consumação. Mas não conseguia fazer com que a sua mandíbula transmitisse tal argumento. Recusava-se, pura e simplesmente. Portanto, em vez disso inclinou a cabeça para um lado e sorriu-lhe, não porque tivesse de o fazer, mas porque quis. A reação dele foi agarrar no uísque que tinha em cima da mesa de cabeceira e emborcar um gole, diretamente da garrafa. Meu Deus, mas que ato mais masculino! Muito assertivo e decidido. Atraente. Valha a verdade que se diga, toda a sua pessoa era atraente. Invulgarmente elegante. Aquele cabelo espesso, um pouco rebelde, que brilhava como bronze polido. Aquela estrutura óssea. Aqueles ombros largos, de músculos tensos. – Esqueci-me da cor dos seus olhos – murmurou ela. Que coisa ridícula, quatro dias depois de se conhecerem, e de uma cerimónia de casamento, e ela já não se lembrava da cor dos olhos dele. – São azuis. – A sério? – Reagiu com espanto. – Que maravilha. Posso ver? Com estas palavras, aproximou-se e espreitou. Ele era alto, mais alto do que recordava, e ela viu-se forçada a apoiar as mãos nos braços dele e a pôr-se em bicos dos pés para mergulhar os seus olhos nos dele. – Há muita gente que tem os olhos azuis – disse ele.

– Mas os seus são extraordinários. – Eram, de facto. – São da cor do diamante Hope11. – Alguma vez viu o diamante Hope? – Não, mas sei agora qual deve ser o aspeto. – Suspirou. – E cheira bem. – Cheiro a uísque. – Sim, a isso também. Mas – respirou profundamente – melhor. Não conseguia defini-lo ou descrevê-lo. Era um odor quente como o de lençóis acabados de lavar. Ou de pedras aquecidas pelo sol. – Bebeu demasiado, não bebeu? Ela fixou o olhar na boca dele, firme mas tentadora. – «Os vossos lábios, oh, esposo meu, gotejam como os favos: tendes mel e leite debaixo da língua; e o odor das vossas vestes lembra o odor do cedro do Líbano.» – Bebeu demasiado. Ela sorriu. Ele também era muito divertido. As mãos dela acariciaram-lhe os braços. Eram tão firmes, mas tão macios! Recordou a noite em que tinham jogado «Guincha, Porquinho». Já mesmo nesse dia gostara de lhe tocar. Não admira. Ele era maravilhoso ao toque e tinha o aroma do cedro do Líbano. Ela ergueu os olhos para os dele. Ele não lhe devolveu o sorriso. Mas, mesmo assim, era muito bonito, com aquele ar severo e crítico. – «Que ele me beije com os beijos da sua boca – murmurou ela. – Pois o vosso amor é melhor do que o vinho.» – Não – respondeu ele.

Ela passou-lhe os braços à volta do pescoço e aproximou a sua boca da dele. Mas apenas por um instante. Numa atitude firme, ele desembaraçou-se dela. – Está completamente inebriada, Lady Vere. – Não, não estou inebriada. Estou embriagada – declarou, orgulhosa. – Seja como for, devia ir para o seu quarto e deitar-se. – Quero deitar-me consigo – suspirou ela. – «Ele dormirá a noite toda entre os meus seios.» – Céus – disse ele. – Não, Elissande. Chamo-me Elissande. – Basta, Lady Vere. Por favor, saia. – Mas não quero. – Então, saio eu. – Mas não pode. – Oh, não? A língua dela, que fora de uma eficácia fácil ao recitar o Cântico dos Cânticos, recusou-se de novo a cooperar. – Por favor, não. É preciso, por causa da minha tia. Por favor. De certeza que ele vira como a tia se tornara diminuída e frágil em casa do tio. De certeza que compreendera a importância de a manter a salvo de mais opressão. De certeza que era tão compassivo e perspicaz como formoso. Deslumbrante, na verdade. Não conseguia fartar-se de olhar para ele. Deus do céu, que maxila sensacional. Aquelas maçãs do rosto magníficas. E aqueles

olhos do diamante Hope. Era capaz de ficar a olhar para ele o dia todo. E toda a noite. – Não – repetiu ele. Ela atirou-se a ele. Era tão bem constituído! Quem lhe dera ter tido alguém parecido a quem se agarrar em todos os dias negros da sua vida, sempre se sentira mais triste quando abraçava a tia Rachel, mas Lorde Vere fazia-a sentir-se segura. Era uma fortaleza. Beijou o ombro dele, adorou o sabor e a textura daquela pele. Beijou-lhe o pescoço, a orelha, a maxila, que não era tão suave, antes tinha uma rugosidade que lhe arranhava deliciosamente o queixo. Beijou-o na boca, apanhando aqueles lábios sedutores nos seus, apreciando o sabor do uísque que ainda pairava no seu interior, percorrendo os dentes dele com a ponta da língua. Oh, céus. O… o… Estavam de pé, encostados, e ela sentiu-o. Ele. Duro e a endurecer cada vez mais. E deixou de o sentir porque voou pelos ares. A aterragem no colchão expulsou dos seus pulmões todo o ar que tinham e fez com que o quarto girasse como um caleidoscópio. Mas, Deus do céu, como ele era forte. Ela pesava uns bons sessenta quilos. Todavia, ele pegara nela e atirara-a pelo ar como se fosse um ramo de noiva. Sorriu-lhe. – Pare de sorrir – disse ele. Pareceu-lhe falar por entre dentes cerrados. Nunca mais sorrir era precisamente o que ela pretendia. Pelo facto de ele a compreender, ela sorriu-lhe ainda com mais abandono. Talvez devesse repensar a proscrição total dos sorrisos. Em momentos destes, em que não

estava sob a mínima coação, quando se sentia descontraída, feliz e em paz com o mundo, eram bastante agradáveis. Chamou-o com o dedo indicador. – Venha aqui. Por uma vez, ele fez o que lhe pedia. Olhou para ela por um instante, depois inclinou-se e segurou-lhe o queixo entre os dedos. – Escute e escute bem, se é que consegue meter alguma coisa nessa cabeça imbecil e desmiolada: não. Pode encostar-me à parede e forçar-me a casar. Mas não pode obrigar-me a fazer sexo consigo. Diga uma palavra mais e eu arranjo maneira de anular este casamento esta noite ainda e devolvo-a ao manicómio de onde veio. Agora, feche a boca e saia. Ela ainda lhe sorriu um pouco mais. Quando falava, os lábios dele moviamse de maneira hipnótica. Pedir-lhe-ia que lesse para ela, para poder comê-lo com os olhos durante horas, de enfiada. Foi então que as palavras dele começaram a fazer-se sentir nos seus ouvidos. Na mente dela. Abanou a cabeça. Não, ele não tinha querido dizer aquilo. Ele era a fortaleza dela. Não ia atirá-la por cima da muralha, para o tio. – Estou a falar a sério – repetia. – Rua. Não conseguia. Só conseguia ficar ali deitada, a abanar a cabeça, impotente. – Não me mande embora. Por favor, não me mande embora. Não me mande de volta para um sítio onde não posso respirar uma vez que seja em liberdade, onde nunca há um momento que não tenha a sua cota parte de medo e ódio. Ele puxou-a com violência para fora da cama e forçou-a a pôr-se de pé, enclavinhando os dedos no braço dela para a manter direita. Sem piedade, fê-

la marchar até à porta, ainda aberta, e deu-lhe um empurrão que a levou aos trambolhões até ao centro da sala. Nas costas dela, a porta bateu com estrondo. Uma hora mais tarde, Lorde Vere saiu do quarto para vir buscar um pedaço de bolo. Não comera grande coisa durante o dia todo e nem todo o uísque do mundo conseguiria disfarçar mais a mordedura da fome. Ia na segunda fatia quando se apercebeu de um som de soluços vindo do quarto dela. Era um som muito ténue, quase inaudível. Terminou o bolo e regressou à sua cama. Cinco minutos mais tarde, estava de novo na sala de estar. Mas porquê? Porque se preocupava? O que dissera tinha como propósito específico pôr qualquer mulher a chorar. As lágrimas femininas não surtiam nele o mínimo efeito: as mulheres com tendências criminosas ou perturbações mentais, para já não falar nas simplesmente manipuladoras, tinham tendência para ser umas magníficas choronas. Regressou ao quarto e virou a garrafa de uísque, à procura de uma última gota. Mas, raios o partissem, se não estava de regresso à sala três minutos mais tarde. Abriu a porta mas não a viu. Teve de contornar a cama para o lado mais afastado para dar com ela, sentada no chão, com os joelhos dobrados, encostados ao peito, a chorar com o nariz enfiado no véu de noiva, o céu lhe valesse! O véu estava um trapo encharcado. Tinha a cara vermelha e cheia de manchas, os olhos inchados. Soluçava convulsivamente. Também a frente do vestido de noiva estava ensopada das lágrimas. – Não sou capaz de dormir consigo nessa choradeira – disse num tom zangado. Ela levantou os olhos, com uma expressão parada no rosto, sem dúvida à

espera que, na sua visão desfocada, a pessoa dele se fundisse. Fundiu. Ela tremeu. – Desculpe – disse. – Paro já. Por favor, não me mande embora. Ele não conseguia decidir qual das duas detestava mais: se a manipuladora e sorridente alucinada Lady Vere, se a manipuladora e abjetamente ranhosa. – Vá dormir. Não a mando embora esta noite. Os lábios dela estremeceram. De gratidão, por amor de Deus. Aborrecido, e ressentido e zangado, sentimentos que um oceano de álcool não conseguiria afogar, caiu na asneira de dizer: – Espero por amanhã de manhã. Ela mordeu o lábio inferior. Os olhos encheram-se-lhe de novas lágrimas. Rolaram-lhe pela cara abaixo e desapareceram no corpete do seu vestido de noiva. Mas ela não soltou um único som, num choro tão silencioso como a morte. Desviando o olhar dele, começou a baloiçar para a frente e para trás, como uma criança a tentar consolar-se. Não saberia dizer porque é que aquilo o afetava, porque é que ela o afetava, esta mulher tinha tentado impingir-se a Freddie, por amor de Deus, mas afetava. Havia qualquer coisa naquele desespero sem palavras que o fazia sofrer. Ela não tinha mais ninguém a quem pedir ajuda. Em parte, foi por causa do uísque. Mas uma garrafa de uísque não bastava para explicar a razão por que não saiu do quarto, agora que a tinha eficazmente calado. Lutou contra aquilo, contra a compaixão alimentada pelo álcool, o assalto da infelicidade sem fundo dela e a estúpida sensação de que, se havia alguém que tinha de fazer qualquer coisa quanto àquilo tudo, era ele.

Fora ela a responsável, não fora? Ela arquejou quando ele a levantou em peso. Mas, desta vez, não atirou com ela. Em vez disso, sentou-a na borda da cama. Dobrou-se para lhe tirar os sapatos. Depois, inclinou-se para lhe desapertar o vestido. O vestido, as anáguas, a camisa sobre o espartilho e o próprio espartilho soltaram-se e caíram. Tirou um lenço do bolso e limpou-lhe o rosto, com cuidado. Surgiram mais lágrimas. Durante anos, ela limpara as lágrimas da tia Rachel, mas nunca ninguém fizera outro tanto por ela. Quando ele se preparava para meter o lenço outra vez no bolso, ela agarrouo e levou-o ao nariz. – Também cheira a cedro do Líbano – disse, maravilhada. Ele abanou ligeiramente a cabeça. – Deixe-me aconchegar-lhe a roupa. – Muito bem – respondeu. Os olhos dos dois encontraram-se. A sério, ele tinha olhos ridiculamente bonitos. E uns lábios insuportavelmente tentadores. Lembrou-se de lhos ter beijado. Mesmo que tivesse que pegar na tia Rachel e fugir, ela nunca se esqueceria de o ter beijado. Por isso, beijou-o de novo. Ele permitiu o beijo, deixou-a roçar levemente os dentes no seu lábio inferior, mordiscar-lhe a linha do queixo e lambê-lo, uma breve lambidela na base da garganta. Soltou um som surdo, estrangulado, quando ela lhe mordiscou o ponto onde o pescoço se unia ao ombro. – Onde aprendeu a fazer isso? – respondeu numa respiração entrecortada. Era preciso aprender aquilo?

– Limito-me a fazer o que quero. – E o que queria era enterrar os dentes nele, da mesma maneira que alguém morde uma moeda de ouro para se certificar de que é genuína. – É uma bêbada excitada, Lady Vere – murmurou. – O que quer isso dizer? Não esperou pela resposta e beijou-o de novo. Beijá-lo, tocá-lo, era um prazer tão grande! Ele fez uma leve pressão no ombro dela. Após um momento, ela percebeu que queria que se deitasse. Deitou-se, agarrada a ele, ainda a beijá-lo. – Eu não devia estar aqui – disse ele, ao mesmo tempo que se estendia ao lado dela. – Também posso vir a revelar-me um bêbado excitado. Nenhum dos dois devia ali estar. A casa de Lady Kingsley nunca devia ter sido invadida por ratos. E os Edgerton de Cumberland deviam ter tido a decência de a receber quando os pais morreram. Ela sentia uns remorsos desbragados. É claro que ele tinha todo o direito de estar zangado com ela. Ela manipulara-o, na realidade, lutara com ele, forçando-o a este casamento. E ele mostrara-se bastante amável e muito tolerante. Seria então de espantar que, neste tempo confuso e incerto, procurasse junto dele segurança e orientação? Apoiou-se nos cotovelos e beijou-o mais uma vez, num trilho que desceu pelo centro do torso dele. Deteve-a, mas apenas para lhe soltar o cabelo, que se espalhou numa longa cascata por cima do ombro direito dela. – Há tanto, mas tão leve como fios de ar. Ela sorriu ao elogio e baixou a cabeça até ao umbigo dele. De novo a deteve, com os dedos enterrados no ombro dela.

De súbito, ocorreu-lhe uma pergunta: – O que o põe duro? O olhar dele ganhou de novo aquela tensão. – Entre outras coisas, os seus beijos e o puxar-me para cima da cama. – Porquê? – A excitação é necessária para o desempenho. – Está excitado agora? Um segundo de silêncio. – Sim. – Então o que vai ser esse desempenho? – Eu não devia, não devia mesmo – disse ele, ao mesmo tempo que encostava o corpo ao dela, que sentiu a excitação dele com toda a clareza. – Não estou a pensar com a cabeça. – Mas há mais alguma coisa com que possa pensar? – admirou-se em voz alta. Ele soltou um risinho. Depois, tocou-a finalmente. Já lhe tinha tocado antes, claro, mas sempre para fazer outra coisa qualquer: acompanhá-la ao lugar à mesa de jantar ou empurrá-la para longe de si, por exemplo. Era a primeira vez que lhe tocava pelo mero desejo de o fazer, sem outro objetivo que não acariciá-la. Antes de enfraquecer por completo, de vez em quando, a tia Rachel acariciava o cabelo ou a mão de Elissande. Mas fora muitos anos antes. Até àquele momento, Elissande não tivera consciência do quanto sentira a falta de uma carícia, do simples encanto de ser tocada. Ele acariciou-a devagar, o

rosto, os ombros, os braços, as costas. Ainda entre carícias, beijou-a. Ela sentiu-se inundada de prazer. Quando se afastou, ela disse: – Quero mais. – Mais quê? – De si. Foi quando a despiu, tirando-lhe a combinação, deixando-lhe apenas um par de meias brancas. Ela devia ter-se sentido embaraçada por estar assim, nua, perante ele. Mas não sentiu. Sentiu-se apenas um pouco tímida. – Que estou a fazer? – murmurou ele ao mesmo tempo que depunha beijos na clavícula dela. Ela estremeceu de prazer. – Está a fazer-me muito feliz – sussurrou. – Estou? E amanhã ainda se vai recordar? – Porque não? Ele teve um sorriso enigmático e beijou-a ao longo de uma linha no centro do tronco, tal como ela lhe fizera. O ar que expirou aflorou-lhe o mamilo. Ela retesou-se com aquela incrível sensação de prazer, que se tornou mil vezes mais indescritível quando ele rodeou o mamilo com a boca. – Não parece muito difícil fazê-la feliz – disse. De facto, não era. Um pouco de liberdade, um pouco de segurança, um pouco de amor. Era tudo o que sempre desejara.

Ele continuou a tirar sensações divinas de dentro dela. E ela continuou à beira das lágrimas de felicidade. Quando, por fim, ele despiu as calças, o tamanho e peso da excitação dele quase não a surpreendeu. Confiou que ele saberia o que fazer, mesmo tendo ela dificuldade em perceber o que ele lhe faria a ela. – Amanhã de manhã vou lamentar isto – disse ele, quase inaudivelmente. – Eu não – contrapôs ela, convicta, sincera. Beijou-a no queixo. – Na realidade, pressinto que sim, e muito. Mas agora já não posso parar. Apoderou-se da boca dela. O corpo dele passou para cima dela. Ele estava quente e duro. E ele… ele… Ela gritou. Não fora sua intenção, mas doeu. Doeu muito. Então todos os beijos e carícias que conduziam a este momento serviam apenas para o tornar mais suportável. Mas não tornavam. Era um ardor horrível num ponto muito sensível. Novas lágrimas lhe correram pelas faces. Era tudo sempre tão difícil. Tudo. Até mesmo isto, tão doce e agradável, tinha de vir a provocar uma tão grande agonia. Mas a culpa não era dele. A Bíblia não proclamava que «parirás na dor»? Era sem dúvida isto que fora tão agoirentamente predito. – Peço desculpa – disse, abalada. – Muita desculpa. Por favor, continue. Ele saiu. Ela silvou de dor e preparou-se para mais. Mas ele abandonou a cama. Ouviu-o vestir-se. Quando regressou, trazia o lenço que cheirava a cedro do Líbano. Limpou-lhe as novas lágrimas. – Estou despachado – disse. – Já pode ir dormir. – A sério? – Mal podia acreditar na sua boa sorte.

– Sim, a sério. Puxou as cobertas para cima dela e desligou a luz junto da cabeceira da cama. – Boa noite. – Boa noite – respondeu-lhe ela, a tremer de alívio. – E muito obrigada, senhor. No escuro, ele suspirou. 10 Campanha lançada por Charles Kingsley na imprensa da Inglaterra vitoriana, a favor das práticas desportivas nas escolas, como reação ao imobilismo e a certas depravações dos internatos. O movimento levantou muitas polémicas, tendo-se sustentado que tais práticas fariam baixar o nível de estudos e desmoralizariam a juventude, desvirtuando as suas características próprias. (N. da T.) 11 Famoso diamante azul, muito grande, também conhecido por «Le bleu de France» ou «Le Bijou du Roi». Encontra-se à guarda do Instituto Smithsonian depois de, entre outros donos, ter pertencido à Coroa francesa. Está-lhe associada a fama de amaldiçoado. (N. da T.)

11 pardacenta da manhã, ela dormia agitada, e nua, com o lençol enrolado À luz no corpo qual serpente de Eva. Ele tocou-lhe, na face, na orelha, no cabelo. Nunca mais lhe tocaria. Mas sabê-lo servia apenas para tornar aquelas carícias, ilícitas e proibidas, absoluta e prementemente excitantes. Ela mudou de posição, revelando uma pequena mancha de sangue na cama, visão que lhe bateu com a força de uma pedra lançada contra o templo. Recordava-se bastante bem do que sucedera na noite anterior, mas olhar para a prova, saber que ela também a veria… Cobriu-a e afastou-se da cama. Afastou-se dela. Que lhe acontecera? Os seus planos eram simples: o casamento existiria apenas no papel até chegar o momento para a conveniente anulação. A execução de um plano destes prometera ser igualmente simples: ela queria estar perto dele tanto quanto um peixe queria dar um passeio a pé. E, contudo, falhara. A sua intenção fora fazê-la adormecer. Em vez disso, deixara-se seduzir por uma virgem maquiavélica. A pele dela fora veludo, o cabelo seda, o corpo a fantasia de curvas de um geómetra. E, contudo, os seus encantos carnais não tinham sido a perdição dele. A sua ruína devera-se ao prazer que ela sentia na companhia dele, o deleite sincero, ingénuo e ébrio, a sua alcoolizada paixão. Parte dele percebera que ela estava com um pifo, fora de si, e que as estrelas que lhe brilhavam nos olhos não passavam de cintilações do Sauternes que lhe corria nas veias. Mas não fora a parte lúcida de si mesmo que estivera aos comandos na noite anterior. Fora o seu eu solitário, carente e estúpido, o que era ainda afetado pelos sorrisos dela, que estava absolutamente ansioso por deixar que uma simples garrafa de uísque fosse desculpa suficiente. Quando ela olhara para esse seu eu com espanto e maravilha, quando murmurara que ele a fazia feliz, quando lhe tocara como se

ele fosse feito dos tendões do próprio Deus, nada mais importara. Ilusões, tudo ilusões. De bom grado sucumbira à sua sedução, ao falso sentimento de intimidade e ligação. E não fora o grito de dor dela ter rebentado a bolha… Olhou de novo para ela. Ela mexeu-se, gemendo ao mesmo tempo. Quero mais. Mais quê? De si. E ele acreditara nela. Que louco fora. O quarto onde tão determinadamente entrara na noite anterior e que decidira ser o seu estava cheio das coisas dela. A maior parte encontrava-se guardada em dois grandes malões, mas havia botas de passeio, luvas, chapéus e casacos espalhados por toda a parte. O cofrezinho dela estava na escrivaninha: tinha cerca de trinta e cinco centímetros de largura, vinte e dois de profundidade e vinte e oito de altura e uma tampa arredondada do lado de cima e a direito no de baixo. Vere já examinara o conteúdo que, com exceção do Delacroix, não passava de um conjunto de objetos de simples valor sentimental. Abriu o cofre de novo e observou a fotografia de casamento dos pais dela. Que antecedentes, o seu pai teria morrido com uma apoplexia. À frente de Freddie não referira o pior que Lady Avery lhe contara; que considerando a data do seu nascimento, seis meses depois do casamento, ninguém podia garantir se o pai dela era mesmo Andrew Edgerton, o marido da mãe, se Algernon Edgerton, tio de Andrew Edgerton, e o outrora protetor de Charlotte Edgerton. Distraído, deixou correr o dedo pela parte inferior da borda da tampa. Algo lhe despertou a atenção, uma ranhura minúscula, depois outra e outra. Acendeu

a luz elétrica, abriu a tampa para trás e observou-a com atenção. O cofre tinha embutidos de marfim e madrepérola do lado de fora e era acolchoado a veludo verde por dentro. A parte inferior da tampa também era forrada a veludo verde, exceto nas bordas, decoradas com cartelas e volutas pintadas. As ranhuras, quase invisíveis, na borda esquerda da tampa abriam-se no centro de uma faixa preta. Eram tão finas como uma unha e tinham pouco mais de seis milímetros de comprimento. Examinou a borda do lado direito. O mesmo, uma linha de minúsculas ranhuras. O que seriam? Uma grelha decorativa? Teve um sobressalto quando alguém bateu à porta. Relutante, largou o cofre e foi abrir: era o pequeno-almoço, acompanhado de um telegrama de Lady Kingsley. Caros Lorde e Lady Vere É com muito alívio que os informo de que foram erradicados de Woodley Manor todos os vestígios dos ratos. E, apesar de termos ainda de descobrir os culpados desta brincadeira, o polícia da zona anda ansiosamente à sua procura. Lady Vere ficará satisfeita por saber que os meus hóspedes abandonaram ontem, em boa ordem, Highgate Court, sob supervisão de Lady Avery. Ficará também aliviada por saber que, à data desta mensagem, Mister Douglas ainda não tinha regressado – um marçano por quem passei a caminho da aldeia garantiu-me que vinha de Highgate Court e que o senhor da casa continuava ausente. Incluo as minhas maiores felicitações pelo vosso casamento. Eloisa Kingsley Enfiou o telegrama no bolso, regressou ao quarto e continuou a analisar o

cofre. Com a ponta do canivete cortou um bocado de um cartão de visita e dobrou-o num perno pequeno, mas, ainda assim, rijo. As ranhuras não eram fundas; a maior parte tinha apenas uns milímetros a partir da borda da tampa. Mas havia duas ranhuras, uma de cada lado da tampa, em que o cartão penetrou um bocado mais. De súbito, recordou-se da minúscula chave no cofre no quarto de Mrs. Douglas. Elissande acordou com um estrondo épico na cabeça. Ou melhor, um estrondo titânico. Os Titãs não tinham sido derrotados por Zeus? A cabeça dela também devia ter sido atingida por um relâmpago. Com esforço, afastou as pálpebras e logo as fechou com toda a força. A luz no quarto era insuportável, como se alguém lhe tivesse enfiado um archote mesmo nas órbitas. A cabeça dela estilhaçou-se mais, protestando. Em contraste, as suas entranhas decidiram morrer numa lenta e prolongada agonia. Gemeu. O som explodiu-lhe nos ouvidos, descarregando uma dose de estilhaços de pura dor em cheio no seu cérebro. Que ironia não estar ainda morta, quando já estava completamente nos braços do inferno. Alguém afastava o cobertor que a cobria. Tremeu. A pessoa desembaraçou-a de mais lençóis amarfanhados e enrolados à volta do seu corpo cuidadosamente para não a sacudir. Tornou a tremer. Tinha uma vaga consciência de não estar muito vestida, se é que tinha alguma roupa vestida. Mas não se importava, estava enfiada no espeto de Belzebu. Algo fresco e sedoso envolveu-a. Os seus braços sem reação foram levantados e enfiados em mangas. Um roupão? Devagar, fizeram-na voltar-se. Gemeu: o movimento aumentara as pancadas dentro do seu crânio. Uma vez deitada de costas, alguém lhe levantou a cabeça, fazendo-a gritar. – Vá – disse uma voz de homem, com o braço forte a apoiá-la. – Um

remédio para a dor de cabeça. Beba. O líquido que lhe entrou na boca era a mixórdia mais horrível que alguma vez provara, sabia a lodo dos pântanos e ovos podres. Cuspiu. – Não. – Beba. Vai sentir-se melhor. Tornou a gemer. Mas havia uma nota a um tempo autoritária e calmante naquela voz e, simultaneamente, algo de autoritário e calmante na maneira como ele a segurava. Obedeceu. Entre cada dois goles, parava com um vómito, mas ele continuava a chegarlhe a chávena aos lábios e ela, aos soluços e aos ais, lá acabou por beber tudo. Depois de ter engolido a última gota daquela mistela horrível, ele deu-lhe água e ela nunca tinha bebido nada tão doce. Engoliu-a, ávida, sedenta, feliz por sentir a água escorrer-lhe pelo queixo. Quando se sentiu finalmente satisfeita, virou a cara para longe do copo e encostou-a ao peito dele. O colete era de um tecido muito bom, a camisa de um linho macio e quente. A cabeça ainda lhe latejava horrivelmente, mas ela estava… a salvo. Por uma vez, tinha um protetor, alguém que a acarinhava, que olhava por ela e que, ao mesmo tempo, cheirava maravilhosamente. Líbano – pensou, sem razão aparente. Todavia, o seu estado de conforto e segurança não durou muito. O seu protetor deitou-a de novo na cama, cobriu-a mais uma vez e, não obstante o seu gemido de desilusão e a mão com que se agarrava ao colete dele, foi-se. Quando ouviu novamente o som de passos na sua direção, abriu os olhos e fechou-os de imediato. Lorde Vere.

Não. Ele não. – Vá, Lady Vere – palrou. – Sei que é grande a tentação de ficar na cama, mas tem de se mexer. O seu banho está à sua espera. Que fazia ele no quarto dela? Devia estar ainda a sonhar. Chegaram-lhe memórias do passado, bem nítidas. O problema de Lady Kingsley com os ratos. Uma casa cheia de homens solteiros. O encantador Lorde Frederick. A zaragata no escritório do tio. O casamento. Estava casada. Com Lorde Vere. Passara a noite com ele. – Quer que cante para a acordar? – sugeriu ele, com enérgico empenho. – Conheço a canção ideal. «Rosa, Rosa, queres-me responder? Estou louco de amor de tanto te querer…» Esforçou-se por se endireitar. – Muito obrigada. Já estou bem acordada. Ao mexer-se na cama, o lençol escorregou, revelando uma mancha vermelha. A mão dela voou-lhe para a garganta ao mesmo tempo que mais memórias lhe vinham, de assalto, à cabeça. Recordou os dentes dele encostados à sua língua – que coisa mais bizarra. Recordou-se de ter sido levada em peso para a cama dele, Deus do céu! E a dor, a dor horrível, dilacerante, entre as suas pernas. A lembrança fê-la encolher-se. Mas até que ponto seriam de confiar tais memórias? Também se lembrava de ter falado no diamante Hope e de um lenço que cheirava a cedro do Líbano. O que poderia tê-la levado a citar o Cântico dos Cânticos? – Mas ainda agora comecei – lamuriou-se Lorde Vere. – Deixe-me acabar a

canção. Ela engoliu em seco e, numa atitude determinada, passou as pernas para fora da cama. Quando estava a pôr-se de pé, reparou que pouco tinha vestido, apenas um roupão de seda. Graças a Deus, estava bastante escuro: havia apenas uma réstia de luz à volta das cortinas, não percebia porque tinha antes achado a luz no quarto insuportável. – Terei o maior prazer em escutá-lo uma outra vez. Mas agora, terá de me perdoar, senhor. Penso que o meu banho está pronto. Ele correu à frente dela e abriu-lhe a porta da casa de banho para a deixar passar. – Um pequeno conselho, minha cara. Seja rápida se não derrete. Ela pestanejou. – Como? – A água está quente. Não fique lá dentro muito mais do que um quarto de hora ou começará a derreter – repetiu, absolutamente sério. Uma afirmação assim só podia ter uma resposta igualmente absurda. – Mas, ao fim de um quarto de hora, a água não estará mais fria? O queixo dele caiu. – Oh, o céu me acuda, nunca tinha pensado nisso. É por isso que não temos muitas notícias acerca de pessoas que derreteram nas banheiras. Ela fechou a porta, entrou na banheira e olhou para os joelhos. Não ia chorar. Recusava-se a chorar. Sabia perfeitamente no que estava a meter-se quando tirara a roupa à frente de Lorde Vere. Rigorosamente um quarto de hora mais tarde saiu da banheira e deu com o marido, sentado à mesa da sala, a olhar para um garfo com um fascínio

absoluto. Quando a ouviu aproximar-se, ergueu os olhos, pousou o garfo e teve um daqueles seus sorrisos patetas. – Como está a sua cabeça, minha cara? Bebeu uma garrafa inteira de Sauternes. Era possível que fosse esta a mesma pessoa que lhe tinha dado aquele tratamento horrível para a cabeça? A pessoa em cujos braços estivera tão bem? Era melhor não pensar nisso. Só serviria para estragar uma doce recordação. – A minha cabeça está melhor. Muito obrigada. – E o seu estômago? Mais calmo? – Creio que sim. – Venha comer, então. Pedi chá e torradas simples. Não lhe pareceu que chá e torradas simples lançassem o seu estômago em novas convulsões. Aproximou-se devagar da mesa e sentou-se. Ele serviu-lhe o chá, entornando o bastante para ensopar metade da toalha. – Para dizer a verdade, também eu posso ter bebido um pouco a mais, minha cara. Mas não é todos os dias que uma pessoa se casa, ein? Vale bem uma dor de cabeça, digo eu. Ela mastigou a torrada e não olhou para ele. – A propósito, o que acha do tubo acústico? Eu acho que é fantástico. Falo aqui, nesta sala, e lá em baixo, na cozinha, ouvem-me. Mas fiquei um bocado surpreendido que viesse um homem entregar o chá e as torradas. Pensava que saíam diretamente do tubo. Nem me atrevi a sair do sítio, não fosse dar-se o caso de o bule fazer o caminho todo até aqui e, trás!, esmagar-se no chão porque eu não estava lá para o apanhar.

O latejar dentro da cabeça dela piorou; aquele sítio entre as suas coxas também começou a arder de forma desagradável. – Antes de chegar, estava a ler os jornais – prosseguiu Lorde Vere. – E deixe-me que lhe diga que fiquei chocado por ler nas páginas do Times, que se referiam ao Kaiser alemão, nem mais nem menos, como neto da nossa estimada soberana. Como é possível que alguém manche Sua Majestade desta maneira, ligando aquele casca-grossa prusso à sua família irrepreensível? Tenho todas as intenções de escrever uma carta ao jornal a exigir um pedido de desculpas formal. O Kaiser era neto da rainha por parte da filha mais velha, a antiga Princesa Real. A Casa de Hanôver era, como sempre fora, solidamente germânica. Teve um sorriso desmaiado. – Sim, acho que devia. Estava determinada a ser uma boa esposa para ele: devia-lhe tudo. Talvez amanhã, quando a cabeça já não lhe doesse, quando ouvi-lo falar não a fizesse ter vontade de ouvir um coro de mil corvos, ela se sentasse junto dele, com todos os volumes da Encyclopaedia Britannica, e corrigisse algumas das suas ideias erradas. Mas, de momento, ela só tinha forças para lhe sorrir e deixá-lo permanecer tão errado quanto um relógio avariado. Elissande resmungava de frustração. A cabeça ainda não estava suficientemente bem para ela poder virar o pescoço e olhar para o espelho que tinha por trás. Mas sem se ver no espelho, debatia-se com os cordões do espartilho, que atava atrás. Ouviu uma pequena pancada na porta. – Posso ajudá-la, minha cara?

– Não, obrigada, estou bem. – A última coisa de que precisava era da sua ajuda. Se ele se metesse naquilo, iam acabar os dois amarrados a uma cadeira, com os cordões do espartilho. Como se não tivesse ouvido o que ela dissera, ele entrou, envergando um fato de passeio azul. O tio sempre usara casaca para sair, mas os cavalheiros da geração dela preferiam uma indumentária mais informal. – Senhor! Ela chegou o espartilho ao corpo. Não estava vestida, só tinha a roupa interior, e ele não deveria estar nem perto dela. Foi então que o seu olhar caiu na cama, onde só Deus sabia o que acontecera durante a noite. Deus e Lorde Vere. O que quer que fosse que tivesse ocorrido naquela cama, era certo que mudara a atitude dele face àquele casamento. O silêncio opressivo da véspera desaparecera; naquele dia, ele retomara a sua verborreia palerma. Puxou o espartilho com mais força para junto de si. – A sério, não preciso de ajuda – insistiu. – Claro que precisa – retorquiu ele. – Tem sorte que eu seja um especialista em roupa interior de senhora. Ai, sim, era mesmo? Mas ele fê-la virar-se e, por uma vez, revelou o que podia ser um verdadeiro talento ao apertar os cordões pelas costas dela abaixo, com eficácia e bem. Ficou atónita. – Onde aprendeu a fechar um espartilho? – Bom, sabe como é. Se ajudamos uma senhora a sair de um espartilho, é nosso dever ajudá-la a entrar nele de novo.

Havia senhoras que permitiam que ele as ajudasse a tirar o espartilho sem estarem obrigadas a votos matrimoniais? Seria incapaz de dizer se estava chocada ou horrorizada. Ele deu um puxão com força. Ela expeliu todo o ar que tinha dentro de si, uma necessidade diária para caber dentro da roupa. – Mas isso foi antes de a conhecer. Agora, para mim, só existe a minha mulher, claro. Era um pensamento aterrorizador. Mas não teve tempo de meditar sobre o assunto, uma vez que ele continuou, pegando na camisa e nas anáguas dela. – Despache-se – instou-a. – Temos de nos apressar. Já são dez e um quarto. – Dez e um quarto? Tem a certeza? – Claro. – Tirou o relógio e mostrou-lho. – Veja, em ponto. – E o seu relógio está certo? – Não tinha a mínima confiança nele. – Acertado pelas badaladas do Big Ben, hoje de manhã. Esfregou a testa, ainda sensível. Estava a esquecer-se de qualquer coisa. Do que estaria a esquecer-se? – A minha tia! Deus do céu, deve estar esfomeada. – E assustada, sozinha num ambiente desconhecido, sem Elissande por perto. – Oh, não, ela está bem. Deixou a chave do quarto dela aí à vista e eu fui vêla, esta manhã, quando ainda estava na cama. Até tomámos o pequeno-almoço juntos. Só podia estar a brincar. Ele era a pessoa que se esquecera de que precisava de trocar as calças manchadas de ovo no caminho entre a sala do pequenoalmoço e o seu próprio quarto. Como era possível ter-se lembrado da tia? – Convidei-a para vir connosco hoje, visitar o seu tio. Mas ela…

– Perdão? – Virou a cabeça. – Pensei…, por um momento, pensei que tinha dito visitar o meu tio hoje! – Bom, sim, é esse o plano. Ficou sem palavras. Só foi capaz de ficar a olhar para ele, ali especada. Ele deu-lhe uma palmadinha no braço. – Não se preocupe; o seu tio ficará encantado por vê-la respeitavelmente casada, a senhora estava a ficar um bocado fora de prazo, minha cara. E eu sou marquês, sabe, um homem com um estatuto e uma influência consideráveis. – Mas… a minha… ela… – Elissande interrompeu-se. Estava a gaguejar de medo. – E o que disse Mistress Douglas? Ele apressou-a a vestir a blusa. – Bem, eu disse-lhe que ficaria encantado se ela pudesse acompanhar-nos, mas que compreendia que se sentisse cansada depois da viagem de ontem. Ela respondeu que hoje preferia ficar a descansar. Elissande mal reparou que ele estava a abotoar-lhe a blusa. – Calculei que o dissesse, sim – respondeu. – Mas não está a perceber, não posso deixá-la sozinha. Na minha ausência, ela não passa bem. – Disparate. Apresentei-lhe a minha governanta e estão a dar-se lindamente. – A sua governanta? – Calculou que devesse ter uma, já que não seria de esperar que fosse capaz de governar a sua própria casa. Mas, na precipitação daquelas últimas trinta e seis horas, nem uma vez parara para pensar onde viveria e qual seria a organização da sua casa. – A sua governanta está na cidade? – Claro. Não costumo fechar a casa da cidade antes do princípio de setembro.

Ele tinha uma casa na cidade e eles estavam num hotel? – Gostaria de ver a minha tia – declarou. Tinha pouca fé na capacidade dele de escolher bons serviçais. No entanto, Mrs. Dilwyn, a governanta, revelou-se uma agradável surpresa. Era uma mulher pequena e gordinha, de quarenta e muitos anos, bem-falante e meticulosa. No seu bloco-notas tinha anotado tudo o que ocorrera desde que chegara, às oito da manhã: a quantidade de fluidos ingeridos pela tia Rachel, as suas visitas à retrete, até mesmo o número exato de gotas de láudano que tinha tomado. Elissande reparou que eram mais três do que o habitual, sem dúvida necessárias para apagar o horror que Lorde Vere lhe provocara ao sugerir levá-la de novo a Highgate Court. – Vê, eu tinha-lhe dito – comentou o marido. – Mistress Dilwyn vai encher Mistress Douglas de mimos. Ela estraga-me extravagantemente assim que dou a mais pequena fungadela. – A minha mãe esteve acamada durante os dois últimos anos de vida, Lorde Vere teve a gentileza de permitir que vivesse no meu quarto para que eu pudesse tratar dela – disse Mrs. Dilwyn. – Gostava imenso de a ter por perto. Ela costumava dizer-me que sou o homem mais bonito do mundo. – Oh, claro que é, senhor – protestou Mrs. Dilwyn, com o que pareceu ser uma genuína ternura. – É mesmo. Lorde Vere brilhou de vaidade. Mrs. Dilwyn aproximou-se de Elissande e baixou a voz. – Será que Mistress Douglas é um tanto irregular? Sei que a minha mãe era. – Sim, infelizmente é – respondeu Elissande. – Não gosta de legumes e odeia ameixas.

– A minha mãe também detestava ameixas. Vou experimentar ver se Mistress Douglas prefere uns alperces cozidos. – Muito obrigada – retorquiu Elissande, um tanto atordoada. Não estava habituada a ter com quem dividir os seus fardos. Deitou um olhar à tia Rachel, que dormitava na cama. Depois, Lorde Vere instou-a a sair do quarto e da suíte da tia Rachel. – Depressa, temos de nos apressar ou perdemos o comboio. Ela fez um último apelo, enquanto ele a forçava a marchar ao longo do corredor em direção ao elevador. – Temos mesmo de ir? Tão depressa? – Claro – foi a resposta. – Não deseja que o homem que a educou conheça o seu belo marido? Devo dizer-lhe que estou bastante entusiasmado. Nunca conheci um tio por afinidade antes. Devemos dar-nos esplendidamente, ele e eu. Freddie devia a Angelica muito do seu desenvolvimento enquanto pintor. Fora ela que, tendo visto os seus esboços a lápis, o aconselhara a tentar a aguarela e, mais tarde, o óleo. Lera o assustador livro sobre cromatografia e resumiralhe o conteúdo. Apresentara-lhe o trabalho dos impressionistas, nos periódicos de arte que trouxera de França, das suas férias em família. Nunca conseguira trabalhar com outra pessoa por perto, exceto ela. Desde o início que ela estivera a seu lado, normalmente com um grosso livro no colo, imersa nos seus próprios interesses. De tempos a tempos, lia-lhe uma passagem do seu livro: a razão científica por que o açúcar de chumbo provocava o escurecimento rápido da pintura acabada, um soneto picante de Miguel Ângelo, dedicado a um jovem formoso, um relato do Salon des Refusés de 186312. Portanto, de certa forma, não era perturbador trabalhar com ela por perto.

Se não pensasse na nudez dela, claro. Estava deitada de lado na cama que ele pedira aos criados que instalassem no estúdio dele, de costas para ele, a cabeça apoiada numa mão, a ler Os Tesouros Artísticos da Grã-Bretanha. O cabelo caía, solto, numa profusão de caracóis de um louro-escuro, misturado aqui e ali com um terra de Siena cru. A pele dela brilhava, iluminada por dentro. A suavidade do rabo dela fazia com que os dedos dele se apertassem com força a segurar o pincel. E isto antes mesmo de pensar sequer nos seios dela e no triângulo escuro entre as suas coxas refletidos no espelho que ela colocara estrategicamente à sua frente. A cada instante se via forçado a recordar-se que o seu propósito era arte e a celebração da beleza. A graça do corpo dela era parte tão integrante da natureza quanto a casca de um vidoeiro ou os raios de sol refletindo-se num lago estival. Não deveria ter dificuldade em o apreciar em termos de forma, cor, jogo de luz. No entanto, o seu único desejo era atirar com o lápis fora, aproximar-se desta particular combinação de forma, cor e jogo de luz e… Em vez disso, baixou os olhos sobre o caderno de esquissos. Não que fosse grande ajuda. Já fizera vários desenhos, um deles um esquema geral do conjunto do quadro, outro um estudo do perfil e cabelo dela, um da parte intermédia do corpo dela e um do que via no espelho. – Sabes, Freddie – disse ela –, antes de regressar a Inglaterra, pensei que de certeza que a tua experiência com Lady Tremaine te devia ter deixado taciturno e ressentido. Mas és o mesmo homem de sempre. Era mesmo de Angelica trazer tópicos inesperados à conversa. Olhou para a tela em branco que preparara. – Já passou muito tempo, Angelica. Quatro anos.

– Mas já recuperaste por completo? – Ela não era uma doença. – Da perda dela, então? – Ela nunca foi verdadeiramente minha. – Tirou um lápis mais afiado da caixa. – Penso que desde o princípio que soube que estávamos a viver um tempo que não era nosso. Fora gloriosamente feliz com Lady Tremaine. Mas existira sempre um elemento de ansiedade naquela ventura. Quando ela se reconciliara com o marido, ele ficara com o coração partido mas não amargo, porque não se tratara de uma traição, mas apenas do fim de uma época maravilhosa da sua vida. Passou para uma folha em branco do caderno e desenhou as elegantes barrigas das pernas de Angelica, desejando que as suas mãos fossem os lápis, para que, à medida que o desenho ia ganhando forma, ele pudesse fazer deslizar as palmas pela sua pele fresca e suave. Em tempos, Lady Tremaine dissera-lhe que Angelica estava apaixonada por ele. Freddie raras vezes punha em questão as afirmações de Lady Tremaine, mas esta em particular surgira quando Lady Tremaine decidira voltar para o marido, quando, sem dúvida, desejara que Freddie também assentasse junto de alguém. Quem quer que fosse. Se Angelica estivera apaixonada por ele, a verdade é que acerca do assunto e nunca fora pessoa para censurar o que dizia mesmo que Lady Tremaine tivesse razão, quatro anos tinham já tempo demasiado longo para que os afetos se mantivessem distância.

nada dissera perto dele. E passado. Um constantes à

Olhou de novo para Angelica. Tinha a cabeça inclinada e a atenção presa ao livro. Estava mesmo a escrevinhar umas notas nas margens. Sedução é que isto não era.

– Acho que, por hoje, já basta – disse, fechando o caderno. – Vou lá para fora. Angelica não diria que estava apaixonada por Freddie desde sempre. Desde sempre significava as brumas do tempo, os anos esfumados da infância. O seu amor tinha uma origem clara num momento muito posterior, tinha ela dezassete e ele dezoito anos. Ele viera a casa de férias, durante o seu primeiro ano em Christ Church13. E ela, que deveria ir passar aquele outono com Lady Margaret Hall, instalara-se numa manta de piquenique não muito longe do sítio onde ele estava a pintar, na margem do rio Stour para lhe fazer todas as perguntas acerca de Oxford que lhe vieram à cabeça e criticá-lo enquanto pintava. Ela não pintava, mas tinha um olho excelente. E tinha um imenso orgulho por ter sido a pessoa que lhe explicara, quatros anos antes, que não se usava branco puro para os pontos de luz, mas sim um tom mais claro da cor que se queria realçar. Estivera a comer um pêssego ácido, de polpa firme enquanto atirava pedrinhas para o rio, pouco mais largo do que uma banheira, ao mesmo tempo que lhe dizia para misturar mais azul no verde se queria apanhar o tom certo da cor da folhagem estival. Nunca teve a certeza que ele tivesse escutado aquela sugestão específica, porque não lhe dera resposta, mas, em vez disso, prendera o pincel língua de gato que estava a usar entre os dentes e agarrara num pincel espatulado angular. E, de repente, aconteceu. Ela olhou para ele como se nunca o tivesse visto antes, o seu amigo mais antigo, já crescido, e desejou ardentemente ser aquele pincel língua de gato para sentir os lábios dele no seu corpo, a língua dele e a pressão firme dos seus dentes. Fora sempre uma amiga confiantemente imperiosa, confiando que a amizade que os unia dispersaria gentilmente todos os conselhos e críticas com que o metralhava, mas, ao mesmo tempo, revelara ser um caso perdido como sedutora. Ele nunca reparou nos vestidos e chapéus novos que comprava para o

encantar. Nunca percebera que o esforço dela em ensiná-lo a dançar melhor tinha como objetivo dar-lhe uma oportunidade para a beijar. E, quando falava de outro homem com entusiasmo desmesurado, na esperança de despertar os ciúmes de Freddie, ele limitava-se a olhar para ela com ar intrigado e a perguntar-lhe se não era o mesmo homem que ela não podia suportar na semana anterior. A melhor abordagem teria sido confessar o seu amor e declarar-se candidata à mão dele. Mas quanto mais os seus subtis esforços para conquistar o coração dele falhavam, mais cobarde se tornava. E quando começava a pensar que ele era incapaz de qualquer ligação romântica a uma mulher independente, ele ficou embeiçado pela encantadora e audaciosa Lady Tremaine, que não atendia opinião nenhuma que não fosse a sua. Quando Lady Tremaine abandonara Freddie para voltar para os braços do marido, chegara finalmente a oportunidade de Angelica. Ele estava destroçado. Ele estava vulnerável. Precisava de alguém que ocupasse o lugar de Lady Tremaine na sua vida. Mas, quando fora ter com ele, cometera a estupidez de comentar Eu bem te tinha dito e ele pedira-lhe, em termos bem explícitos, para o deixar sozinho. Acabou de se vestir. Ele estava do lado de fora do estúdio, à sua espera. Ao longo dos quatro anos em que estivera no estrangeiro, ele perdera aquela gordura de bebé que ainda mantinha aos vinte e quatro anos. E, apesar de nunca vir a ter o corpo bem definido de Penny, ela achava-o inacreditavelmente amoroso, com feições tão doces como a sua personalidade. Mesmo quando era mais gordinho, ela já o achava incrivelmente encantador. – Posso oferecer-te uma chávena de chá? – perguntou ele. – Podes – respondeu. – Mas antes gostava de te devolver o favor. As fotografias que tiraste ao quadro já estão prontas? – Ainda estão na câmara escura. – Vamos vê-las.

Para aproveitar a luz ao máximo, o estúdio dele ficava na cobertura. A câmara escura ficava no piso inferior e tinha cerca de dois metros e meio por um e oitenta, pouco mais do que um armário. Sob a luz castanho-âmbar da lâmpada de segurança, os aparelhos para a revelação de fotografias encontravam-se muito bem arrumados, com a tina, os banhos e a lâmpada de negativos encostados a uma parede e uma bancada de trabalho encostada à outra. Em prateleiras encastradas nas paredes alinhavam-se produtos químicos etiquetados com clareza. – Quando fizeste esta câmara escura aqui? – Dedicara-se à fotografia já depois de ela ter partido, depois de Lady Tremaine ter partido, para ser mais exato. Uma vez, enviara a Angelica uma fotografia sua e ela guardara-a no seu diário. – Não me lembro da data precisa, mas foi mais ou menos na altura em que o teu marido morreu. – Mandaste-me uma carta de condolências muito simpática. – Não sabia o que dizer. Quase nunca falavas dele nas tuas cartas. Exerceu uma ligeira pressão no fundo das costas dela para a guiar para o interior da câmara escura. Ela adorou o calor da mão dele, tinha mãos grandes que, mesmo assim, conseguiam pintar pormenores de uma minúcia espantosa. Há anos que adormecia a pensar em carícias daquelas mãos fortes e hábeis. – Tratou-se de um casamento de conveniência – respondeu ao fim de uns instantes. – Quando ele morreu, já tínhamos vidas separadas. – Estava preocupado contigo – declarou baixinho, com aquela dignidade inata pela qual tanto o amava. – Quando éramos bastante mais novos, tu dizias que preferias vir a ser uma solteirona autossuficiente do que ter uma vida de casada sem chama. Lamentavelmente, faltara-lhe a coragem da sua convicção, não fora? Quando lhe parecera que não o iria ter, casara com um homem que era praticamente um

estranho e abandonara Inglaterra tão depressa quanto conseguira. – Eu estava bem – respondeu, mais agreste do que fora sua intenção. – Estou bem. Ele não disse nada, como se não acreditasse muito nas garantias que lhe dava, mas sem querer dizê-lo frontalmente. Ela pigarreou. – Bom, Freddie, mostra-me lá as fotografias. *** As fotografias, em doze por quinze, estavam penduradas num fio, a secar. – Credo – exclamou Angelica, detendo-se à frente da imagem dos ratos. – Como foi isto possível? Ela prendera o cabelo ao alto, mas fizera um carrapito lasso que parecia em riscos de se desfazer. Ou seria apenas o seu desejo de puxar por ele e soltarlhe o cabelo? No ar pairava o cheiro dos líquidos de revelação e de fixação, mas Freddie deixou-se ficar suficientemente perto dela para cheirar o Néroli da água-de-colónia dela, doce e rico. – Devias ter ouvido a gritaria. O Penny teve de dar um estalo a uma jovem senhora para ela parar de gritar. – Não estou a ver o Penny a dar um estalo a quem quer que seja. – Mas foi um estalo muito determinado – respondeu, seco, Freddie. Também ficara bastante surpreendido. – Tens aqui as fotografias do quadro. Acendeu outra luz de segurança. Ela pestanejou perante as imagens ainda molhadas. – Estou a ver o que queres dizer – comentou. – Já vi um quadro muito parecido com este, em estilo e técnica. Tinha um anjo feminino de branco,

grandes asas brancas, uma veste branca, uma rosa branca na mão. E havia um homem estendido no chão, a olhar para ela. – Santo Deus, a tua memória é extraordinária. – Obrigada. – Fez-lhe um sorriso radioso. – Quando chegar a casa, vou consultar o meu diário para ver se fiz algum registo. Às vezes, quando uma obra de arte me impressiona de qualquer forma, eu tomo notas. Ele tentou imaginar se ela consultaria o diário como consultava Os Tesouros Artísticos da Grã-Bretanha: sem roupa, com uma madeixa de cabelo solto a acariciar-lhe o mamilo e um dos dedos do pé a traçar, distraidamente, círculos nos lençóis. Os olhares dos dois ficaram presos um no outro. Os olhos dela brilhavam de expectativa. – Estavas mesmo bem? – acabou ele por perguntar. A luz fugiu dos olhos dela. – Não foi uma dor viva. Mas também não foi nada que valesse a pena, ter um marido só por ter. Já estava a fazer consultas para pedir a anulação quando o Giancarlo morreu. Nunca tornarei a cometer o mesmo erro. – Ótimo – disse ele, apesar de lhe doerem aqueles dois anos que ela perdera num casamento sem sentido. Apertou-lhe a mão por um breve instante. – Fico contente por, finalmente, mo teres dito; não precisas nunca de me poupar a respostas honestas. – Muito bem, não o farei. – Fez um ligeiro sorriso. – Tens mais alguma pergunta que precise de uma resposta honesta? Ele corou. Se ela soubesse… Mas como se pergunta à amiga mais antiga se quer ir para a cama com ele? Era-lhe fácil imaginá-la a explodir em gargalhadas. Freddie, Freddie, meu pateta. Onde é que foste desencantar tal ideia?

– Bom, sim – disse. – Já queres um chá? Por um momento, ela baixou os olhos. Quando o encarou de novo, estava com uma expressão apática. Ele teve a leve suspeita de ter visto uma sombra fugaz cruzar-lhe o olhar. – Pode ser antes um café? – perguntou. 12 Exposição paralela ao Salon de Paris, de 1863. Aqui foram expostas as obras de arte recusadas na exposição oficial, anual, destinada exclusivamente aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. A partir deste ano, começaram a realizar-se várias exposições independentes, dando oportunidade de expor a novos artistas e novas correntes estéticas, nomeadamente aos Impressionistas, que organizaram uma exposição em 1875. O Salão des Refusés acabou por se estabelecer como um forte concorrente ao salão da academia, tendo desempenhado um papel importantíssimo na divulgação e avanço da pintura moderna. (N. da T.) 13 Um dos mais importantes colégios da Universidade de Oxford. (N. da T.)

12 tivera esperança de chegar a Highgate Court antes de Douglas: ser-lheV ere ia muito mais fácil devolver o processo ao cofre e tirar um molde da chave que continha. Infelizmente, quando estava a ajudar a mulher a sair da vitória que Lady Kingsley enviara para os transportar da estação, viu Edmund Douglas a sair de casa em grandes passadas. Nos cantos dos olhos e da boca havia umas pequenas rugas, e grande parte do seu cabelo tornara-se cinzento, mas, fora isso, a aparência de Douglas não mudara muito desde o dia do seu casamento. Mantinha-se magro, ainda bem vestido e ainda com feições bem definidas e atraentes. Viu o casal Vere e parou, os olhos tão inescrutáveis quanto os de uma víbora. Vere deitou um olhar à sua esposa de um dia. Pela primeira vez em, pelo menos, uma década, fora incapaz de dormir num comboio. Em vez disso, observara-a por baixo das pálpebras semicerradas. Mantivera o véu do chapéu em baixo e ele não pôde ver a expressão dela. Mas durante a maior parte da viagem, ela estivera sentada com uma mão na garganta e a outra a abrir e fechar, a abrir e fechar. De vez em quando abanava a cabeça devagar, como se estivesse a tentar alargar um pouco mais a gola com aquele movimento. E muito, muito raramente, deixara ouvir uma respiração irregular. Estava morta de medo. Todavia, no momento em que Douglas surgiu, foi como se uma cortina se tivesse levantado e o medo do palco dela não passava agora de uma ideia remota, comparada com a absoluta importância do seu papel. – Oh, olá, tio. – Levantou a saia, subiu os degraus e deu-lhe um beijo em ambas as faces. – Bem-vindo a casa. Quando voltou? Fez uma boa viagem?

Douglas lançou-lhe um olhar gelado que teria feito vacilar um homem adulto. – A minha viagem foi excelente. No entanto, em vez do alegre encontro com que estava a contar, quando cheguei a casa, há dez minutos, encontrei-a vazia e a minha família tinha desaparecido. E tive de ouvir Mistress Ramsay contar uma história das Mil e Uma Noites, com regabofes e destruição à mistura, e que culminou com a vossa partida inesperada. Ela teve um sorriso, borbulhante como uma garrafa de champanhe. – Oh, tio. Mistress Ramsay é uma velhota querida mas retrógrada. Não houve regabofe nenhum: Lady Kingsley e os amigos foram uns hóspedes encantadoramente civilizados. Se bem que eu tenha de admitir que fiquei tão excitada quando Lorde Vere me pediu em casamento que parti uma das garrafas com barcos. Estendendo a mão com a modesta aliança de casamento na direção dele, vangloriou-se. – Está a olhar para a nova marquesa de Vere, senhor. Permita-me que lhe apresente o meu marido. Sorriu a Vere. – Não fique aí parado, milorde. Venha conhecer o meu tio. Ela ainda o cria um idiota sem remédio. Estivesse ela menos distraída, menos receosa e menos embriagada e poderia ter reparado numa certa diferença: ele saíra daquela personagem durante a maior parte do dia, e da noite, anterior. Mas ele tivera sorte: ela tinha estado distraída, receosa e muito, muito embriagada. Vere subiu os degraus dois a dois e abanou a mão de Douglas com o entusiasmo de um cachorro que brinca com uma meia velha. – É um prazer, senhor.

Douglas retirou a mão. – Estás casada? A pergunta dirigia-se sobretudo à sobrinha, mas Vere meteu-se entre os dois. – Oh, sim, na igreja, com flores e… bem, com tudo – retorquiu, com um risinho. Ela deu-lhe uma palmada no braço. – Tenha modos, senhor. Virando-se para Douglas, continuou, numa atitude fervorosa: – Peço desculpa. Estamos tão apaixonados que fomos incapazes de esperar. – Mas corremos até cá assim que pudemos para lhe dar pessoalmente a boa notícia – acrescentou Vere. – Para falar com franqueza, Lady Vere estava um bocadinho preocupada com a maneira como me receberia. Mas eu disse-lhe que era impossível não ter a sua aprovação dado o meu aspeto, maneiras e ligações. Deu-lhe uma leve cotovelada. – Tinha razão ou não tinha? Ela agraciou-o com um sorriso radioso, capaz de fazer girar todo um campo de girassóis. – É claro que tinha, querido. Não devia ter duvidado de si. Nunca mais o faço. – Onde está a tua tia, Elissande? A cara de Douglas mantivera-se impassível, face à presunçosa galhofa dos Vere. Contudo, o tom da sua voz não deixava margem para dúvidas. Por trás das suas palavras, fervia algo: uma fúria monstruosa.

– Está em Londres, no seu local favorito, tio: no Hotel Brown, tratada com todos os requintes. Vere nem conseguia imaginar o estado de nervos em que ela estaria. Não tinha maneira de saber se ele iria corroborar a mentira que acabara de dizer. No entanto, nada na sua atitude sugeria o menor nervosismo ou incerteza. – É verdade – disse. – Fui eu quem sugeriu que Mistress Douglas se deixasse ficar no hotel e não exigisse demasiado à sua saúde, viajando outra vez, passado tão pouco tempo. Lady Vere limitou-se a admitir a sabedoria do meu conselho. Douglas estreitou os olhos, num silêncio agoirento. Vere olhou para a esposa. Ela olhou para Douglas com uma ternura imensa, como se ele tivesse acabado de lhe prometer que a levaria a Paris, à Casa Worth. Havia já alguns dias que Vere pensava que ela era a melhor atriz que alguma vez conhecera. Mas, apesar de, ao longo do seu breve contacto, ela ter sido boa, nada se comparava ao seu desempenho espetacular à frente do tio. Até então, Vere só assistira a ensaios gerais: naquele momento, ela era a grande diva em palco, no centro das luzes da ribalta, prendendo o seu público na borda das cadeiras. – Bom, vamos entrar – murmurou, por fim, Douglas. – Sentemo-nos e bebamos uma chávena de chá. No preciso momento em que tomaram os seus lugares na salinha, Lorde Vere começou a retorcer-se, de uma forma óbvia e embaraçosa. Um minuto mais tarde, fechou a boca com toda a força, como se a integridade do seu sistema digestivo dependesse disso. Por fim, limpou o suor da testa e grasnou: – Se me perdoam por um instante, eu tenho… temo… tenho… E saiu a correr. O tio de Elissande não proferiu uma única palavra, como se o marido dela

não passasse de um mosquito que tivesse tido o bom-senso de se pôr dali para fora. Elissande, contudo, sentiu amargamente aquela ausência, sinal de até que ponto estava petrificada, quando até a presença desmiolada dele era um amparo para a sua coragem. Quando sucumbira à louca ideia de um casamento como rota de fuga, não contara com um marido inútil, nem com um encontro sem proteção com o tio. Mas ali estava ela, sozinha, enfrentando uma fúria que, até então, tinha sido canalizada, na sua maior parte, para a tia. – E gostas de Londres, Elissande? – perguntou, melífluo, o tio. No turbilhão daquelas últimas trinta e algumas horas, ela mal prestara atenção a Londres. – Oh, é grande, suja, cheia de gente, mas bastante excitante, devo admiti-lo. – Disseste que estão no Hotel Brown, o meu hotel preferido de Londres. Disseram à gerência que são meus familiares? O coração dela batia tão depressa como as asas de um colibri e o medo estava a deixá-la tonta. Antes de a tia ter ficado absolutamente inválida, quando se reuniam em família para tomar o chá juntos, ele falava à tia Rachel naquele mesmíssimo tom, suave, interessado, fazendo-lhe perguntas igualmente mundanas e inofensivas. E as respostas da tia Rachel iam ficando mais curtas a cada pergunta que ele fazia, como se cada resposta exigisse que ela esfaqueasse a própria carne até cair num silêncio absoluto e as lágrimas surgirem de novo. Chegados a esse momento, ele acompanhava-a ao quarto e Elissande corria para o canto mais distante da propriedade, saltava por cima das vedações e corria ainda mais, fingindo que não ia voltar, que nunca mais voltaria. – Oh, sinto-me mesmo palerma – gemeu. E não torças as mãos. Deixa-as ficar no teu colo, quietas e descontraídas. – Nunca me ocorreu que pudesse ser tratada de maneira diferente se mencionasse o seu nome. Mas que estupidez da minha parte!

– És jovem, hás de aprender – continuou o tio. – E o teu novo marido, é bom homem? – O melhor – garantiu, cheia de fervor. – Muito simpático e atencioso. O tio levantou-se e caminhou até uma janela. – Nem sei o que pensar disto tudo. A minha menina, já adulta e casada – disse, pensativo. Dentro das botas de carneira, ela apertou os dedos dos pés. Aquele tom pensativo do tio deixava-a sempre gelada. Era o tom em que dizia coisas como Acho que há demasiados livros inúteis na minha biblioteca ou A tua tia nunca te diria, o céu a proteja, mas ela teve a maior necessidade da tua presença esta tarde, quando andavas por fora a teu bel-prazer. Devias pensar mais nela e não tanto no que te agrada. A primeira afirmação precedera a purga da biblioteca, que a fizera chorar todas as noites durante uma semanas, na cama, por baixo das cobertas, e a segunda tinha prendido Elissande dentro de casa quase tanto como a tia. Trouxeram o chá. Elissande serviu, respirando com cuidado para que a mão não lhe tremesse. O lacaio saiu, fechando a porta devagarinho atrás de si. O tio aproximou-se da mesa. Elissande estendeu-lhe o chá. A superfície do líquido quase não estremecia: os anos que passara sob o seu domínio estavam a deixá-la bem. Ela viu a chávena voar-lhe da mão antes de perceber o que era a dor intensa que sentia na cara. Veio outra estalada, ainda com mais força desta vez, que a atirou da cadeira. Ela deixou-se ficar no sítio onde caíra, estupefacta. Sempre suspeitara que o tio fazia coisas indizíveis à tia, mas nunca até então ele levantara a mão contra ela. A boca sabia-lhe a sangue. Um dos molares abanou. Mal conseguia ver, tinha os olhos rasos de lágrimas. – Levanta-te – ordenou-lhe.

Ela piscou os olhos para afastar as lágrimas e pôs-se de joelhos. Antes de conseguir pôr-se de pé, ele agarrou-a pela gola, arrastou-a pela sala e atirou com ela contra a parede. De súbito, ela apercebeu-se de que o seu esqueleto era frágil. Era composto por ossos. E os ossos partiam-se quando sujeitos a esforços demasiados. – Achas-te tão esperta. Pensas que podes sair daqui e levar a minha mulher, a minha mulher. Ele atirou-lhe uma mão à garganta, sufocando-a. – Pensa outra vez, Elissande! Não pensaria. Estava mais contente do que nunca por ter finalmente afastado a tia Rachel da companhia dele. – Vais trazer-me Mistress Douglas de volta e vais trazer-ma depressa. Se não… Ele sorriu. Ela estremeceu, desta feita não foi capaz de se controlar. Ele afrouxou ligeiramente o aperto. Ela inspirou profundamente. Ele apertou-lhe de novo a garganta. – Se não – prosseguiu –, temo que algo horrível aconteça ao belo idiota que afirmas amar tanto. O coração dela gelou. Cerrou os dentes com força para que não batessem. – Pensa naquele palhaço crescido. Já o exploraste sem vergonha, forçando-o a oferecer-te a mão e o nome dele. Será que também precisa de perder um braço, ou talvez a visão, por ti? Ela queria ser altiva. Queria mostrar-lhe que desprezava as ameaças que lhe fazia. Mas era terrivelmente difícil aparentar ser forte e poderosa quando mal conseguia respirar.

– Não se atreveria – conseguiu dizer numa voz estrangulada. – Enganas-te, minha querida Elissande. Por amor, não há nada a que não me atreva. Nada. O tio a falar de amor era o mesmo que o diabo a falar da salvação. – O tio não a ama. Nunca a amou. Só lhe fez crueldades, grandes e pequenas. Ele levou a mão atrás e bateu-lhe com tanta força que, por um momento, ela temeu ter partido o pescoço. – Não sabes nada do amor – berrou. – Não sabes nada do que tive de fazer para… Parou. Ela engoliu o sangue que tinha na boca e encarou-o. Nunca em toda a sua vida o ouvira levantar a voz. A explosão pareceu tê-lo surpreendido a ele também. Ele respirou profundamente, várias vezes. Quando recomeçou a falar, a sua voz era pouco mais do que um murmúrio. – Escuta com atenção, minha querida: dou-te três dias para a trazeres de volta. O lugar dela é aqui: não há tribunal nenhum no país que discorde das minhas prerrogativas enquanto marido. «Trá-la de volta e podes gozar o idiota para o resto dos teus dias. Ou poderás olhar para ele cego ou estropiado enquanto viverem, sabendo que foste responsável pela sua mutilação. E lembra-te: decidas o que decidires, eu terei sempre a minha mulher de volta. Para sublinhar este ponto, levou as duas mãos à garganta dela. Ela debateuse debilmente. Precisava de respirar. Queria desesperadamente respirar. Estar no meio de um ciclone, alto e à solta no céu, rodeada de nada que não ar, ar e mais ar. O ar chegou quando o marido deu um puxão ao tio e o atirou – literalmente,

pegou nele em peso e atirou-o pelo ar. O suporte de uma planta estilhaçou-se com grande barulho: o tio escorregou pelo chão e chocou com ele. O marido puxou-a para os seus braços. – Está bem? Ela não foi capaz de responder. Só conseguia agarrar-se com força a qualquer porto no meio da tempestade. – Mas que vergonha, senhor – disse Lorde Vere. – Trata-se da sua sobrinha, que abdicou da juventude dela para cuidar da sua esposa. É assim que recompensa a sua dedicação ao longo de todos aqueles anos? O tio riu baixinho. – Interrompemos a nossa lua de mel para o virmos visitar. Vejo agora que foi um erro. O senhor não é digno nem do nosso tempo nem da nossa cortesia – afirmou o marido, bastante exaltado. – Pode considerar-se fora das nossas relações. Deu-lhe um beijo na testa. – Peço desculpa, meu amor. Não devíamos ter vindo. E nunca mais terá de aqui voltar. Vere teve dificuldade em se acalmar o bastante para poder pensar com clareza. Do posto do telégrafo enviara três telegramas: um para Lady Kingsley, avisando-a de que vigiasse os passos de Douglas em permanência; um para Mrs. Dilwyn, no Savoy, dizendo-lhe que levasse Mrs. Douglas para a casa da cidade de Vere e um para Holbrook, pedindo-lhe proteção à porta. Dir-se-ia que, de momento, tinha feito tudo o que era preciso. Mas havia qualquer coisa a pulsar no fundo da sua mente, uma coisa que poderia fornecer uma ligação importante se ele conseguisse aclarar as ideias durante meia hora que fosse.

O que era precisamente o que não estava capaz de fazer. Virou-se e olhou pela janela do posto do telégrafo para o exterior, onde se encontrava a vitória, de capota levantada, com a mulher encolhida lá dentro. Quando chegara perto de Douglas que tentava estrangulá-la, soubera racionalmente que não iria matá-la ali e naquele instante, não encaixava no estilo do homem, que gostava de fazer planos cuidadosos e executá-los com ainda mais cuidado. Não obstante, a raiva explodira dentro de si e ele necessitara de todo o seu autodomínio para não espancar Douglas ao ponto de o fazer correr risco de vida. Uma raiva muito antiga que nunca encontrara um escape adequado. Abandonou o posto do telégrafo e trepou para a vitória fechada. Ela tinha baixado o véu e os seus dedos, com os nós brancos, retorciam as luvas. Ele levantou o véu e baixou-o com rapidez: na face dela ainda se viam as marcas dos dedos de Douglas. – Mandei um telegrama ao meu pessoal – disse à laia de explicação. Virando-se para o cocheiro, ordenou. – Para a estação, Gibbons. Uns minutos mais tarde estavam na plataforma da estação, fora do alcance do ouvido de criados possivelmente curiosos. – O seu tio faz isto sempre? – perguntou por fim. Ela abanou a cabeça e o véu cinzento pálido esvoaçou. – Nunca me tinha levantado a mão. Não tenho tanta certeza quanto à minha tia. – Lamento – disse. Tinha gostado bastante de a arrastar de volta a Highgate Court contra a sua vontade. Até mesmo apreciara o pânico que ela se esforçara ao máximo por esconder: tinha de sofrer um pouco por tudo o que lhe fizera.

Agora sentia-se horrivelmente. Não lhe tinha perdoado, longe disso, mas a sua alegria inicial tinha-se desvanecido. Nem mesmo naquela noite na sala verde ele se apercebera de forma tão nítida da verdadeira extensão do medo e desespero dela. As mãos dela, já enluvadas, retorciam um lenço. – Ele quer que eu traga a minha tia de volta dentro de três dias. – E se não trouxer? Ela deixou-se ficar em silêncio durante um bom bocado. – Ele não prometeu fazer-lhe mal a si ou a Mistress Douglas? – insistiu. Ela começou a enrolar o lenço enrodilhado à volta do dedo indicador. – Prometeu fazer-lhe mal a si. – A mim? – Ficou ligeiramente surpreendido por ser arrastado para o meio daquilo. – Hmm, nunca ninguém tinha ameaçado fazer-me mal. Quer dizer, de vez em quando, há umas senhoras que me dão pontapés na canela quando lhes entorno uma bebida em cima… e não é que as culpe… – Ele disse que o faria pagar com um braço e os olhos – disse numa voz sem inflexões. Ele ficou espantado. – Bem, não é muito simpático da parte dele, pois não? – Está com medo? – Ela estava, com toda a certeza. No estado em que ela estava, quando chegassem a Londres, não restaria grande coisa do lenço para lá de uns farrapos esfiapados. – A bem dizer, com medo, não – respondeu, por uma vez com honestidade. – Mas não me deixa muito feliz que ele a estrangule num momento e me ameace no seguinte.

Ela torceu o lenço ainda mais, dentro da luva devia ter o dedo roxo. – Que havemos de fazer? Ele quase sorriu, custava a crer que a muito inteligente Lady Vere procurasse o conselho do idiota do marido. Estendeu a mão e desenrolou o lenço. – Não sei, mas havemos de pensar em qualquer coisa. E não pensa que é assim tão fácil fazer-me mal, pois não? – Rezo para que não – respondeu. Estava de novo a retorcer o lencinho. – Mas ele é cruel e subtil. É capaz de o magoar sem deixar a mais pequena marca; nunca consegui perceber com certeza o que fez à minha tia que a faz viver tão aterrorizada por ele. Inesperadamente, as ideias difusas que pairavam no fundo da consciência de Vere fundiram-se numa teoria concreta. A impiedosa subtileza de Edmund Douglas. A morte de Stephen Delaney, tão parecida com a de Mrs. Watts, mas, ao mesmo tempo, tão afastada do caso presente. O declínio da mina de diamantes e a sua necessidade de obter rendimentos, dado o seu insaciável apetite para se afirmar em novas avenidas de negócio e o seu triste historial. Esfregou as mãos uma na outra. – Sabe o que devíamos fazer? – O quê? – perguntou, a um tempo surpreendida e esperançosa. Quase odiou ter de a desapontar. – Não devíamos estar com fome, é o que é. Pela sua parte, não sei, mas eu fico muito mais esperto e corajoso quando tenho o estômago cheio. Fique aqui. Vou fazer uma visita à padaria. Posso trazer-lhe alguma coisa? Os ombros descaíram-lhe.

– Não, obrigada, não tenho fome. Mas tenha cuidado! Ele regressou ao posto do telégrafo e enviou um quarto telegrama, desta vez para Lorde Yardley, a quem, por brincadeira, Holbrook se referia como o seu suserano – o caso Delaney fora antes da época de Holbrook e este sempre se interessara mais pelo novo do que pelo velho. Só tinha uma pergunta a fazer a Lorde Yardley: as pesquisas científicas de Delaney tinham alguma relação com diamantes sintéticos? Lorde Vere dormia. Parecia ter uma tendência especial para dormir em comboios, uma vez que também já viera profundamente adormecido no caminho até ao Shropshire. Como é que alguém que tinha sido ameaçado com um ferimento tão grave podia estar tão pouco preocupado era algo que intrigava Elissande, bem como a forma como reagira, como se ela o estivesse a informar de que estava prestes a perder uma gravata e não partes cruciais do seu corpo. Pelo menos, não dera com a língua nos dentes dizendo que Mrs. Douglas estava no Hotel Savoy em vez de no Brown. Talvez já se tivesse esquecido em que hotel tinham passado a noite, tal como esquecera o anterior desgosto pelo casamento. Esfregou a têmpora. O tio, sempre insidiosamente hábil, escolhera o alvo perfeito para a sua ameaça. Elissande e a tia Rachel conheciam o perigo que ele representava; estavam preparadas para fazer o que fosse preciso para se salvarem. Mas como haveria de proteger Lorde Vere, que não percebia o perigo que corria? E ela tinha de o proteger, era apenas devido à sua ação que ele se via metido naquele sarilho. Mesmo antes de subirem para o comboio, ele regressara da padaria com uma caixa e oferecera-lhe o seu conteúdo. Ela abanara a cabeça com toda a força, recusando. Agora, passou por ele e abriu a caixa da padaria. Ele deixara-lhe dois pãezinhos com passas e um pequeno bolo coberto.

Sem bem se aperceber, comeu os dois pãezinhos e metade do bolo. Talvez ele tivesse razão: ela sentia menos o pânico com qualquer coisa no estômago. E talvez ele tivesse bons motivos para não recear o tio: em toda a sua vida, ele nunca vira ninguém meter Edmund Douglas na ordem da maneira como ele o fizera. Era tão forte. Sentiu um imenso desejo de ser como ele, corajoso e despreocupado. Suspirou e pousou a mão no cotovelo dele. Ele não estava à espera daquele toque. E ainda estava menos à espera de o sentir como sentiu: infinitamente familiar. Ao fim de um bocado, ela tirou o chapéu e descansou a cabeça no seu antebraço. Ele abriu os olhos para se recordar de que era apenas Lady Vere, que se tornara sua esposa através de artimanhas e ataques. Mas, quando baixou os olhos sobre o seu cabelo brilhante e escutou a sua respiração suave e regular, nada, pareceu-lhe, foi capaz de diminuir a doçura do quase abraço dela. Havia o que pensava a respeito dela. Havia o que, apesar disso, sentia. E havia muito pouco espaço entre as duas coisas. Para sua surpresa, quando deu por si, o comboio estava a abrandar na entrada de Londres e ela abanava-o com cuidado, para o despertar de um sono profundo. Apearam-se, descobriram a carruagem que tinha ido buscá-los e dirigiramse para a casa, que ele herdara do avô materno, já falecido, um dos homens mais ricos de Inglaterra no seu tempo. Mr. Woodbridge adquirira a casa na intenção de a mandar demolir e construir uma mansão maior e mais alta naquele terreno, mas morrera antes de o arquiteto terminar o novo projeto. Vere, que não via qualquer necessidade de uma coisa maior ou mais alta, mandou modernizar a canalização, instalar a

eletricidade e o telefone, mas, fora isso, manteve a estrutura da casa inalterada. A casa da cidade estava situada exatamente a meio caminho entre Grosvenor Square e Berkeley Square, e era um imponente edifício clássico, com grandes colunas jónicas e um frontão que exibia um Poseidon de tridente na mão, num carro puxado por cavalos-marinhos. Lady Vere levantou o véu e o seu olhar percorreu aquela casa impressionante – ele ficou feliz por constatar que o inchaço na sua cara já desaparecera. – Isto não é o Hotel Savoy – disse. – Bem, não, isto é a minha casa. – Mas a minha tia ainda está no hotel. Se vamos ficar aqui, temos de a ir buscar. – Ela já cá está. Não se lembra de lhe ter dito hoje de manhã que depois de ela ter descansado, Mistress Dilwyn a traria para casa? – Nunca me disse nada parecido. Claro que não tinha dito. Nem sequer quisera colocar Mrs. Dilwyn à disposição da tia dela. Na realidade, a sua ideia era manter a mulher e a tia bem longe da casa e separadas de todos os campos da sua vida. Mas agora não lhe restava alternativa: tinha de as levar para casa. Deu-lhe uma palmadinha na mão: – Perfeitamente compreensível, minha querida. Não estava no seu melhor hoje de manhã… todo aquele Sauternes. Venha, o pessoal está à espera para a saudar. Assim que os criados lhe foram apresentados, ela pediu para ver a tia. Mrs. Dilwyn acompanhou-a ao mesmo tempo que ia fazendo o relatório do dia de Mrs. Douglas, enquanto subiam as escadas.

Vere não as acompanhou: ficou a ler o correio que chegara durante a sua ausência e só depois subiu as escadas. Por acordo mútuo, ele e Holbrook raras vezes se encontravam em público ou visitavam as respetivas residências. Mas pertenciam ao mesmo clube. Nessa noite, seria mais rápido para Vere encontrar Holbrook no clube e, para tal, precisava de mudar de roupa. A esposa e Mrs. Dilwyn estavam na passagem, do lado de fora do quarto da dona da casa. – Quer que lhe traga uma das camisas de noite de Mistress Douglas para vestir esta noite, minha senhora? – indagou Mrs. Dilwyn. A mulher franziu o sobrolho, o que era raro nela. – Qual é o problema? – perguntou ele. – Está tudo bem com Mistress Douglas? – Está muito bem, obrigada. E não há problema nenhum – respondeu ela. – Esqueci-me de trazer camisas de noite para mim… e acabei de mandar todas as de Mistress Douglas para lavar. – Que há de mal com as camisas de noite de Mistress Douglas? – Cheiram a cravinho. Ela não gosta de cravinho e eu também não. – Tem razão, não há problema – disse ele. – Eu empresto-lhe uma camisa para esta noite. As minhas não têm o menor cheiro a cravinho, é garantido. Ela precisou de dois segundos para lhe fazer um sorriso radioso: – Obrigada. Mas não quero incomodá-lo, senhor. Dois segundos inteiros. Quando o seu sorriso costumava ser instantâneo. Ela estava com medo que ele a tocasse. No comboio, quando sentira necessidade de apoio, sentira-se à vontade para lhe tocar. E, quando adormecera com a cabeça encostada à sua pessoa, quando

chegou às suas narinas o seu aroma suave e doce, ele pensara… Ele pensara que ela já não sentia repulsa por ele. E a ironia era que ele não ia tocar-lhe. A sua oferta não escondia qualquer estratagema para se aproveitar dela. Preparava-se para pedir a Mrs. Dilwyn que fosse ao seu quarto buscar uma das suas camisas. Mas a desproporcionada reação dela fez com que o seu eu imaginário deitasse mão a mais um pedregulho. – Não, não, não incomoda nada – respondeu. – Venha comigo. Dirigiu-se para o seu quarto e ela não teve remédio se não segui-lo. Ele despiu o casaco de passeio e prosseguiu para o quarto de vestir. – A propósito, o que acha da sua nova casa? – perguntou enquanto se via livre do colete e se virava para ela. – Muito bonita – respondeu a sorrir. – É uma bela casa. Conseguiam engendrar uma aceitável imitação de casamento, tinha de concordar. – E Mistress Dilwyn foi prestável? – Muito prestável. – O sorriso dela manteve-se, mas ela parou bastante antes da porta do quarto de vestir. – Entre e venha escolher a que deseja. – Oh, estou certa de que é perfeitamente capaz de me escolher uma. – Disparate, entre. Ela ainda mantinha o sorriso, mas teve de respirar profundamente antes de entrar.

Ele despiu a camisa pela cabeça. O sorriso fugiu-lhe. Ele não mantinha aquela musculatura ao longo do ano todo. Mas estavam no final do verão: desde o meio de abril que ele estava sedeado em Londres, o que significava nadar quase cinco quilómetros todas as manhãs no seu clube de natação. Estava na melhor forma possível. E, quando estava em boa forma, era, fisicamente, um homem bastante intimidante. O quarto de vestir era grande. Contudo, era também bastante povoado de prateleiras, armários fechados e guarda-fatos que o tornavam um espaço fechado e isolado. Ela estava de pé, encostada a uma cómoda. Ele avançou na direção dela, passou o braço mesmo junto ao ombro dela e, por um instante, não fez nada, na verdade, ele ainda não era capaz de ultrapassar o desejo de a atormentar, tendo então tirado o anel de brasão, que atirou para uma bandeja de acessórios em cima da cómoda. – Venha – convidou, baixinho. Ela engoliu em seco. – Disse que queria escolher a camisa que mais lhe agradasse. Portanto, venha. Ele viu nos olhos dela o desejo de o corrigir, de rebater a sua afirmação e dizer que nunca quisera nada parecido, que era ele que lhe estava a impor a escolha. Mas limitou-se a dizer: – Com certeza. Ele tinha pilhas de camisas de noite, todas brancas, de linho, flanela, seda e merino. Ela deitou a mão à camisa do topo da pilha mais próxima. – Levo esta. – Mas ainda não apalpou as outras. Veja. Ele fez as camisas passarem-lhe pelas mãos, uma atrás de outra. E, em

simultâneo, foi-lhe disponibilizando tratados sobre tecidos e texturas. Em pouco tempo, ficaram enterrados até aos joelhos em camisas rejeitadas. E ele estava a passar-lhe ainda outra para ela examinar. Era de seda lustrosa, macia, sumptuosa, algo que dois mil anos antes valeria bem o caminho entre Chang’an e Damasco. – Tão suave – disse ele. – Como a sua pele. A mão fechou-se-lhe sobre a camisa. – Então, posso levar esta? – Claro, fique com ela. Foi-lhe bastante difícil encontrar uma de que gostasse. Ela não ia ainda ver-se livre dele com facilidade. Ele insistiu em que ela abrisse os dedos para não amachucar a seda e, a seguir, agarrou-lhe na mão e passou-lhe o polegar pela palma. Oferecendo-lhe o seu sorriso mais obtuso, suspirou. – Ah, sim, tão encantadora quanto recordo. E recordava. E recordava. De repente, ocorreu-lhe que aquele seu joguinho só o atormentava a si próprio. Largou-lhe a mão e recuou. – Muito bem, vá lá andando. Ela fitou-o, na incerteza: tinha começado a desapertar as calças. Ela não precisou de mais incitamentos e desapareceu rápida e inequivocamente.

13

Holbrook exibia um olho negro. Vere foi forçado a sorrir perante aquilo. – Vejo que Lady Kingsley não se esqueceu de lhe fazer uma visita quando passou por Londres. Com cuidado, Holbrook tocou nas feridas que tinha à volta do olho. – Devia ter delegado a tarefa em si: ter-me ia punido com mais suavidade. – Pois teria. – Vere fez deslizar pela mesa, até junto de Holbrook, o molde do tamanho de uma cigarreira que usara em Highgate Court. – Preciso que me faça essa chave. Estavam sentados no White’s, tão longe da janela de sacada quanto possível. Era perfeitamente aceitável que dois conhecidos que pertenciam ao mesmo clube jantassem juntos, mas não havia qualquer necessidade de publicitar o seu contacto a todos quantos passavam por St. James. – E o que abre a chave? – perguntou Holbrook. – Uma coisa do Edmund Douglas. – Hmmm – proferiu Holbrook, enfiando o molde no bolso. – E o que foi que soube na sua visita à antiga zona de Mistress Watts? – Que o Douglas provavelmente matou Mistress Watts. – A sua própria tia-avó? – Não penso que fosse sua tia-avó – retorquiu Vere, cortando a costeleta de vitela. – Para dizer a verdade, nem penso que ele seja mesmo o Edmund Douglas.

As sobrancelhas de Holbrook arquearam-se. – Então onde anda o verdadeiro Edmund Douglas? – Na minha opinião? Assassinado, também. – São crimes graves, os que atribui ao seu tio por afinidade. – Sou o mais respeitoso dos sobrinhos por afinidade. – Quase desejava que o pai ainda estivesse vivo. Pater, casei com a sobrinha de um assassino. É um casamento espetacularmente conveniente para mim, não acha? – Há novidades da sua gente dos códigos? – Algum avanço, mas ainda não o decifraram. Na mente de Vere, não restavam dúvidas que, mais cedo ou mais tarde, a Coroa iria apanhar Douglas, não só o laço estava a apertar-se em torno do pescoço do homem, como, de momento, ele estava tão distraído com o facto de a sobrinha ter feito desaparecer a sua mulher que não fazia ideia de que a sua vida estava a ser escrutinada, camada por camada. De um ponto de vista estritamente profissional, não havia pressa. Do lado da extorsão, ainda não tinham encontrado negociantes de diamantes dispostos a cooperar com a polícia. E, se queriam que enfrentasse acusações de homicídio, precisavam de mais tempo para encontrarem pessoas das relações do verdadeiro Edmund Douglas, que estivessem dispostas a fazer a viagem entre a África do Sul e a Inglaterra para prestar o seu depoimento em tribunal. Mas o Edmund Douglas que andava à solta era um Edmund Douglas capaz de cometer ainda mais atrocidades. Quando percebesse que lhe seria difícil ferir Vere, sem dúvida que tornaria a virar a sua atenção para a mulher e a sobrinha. Vere não saíra de casa com grande consideração pela esposa dele. Contudo, tal não invalidava o facto de ser agora responsável pela sua segurança. – Quero que trabalhe nele pessoalmente – disse a Holbrook. Holbrook era um dos melhores criptógrafos do país, se não mesmo do

mundo. Tal como Lady Kingsley, Vere sentira por instinto que havia qualquer coisa naquele processo cifrado que lhes permitira prender Douglas de imediato. Holbrook, reconhecendo sem dúvida a impaciência de Vere, recostou-se na cadeira. – Ora, Lorde Vere, sabe bem como detesto trabalhar a sério. Claro que a ajuda de Holbrook tinha sempre um preço. – O que quer? Holbrook sorriu. – Lembra-se da chantagem a um certo membro da família real que lhe referi há algum tempo? Ainda tenho falta de um agente superior e dedicado que subtraia o referido membro da família real aos seus problemas. Mas, uma vez que o senhor é um republicano ferrenho, incapaz de erguer um dedo para ajudar a monarquia, eu não trouxe o assunto à colação. Vere suspirou. Em circunstâncias normais, teria recusado: não considerava que ajudar inúteis membros da família real fosse uma tarefa meritória. Todavia, por esta vez fá-lo-ia, quanto mais não fosse para acalmar a sua própria consciência, que ainda se indignava por ele tão alegremente ter posto a esposa na rota do perigo. – O que preciso de saber? O chantagista era um tal Mr. Boyd Palliser. Segundo as informações de Holbrook, Palliser, metido em sarilhos com alguns elementos mais rudes da sociedade, temia pela sua segurança. A casa estava fortemente protegida contra intrusos e a única forma de lá entrar era ser convidado. – Quero que perca às cartas uma quantia de dinheiro suficiente para ser convidado para casa dele. Uma vez lá dentro, faça-o beber até à inconsciência e saia de lá com os produtos… e, de preferência, com o dinheiro com que

jogou também – explicou Holbrook. Vere revirou os olhos. – Um dia destes devia pôr em prática os seus próprios planos. Já não gosto de beber. – Disparate. O senhor é capaz de embebedar um rinoceronte até ficar de pantanas. No final da adolescência e até aos vinte e poucos anos, Vere era capaz de embebedar uma manada de elefantes até ficarem de pantanas, sem sentir quaisquer consequências desagradáveis. No entanto, nos dias que iam correndo, o seu fígado já não apreciava esse tipo de abusos. Mas, com tão pouco tempo para se preparar, não havia muito mais que pudesse fazer. Saiu do White’s e encontrou Palliser no local de jogo favorito deste último. Custou-lhe perdas sensacionais à mesa de jogo, rum suficiente para pôr o RMS Campania a flutuar e uma cretinice tão grande que até ele mesmo ficou impressionado, mas, no final da noite, acabou por ser convidado para casa de Palliser, em Chelsea. Beberam. Cantaram. Fizeram tudo menos ir às meninas juntos. A certa altura, avançando perigosamente aos trambolhões pela sala, Palliser fez girar uma vitrina de curiosidades para fora da parede e revelou um cofre escondido por trás. A seguir, foi dando palmadinhas em todos os bolsos que tinha até acabar por puxar uma corrente que tinha ao pescoço, abriu o cofre e de lá retirou uma estatueta de jade de uma lubricidade tão intricada que, no estado de grande embriaguez em que estava, Vere precisou de quase um minuto para grunhir o seu apreço. E só quando Palliser abriu o cofre uma segunda vez para guardar a estatueta reparou que continha um maço de cartas. Agora, não havia outra coisa a fazer senão levar Palliser a beber até à

inconsciência, depois agarrar no maço de cartas e fugir, uma meta que recuava cada vez mais depressa, à medida que Vere ia bebendo, uma vez que Palliser tinha o exasperante hábito de ficar a olhar para Vere até este ter esvaziado o copo, impossibilitando que o despejasse no vaso de plantas por trás de si. Palliser estendeu o braço sobre a mesa para agarrar na garrafa de rum e derrubou uma jarra de peltre. A jarra caiu no chão, com estrondo. – Ouviu aquilo? – perguntou Vere. – Claro que ouvi. – Não, outra coisa – disse Vere. Levantou-se, cambaleante, para apanhar a jarra, conseguindo apenas virar uma cadeira que apareceu, vinda não se sabe de onde. A cadeira caiu. – Ouviu aquilo? – tornou a perguntar. – Claro que ouvi! – disse Palliser, já um pouco agastado. – Não, outra coisa. Palliser deitou a mão à bengala e, apoiando-se nela, conseguiu endireitar-se. Escutou. Depois agitou a bengala no ar. – Na’ ouvi nada. A bengala varreu de uma prateleira um busto de mármore, que de pronto se fez em pedaços, no chão. – Raios! – Chiu – disse Vere. – Anda por aí uma rixa. – Onde? Não ouço nada.

Vere recuou uns passos e derrubou a mesa de apoio toda. Caiu com um estrondo horrível. – Acho que vem alguém a correr para cá. – Já não era sem tempo. Este sítio está uma desgraça. Precisa de ser arrumado já. Ou aliás… A porta abriu-se e um estranho entrou a correr. Um estranho com um revólver na mão. Ergueu o revólver com o que pareceu a Vere ser um vagar infinito. Ou seria que a sua perceção e reflexos se tinham tornado infinitamente vagarosos? Vere olhou para Palliser. O homem nem sequer tinha reparado no intruso, estava ainda a olhar para os destroços do busto com um fascínio atordoado. O intruso disparou. O som mal penetrou na consciência viscosa de Vere. Ficou a olhar, numa apreciação calma e distante, vendo Palliser tombar no chão. O tiro entrara-lhe pelo lado esquerdo do peito, deixando um buraco bem definido no centro da peónia garrida que usava na botoeira. O intruso virou-se para Vere. Carregou no gatilho. Vere mergulhou. A dor aguda no seu braço direito fez reviver num ápice todos os seus instintos afogados em rum. A sua mão fechou-se sobre a jarra de peltre, que estava no chão. A jarra cruzou o ar e chocou com o intruso em plena testa. O homem soltou um grito e cambaleou. Antes de conseguir recompor-se, apanhou com uma cadeira na cara. E, a seguir, foi esmagado com uma mesa de apoio, desta vez sobrecarregada com o peso de Vere. O homem caiu, feito um fantoche. Do lado de fora da sala, vinha o som de passos de corrida. Vere espalmou-se contra a parede. Mas eram apenas os criados de Palliser, não os seus guarda-costas, apenas um par de excitados e confusos lacaios. – Vai chamar um médico – ordenou, para um dos lacaios, apesar de ficar surpreendido se Palliser ainda estivesse vivo. O lacaio saiu a correr. Ao que

ficara, Vere ordenou – e tu, vai buscar um polícia. – Mas Mister Palliser, ele não quer ter nada a ver com a polícia. – Bem, então vai buscar a pessoa que ele quereria que chamassem se fosse atingido a tiro. O lacaio hesitou. – Não sei, senhor. Sou novo na casa. – Então, vai buscar um polícia! Depois de ter despachado o segundo lacaio e verificado que não viriam mais criados para testemunhar a carnificina, Vere fez deslizar a corrente sobre a cabeça sem vida de Palliser. Embrulhou a chave no lenço, a polícia já era capaz de descobrir coisas a partir de impressões digitais, abriu o cofre e retirou o maço de cartas. Deitou uma olhadela ao conteúdo – sim, bastante humilhante se fosse trazido a público – e contou as cartas – sete, precisamente o que estava à procura. Viera preparado com um outro maço de cartas, também do referido membro da família real, mas sobre assuntos absolutamente irrelevantes. Fez a troca, enfiou o seu saque no bolso e devolveu a chave ao cadáver de Palliser. Foi só então que olhou para o seu braço direito. A bala passara de raspão mesmo por baixo do ombro. Uma ferida bastante superficial. Trataria dela mais tarde, quando já estivesse na segurança e privacidade da sua própria casa. Agora tinha de deixar aquelas instalações antes de o médico, o polícia ou qualquer outra pessoa chegarem ali. À porta de sua casa, Vere tomou consciência de que deveria ter-se dirigido para um dos esconderijos de Holbrook. Não se esquecera de se ver livre da peruca, do bigode e dos óculos que usara como parte da identidade temporária que assumira durante aquela noite, mas esquecera-se de que não podia

regressar a casa ferido. Agora estava desorientado e demasiado cansado para se dirigir a outro sítio qualquer. Hesitou e concluiu que, com ou sem braço a sangrar, o melhor era entrar em casa. Entrou sem tocar, fazendo caretas de dor. Era canhoto: uma ferida no braço direito não era algo que o incomodasse por aí além. O que não diminuía a dor. Algures, um relógio bateu as quatro e quinze da madrugada. Foi a arrastar os pés até ao quarto e acendeu a luz, apenas o suficiente para poder ver. O maço de cartas foi imediatamente para dentro do cofre que havia no armário fechado – imediatamente querendo dizer assim que foi capaz de enfiar a chave na fechadura. De manhã, as criadas iriam deparar-se com muitos arranhões na madeira à volta da fechadura. Quando despiu a casaca, soltou um resmungo de dor. O colete não foi problema. Mas o tecido da camisa colara-se à ferida e, quando rasgou a manga, resmungou outra vez de dor. Era pior do que julgara. A bala arrancara-lhe um pedaço de carne. Por agora, faria o que conseguisse e meter-se-ia na cama. Quando acordasse, partindo do princípio que as dores de cabeça não o matariam entretanto, mandaria chamar Needham, um agente de Holbrook que, por acaso, era também médico. Ensopou vários lenços em água do jarro que estava em cima do lavatório e limpou o sangue à volta da ferida. Entre as suas coisas da barba havia um frasco de álcool destilado. Encharcou outro lenço com ele. A queimadura do álcool fê-lo soltar um silvo de dor. Doía-lhe a cabeça. Agora que a adrenalina da ação desaparecera, a grande quantidade de álcool que ingerira estava de novo a fazer sentir os seus efeitos. Teria sorte se não desse consigo estendido no chão nos próximos instantes. De repente, imobilizou-se. Não tinha a certeza do que ouvira, mas sabia que não era a única pessoa acordada dentro de casa.

Virou-se. A porta de ligação abriu-se; a esposa estava ali, de pé, na sua camisa de noite, que, nela, arrastava pelo chão. Como era estranho que a sua visão, bastante prejudicada pelo álcool, não estivesse tão desfocada que não desse conta da maneira como a camisa se colava aos seios dela, ou dos mamilos espetados devido ao ar frio da noite. – É muito tarde. Estava preocupada. Pensei – reteve a respiração. – Que aconteceu? O meu tio…? – Oh, não, nada disso. Um cocheiro de fiacre queria a minha carteira. Não lha dei. Ele puxou de uma pistola e agitou-a no ar. Por acidente, disparou-se, ele fugiu que nem um raio e eu tive de voltar a pé para casa. Uma mentira coerente, algo que pensara estar para além das suas capacidades naquele momento. Ficou impressionado consigo mesmo. Ela olhava-o, espantada, como se ele tivesse regressado a casa nu, a dançar o caminho todo. A reação dela aborreceu-o, naquele olhar estava implícito que deveria ter sido ele a praticar um ato de uma tão indizível imbecilidade que provocara o aparecimento daquela ferida. Haveria certamente cocheiros que, de vez em quando, disparavam contra os seus passageiros. Até mesmo uma pacóvia do campo como ela devia ser capaz de imaginar uma cena daquelas. Virou a sua atenção para o braço e aplicou mais álcool na ferida. Ela aproximou-se dele e tirou-lhe o lenço da mão. – Eu trato disto – disse. Foi um ato de caridade. Mas ele abandonara a casa num estado muito pouco caridoso em relação a ela e esse estado não melhorara ao longo das horas subsequentes. Não sou tão estúpido que não consiga limpar uma simples ferida de bala. Ela foi ao seu quarto e regressou pouco tempo depois com um saiote feito em tiras. Ele estendeu-lhe um frasco de unguento bórico, que entretanto descobrira. Ela olhou para o frasco, depois para ele, com uma expressão

vizinha do assombro, mais um outro sinal de que, aos seus olhos, ele continuava a ser um iniludível idiota quando um gesto normal e racional da sua parte provocava uma tão profunda expressão de incredulidade. Ela acendeu mais luzes, espalhou o unguento num quadrado de tecido, colocou o pano por cima da ferida e ligou-lhe o braço. Trabalhando com destreza, ela limpou as gotas de sangue no chão e reuniu toda a roupa ensanguentada. – Sei que Londres é uma cidade perigosa. Mas nunca tivera a impressão de que fosse assim tão perigosa… que os cavalheiros cumpridores da lei corressem riscos só por andarem pela rua. – Embrulhou todas a peças de roupa na casaca e atou as mangas, fazendo uma trouxa. – Onde foi que o atingiram? – Não… não sei bem. – Onde estava antes de entrar no fiacre? – Ah… também não sei bem. Ela franziu a testa. – Estas ocorrências são comuns? Não me parece muito alarmado. Desejou que o deixasse em paz. A última coisa de que precisava agora era de um interrogatório cerrado. – Não, claro que não. – Na maior parte das vezes, na vasta, vasta, esmagadora maioria das vezes, fazia o que tinha de fazer sem grandes problemas e ainda menos derramamento de sangue. – Estou com um grão na asa, é tudo. O sobrolho dela carregou-se ainda mais. – Qual é o cocheiro que anda com uma pistola?

– Todos os que têm de conduzir às três da manhã? – retorquiu cada vez mais impaciente com as perguntas dela. Ela franziu os lábios. – Por favor, não brinque. Podia ter sido morto. Aquela preocupação hipócrita deixou-o furioso. – E a senhora não se importaria de ficar viúva – disse, de um jato, incapaz de censurar as suas palavras. A expressão dela alterou-se, adquirindo um ar circunspecto, insuficiente para esconder o seu choque e apreensão. – Como? – A senhora tem afeição pelo Freddie, não por mim. Não sou assim tão estúpido. Ela enclavinhou as mãos uma na outra. – Eu não tenho afeição por Lorde Frederick. – Afeição. Preferência. Qual é a diferença? E já que falamos no assunto, não apreciei o que fez para me forçar a este casamento. Ela mordeu o lábio inferior. – Lamento – disse. – A sério. Tentarei compensá-lo. Belas palavras. E tão insubstanciais quanto borboletas. Ele não tinha qualquer necessidade de emborcar todo aquele rum ao longo da noite. Fizera-o por ela, para que Holbrook tirasse o seu indolente rabo da cadeira e decifrasse o código, de modo a que o tio fosse preso rapidamente e ela e a tia pudessem voltar a viver livres da ameaça que representava. E era assim que ela lhe agradecia. Tentarei compensá-lo.

– Então, vá. Compense-me. Ela encolheu-se. Em teoria, devia estar demasiado bêbado para que fizesse qualquer diferença. Mas, quanto mais ela fugia dele, mais as memórias da doce determinação dela cresciam. – Tire a roupa – ordenou. Ele era um bêbado perigoso. Só por si, o corpo dele era o suficiente para a fazer prestar atenção. Outrora vira, num livro sobre arte clássica, uma gravura da estátua de Poseidon. Ficara a olhar para ela, fascinada por ver o que os gregos consideravam a perfeição do corpo masculino, e pensara que tudo aquilo não passava de uma fantasia, da materialização do que ia na cabeça do escultor e que a realidade nunca conseguiria igualar. Até ele. Ele tinha aquele corpo, aquela musculatura impossivelmente bem definida. E, mesmo por cima da linha das calças, o início dos profundos e exagerados recortes nas ancas que, pelo menos no Poseidon, lhe tinham deixado uma impressão indelével. E a postura dele: a cabeça ligeiramente inclinada para trás, o corpo numa linha comprida, de fazer crescer água na boca. Sim, água na boca. Em termos físicos, ele era espantosamente bem feito e atraente. De a pôr a salivar. Quase não ouviu o que ele disse. – Perdão? – Gostaria que tirasse a roupa – repetiu num tom indiferente. Ficou sem palavras.

– Não é que não a tenha já visto. Se bem se lembra, somos casados. Ela pigarreou. – E isso compensaria eu ter-me aproveitado de si? – Lamento, mas não. Mas, entretanto, pode ser que torne este casamento mais suportável, se eu me conseguir lembrar de fazer coito interrompido. – O… o que é coito interrompido? – Vejamos, uma vez que conhece tão bem as Escrituras, foi Onan? Sim, esse sodomita. O que ele fez. – Derramar a sua semente no chão? – Que prodigiosa memória tem! O Cântico dos Cânticos completo e agora isto. A Bíblia fora um dos poucos livros em inglês que o tio deixara ficar dentro de casa. – E sim – prosseguiu o marido –, seria excelente se eu pudesse tê-la e derramar a minha semente noutro sítio qualquer. No chão, não, sabe. Mas talvez no seu ventre macio. Talvez até mesmo sobre os seus esplêndidos seios. E talvez, se eu estiver mesmo muito maldisposto, o faça engoli-lo. Ela pestanejou e não perguntou se ele estava a brincar. Provavelmente, não. Tendo em conta tudo o que lhe fizera, ele tinha-se portado de forma bastante decente com ela e com a tia. Impusera-se muito satisfatoriamente ao tio. E ela sentira uma confiança implícita na sua solidez e força enquanto dormira encostada a ele, no comboio. Mas quando, naquela noite, se despira e a atraíra para o seu quarto de vestir, ela tivera receio, a recordação da dor que ele lhe infligira ainda estava bem fresca na sua memória. O medo voltava a assaltá-la. E parecia-lhe algo errado

que ela despisse a roupa quando era visível que ele estava zangado e não tomado de paixão amorosa. – De certeza – murmurou –, de certeza que prefere descansar? Ele levantou uma sobrancelha. – Não acabei de lhe dizer que queria vê-la despida? – Mas está magoado e são cinco da manhã. – Tem muito a aprender acerca dos homens se pensa que um arranhão num braço nos detém. Vá, tire tudo e deite-se na cama. A voz dela foi ficando cada vez mais sumida. – Talvez não seja a melhor altura. Tem dentro de si mais rum do que um navio pirata e… – E quero dormir com a minha mulher. Ela não sabia que ele era capaz de falar assim, com força e peso por trás do que dizia. Não a ameaçou, mas fora-lhe recordado, com toda a firmeza, que não estava em posição de se negar a ele. Muito devagar, soltou o ar que tinha nos pulmões, caminhou para a cama dele e enfiou-se debaixo da roupa. Uma vez aí, despiu a camisa tão discretamente quanto conseguiu e depois, para mostrar que tinha obedecido, deixou cair a camisa ao lado da cama. A primeira coisa que ele fez foi, de um golpe, afastar as cobertas e expô-la. Ela mordeu o lábio inferior e tentou não se encolher. A respiração dele era irregular. A maneira como olhava para ela – estava a devorá-la. – Afaste as pernas – murmurou.

– Não! Ele sorriu e levou a mão esquerda ao fecho das calças. – Um dia, abrirá. Quando as calças caíram no chão, ela fechou os olhos. O colchão afundou-se quando ele se lhe juntou, na cama. Depois, o choque, os dois corpos nus, lado a lado, tocando-se em toda a parte. Toda a parte. – Sim, mantenha os olhos bem fechados e imagine que sou o Freddie – sussurrou-lhe e as cócegas do seu hálito enviaram sinais ardentes e agudos ao longo dos nervos dela. Ela abanou a cabeça e depois arquejou, quando os lábios dele roçaram a sua orelha. Ele beijou-a no ponto onde pescoço e ombro se uniam. A seguir, fincou os dentes precisamente no mesmo ponto. Uma mordidela com força, possessiva, zangada. Mas não doeu. Em vez disso, uma inesperada vaga de prazer fê-la curvar os dedos dos pés. – Agora, imagine que é o Freddie que está a levar a boca ao seu esplendoroso peito – disse, enquanto descia, passando pela clavícula, lambendo-a e mordiscando-a. Ela voltou a abanar a cabeça. A cáustica segurança do marido exercia um certo efeito nela. Uma parte primitiva de si própria agitava-se, reagindo ao poder e domínio que irradiavam dele, podre de bêbado, grosseiro e muito, muito homem. – Acha que o Freddie passa a noite acordado a pensar nas suas maravilhosas mamas? – perguntou. Chocada, abriu os olhos. Agora, ele tinha ido demasiado longe. Olhou-o a

direito, olhos nos olhos, que o céu lhe acudisse, teriam sido a razão por que falara no diamante Hope, na noite de núpcias? – Não, não me parece. – Talvez não – respondeu o marido, muito baixinho. – Mas eu passo. Acompanhando as palavras, baixou a cabeça e recebeu o mamilo dela na boca. De tão intenso, o prazer era quase cruel. Ele aflorou-lhe os mamilos com os dentes. Ela viu-se forçada a arquear as costas e ofegar audivelmente. Por fim, ele levantou a cabeça e beijou a curva inferior dos seus seios. Dali, partiu para sul, e a boca acariciou-lhe o tronco, a barriga. Enfiou-lhe a língua no umbigo, fazendo-a arfar. Pensara que só iria até ali, mas ele mostrou-lhe que se enganara. Ele desceu ainda mais. Ela uniu as coxas com força, alarmada. De certeza que não era aquilo. Deus não tinha destruído Sodoma e Gomorra por causa de imoralidades destas? Mas era. Ele afastou-lhe as coxas para poder brincar com o que estava ali escondido. – Não, por favor, não. – Chiu – respondeu-lhe no segundo antes de encostar ali a boca. Nunca fora reduzida ao silêncio com maior eficácia. Ele ceou dela. Ele jantou dela. Ele banqueteou-se nela. Sentiu-se humilhada, excitada e, depois, insuportavelmente excitada. Ele continuou a agitá-la, sem a menor consideração pelas delicadas sensibilidades dela, sem respeito pela sua vontade de manter uma discrição decorosa. Ele só parou depois de ela se vir numa explosão selvagem e morder a colcha com toda a força para não acordar a casa toda.

Mas ele ainda não tinha terminado. Afastou-lhe as pernas de uma maneira muitíssimo indecente, levantou-a pelo rabo e entrou nela. Céus, o tamanho e a força dele! Por um momento, ficou paralisada pela lembrança daquela dor excruciante. Mas não sentiu o menor desconforto. Todo ele foi destreza, paciência e controlo. E ela descobriu que queria mais. Mais dele, mais prazer, mais daquele acasalamento que a deixava atordoada. – Abra os olhos – ordenou. Não tinha a mínima noção de ter fechado os olhos de novo, para sentir com maior acuidade o que ele lhe estava a fazer, as estranhas e viciantes sensações de se sentir preenchida até à borda por ele. – Abra os olhos e olhe para mim. Obedeceu. Ele saiu e voltou a penetrá-la, lenta, lentamente, cada vez mais e mais fundo. E quando ela já pensava que ele não conseguiria ir mais fundo, ele foi. Ela ofegou de prazer pela depravação daquilo tudo, ele a possuí-la e os olhos dos dois presos uns nos outros. – Nada de fingimentos – disse ele, baixinho. – Vê quem é que está a fodê-la? Com um sacão, penetrou-a de novo. Ela não foi capaz de responder. Só foi capaz de arquejar uma outra vez. Ali por cima dela ele era um deus, poderoso, bonito, maior do que a vida. A luz fazia sobressair o louro do seu cabelo. As sombras desenhavam o contorno perfeito do corpo dele. A luz e a sombra convergiam-lhe nos olhos, luxúria brilhante, zanga escura e uma outra coisa. Uma coisa completamente diferente. Reconheceu-a por a ter visto tantas vezes no espelho: uma sombria e austera solidão. As mãos dela, que tinham estado enclavinhadas nos lençóis, percorreramlhe os braços.

– Nunca fingi que fosse outra pessoa. Agora era a vez de ele fechar os olhos, fazer caretas e arquejar. Ela seguiulhe o exemplo e sentiu, sentiu, sentiu. Vagas de caos avolumaram-se e uniramse. Dentro dela ocorreu uma implosão. Estava ainda a sentir os espasmos subsequentes quando ele perdeu o controlo. Enfiou-se nela com força suficiente para pôr a navegar um navio transatlântico. E arqueou as costas e tremeu como se sentisse dores, dores agudas, de cortar a respiração. Abriu de novo os olhos e viu-o a olhar para si, como se ela fosse um tesouro amaldiçoado. Ergueu uma mão e percorreu-lhe uma sobrancelha. – Agora és minha – disse, baixinho. Ela estremeceu. Tarde se apercebeu do sangue na ligadura no braço dele. Recomeçara a sangrar. Do esforço. – O seu braço – disse, trémula. Ele deitou uma olhadela rápida ao penso, depois baixou-se e mordiscou-lhe o queixo. – Como se eu fosse capaz de me afastar de si, minha cara Lady Vere. Reparou que me esqueci de interromper? Eu também não reparei. Achei que não podia pôr em risco o destino da humanidade. Ela corou. Quem era ele? Não era o homem atarantado e tagarela com quem casara. As suas palavras eram afiadas como punhais, a forma de fazer amor tão perigosa como Waterloo. – O seu braço – insistiu, com as faces a arder. Ele suspirou.

– Muito bem. Seja como quer. – Feche os olhos – pediu, assim que se separaram. – Por favor. Ele suspirou de novo e fez o que lhe pedia. Ela enfiou a camisa e cortou mais tiras de um outro saiote. Do armário dele retirou um lenço limpo, espalhou-lhe o unguento e fê-lo sentar-se para poder ligar-lhe o braço convenientemente. – Lave-se com uma solução de água destilada e vinagre de vinho tinto – aconselhou-a, enquanto ela lhe atava as pontas da nova ligadura. – Pode comprar o necessário numa loja de um boticário chamada McGonagall, não muito longe de Piccadilly Circus. Ela olhou para ele, sem perceber muito bem o que estava a dizer-lhe. – Não quer procriar com um lunático, pois não? – perguntou, num tom amável, mas ela não deixou de perceber a sugestão azeda por trás do que dizia. O homem que pensava conhecer nunca se referiria a si próprio como lunático. Fora sempre coerente e fervoroso nos seus autoelogios. Teria sido tudo uma farsa? – Água e vinagre, é o que as mulheres fazem quando não querem conceber? – Entre outras coisas. – Parece muito informado acerca destes assuntos. – Sei que baste – respondeu-lhe, deitando-se. – Esconda tudo debaixo da cama e, de manhã, mande chamar o Eugene Needham. Tem consultório em Euston Road. E ele também tratará de se ver livre disso tudo. Ela empurrou a trouxa para baixo da cama e apagou as luzes. Depois, ficou de pé no meio daquele quarto mergulhado na escuridão e tentou perceber o que acontecera, identificar o momento preciso em que o marido se transformara

naquele estranho poderoso e ligeiramente aterrorizador. – Vá – ordenou-lhe da cama. – Está… ainda está zangado comigo? – Estou zangado com o Destino. A senhora não passa de uma substituta conveniente. Agora, vá. Apressou-se a sair.

14 jardim encantador – murmurou a tia Rachel. Nas traseiras da casa de –Q ueLorde Vere havia um jardim privado a que só os habitantes das casas ali em redor tinham acesso, uma situação que, segundo Mrs. Dilwyn, era ao mesmo tempo fortuita e invulgar. Naquele espaço fechado cresciam vários plátanos elegantes, com copas que atingiam os vinte metros e proporcionavam belas sombras aos que passeavam pelos caminhos empedrados que cortavam um relvado bem aparado. Ali perto, uma fonte de três planos, italiana, borbulhava agradavelmente. Mrs. Dilwyn prescrevera uma dose diária de ar fresco. Elissande, determinada que estava a fazer o melhor pela tia, preparara-se para se lançar numa longa tirada de persuasão e lisonjas para conseguir extrair a tia Rachel da cama. Para sua surpresa, ela anuíra logo a vestir um vestido de dia azul, simples. Elissande ajudara-a a sentar-se na sua cadeira e depois um par de lacaios de um tamanho impressionante carregara a cadeira, com a tia Rachel sentada, até ao jardim. Do alto das copas, por cima delas, soltou-se uma folha. Elissande abriu a mão, apanhou-a e estendeu-a à tia. A tia Rachel olhou com reverência para aquela simples folha. – Que bonita – disse. Elissande esqueceu-se da resposta que ia dar ao ver uma lágrima correr pela face da tia. Ela virou-se para a sobrinha. – Obrigada, Ellie. Elissande foi assaltada por uma vaga de pânico. Este abrigo, esta vida, este refúgio verde no centro de Londres, a segurança que a tia Rachel pensava ter

encontrado, era tão fugaz como uma bola de sabão. Por amor, não há nada a que não me atreva. Nada. Saída da boca do tio, amor era uma palavra assustadora. Para recuperar a esposa, estava pronto a arriscar a vingança do próprio inferno. Temo que algo horrível aconteça ao belo idiota que afirmas amar tanto. O belo idiota que a reclamara por inteiro na escuridão que precedera a madrugada. Só que ele não fora nada idiota, pois não? Zangara-se, fora descortês e a sua linguagem fora absolutamente chocante. Mas não fora estúpido. Sabia perfeitamente o que ela lhe fizera, o que levantava a questão: seria que, tal como ela, ele também fingia ser quem não era? O pensamento foi um gancho cravado no seu coração, puxando-o em direções imprevisíveis. O brilho dourado da pele dele. O prazer eletrizante dos seus dentes no ombro dela. A excitação sombria da carne dele, firmemente cravada na sua. Mas, mais do que tudo o resto, o rude poder que exsudava. Tire a roupa. Queria que o dissesse outra vez. Levou a mão à garganta e, com a ponta do dedo, carregou na veia que pulsava rapidamente. Seria possível, seria de todo possível, que a escolha mais desesperada da sua vida resultasse num homem tão inteligente como Ulisses, com o aspeto de Aquiles e que fazia amor como Páris…? E o tio tinha ameaçado estropiá-lo definitivamente.

Só lhe restavam dois dias. Needham apareceu, tornou a ligar o braço de Vere e saiu, levando consigo o maço de cartas que Vere retirara da casa de Palliser e a trouxa de roupa ensanguentada que ficara debaixo da cama de Vere. Tudo sem uma única palavra. O bom, velho Needham. Por volta do meio da tarde, Vere foi capaz de se levantar sem desejar encostar imediatamente uma pistola à cabeça e premir o gatilho. Tocou, a pedir chá e torradas. No entanto, quando alguém deu uma pancada na porta, a pessoa que entrou foi a mulher, com um sorriso na cara. – Como se sente, Penny? Não, não era a pessoa que ele desejava ver, não quando a única coisa de que se recordava daquelas horas antes da madrugada, em casa, era a sua desesperada ejaculação no interior daquele corpo ansioso. Deduzia que ela o tinha ajudado a tratar da ferida, e que lhe devia ter dado instruções para mandar chamar Needham, mas como teriam passado de uma coisa tão marcadamente pouco sensual como fazer o penso a uma ferida de bala para o tipo de cópula desenfreada cujas memórias que lhe acudiam à cabeça o faziam corar a ele? Bom, não havia nada a fazer se não assumir uma atitude descarada. – Oh, olá, minha cara. E que ar fresco e encantador que tem hoje. O vestido era branco, um pano de fundo puro e modesto para o seu sorriso franco. A saia do vestido, justa ao corpo como ditava a moda, colava-se ferozmente às ancas dela antes de descer, numa coluna mais decorosa, até ao chão. – Tem a certeza de que se sente suficientemente bem para comer? – Absoluta. Estou esfomeado.

Ela bateu as palmas. Entrou uma criada, que pousou um tabuleiro de chá, fez uma pequena reverência e saiu. A mulher serviu o chá. Como está o seu braço? – Dói. – E a sua cabeça? – Dói. Mas está melhor. – Bebeu avidamente o chá que ela lhe estendeu, assegurando-se de que derramava parte dele no roupão. – Sabe o que me aconteceu? Ao meu braço. A minha cabeça dói-me sempre depois de beber muito uísque. – Bebeu rum – corrigiu-o. – E disse que tinha sido alvejado pelo cocheiro de um fiacre. Que estupidez da sua parte. Nunca deveria ter referido a arma. – Tem a certeza? – perguntou. – Eu não suporto rum. Ela serviu uma chávena de chá para si própria. – Onde esteve ontem à noite? – perguntou baixinho, num interesse conjugal. – E o que andava a fazer na rua tão tarde? Viera interrogá-lo. – Não me lembro. Numa atitude muito deliberada, ela mexeu o açúcar e as natas no café. – Não se lembra de terem disparado contra si? Bom, não podia ser. Ele era muito melhor quando estava no ataque.

– Bem, por experiência própria, a senhora devia saber bem quais os efeitos deletérios que o consumo de bebidas alcoólicas tem na retenção de memórias. – Desculpe? – Lembra-se de alguma coisa da nossa noite de núpcias? A colher dela parou. – Claro que sim… de algumas coisas. – Disse-me que dos meus lábios pingava cera de abelhas. Nunca ninguém me tinha dito que dos meus lábios pingava cera de abelhas. Há que dizer a seu favor que ela levou a chávena aos lábios e bebeu sem se engasgar. – Está a querer dizer mel? – Como? – É mel, não cera. – Certo, foi o que eu disse. Mel. «Tens o mel e o leite debaixo da língua», foi o que me disse. «E o odor das tuas vestes lembra o odor do cedro de…» Deixe-me pensar, de onde era? Sinai? Síria? Damasco? – Líbano – disse ela. – Precisamente. E, claro, assim que eu a despi – suspirou, numa satisfação exagerada – proporcionou-me uma visão muito mais agradável do que a própria senhora do Delacroix que o seu pai roubou. Acha que podia posar assim para o Freddie? E também nada de telas minúsculas, tamanho real, insisto, e podíamos pendurar a tela na sala de jantar, não era? – O que seria quase um atentado ao pudor. O sorriso dela começava a ganhar aquele brilho exagerado que ele viera a

conhecer tão bem. Ótimo! Devia estar no bom caminho. – Maldição! Seria muito divertido exibi-la aos meus amigos. Iam babar-se todos. Olhou-a com dois olhos redondos que nem sóis. – Ora, ora, Penny – disse ela, com uma levíssima nota de tensão na voz. – É feio fazer inveja a quem não tem a nossa sorte. Mais feliz, ele comeu quatro torradas. Quando viu que ele já tinha terminado, ela prosseguiu: – O doutor Needham disse-me que o seu penso devia ser mudado durante a tarde e, outra vez, antes de ir para a cama. Vamos? Ele enrolou a manga do roupão. Ela examinou a ferida e mudou a ligadura. Enquanto ele tornava a baixar a manga, ela interrompeu-o e perguntou: – O que foi isto? Os dedos dela indicavam uma série de marcas em meia-lua, mesmo por cima do cotovelo. – Cá para mim, são marcas de unhas. – O cocheiro também lhe deitou as mãos? – Hmmm, parecem mais ter sido feitas por uma mulher. No ardor da paixão, sabe. Agarra-se aos braços do homem e os dedos dela enterram-se nos tendões dele. – Sorriu-lhe. – Aproveitou-se de mim enquanto eu estive mentalmente incapacitado, Lady Vere? Ela corou. – Foi o senhor que quis.

– Fui? Céus, podia ter sido desastroso, sabe. Quando um homem está assim tão bêbado, por vezes, não consegue pô-lo de pé. E, às vezes, também não consegue ir até ao fim. Ela levou a mão à garganta. – Bom, o senhor não teve qualquer problema em nenhum dos casos. Empertigou-se. – O que é uma homenagem aos seus encantos, milady. Se bem que, há que dizê-lo, se vamos por este caminho, o tamanho da família vai aumentar muito depressa. Ideia que o deixava petrificado. – E deseja aumentar o tamanho da família? – perguntou como se a ideia só então lhe tivesse ocorrido. – Mas é claro que sim! Qual é o homem que o não quer? Por Deus e pela pátria – exclamou, enquanto analisava as cartas que tinham chegado juntamente com o chá. Quando levantou os olhos, ela estava com uma expressão muito estranha. Ficou instantaneamente preocupado, com medo de ter dito qualquer coisa que o desmascarasse, mas não percebia o quê. – Oh, veja, o Freddie convidou-nos para tomar chá no Savoy. Aceitamos o convite? – Sim – respondeu-lhe com um sorriso que nunca lhe vira. – Por favor, sim. Do terraço do Hotel Savoy gozava-se uma vista panorâmica do Tamisa, vendo-se a Agulha de Cleópatra apontada para o céu, mesmo por trás dos jardins do hotel. Nas pistas do rio havia um tráfico intenso e regular de barcos a vapor e barcaças. Pelos padrões de Londres, o céu estava limpo, mas, apesar disso, parecia ainda um pouco enfarruscado aos olhos de Elissande,

que ainda não se habituara ao ar perpetuamente acinzentado da grande metrópole. Lorde Frederick viera acompanhado de Mrs. Canaletto, uma amiga de infância dos dois irmãos, que a tratavam pelo nome próprio. Era vários anos mais velha que Elissande, mundana, nada dada ao mesmo tipo de exuberantes entusiasmos de Lady Kingsley e os seus companheiros, mas, mesmo assim, amável e simpática. – Já foi ao teatro, Lady Vere? – perguntou Mrs. Canaletto. – Não, lamento, mas ainda não tive o prazer. – Então tem de pedir ao Penny que a leve já a um espetáculo no Teatro Savoy. O marido de Elissande olhou para Mrs. Canaletto na expectativa e indagou: – Só uma recomendação, Angelica? Costumavas dizer-nos como devíamos fazer tudo. Mrs. Canaletto riu-se. – Mas isso é porque vos conheço desde os três anos, Penny. Quando eu já conhecer Lady Vere há vinte e seis anos, podes ficar descansado que também lhe direi como deve fazer tudo. Elissande perguntou a Mrs. Canaletto se, durante a sua estada em Itália, tinha visitado a ilha de Capri. Mrs. Canaletto disse que não, mas tanto Lorde Vere como Lorde Frederick sim, durante uma viagem pelo continente que tinham feito juntos, depois de Lorde Frederick ter acabado os seus estudos em Oxford. Lorde Vere falou sobre as paisagens que tinham visto durante a viagem e Mrs. Canaletto foi-o corrigindo, bem-disposta, ao longo da descrição: o fabuloso castelo de Neuschwanstein, na Bulgária, construído pelo louco conde Siegried («É na Baviera, Penny, e foi construído pelo rei Luís II, que pode ou

não ter sido louco»), a Torre Inclinada de Sienna («Pisa») e, em Capri, a Gruta Roxa («a Gruta Negra, Penny»). – Era a Gruta Negra, a sério? – A Angelica está a meter-se contigo, Penny – disse Lorde Frederick. – É a Gruta Azul. Sem se deixar intimidar, o marido de Elissande prosseguiu. Enquanto foi falando, deixou cair o lenço dentro do boião da compota, derrubou o conteúdo de uma esguia jarra de flores em cima de um prato de bolinhos e conseguiu que um dos seus biscoitos fizesse um voo de três metros e fosse aterrar no meio das penas de avestruz cor de rosa de um chapéu extravagante, que alguém tinha na cabeça. Lorde Frederick e Mrs. Canaletto pareciam não dar importância nem à loquacidade, nem aos gestos desastrados de Lorde Vere. Mas as suas palavras e ações pareciam a Elissande um tanto excessivas, como se ele estivesse a tentar compensar o relâmpago de inteligência incisiva que deixara entrever no encontro antes da madrugada, fazendo-se parecer invulgarmente imbecil. E inepto. Para esbater a memória do absoluto controlo sobre o corpo dela, talvez? Ele chegara muito perto de a convencer de que fora um feliz acaso, muito perto. Mas depois fora demasiado longe e caíra numa óbvia contradição, talvez porque sinceramente não se lembrasse de lhe ter recomendado vivamente que tomasse medidas para evitar o crescimento da família. Depois de pescar o biscoito no fundo da sua plumagem de chapelaria, a senhora do chapéu de avestruz cor de rosa aproximou-se da mesa deles. Por instantes, Elissande pensou que ela se preparasse para dirigir palavras duras a Lorde Vere, mas este e Lorde Frederick levantaram-se e, tanto eles como Mrs. Canaletto, cumprimentaram a senhora com familiaridade. – Lady Vere, permita-me que lhe apresente a condessa de Bourkes – disse Lorde Vere. – Senhora condessa, a minha esposa.

Foi o tiro de partida de uma parada. A temporada já terminara, mas Londres era ainda um importante ponto de encontro da nata da sociedade, em viagem entre a Escócia, Cowes e as termas medicinais do continente. O marido de Elissande parecia conhecer toda a gente que era alguém. E como Lady Avery não devia ter perdido tempo em espalhar aos quatro ventos as novidades acerca do último caso que revelara, toda a gente queria ver que tipo de mulher fora apanhada com ele numa atitude escandalosa. Ele apresentou-a com um orgulho absurdo: Lady Vere dedicou-se ao bem-estar da tia. Lady Vere sabe tanto de arte moderna como Freddie. Lady Vere será certamente uma das grandes anfitriãs de Londres. Precisou de um minuto para alinhar a sua reação pela dele. Abandonou o sorriso discretamente caloroso que pensara adequado à situação e arvorou um fulgurante sorriso aberto. Lorde Vere faz brilhar uma luz minuciosa e abrangente sobre as atuais relações anglo-prussas. Lorde Vere discute, com aprumo e chama, a história da arquitetura europeia. A leitura profunda e pormenorizada que Lorde Vere fez de Ovídio ofereceu-nos horas e horas de conversas interessantíssimas. Faziam um par espantoso, no sentido mais literal do termo. As pessoas abandonavam a mesa de boca aberta, quase incapazes de regressar, cambaleantes, às suas próprias mesas. Quem diria que os talentos que refinara para defender a integridade da sua alma dos ataques do tio teriam um dia um palco tão público? Se não fosse tão bizarro, poderia mesmo achar toda a situação muito divertida. – Em geral, gostei muito de fugir. Devia tê-lo feito mais cedo. Mas, claro, assim que pude, fugi com Lady Vere – declarou o marido, logo que conseguiram sentar-se de novo. – Bem, eu penso que devíamos tê-lo feito um dia mais cedo – disse Elissande, com um risinho.

– É verdade – concordou o marido. – Não pensei nisso. Porque é que não pensei nisso? – Mas está tudo bem. Estamos aqui, casados, e não podia ser mais maravilhoso. À frente deles, Lorde Frederick e Mrs. Canaletto trocavam olhares de incredulidade bem-disposta, como se maravilhados por existir uma companheira tão perfeita para Lorde Vere que se inclinou para a frente para pegar numa outra fatia de bolo de sultanas e – que mais poderia ser? – ao fazêlo derrubou a leiteira. Elissande começava a perceber uma hábil coreografia na atitude desastrada dele, o ângulo do braço escolhido com todo o cuidado, o caminho rigoroso do gesto, o movimento calculado das costas daquela mão. Não existia um homem que ficava mais lúcido quando bêbado, apenas um homem que se tornava menos cuidadoso e, por isso, menos dissimulado. Ele, que, poucas horas antes, expressara o seu forte desagrado, assumira agora o papel de um marido estonteantemente feliz, era simplesmente um ator soberbo. Diz o roto ao nu. *** Quando chegou a casa, Lorde Vere encontrou uma mensagem de Mr. Filbert – Mr. Filbert era um dos disfarces de Holbrook. Vere mudou de roupa e vestiu uma casaca, disse à mulher que ia ao clube, encontrou-se com Holbrook e Lary Kingsley na casa por trás de Fitzroy Square e trabalhou febrilmente. Pouco faltava para a meia-noite quando regressou a casa. Elissande estava à sua espera no quarto dele. – Isto é tudo muito imprudente da sua parte – declarou, irada. – Posso recordar-lhe que na noite passada foi ferido por andar na rua até tão tarde? Ele deteve o movimento de desapertar a gravata.

– Ah, pois, esqueci-me – respondeu com uma vaga sugestão de timidez. Ela aproximou-se dele, desapertou os botões da casaca e fê-la deslizar pelos ombros dele. – Não devia andar sozinho por aí, depois de escurecer. Não confio no meu tio: ele não age de forma leal. Quando ele diz três dias, só quer dizer que ficaria felicíssimo por o raptar ao segundo e forçar-me a trocar a minha tia por si. – E trocava? Ela olhou para ele. – Não falemos de hipóteses tão desagradáveis. – Mas foi a senhora que acabou de falar nisso – disse ele, num tom fervoroso. – Pensei que queria falar nisto. Ela respirou profundamente e deu dois passos atrás. – Posso pedir-lhe um favor? – Claro. – Podemos acabar com os fingimentos? Foi assaltado por uma vaga de alarme. Olhou-a, de olhos arregalados. – Desculpe? – Estamos em casa. Os criados estão a dormir. Não está aqui mais ninguém senão nós dois – disse, impaciente. – Não precisa de continuar com esse papel. Sei que não é tão distraído como pretende ser. Com toda a certeza que não se tinha traído assim tanto. – Mas isto é absurdo! Está a insinuar que eu dou a impressão de ser

distraído, minha senhora? Faço-lhe notar que tenho uma mente brilhante e uma inteligência penetrante. Veja, as pessoas ficam muitas vezes atónitas com a perspicácia do que digo e a subtileza da minha visão das coisas. Ao longo daquele dia, ele fizera o possível e o impossível para reforçar a impressão de que era idiota. Não deveria ter sido suficiente? – Hoje de manhã fui ao boticário que me recomendou – disse ela. – Mistress McGonagall ensinou-me como me limpar depois de fazer amor para minimizar as hipóteses de dar início a uma família. Tratei disso assim que cheguei a casa. Cristo. Tinha-lhe dito aquilo tudo? Que mais lhe teria contado? – Mas… não pode fazer isso. Espera-se que a mulher, não se espera que a mulher interfira com a Natureza nesses assuntos. – Toda a história da civilização não passa de sucessivas interferências com a Natureza. Além do mais, estava a seguir as suas instruções, senhor. – Mas eu não posso ter-lhe dado tais instruções. A contraceção é pecado. Ela passou a mão pela cara. Ele nunca a vira num tal estado de clara frustração. Ficou chocado por perceber o significado daquilo: ela abandonara o fingimento dela. – Muito bem. Mantenha a sua farsa – disse. – Mas amanhã é o último dia que o meu tio me concedeu. Trata-se de um homem perigoso e eu tenho medo dele. Seria possível nós os três sairmos de Inglaterra durante algum tempo? – O céu me acuda. E para onde iríamos? Ela teve uma breve hesitação. – Sempre quis visitar Capri. Pelo menos, parecia que não lhe tinha contado nada acerca da investigação.

– Mas não há absolutamente nada que fazer em Capri: não passa de uma rocha no meio do oceano. Há pouca gente de sociedade, não há desportos, nem sequer um salão onde se possa ouvir música até onde a vista alcança. – Mas é seguro. Quando chegar o inverno, os navios vão ter dificuldades em ir do continente até lá. – Precisamente. Que horror! Vou levar-nos para a minha casa de campo dentro de poucos dias, mas a não ser isso, não tenho a mínima intenção de ir para outro sítio qualquer. Esta temporada já foi suficientemente longa. – Mas… – Devia confiar na minha sorte – insistiu ele. – Há quem diga que tenho a sorte dos loucos. É claro que fico ofendido já que fui sempre uma pessoa de uma inteligência brilhante, mas não há como negar que tenho uma sorte fora do normal. Fez bem, Lady Vere. Casou comigo. Agora, a minha sorte vai estender-se a si também. Ela apertou o cinto do roupão, num gesto brusco. – É enlouquecedor falar consigo. Ele estava apenas a tentar tranquilizá-la. Naquela noite, tinham posto as coisas em movimento, mas, de momento, ele não podia dizer-lhe mais nada. – Mas insiste em bombardear-me com esses disparates, minha cara. – Nesse caso, não fique surpreendido quando der por si drogado e sequestrado. Eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para nos manter a todos em segurança. Ele devia sentir-se irritado, já que aquele «tudo o que estiver ao meu alcance» fora o que, acima de tudo, os casara. Mas era-lhe difícil ficar muito zangado quando era o bem-estar dele que a trazia aborrecida e ansiosa. – Ah, vá lá, querida – grasnou. – Ainda só chegámos ao terceiro dia da

nossa lua de mel e já andamos às turras. Ela ergueu as mãos ao céu. – Seja. Vamos mudar o penso. Ajudou-o a despir o colete. Ele ia limitar-se a enrolar a manga da camisa, mas ela quis que a despisse também. – Se não lhe tirar a camisa, como é que lhe vou vestir a camisa de noite depois? – perguntou num tom ainda bastante irado. – Se o fizer sozinho, vai esforçar a ferida. Evidentemente que a ideia de que ele poderia ir para a cama nu nunca lhe ocorrera. Assentiu. Após ter-lhe mudado as ligaduras, ela foi ao quarto de vestir dele e regressou com uma camisa de noite. Mas viu qualquer coisa no corpo dele que a fez enrugar a testa. Apontou para o lado esquerdo do tronco. – O que é aquilo? Ele baixou os olhos sobre as cicatrizes. – Nunca tinha reparado nelas? – Não. Como as arranjou? – São do acidente com o cavalo. – Com o braço são desenhou a trajetória de alguém a ser cuspido do cavalo e a cair com força no chão. – Toda a gente sabe que tive um acidente com um cavalo. – Nunca ouvi dizer. – O que é muito estranho, se considerarmos o facto de ser minha mulher. Bem, aconteceu quando eu tinha dezasseis anos, não muito tempo depois de ter herdado o título. Eu estava a passar férias em casa da minha tia-avó Lady Jane, no Aberdeenshire. Uma manhã fui montar, dei um trambolhão do cavalo,

parti umas costelas, sofri uma concussão e tive de ficar de cama durante várias semanas. – Parece ter sido grave. – Foi. Foi – garantiu-lhe. – Claro que há por aí gente estúpida que acha que eu caí de cabeça e estraguei o meu cérebro. Mas é uma mentira total. Se alguma coisa mudou, desde o acidente, é que fiquei mais esperto. – Hmmm, porque será que pensam tal coisa? – interrogou-se. – Houve testemunhas? Que mulher esperta. – Testemunhas? O que quer dizer? – Quer dizer, vejo que ficou ferido no tronco. Mas onde estão as provas da concussão? Quem foi o médico que o assistiu? O médico que tratara dele fora Needham, sem tirar nem pôr. Mas ele não ia dizer-lhe tal coisa. – Ah… – Então, é a sua palavra e só a sua palavra em como houve uma concussão grave. – E porque haveria de mentir acerca de uma coisa destas? – Para passar credivelmente por idiota, se não o fosse já. – Mas acabei de lhe dizer que não teve consequências desagradáveis. Era um rapaz brilhante, sou um homem brilhante. Lançou-lhe um olhar de zanga. – É verdade, o seu brilho é estonteante.

– Então, não se preocupe quando lhe digo para não se preocupar – rematou, baixinho. Ela soltou um suspiro e levantou a mão. Com os dedos percorreu uma das cicatrizes, num toque ardente. Ele bocejou e afastou-se. – Peço-lhe que me desculpe, mas estou a dormir em pé. Nas suas costas, ela murmurou: – Esta noite, não precisa que eu o compense? As palavras dela atingiram em cheio as suas partes privadas. Cerrou os dentes, combatendo a vaga de desejo. – Perdão? – Esqueça – respondeu ela ao fim de um instante. – Boa noite. – Boa noite, minha querida.

15 Ellie – perguntou a tia Rachel, acanhada –, que possam existir –A chas, médicos que saibam co… como afastar-me do láudano? Elissande precisou de algum tempo para tomar consciência de que a tia falara e mais algum para perceber o que a tia Rachel dissera. Afastou-se da janela, onde estivera a olhar, sem ser vista, para o jardim. A tia Rachel estava a tomar o pequeno-almoço no seu quarto, cheio de luz e encantador. Ainda lhe traziam as refeições à cama. Mas ao fim de poucos dias longe de Highgate Court, já começava a alimentar-se outra vez sozinha. Na tarde da véspera, tinha pedido que lhe abrissem a janela para poder escutar o canto dos pássaros. Na noite anterior, depois de ter jantado, indagara com timidez sobre a possibilidade de comer um pedacinho de chocolate, caso houvesse na casa. Elissande não fazia a menor ideia, mas Mrs. Dilwyn tivera o prazer de informar Mrs. Douglas que, na realidade, Sua Graça era um grande apreciador de chocolate francês e que havia sempre algum disponível. Quando levara o pedacinho de chocolate à boca, a expressão da tia Rachel refletira uma alegria tão pura que Elissande tivera de se voltar para esconder as lágrimas. E, nessa manhã, quando Elissande entrara no quarto, a tia Rachel dissera: – Que bonita estás, minha querida. – A última vez que a tia estivera suficientemente bem para fazer um elogio a Elissande fora oito anos atrás, antes da batalha de bolas de neve naquele fatídico dia de Natal, antes do láudano. Não restavam dúvidas: a tia Rachel estava a melhorar em todos os aspetos. Demasiado depressa. Se ela se tivesse mantido inerte e sem reação, talvez não fizesse uma diferença tão grande. Mas voltar a cair nas garras de Edmund Douglas agora… – Ellie? Sentes-te bem, Ellie?

Elissande engoliu em seco. Aproximou-se da beira da cama da tia e sentouse. – Se calhar, vou ter de a esconder. A tia Rachel deixou cair o garfo. – É, é… é o teu tio… – Ele ainda não está aqui, mas é apenas uma questão de tempo. – Não obstante as tentativas do marido de a acalmar, Elissande passara a noite às voltas na cama. – É muito fácil ele localizá-la nesta casa. Escolhi um hotel para si. Vai ficar a uns minutos daqui e eu irei ter consigo tantas vezes quantas consiga. A tia Rachel apertou a mão de Elissande. – E tu… tu e o teu marido ficam bem? – Ficamos. Não temos medo dele. Apesar de desejar que o marido tivesse um bocadinho mais de receio. Era perigoso subestimar o tio. – Quando estiver vestida, vou levá-la a uma modista. Entramos pela frente e saímos pelas traseiras, apanhamos uma carruagem de aluguer e vamos para o Hotel Langham. Levo-lhe as suas coisas mais tarde; primeiro, tratamos de a pôr em segurança. Está a seguir-me? A tia Rachel assentiu, com energia. – Ótimo, agora… Ouviu-se uma pancada na porta. – Sim? – perguntou Elissande. – Sua Graça, Mistress Douglas – disse o lacaio, segurando uma bandeja de

prata. – Mistress Douglas, está cá um cavalheiro, de nome Nevinson, à sua procura. Pediu-me para lhe entregar esta mensagem em pessoa. E deseja saber se o pode receber, minha senhora. A tia Rachel, já demasiado paralisada de terror para responder, olhou para Elissande. Elissande agarrou na mensagem e quebrou o selo de lacre do envelope. Cara Mrs. Douglas Sou o detetive Nevinson, da polícia metropolitana, num assunto urgente em relação ao seu marido, Mr. Edmund Douglas. Peço-lhe que me receba de imediato. Um seu criado, Nevinson. Elissande cerrou os punhos. Seria o tio que estava a mandar a polícia perseguir a tia? Não, não tinha razão para isso. A esposa de qualquer homem dispunha de absoluta liberdade de viajar para Londres durante uma semana. Então, devia ser uma armadilha. O detetive era um impostor, um cavalo de Troia enviado para abrir uma brecha na defesa daquela casa, uma vez que não era possível assaltá-la de outra maneira. – Antes de mais nada, entregue esta mensagem a sua senhoria e peça-lhe que a leia de imediato – ordenou ao lacaio. – A seguir, faça entrar Mister Nevinson para a salinha e ponha-o confortável. Vamos já recebê-lo. O lacaio saiu para ir cumpir as ordens dela. A tia Rachel agarrou o braço de Elissande. – Tens a certeza? – perguntou, numa voz trémula.

– Eu vou recebê-lo. A tia aproveite o seu pequeno-almoço. Lorde Vere está em casa e não vai deixar que a raptem mesmo debaixo do nariz dele. Pelo menos, rezava para que assim fosse. Por via das dúvidas, fechou a porta do quarto da tia à chave. – Muito obrigado por me receber, Lady Vere – agradeceu Nevinson. Envergava um fato de passeio elegante, de estambre azul, era um homem de meia-idade, com olhos penetrantes e gestos eficazes, muito dentro do género oficial de justiça competente e de confiança, e precisamente o tipo de vigarista que ela contrataria se quisesse raptar a tia. Arvorou o seu sorriso habitual. – Em que posso ser-lhe útil, detetive? – Mistress Douglas virá reunir-se-nos, minha senhora, se me permite a pergunta? – Mistress Douglas não está em casa. Mas terei o maior prazer em transmitir-lhe a sua mensagem. Nevinson hesitou. – Peço-lhe que me desculpe, minha senhora. O que tenho a dizer é da maior delicadeza. Não será possível mesmo encontrar-me com Mistress Douglas? – Lamento – respondeu Elissande, ainda a sorrir –, mas temo que não seja possível. O homem olhou para Elissande. – E porquê, Lady Vere? Elissande pigarreou e, numa atitude de exagero, percorreu com o olhar a salinha vazia. A seguir, num sussurro teatral, continuou:

– Sabe, senhor, há uns dias do mês em que ela sofre, sofre muito. Oh, como ela sofre. Poderia mesmo dizer que está na mais profunda agonia. Tornou-se óbvio que Nevinson não estava à espera daquela resposta em particular. Corou intensamente e debateu-se para recuperar a compostura. – Nesse caso, ficar-lhe-ia muito grato que passasse a mensagem a Mistress Douglas. – Pigarreou por sua vez. – Odeio ser o mensageiro da desgraça, mas Mister Douglas foi preso hoje de manhã por suspeita de homicídio. Elissande piscou os olhos. – Está a brincar, detetive? – Lamento, mas não, milady. Não estou. Temos provas suficientes para crer que foi o responsável pela morte de um tal Stephen Delaney, um cientista a quem ele roubou um método inédito de sintetizar diamantes. Porque haveria o tio de matar um homem por um método de sintetizar diamantes quando já tinha acesso a vastas quantidades de diamantes naturais? A acusação era demasiado ridícula. Tinha de ser um embuste. Quanto tempo conseguiria segurar Nevinson na salinha? Conseguiria enviar uma mensagem ao marido, pedindo-lhe que fizesse desaparecer a tia de imediato? Estava a ficar cheia de suores frios. Não podia entrar em pânico. Precisava de pensar com clareza e eficácia. O que era aquilo? Do lado de fora da sala, alguém cantava uma canção familiar. – «Tenho um tareco! E gosto muito dele. Mas prefiro um ão-ããããõoo! Ão-ão, ão-ão!» Viu-se forçada a esconder um sorriso quando o marido abriu a porta e enfiou a cabeça pela abertura. – Bom dia, minha querida. Que encantadora está, como de costume –

gorjeou. Graças a Deus! Nunca ficara tão feliz por ver alguém. Lorde Vere, num fato desleixado, com o cabelo ainda emaranhado do sono, virou-se para o visitante de Elissande. – E é o senhor, detetive Netherby? – perguntou num tom de surpresa. – Nevinson, Sua Graça. Teria detetado uma careta na face de Nevinson? – Eu sabia! – exclamou Lorde Vere, entrando na sala. – Nunca me esqueço de uma cara ou de um nome. Foi o senhor o detetive responsável no caso Huntleigh. – No caso Haysleigh. – Foi o que eu disse. Quando se descobriu que Lady Haysleigh tinha simulado a sua própria morte para escapar a um casamento anterior e casar com Lorde Haysleigh e, depois, tentou assassinar o primeiro marido quando ele chegou à propriedade dos Haysleigh. – Isso, senhor, seria o enredo de um romance de Mistress Braddon.14 O irmão mais novo de Lorde Haysleigh, Mister Hudson, tentou envenenar Lady Haysleigh para incriminar o irmão por homicídio e assim ficar ele com o título. – A sério? Sempre pensei que esse fosse o enredo de um romance de Mistress Braddon. – Lorde Vere sentou-se e aceitou a chávena de chá que Elissande lhe ofereceu. – Obrigado, minha querida. Ora bem, detetive, eu tinha a impressão que o caso Haysleigh tinha sido resolvido há vários anos. – E foi, senhor. – É um tanto estranho então vê-lo aqui. Não sabia que mantínhamos relações

sociais. Nevinson cerrou os dentes com força. – Não tenha receio, milorde. Estou aqui para tratar de um assunto estritamente profissional. – E que assunto estritamente profissional vem a ser esse? Garanto-lhe que não tenho nada que se pareça com atividades suspeitas. – Estou certo que não, senhor. Estou aqui para falar com Mistress Douglas a respeito do marido. Elissande estivera tão entretida a ver o marido brincar com Nevinson que só à referência ao tio percebeu subitamente o significado do que fora dito à sua frente. Nevinson não era um impostor. Era um detetive a sério, em missão oficial. E não lhe estava a mentir. Como que para reforçar o que acabara de perceber, o detetive Nevinson repetiu a Lorde Vere, quase palavra por palavra, o que dissera a Elissande. O seu tio era um assassino. A cabeça explodiu-lhe em mil bocadinhos. Não era uma sensação terrível: bizarra e desconcertante, sim, mas não terrível. Seria um enorme escândalo, não havia como evitá-lo. Mas, ao mesmo tempo, que tremendo golpe de sorte! O tio fora preso: já não estava em posição de forçar a tia Rachel a regressar para junto dele. Além disso, uma vez julgado e condenado, iria ficar a apodrecer na prisão durante muito, muito tempo. Talvez até fosse enforcado. E Elissande e a tia Rachel ficariam livres, completa e gloriosamente livres. Mal ouviu o marido quando ele declarou:

– Mas, claro, o senhor e os seus homens estão perfeitamente à vontade para fazer uma busca à mansão, de cima a baixo. Não se opõe, pois não, minha querida? – Perdão? – É o propósito da visita do detetive Nevinson. Trata-se de um ato de delicadeza da parte dele, pois penso que já não precisa de autorização para efetuar buscas em Highgate Court. – Sim, claro. Terá toda a nossa colaboração. Nevinson agradeceu-lhes e pôs-se de pé, preparando-se para sair. Ela teve de fazer um enorme esforço para se conter e não começar aos gritos de profunda alegria quando se despediu de Nevinson. Assim que ele saiu, ela deu um enorme salto, abraçou o marido com força e correu ao andar de cima, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo para dar à tia a notícia da libertação das duas. O principal campo de investigação de Stephen Delaney fora, de facto, a síntese artificial de diamantes, como ficou amplamente demonstrado pela caixa com documentos que Lorde Yardley enviara a Holbrook, aparentemente, o processo que Vere lera não passava de um mero excerto. Enquanto Vere dormia sob a influência do rum, Holbrook decifrara o código utilizado no dossiê de Douglas. Na noite anterior, usando o guia de Holbrook, Vere decifrara as folhas que estavam no dossiê, cujo texto era igual ao das notas soltas no bloco de apontamentos do laboratório de Delaney. (Ao que parecia, Delaney tinha um sistema para tomar notas num primeiro bloco; de seguida, o assistente copiava as notas e, por segurança, guardava o bloco que copiara longe do laboratório.) Por isso, apesar de Douglas ter roubado e, como tudo levava a crer, subsequentemente destruíra o primeiro bloco de Delaney, a existência do duplicado estabelecia clara e inequivocamente a ligação entre o dossiê de Douglas e a investigação de Delaney. Melhor ainda: uma nota escrita na margem de uma das páginas do dossiê de

Douglas, que, uma vez decifrada, dizia, Não devia ter-me visto livre do sacana antes de conseguir duplicar os resultados dele. Mais do que o suficiente para deter e acusar Douglas. E o bastante, a juntar à investigação em curso sobre os seus outros crimes e uma boa dose de pressão de Yardley – em resposta ao pedido de Vere – para manter Douglas preso sem fiança. De repente, Vere sentiu-se cansado. Acontecia-lhe sempre, no final de cada caso, sentir este profundo cansaço. Todavia, desta vez, parecia-lhe ainda mais incapacitante. Talvez porque, por cima da sua cabeça, a mulher estava literalmente aos saltos de alegria e o impacto dos pés dela no chão reverberavam através do teto. Os objetivos que tivera para se casar tinham sido alcançados: estava em segurança e era livre, tal como a tia. Ele deixaria correr mais algum tempo, para que Douglas fosse julgado e condenado, e, então, pediria a anulação. Era ainda possível, ou, pelo menos, assim cria, reparar os estragos que ela causara. Quando tivessem entre os dois tempo e distância suficientes, o rosto e os sorrisos dela deixariam de se imiscuir nas suas fantasias de tranquilidade e paz. Nessa altura, quando desejasse uma simples camaradagem, teria uma simples camaradagem, bem como todo o conforto fácil que a acompanhava. As emoções que Lady Vere invocava eram demasiado sombrias, demasiado fortes, demasiado perturbadoras. Não as queria. Não queria a frustração, a luxúria ou os perigosos desejos que estimulava. Pela sua parte, ele só queria que as coisas regressassem ao que eram, antes de os seus caminhos se cruzarem: uma vida interior relaxante, confortadora, apaziguadora, fortemente afastada das realidades da vida. A exemplo de Mrs. Douglas e o seu láudano. Serviu-se de dois dedos de uísque e engoliu-o de um trago. No andar de cima ela tornou a saltar. Sem dúvida que estaria a rir e a chorar ao mesmo tempo, leve de alegria e alívio, sabendo que o seu pesadelo chegara

finalmente ao fim. Os pesadelos dele teriam de continuar. – Deixa-me que te leia uma passagem do meu diário, com a data de doze de abril de mil oitocentos e oitenta e quatro – disse Angelica. Pigarreou dramaticamente. «Na margem do ribeiro das trutas, eu lia e o Freddie pintava. O Penny lançou-se numa conversa com o vigário, que andava a passear, uma coisa qualquer acerca dos Gnósticos e do Concílio de Niceia.» Levantou os olhos. – Valha-me Deus, lembras-te de como o Penny era inteligente? – Lembro – respondeu Freddie. Mas nunca se lembrava sem um eco de tristeza. – Pelo menos, agora está casado e feliz. A mulher parece achá-lo pouco menos do que milagroso. – O que me deixa feliz. Gosto da maneira como ela olha para ele: há muita coisa boa e admirável no Penny. Angelica fez deslizar um dedo ao longo da borda da encadernação do diário: – Mas? – perguntou. Ele sorriu. Ela conhecia-o por dentro e por fora. – Tenho de admitir que estou um pouco invejoso. Costumava pensar que, se acabasse um velho solteirão, pelo menos, teria a companhia do Penny. – Poderás sempre ter a minha companhia – disse ela. – Será como voltarmos de novo a ser crianças, só que com menos dentes. De repente, veio-lhe à memória uma história com menos dentes.

– Lembras-te daquela vez em que, por acidente, parti o par de óculos favorito do meu pai? – Foi da vez em que eu roubei os da minha mãe para os substituir e ficámos à espera que ele não reparasse? – Sim, foi dessa. A minha mãe e o Penny estavam fora, não sei onde, e eu fiquei morto de medo. E tu sugeriste que arrancássemos os teus dentes que estavam a abanar para eu deixar de pensar nos óculos. – A sério? – riu-se. – Já não me lembrava dessa parte. – Os teus dentes novos já tinham saído. E os velhos estavam a abanar tanto que oscilavam como uma corda de roupa lavada ao vento. Andava toda a gente atrás de ti, a dizer-te que tirasses os dentes de leite, mas tu mantiveste-te inflexível e ninguém conseguiu chegar perto deles. – Deus do céu. Já me lembro de qualquer coisa. Eu dormia com um lenço atado sobre a boca para que a minha governanta não conseguisse deitar-lhes a mão. – Fiquei tão surpreendido que me deixasses a mim que me esqueci completamente dos óculos. Nessa tarde, arrancámos-te quatro dentes. Ela dobrou-se, às gargalhadas. – Escuta, o melhor é agora: o meu pai deixou cair os óculos da tua mãe e pisou-os antes de os pôr e perceber que não eram os óculos certos. Deve ter sido uma das poucas vezes em que a minha falta de jeito não meteu alguém em sarilhos. O alívio que foi, meu Deus. – Bem, uma coisa é certa: quando for velha, não te vou deixar arrancar nenhum dos meus dentes. Ele ergueu a chávena de café numa saudação.

– Percebido. Mesmo assim, ficarei encantado por ter a tua companhia quando for um velho caquético. Ela devolveu-lhe a saudação, de olhos brilhantes e, de repente, ele apercebeu-se, pela primeira vez, de como era privilegiado por a conhecer desde sempre. Às vezes, tomamos as melhores coisas da vida por garantidas. Nunca tomara consciência do quanto dependera incondicionalmente de Penny antes de o acidente do irmão alterar tudo. E nunca considerara o papel fulcral que a amizade de Angelica desempenhara na sua vida, especialmente durante todos os anos difíceis, vulneráveis, sob a autoridade do pai, até àquele momento, em que estava cheio de sentimentos que se arriscavam a pôr em perigo essa mesma amizade. – Bom, onde íamos nós? – Ela pousou a chávena de café e procurou o sítio no diário. – Cá vamos. «O querido velhote, evidentemente encantado com a discussão, convidou-nos a todos para tomar chá no presbitério.» – Estávamos em Lindhurst Hall, não era? – perguntou ele, que estava a começar a recordar-se de qualquer coisa. – Para a festa de Páscoa em casa da duquesa? – Precisamente. Agora, escuta isto: «O chá foi muito agradável, bem como a senhora do vigário, mas o que me chamou a atenção foi o quadro que estava na sala de estar do presbitério. Um anjo bonito, que ocupava a maior parte da tela, pairando sobre um homem, num claro estado de êxtase e veneração. O quadro chamava-se A Adoração do Anjo. Perguntei à mulher do vigário pelo nome do artista, ele assinara com as letras G. C. A mulher do vigário não sabia, mas disse que tinham comprado o quadro em Londres e que fora vendido pelo galerista Cipriani.» – O Cipriani? Aquele que nunca se esquece de nada que lhe passe pelas mãos? – Ele mesmo – respondeu-lhe, fechando o diário com evidente satisfação. – Já está fora do negócio. Hoje de manhã escrevi-lhe. Quem sabe? Talvez aprecie que lhe façamos uma visita.

– És maravilhosa – declarou numa convicção profunda. – Claro que sou – respondeu Angelica por entre o roçagar das suas saias negras quando se levantou. – Por isso, como vês, eu cumpri a minha parte do acordo. Agora, é a tua vez. Tinha as mãos transpiradas. Temia vê-la nua outra vez, mesmo em ânsias por entrar pelo estúdio e ter aquele belo corpo estendido como um festim, perante os seus olhos – um festim para um homem obrigado ao jejum. Estivera a trabalhar no quadro, com a cabeça inundada de pensamentos carnais até mesmo quando analisava cores, texturas e composição. Os seus sonhos, repletos de interlúdios eróticos desde que ela viera com a ideia do tema do retrato, tinham recentemente ganho uma perturbante nitidez. Tentou aclarar a garganta, mas sem qualquer sucesso, e aclarou-a de novo. – Imagino, então, que queiras subir para o estúdio? Freddie mandara iluminar fortemente o estúdio, na opinião de Angelica, havia demasiada luz. A sua pele teria um brilho insuportável debaixo de uma tal iluminação e ela sempre preferira que os tons da carne nas suas pinturas tivessem um ar mais natural. Havia uma máquina, não a Kodak n.º 4 de Freddie, que já antes vira, mas uma máquina de estúdio muito mais elaborada, montada num tripé de madeira, com foles para focagem e um pano negro, preso atrás. Havia também uma lâmpada flash, um painel de gaze grosseira de algodão e vários painéis brancos, dispostos em ângulos variados. – Para que é a máquina? – perguntou, quando ele reentrou no estúdio, depois de ela se ter despido e estendido. – Deve ser muito incómodo para ti posar durante tanto tempo, eu não sou um pintor rápido. Mas, assim que tenha as fotografias, posso trabalhar a partir delas e não terás de ficar a tremer ao frio.

– Não está frio. – Tinham acendido a lareira e ele arranjara várias braseiras. Ele devia estar com calor. – Mesmo assim. – Mas as fotografias não têm cor! – Talvez não, mas dão-me as sombras e o contraste e eu já sei qual é o tom certo da tua pele – respondeu-lhe e enfiou-se por baixo do pano negro. O desapontamento tomou conta dela. O retrato dela nua era a sua jogada para que ele a visse como mulher e não apenas como uma amiga. E pensara que estava a ter algum sucesso, na câmara escura ele lançara-lhe um olhar estranho, como se estivesse prestes a beijá-la. Mas assim que tivesse as fotografias, não só não a tornaria a ver nua, como nem sequer voltaria a ter necessidade dela no estúdio. – E se as fotografias ficarem com exposição a mais ou a menos? – Desculpa? – O som da voz dele chegou-lhe abafado pelo tecido negro. – E se as fotografias não ficarem bem? Ele reapareceu, vindo de trás da máquina. – Tenho meia dúzia de placas. Uma delas sai bem, de certeza. Premiu o botão do flash. O cartucho de pó de magnésio levou um instante a inflamar-se e a explosão controlada a produzir um clarão de luz branca e intensa. Ele voltou a mergulhar debaixo do pano negro. Desta vez, quando reapareceu, levantou a lâmpada do flash um pouco mais alto, fez avançar o painel de gaze de algodão cerca de trinta centímetros e ajustou o ângulo de um painel de seda branca do lado mais afastado do divã. O painel estava a uns simples sessenta centímetros da borda do divã. Quando ele ergueu a cabeça, baixou o olhar sobre ela do que parecia ser uma grande altura.

Ele lambeu os lábios de nervoso. A mão dele fechou-se sobre o painel. E, no instante seguinte, ele afastava-se já a caminho da máquina. – Vou puxar a lamela – informou. – Assegura-te de que estás na pose que queres. O coração dela pulsava com força, agitado não só pela proximidade dele como pela sua recusa em sucumbir à sedução dela. Entreabriu os lábios, ficou com a respiração mais superficial e virou a cabeça até ficar a olhar diretamente para a lente da máquina. *** Foi já no final da tarde que Elissande tomou consciência de algo estranho na reação da tia Rachel. De manhã estivera muito alegre, demasiado feliz para reparar que o silêncio da tia Rachel não era sinal de uma estupefação venturosa. Saltara que nem um macaco, apesar de os seus regressos ao chão se terem parecido mais com as patadas de um rinoceronte, e chorara até ficar alguns quilos mais magra. Não prestara atenção quando a tia lhe pedira um pouco de láudano. A tia Rachel era frágil. As notícias eram impressionantes. Claro que precisava de tempo e descanso para poder lidar adequadamente com aquilo tudo. Quando a tia Rachel adormecera, Elissande sentara-se ao lado da cama durante um bocado, segurara-lhe na mão, acariciara-lhe o cabelo, profundamente grata por a tia ter podido viver aquele dia, e por ainda ter à sua frente muitos anos de felicidade, livres de medo e sombras. Depois, fora à procura do marido, sem qualquer outra razão que não o desejo de o ver, era o mais próximo de um aliado que tinha. E, naquele dia maravilhoso e triunfante, que melhor companhia para celebrar poderia ter? Mas ele já saíra. Por isso, contentou-se em pedir ao cocheiro que a levasse numa volta pela cidade e, pela primeira vez desde que chegara, gozou o prazer

de estar em Londres. Viu grupos de jovens a andar de bicicleta no parque, percorreu todos os andares do Harrods e depois passou tanto tempo na Hatchards que as luvas ficaram imundas de tanto pó dos livros. Também foi visitar Needham, a quem pediu que lhe recomendasse um especialista em tratar a dependência do ópio. Como veio a verificar-se, o próprio Needham se considerou suficientemente versado na matéria para a poder ajudar. – Ele diz que não é preciso que implique qualquer tipo de sofrimento – informou a tia, assim que chegou. – Todos os dias toma a mesma dose de um tónico especial. Mas a quantidade de láudano em cada garrafa de tónico que vier depois vai sendo menor. O seu corpo vai adaptar-se com facilidade à nova dosagem até já não precisar de todo do láudano. «E pensar que o tio a fez passar por todos estes tormentos quando podia facilmente ter… – Agitou uma mão no ar. – É melhor esquecê-lo. Nunca mais precisamos de voltar a pensar nele. A tia Rachel não disse nada. Tremeu, como se estivesse com frio. De imediato, Elissande a embrulhou em mais um cobertor, mas a tia Rachel voltou a tremer. Elissande sentou-se na beira da cama. – O que se passa, minha querida? – Eu… eu sinto-me horrível por causa do homem que ele matou, Mister Delaney. Quantos serão ao todo? – Valha-me Deus! – exclamou Elissande. – Um assassínio já não é horrível que baste? A tia Rachel puxou pela ponta do cobertor. Sem saber por que razão, a efervescência de Elissande, até então inesgotável, parou de repente. – Há alguma coisa que eu deva saber? – perguntou na esperança que não

houvesse. – Não, claro que não – respondeu a tia Rachel. – Estavas a dizer-me qualquer coisa acerca do médico, não estavas? Do que me vai tratar? Continua. Elissande olhou para a tia durante mais um instante, depois sorriu abertamente. – Bem ele vem cá vê-la amanhã e parece ser um homem muito amável. O que quer que fosse que a tia não estava a querer dizer-lhe, Elissande não queria saber. 14 Mary Elizabeth Braddon (1835-1915) foi uma popular e prolífica romancista vitoriana. Dirigiu ainda alguns periódicos, que publicavam, entre outras coisas, romances em folhetins. (N. da T.)

16 das primeiras coisas que Vere fizera quando herdara o título fora U ma desfazer o vínculo no que dizia respeito à sede rural do marquesado. Causara um escândalo menor quando pusera a mansão à venda. Mas o mundo estava a mudar. As grandiosas mansões no campo, com terrenos cada vez mais ineficazes a gerar riqueza, tinham vindo a transformar-se em pedras atadas ao pescoço de muitos. Não era a vida que queria para si, ter o destino e as decisões acorrentados a um monte de pedras, por mais gloriosas e históricas que fossem. Como não era a vida que queria para Freddie e para os herdeiros de Freddie, uma vez que havia grandes hipóteses de Vere não casar e de, um dia, o título vir a passar para Freddie. Todavia, era proprietário de uma casa no campo. A maior parte das suas caminhadas tinham-se desenrolado ao longo da costa do canal de Bristol. Na primavera de noventa e quatro, contudo, fizera uma viagem de duas semanas à volta da Baía de Lyme. No último dia da sua excursão, vinha ele de regresso de um passeio mais para o interior onde fora ver as ruínas do castelo Berry Pomeroy, tropeçara numa casa modesta com o seu nada modesto e lindíssimo roseiral. Pierce House, dizia a placa que estava no portão baixo. Olhara para ela com uma cobiça que nunca pensara sentir por uma simples propriedade: a casa, com telhas vermelhas e paredes brancas; o jardim, tão fragrante e encantador como uma memória de tempos perdidos. De regresso a Londres, dera instruções aos seus solicitadores para descobrirem se a casa estava à venda. Estava e ele adquirira-a. No dia em que levou a mulher a Pierce House, ela ficou muito tempo à frente da casa, defronte do jardim que ainda florescia infatigavelmente, mesmo depois de os meses das rosas terem chegado e partido há muito. – É um sítio maravilhoso – disse ela. – Tão pacífico e…

– E o quê? – perguntou. – Normal. – Olhou para ele. – E estou a fazer-lhe o maior dos elogios. Ele percebeu o que queria dizer, claro que percebeu. Fora por essa razão que a casa e o jardim o haviam encantado, a razão por que o seu coração lhe doía sempre que olhava para ela: a materialização de toda a doce normalidade de que tinha sido privado. Mas não quis compreendê-la. Não queria encontrar pontos de contacto. Ela sabia como gerir a vida que escolhera para si. Tinha a companhia perfeita: uma companhia que nunca o magoaria, zangaria ou desapontaria. Não sabia como lidar com as armadilhas, ou as possibilidades, de uma vida diferente. – Bem, aprecie-a – disse. – É a sua casa. Por agora. Elissande achou o Devonshire encantador, com o clima mais quente e soalheiro que alguma vez conhecera. E o mar, que sempre a fascinara ao longo dos anos que passara presa longe dele, encantava-a em absoluto, mesmo que não o contemplasse das escarpas altas e rochosas de Capri, mas apenas das colinas que se estendiam em torno da zona da costa a que chamavam a Riviera inglesa. O que verdadeiramente a inebriava era a liberdade, pelo que teria achado bonita até mesmo uma rocha estéril em pleno deserto. Às vezes, pedia que a levassem até à aldeia mais próxima por nenhuma razão especial, simplesmente porque podia. Por vezes, levantava-se cedo e caminhava até chegar à costa e trazia consigo uma concha ou um pedaço de madeira trazido pelo mar para dar à tia Rachel. Por vezes, levava trinta livros para o quarto, sabendo que ninguém lhos tiraria. Depois do breve sobressalto de medo no dia da prisão de Edmund Douglas, a tia Rachel também florescia. O consumo de láudano diminuíra já cerca de

um quarto. O seu apetite, apesar de ser ainda o de um passarinho, era, não obstante, feroz para ela. E, quando Elissande lhe fez a surpresa de uma passeata até Dartmouth, ela vivera tudo com o deslumbramento de uma criança, como se descobrisse um mundo que nunca imaginara existir. Em poucas palavras, estavam felizes como nunca em toda a vida de Elissande. Só gostaria de ter a certeza de que o marido partilhava do contentamento delas. Ele mantinha a mesma atitude de sempre: animado, tagarela e estúpido. Ela acabara por admirar a sua capacidade de fornecer dissertações do tamanho de palestras, fantásticas e quase deliciosamente cheias de informações erradas, que pronunciava todas as noites, ao jantar, estando os dois sozinhos à mesa. Ela própria tentou fazer o mesmo algumas vezes, mas descobriu que esse tipo de arenga exigia um amplo e profundo conhecimento do que estava certo e uma notável agilidade mental para virar tudo ao contrário, mantendo apenas os conteúdos não errados suficientes para deixar o ouvinte chalado. Na sua terceira tentativa, escolheu como tema a arte e ciência de fazer compota, assunto sobre que lera extensivamente nessa mesma tarde, uma vez que se estava na altura de guardar os produtos da horta, e Pierce House dispunha de uma horta murada cheia de árvores de fruta em espaldeira, bem alinhadas. Devia ter-se saído bastante bem na imitação dos seus intricados e pouco esclarecedores monólogos, porque, no final do seu discurso, ela apanhou-o a desviar a cara para esconder um sorriso. O coração dela disparara loucamente. Para além desse caso único, contudo, ele nunca se desviava do seu papel. E, à exceção do jantar, era raro encontrá-lo. Sempre que perguntava a um criado por onde ele andaria, a resposta era, invariavelmente «Sua senhoria saiu para dar um passeio a pé». Parecia ser a norma. Segundo Mrs. Dilwyn, não era invulgar que sua senhoria caminhasse pelo campo entre vinte e trinta quilómetros por dia.

Trinta quilómetros de solidão. Por qualquer razão, Elissande só conseguia lembrar-se da solidão que vira nos olhos dele na última vez que tinham feito amor. Não estava à espera de o encontrar durante a sua caminhada. Os passeios dela eram muito mais curtos do que os dele. A partir da casa, ela caminhava três quilómetros para noroeste, até à crista do Vale Dart, onde, por regra, precisava de descansar um bom bocado antes de encetar o difícil caminho de regresso. Tempos houvera em que uma caminhada de dez quilómetros era canja para ela. Mas a sua energia vira-se diminuída pelos anos de semiprisão dentro de casa e seriam necessários vários meses de exercício regular até voltar a ser suficientemente forte para o acompanhar pela paisagem claramente ondulada que circundava Pierce House. Era o que desejava: caminhar com ele. Não precisavam de falar muito, mas ela apreciaria o prazer da proximidade dos dois. E talvez, com o tempo, ele viesse a descobrir qualquer coisa de que gostasse na companhia dela. Chegou ao cume da encosta do vale, ofegante devido à dificuldade da subida. E foi então que o seu coração bateu mais e não só por causa do exercício. A meio da encosta que descia até ao rio Dart estava ele, de pé, com uma mão no bolso, o chapéu na outra, com a sua altura e largura de ombros inconfundível. Como se estivesse a aproximar-se de um cavalo árabe que pudesse empinarse a qualquer instante, ela avançou em silêncio e com cautela. Mesmo assim, ele virou-se e viu-a demasiado cedo, quando ainda estava a uns bons noventa metros de distância. Ela deteve-se. Ele olhou-a durante um instante, desviou o olhar para as colinas durante um segundo, olhou de novo para ela e voltou-se de novo para o rio. Nenhum sinal de reconhecimento, mas também nada de fingimentos.

Aproximou-se dele, com o coração a transbordar de uma estranha ternura. – Uma grande caminhada? – perguntou, quando chegou junto dele. – Hmm – respondeu. O Sol escondeu-se por trás de uma nuvem. O ar agitou-se. A brisa revolveulhe o cabelo, cujas pontas tinham aclarado bastante devido às longas horas que passava na rua. – Não fica fatigado? – Estou habituado. – Passeia sempre sozinho. A resposta foi um esboço de careta. De repente, ela tomou consciência do seu ar extremamente cansado, não apenas uma exaustão física, mas um desgaste que uma boa noite de sono não repararia. – Nunca… nunca lhe apetece ter companhia? – Não – disse. – Não, claro – murmurou, mortificada. Permaneceram em silêncio durante um bom bocado, ele aparentemente absorto no panorama do vale verdejante do rio, ela completamente fascinada pelas aplicações de cabedal nos cotovelos do casaco desportivo de tweed dele. Sentia um forte desejo de tocar naquelas aplicações, de pousar a mão onde pudesse sentir ao mesmo tempo o calor áspero da lã e a suavidade fria do cabedal. – Vou andando – disse ele abruptamente. Ela cedeu ao seu fascínio pelo cabedal e descansou uma mão na manga dele. – Não se demore. Pode chover.

Ele olhou para ela, com ar duro, e o seu olhar caiu sobre o ponto onde ela o tocava. Num gesto rápido, ela retirou a mão. – Só queria sentir o toque da aplicação. Ele pôs o chapéu na cabeça, fez-lhe um pequeno aceno e afastou-se sem dizer mais nada. Não choveu, mas ele andou por fora durante muito tempo: pela primeira vez desde que tinham chegado ao Devon, ele não apareceu para jantar. Muito mais tarde, a altas horas da noite, ela percebeu que ele regressara ao quarto. Tinha estado à escuta, mas não ouvira nada – para um homem tão grande, quando queria, ele deslocava-se com o silêncio de um fantasma. Ela inferiu a sua presença pela luz que não estivera ali antes e que passava por baixo da porta de ligação entre os dois quartos. Quando abriu a porta ele estava em mangas de camisa e a fralda da camisa já fora das calças. Atirou com o colarinho. – Milady. Ela manteve-se do lado de fora da porta. – Comeu alguma coisa? – Parei numa estalagem. – Senti a sua falta ao jantar – disse baixinho. Sentira. Não fora nada a mesma coisa.

Ele lançou-lhe um olhar severo mas não disse nada. Em vez disso, agarrou no casaco que despira e começou a verificar os bolsos. – Porque faz isto? – perguntou ela. – Faço o quê? – Eu sorria porque o meu tio mo exigia. Porque age de uma forma calculada para que as pessoas não o levem a sério? – Não sei do que está a falar – respondeu, átono. Ela não estava à espera de obter uma resposta, mas ainda assim aquela negação absoluta desapontou-a. – Quando Needham veio ver a minha tia à casa da cidade, perguntei-lhe o que sabia do seu acidente. Ele respondeu-me que, na altura, estava hospedado em casa da sua tia e que sabia tudo acerca do caso. – Aí tem. Já não é só a minha palavra. Mas Needham fora também a pessoa que ele indicara especificamente quando não quisera que a notícia acerca do seu ferimento de bala se espalhasse. Até àquele momento, ainda nenhum criado fazia a menor ideia de que fora ferido. As ligaduras tinham sido queimadas ou levadas às escondidas para fora de casa. – A propósito, como está o seu braço? A última vez que ele lhe permitira que mudasse o penso fora na noite anterior à prisão do tio. – O meu braço está bem, obrigado. Atravessou o quarto, abriu a janela e acendeu um cigarro. – O meu tio nunca fumou – murmurou ela. – Tínhamos uma sala de fumo, mas ele nunca fumou.

Ele puxou uma longa fumaça. – Talvez devesse. – Nunca fala da sua família. Não se sentira confortável em fazer perguntas a Mrs. Dilwyn. Não queria que a governanta ficasse a pensar na razão por que sabia tão pouco acerca do marido e, todavia, ela não sabia quase nada para além do facto de ele não ser idiota. – A minha única família é o Freddie e a senhora já o conhece. O ar frio que entrava pela janela trazia-lho o cheiro intenso do cigarro. – E os seus pais? Ele soltou uma fina coluna de fumo. – Já morreram há muito tempo. – Disse que herdou o título aos dezasseis anos pelo que imagino que tenha sido quando o seu pai faleceu. E a sua mãe? – Morreu quando eu tinha oito anos. – Tornou a puxar uma longa fumaça do cigarro. – Mais alguma questão a que eu possa responder? É tarde. Tenho de ir a Londres amanhã de manhã, bem cedo. A mão dela fechou-se sobre a ombreira da porta. Tinha ainda uma pergunta, achou. – Leva-me para a cama? Ele ficou imóvel. – Não, lamento. Estou muito cansado.

– Da última vez, tinha um rio de rum a correr-lhe nas veias e uma ferida de bala. – Os homens fazem coisas estúpidas quando bebem demasiado. Atirou com a ponta do cigarro para a rua, caminhou até à porta entre os dois quartos e fechou-lha, gentil mas determinadamente, na cara. Angelica teve de ler o recado de Freddie três vezes. Estava a convidá-la para ver o retrato terminado. O retrato terminado. Freddie era um pintor lento e meticuloso. Estava à espera que demorasse ainda umas quatro a seis semanas. Quando chegou a sua casa, ele deu-lhe um rápido aperto de mão e saudou-a com o habitual sorriso caloroso. Mas ela percebeu que estava nervoso. Ou seriam os seus próprios nervos a fazer-se sentir? – Como estás, Angelica? – perguntou-lhe enquanto subiam as escadas para o estúdio. Não se viam desde que ele lhe tirara as fotografias, nua, para servir de base ao quadro: ele não a visitara e ela mantivera-se determinada a não o contactar até ter notícias. Ela já se atirara bastante a ele – demasiado – desde o seu regresso. – Estou bem. A propósito, o Cipriani respondeu à minha carta. Diz que, se quisermos, terá todo o prazer em nos receber às quartas e sextas, de tarde. – Então, vamos visitá-lo amanhã, amanhã é quarta, não é? – Não, Freddie, hoje é quarta. – Ah, desculpa. Tenho estado a trabalhar dia e noite – disse. – Pensava que hoje era terça. Freddie não tinha por hábito pintar dia e noite.

– Não sabia que conseguias trabalhar tão depressa. Ele parou, dois degraus à sua frente, e virou-se. – Talvez nunca me tenha sentido tão inspirado. Afirmou-o muito baixinho, mas com todo o decoro, como se estivessem a discutir um tema muito afastado da nudez dela. Ela esfregou um dedo no corrimão. – Bem, agora fiquei ansiosa por vê-lo. O divã estava ainda no estúdio, num desalinho artístico, e a tela que era o seu nu, escondida por trás das dobras de um grande pano branco. Freddie respirou profundamente, agarrou numa ponta do pano e deu-lhe um puxão. Ela arquejou. À sua frente estava uma deusa. Tinha um cabelo escuro com reflexos de ouro e bronze, uma pele impecável, de um tom quente, e o corpo de uma cortesã, uma cortesã com muito, muito sucesso. Mas, apesar de o corpo ser muito bonito, o que atraiu Angelica foi a expressão séria: estava a olhar diretamente para quem a via, com os olhos escuros a arder de um desejo irreprimível e os lábios entreabertos plenos de uma necessidade tumultuosa. Era assim que Freddie a via? Olhou para ele de relance. Estava a estudar o soalho com toda a atenção. Tentou olhar de novo para o quadro e não foi capaz de se rever naqueles olhos. – Bem, o que achas? – perguntou Freddie, por fim. – É… está um tanto tosco. – As imperfeições eram tudo para que era capaz

de olhar. As pinceladas não eram tão finas como estava habituada a ver nos quadros de Freddie. Mas havia uma tal intensidade na imagem, uma tal carga sexual que, se ele insistisse na pergunta, ela teria de conceder que o estilo menos polido se adequava à fome, crua e frustrada, que emanava da mulher do quadro. Ele tornou a cobrir o quadro. – Não gostas? Ela alisou o cabelo, na esperança de ser o retrato vivo do decoro e decência. – Tive mesmo aquele aspeto? – Para mim, sim. – Talvez devesses refazer a pintura e virar a minha cara para o outro lado. – Porquê? – Porque eu estou com ar de… de… – De quem gostaria de fazer amor comigo? Uma vaga de expectativa ansiosa quase a estrangulou. Olharam um para o outro. A maçã de adão dele movia-se. No segundo seguinte, ela estava nos braços dele e ele beijava-a doce e imperiosamente. Foi tudo o que sempre imaginara – e mais. Tombaram sobre o divã estrategicamente colocado. Ele tirou-lhe o chapéu. Ela arrancou-lhe a gravata. – Um instante – murmurou, encostado aos lábios dela. – Deixa-me ir trancar a porta. Correu para a porta, mas antes de poder dar a volta à chave, esta abriu-se do outro lado e Penny entrou.

– Oh, olá, Freddie. Olá, Angelica. As minhas duas pessoas favoritas no mesmo sítio, excelente. Olha, Freddie, tens o nó da gravata desfeito. O que aconteceu, um êxtase artístico frenético? Freddie ficou de pé, sem palavras, enquanto Penny lhe refazia o nó da gravata. – E o que se passa, Angelica? Tiveste de te estender? Queres que vá à procura de sais? Atrapalhada, levantou-se do divã, onde estivera, imóvel. – Ah, não, Penny. Já estou muito melhor. – Oh, vê, Angelica, o teu chapéu está no chão. – Apanhou-o e estendeu-lho. – Ena – disse ela. – Como terá ido aí parar? Penny piscou-lhe o olho. – Tens sorte por eu não ser uma daquelas velhas bisbilhoteiras que entrasse quando tiveste de te estender por um bocadinho, Angelica. Nesta altura, já Lady Avery os estaria a fazer marchar até ao altar aos dois, como fez comigo! Freddie, escarlate, aclarou a voz. – O que… o que te traz a Londres, Penny? – Oh, o costume. Depois lembrei-me de que ainda tenho a chave de tua casa e resolvi fazer-te uma visita. – É sempre bom ver-te, Penny – disse Freddie, num abraço, já tardio, ao irmão. – Há vários dias que não saio do estúdio. Esta manhã, a minha governanta contou-me uns boatos desagradáveis. Disse que o tio de Lady Vere está preso, à espera de ser julgado por uns crimes horríveis. Já te escrevi uma carta. É verdade? A cara de Penny caiu.

– Lamento ter de dizer que sim. – E como é que Lady Vere e a tia reagiram às notícias? – Tão bem quanto seria de esperar, penso. Apesar de ter a suspeita de que tenho sido uma verdadeira fortaleza para elas durante este período horroroso. Mas não há nada que possamos fazer, pelo que bem podemos mudar para assuntos mais alegres. Percorreu o estúdio com o olhar e os seus olhos aterraram, para susto de Angelica, na tela coberta. – Disseste que passaste os últimos dias no estúdio? Foi por causa da encomenda que recebeste por volta do dia do meu casamento? – Sim, mas ainda não acabei. – É este? – Penny aproximou-se do quadro tapado. – Penny! – gritou Angelica, recordando-se de que ele era uma das poucas pessoas a quem Freddie permitia que vissem os trabalhos inacabados. Ele virou-se. – Sim, Angelica? – O Freddie e eu estávamos de saída para ir visitar o senhor Cipriani, o negociante de arte – disse. – Queres vir connosco? – Isso mesmo, Penny, vem connosco – secundou-a Freddie, com fervor. – Porque o vão visitar? – Lembras-te do quadro em Highgate Court, aquele a que tirei fotografias? – Na pressa de falar, Freddie atropelou as palavras. – A Angelica tem estado a ajudar-me a identificar a proveniência do quadro. Pensamos que houve uma obra do mesmo artista que passou pelas mãos do Cipriani; e o Cipriani nunca

se esquece de nada. Penny teve um breve instante de surpresa. – Havia um quadro em Highgate Court? Mas, sim, claro que vou. Adoro conhecer pessoas interessantes. Fizeram-no sair. Angelica levou a mão ao coração, aliviada: se Penny a tivesse visto como Freddie a vira, ela nunca mais seria capaz de se ver ao espelho. Penny desceu as escadas à frente dos dois. Freddie puxou-a para um canto escuso e deu-lhe um beijo rápido. – Vais a minha casa depois? – murmurou ela. Os criados tinham folga nessa tarde. – Não perderia isso por nada neste mundo. Douglas mantivera o silêncio enquanto aguardava pelo julgamento, marcado para cinco dias mais tarde, mas, apesar disso, tinha havido progressos no caso. Com base em informações recolhidas no processo cifrado, Lady Kingsley conseguira descobrir em Londres um cofre que continha um grosso maço de cartas dirigidas a um Mr. Frampton. As cartas tinham por remetentes vários negociantes de diamantes que concordavam ver os diamantes artificiais de Frampton. – Está a ver – dissera, excitada, Lady Kingsley quando se encontraram nessa manhã –, foi assim que ele conseguiu que os negociantes avançassem com o dinheiro. Penso que, no princípio, ele não estava a pensar em extorsões, mas queria apenas ver se os diamantes sintéticos eram realmente indiferenciáveis dos verdadeiros. E depois, quando o processo de síntese se revelou um fracasso, ele olhou para as poucas respostas que obtivera, e algumas estavam escritas de forma desleixada e era possível interpretá-las como sugerindo que o negociante estaria disposto a negociar diamantes sintéticos. O nosso homem,

antes de tudo e mais nada um criminoso, decidiu contactar ainda mais negociantes. As cartas estavam separadas em dois grupos e os que não tiveram cuidado com a maneira como responderam tornaram-se os alvos dele. Contudo, para Vere ainda faltava a peça fundamental do puzzle: a verdadeira identidade do homem conhecido por Edmund Douglas. Antes de Freddie e Angelica referirem a sua própria investigação, nunca lhe passara pela cabeça seguir aquela linha. Agora estava capaz de bater em si próprio por ter ignorado pistas tão óbvias e importantes. Por vezes, era melhor ter sorte do que ser bom. Cipriani tinha cerca de setenta e cinco anos e vivia num grande apartamento em Kensington. Vere estava à espera de uma casa a abarrotar de arte, mas Cipriani era um implacável conservador da sua coleção privada. A sala onde os recebeu tinha um Greuze e um Brueghel e mais nada. Angelica descreveu o quadro que ela e Freddie tinham visto no presbitério em Lyndhurst Hall, aparentemente, Vere não lhe prestara qualquer atenção. Cipriani escutou-os, com os dedos unidos à frente da cara. – Lembro-me. Comprei-o a um jovem na primavera de setenta. Vinte e sete anos antes. – E ele era o artista? – perguntou Angelica. – Afirmava que lhe tinha sido oferecido. Mas a julgar pelo seu nervosismo enquanto eu avaliava o quadro, diria que ele era o artista. Claro que também se dava a coincidência de as iniciais do artista serem iguais às dele. Vere teve esperança que a sua melhor expressão insípida fosse suficiente para esconder o interesse que sentia. E teve ainda esperança que Freddie ou Angelica perguntassem qual o nome do jovem. – E qual era o nome dele? – quis saber Freddie.

– George Carruthers. George Carruthers. Podia ser um pseudónimo, mas, pelo menos, era uma ponta por onde começar. – Alguma vez o tornou a ver a ele ou ao seu trabalho? – perguntou Angelica. Cipriani abanou a cabeça. – Não creio. Uma pena, na realidade, uma vez que ele tinha um talento bastante razoável. Com uma boa orientação e dedicação, poderia ter feito uma obra interessante. Uma vez esgotado o assunto de George Carruthers, Angelica e Freddie discutiram os últimos desenvolvimentos da arte com o idoso senhor. Vere não pôde deixar de reparar na maneira como olhavam um para o outro, restava-lhe a esperança de não os ter interrompido na primeira vez em que faziam amor. Sorriu para dentro. Sempre desejara ardentemente a felicidade de Freddie: não só por Freddie, mas por si mesmo, para que um dia pudesse viver indiretamente a bem-aventurança doméstica de Freddie. Partindo do princípio que estaria sempre do lado de fora, a observar. Que a sua própria vida continuaria estéril do tipo de beatitude que lhe era tão fácil imaginar para o irmão. Recordou a maneira como a mulher o olhara no dia anterior, por cima das margens do rio Dourt: como se ele estivesse pleno de possibilidades. Como se eles estivessem plenos de possibilidades. Mas ele já tinha tomado a sua decisão. E era mais do que tempo que ela o percebesse. Quando se levantaram e despediram de Cipriani, Vere lembrou-se subitamente de que havia mais uma coisa que queria saber, uma pergunta que ninguém ainda fizera.

Por isso, fê-la ele: – Mister Carruthers disse-lhe porque queria vender o quadro? – Sim, disse – retorquiu Cipriani. – Disse que estava a reunir fundos para se lançar num negócio na África do Sul.

17 dela era de seda carmesim italiana. Contra este fundo sumptuoso, A cama Angelica estava estendida, sem modéstias, deliciosa. Parte de Freddie ainda sentia que devia desviar o olhar. O resto dele não só não conseguia fazêlo como estendeu a mão para lhe acariciar o redondo inferior do seio. – Hmm, foi esplêndido – disse ela. As faces dele ficaram quentes. Inclinou-se para a beijar de novo. – O prazer foi meu. E como. – Posso confessar uma coisa? – perguntou ele. – Hmm, nunca tens nada a confessar. Preciso de ouvir esta. Ele aclarou a garganta, pouco à vontade, agora que se dispunha a dizer esta informação. – Eu não estava lá muito interessado na origem do quadro do anjo. O queixo dela caiu-lhe. – Não estavas? – A tua amiga mais antiga pede-te que a pintes como veio ao mundo. Ficas muitíssimo tentado, mas não sabes como dizer que sim. Não desencantavas uma pergunta legítima para poderes fazer uma troca de favores? Ela sentou-se, muito direita, com uma rica cascata de seda carmesim chegada ao peito. – Freddie! Nunca imaginei que fosses tão tortuoso!

Ele corou. – Não sou… em todo o caso, por regra, não. Só quis ser um pouco menos transparente. Ela deu-lhe uma palmadinha no braço. – Oh, para mim, foste opaco que bastasse. Já tinha desesperado de alguma vez me fazer entender. – Podias ter-me dito. – Se pudesse, tê-lo-ia feito há dez anos. – Deu-lhe um beijo no ponto onde lhe batera. – Provavelmente, foi melhor não o ter feito: na altura achavas-me em absoluto desprovida de atributos femininos. – Isso não é verdade. Dava-se mais o caso de eu nunca pensar nos teus atributos femininos. Quer dizer, eras, e és, a minha amiga mais antiga. Não precisavas de ter peito e nádegas para seres importante para mim. – É amoroso que digas isso, apesar de os meus seios e as minhas nádegas poderem discordar. Ele sorriu. Ela enroscou-se mais perto dele. – Alguma vez pensaste que eu era demasiado crítica? Ou que tinha demasiadas ideias acerca da forma como devias fazer as coisas? – Não, nunca. O meu pai era demasiado crítico: humilhava-me porque lhe dava gozo e porque eu não sabia muito bem como me defender, como o Penny fazia. As tuas sugestões tiveram sempre por base um sincero interesse em mim. E nunca foi condição para a nossa amizade que eu fizesse o que tu dizias: davas-me os teus conselhos e eu sempre fui livre de os seguir ou não. – Ótimo – disse ela.

Ele hesitou. Ela olhou-o, curiosa. – Tens mais qualquer coisa para me dizer, não tens? Avança: gostaria de ouvir. Esquecia-se sempre de que ela o conhecia por dentro e por fora. – Estava a pensar que houve um tempo em que pensei que tinhas demasiadas ambições a meu respeito. Estavas sempre a dizer que tinha de pintar mais depressa, que precisava de expor e criar uma obra grande. – Ah, isso foi quando eu tinha imensos ciúmes de Lady Tremaine. Estava a tentar fazer-te ver que ela não era capaz de distinguir um garanza rosa de um carmesim laca, ao passo que eu sabia imenso de arte e do mundo da arte. Fora verdadeiramente cego. Nunca lhe ocorrera que o que lhe parecera um impulso frenético de o empurrar para a notoriedade artística tivesse algo a ver com os anseios escondidos do seu coração. Levantou uma madeixa do cabelo dela. Ia parecer que não lhe fizera justiça ao pintá-lo: havia também uns tons cobre. – Quando Lady Tremaine partiu para a América, desejou-me que eu encontrasse consolo nos teus braços. Mas, quando tu vieste confortar-me, eu fiz tudo para te afastar. – Não te culpo. Eu fui bastante desagradável acerca do caso. – Quando casaste com o Canaletto sem mais nem porquê, fiquei preocupado que a minha atitude naquele dia tivesse qualquer relação com isso, não consegui evitá-lo. Ficas a saber que fiquei sempre arrependido da minha brusquidão. Ela abanou a cabeça. – A minha incapacidade de lidar com o meu desapontamento sem fazer

qualquer coisa estúpida não foi culpa tua, mas uma falha minha. Para dizer a verdade, desta vez já tinha decidido que se tu me recusasses não ia mesmo fazer nada estúpido, como dormir com o Penny, por exemplo, para acalmar a minha vaidade ferida. – O Penny ficava traumatizado. Considera-te uma irmã. Ela riu-se. – Eu também ficaria traumatizada. Ela ergueu o braço e pousou a mão no topo de uma imagem emoldurada que tinha na mesinha de cabeceira. Num gesto de distração, foi fazendo a imagem girar para um lado e outro e ele viu que a moldura guardava um esboço a lápis do rosto dela, que ele desenhara muitos anos antes e lhe oferecera de presente. A crítica de arte que existia dentro dela devia ter encontrado muitos defeitos no esboço, a que faltava técnica e composição e parecia só ter uma grande sinceridade por carta de recomendação. Sempre a amara e se interessara por ela, mas agora tinha o coração inundado de ternura, tanta que era quase dolorosa. – Estou muito feliz por teres voltado – disse, delineando-lhe a maçã do rosto com a mão. – Eu também – corroborou ela, olhos nos olhos, num olhar direto e límpido. – Eu também. A noite já ia alta mas o marido ainda não tinha regressado de Londres. Elissande estava acordada, numa absoluta escuridão, de olhos fixos num teto que não conseguia ver, a pensar na primeira vez que pusera os olhos nele. Recordava-se de todos os pormenores: o chapéu de feltro que usava, o breve azul do colete por baixo do casaco fulvo, o brilho do sol nos botões de punho e, acima de tudo, o otimismo jovial que sentira quando ele sorrira para o irmão.

Se se tivessem conhecido uma semana mais tarde, ela não teria tido necessidade de estender uma armadilha a ninguém. As coisas poderiam ter sido muito diferentes. Mas ela tinha-lhe estendido uma armadilha. E ele não estava feliz com ela. E, se não lhe falasse, ou fizesse amor com ela, alguma vez passariam de dois estranhos neste casamento? A porta do quarto dela estalou ligeiramente quando alguém a abriu. Ele chegara. Abrira a porta. Estava à porta dela e só tinha de dar mais um passo para entrar. Sentiu um formigueiro de excitação, uma excitação à beira do pânico. O seu coração batia loucamente, como um pistão a vapor. Mordeu o lábio inferior para não ficar com uma respiração pesada. Tinha de ficar muito quieta e dar a nítida impressão de que estava a dormir profundamente. Talvez ele ganhasse coragem para se aproximar dela. A tocasse. E, a partir daí, a perdoasse, um dia. Desejou que viesse ter com ela, que procurasse nos seus braços o alívio da solidão em que vivia, do cansaço que sentia. Mas a porta fechou-se de novo e, em vez disso, ele procurou o descanso da sua própria cama. O relógio alto bateu as horas, três pancadas metálicas que retiniram no ar escuro e parado. Eram sempre três horas. Ele correu. O corredor, negro como o breu, não tinha fim. Algo lhe bateu na barriga da perna. Soltou um grito de dor e cambaleou. Mas tinha de continuar a correr. Tinha de chegar junto da mãe e avisá-la de que corria um perigo mortal. Cá estava, o átrio. E no outro extremo do seu comprimento olímpico, as

escadas que seriam a desgraça dela. Estava quase lá. Ia salvá-la, não a deixaria cair. Cambaleou de novo, com uma dor penetrante nos joelhos. Avançou, a coxear. Mas ela já ali estava quando, por fim, chegou ao fundo das escadas. O sangue formava uma poça por baixo da cabeça dela, sangue do mesmo vermelho do vestido e dos rubis que lhe cintilavam sobre o peito. Gritou. Porque não podia salvá-la? Porque nunca chegava a tempo de a salvar? Alguém chamou o seu nome. Alguém lhe abanou um ombro. Devia ser a pessoa responsável pela morte da mãe. Atirou a pessoa ao chão. – Penny, está bem? – guinchou ela. Não, ele não estava bem. Ele nunca mais estaria bem. – Penny, pare, pare. Está a magoar-me. Ele queria muito magoar alguém. – Penny, por favor! Abriu os olhos de repente. Estava ofegante, como se viesse a fugir dos cães do inferno. O quarto estava mergulhado na escuridão, tal como no seu sonho. Soltou um som vindo do fundo da garganta, ainda não livre do terror do pesadelo. – Está tudo bem – murmurou a pessoa que estava na cama com ele, uma pessoa quente e macia, que cheirava a mel e rosas. – Foi só um sonho mau. Ela acariciou-lhe a face, o cabelo. – Foi só um sonho mau – repetiu ela. – Não tenha medo.

Ridículo. Ele não tinha medo de nada. Ela beijou-lhe o queixo. – Eu estou aqui. Está tudo bem. Não deixo que lhe aconteça nada. Ele era grande, forte, inteligente. Não precisava de ninguém que o protegesse de uma coisa tão pouco sólida como os sonhos. Ela puxou-o para os seus braços. – Eu também tenho sonhos maus. Às vezes, sonho que sou Prometeu, acorrentado à rocha para toda a eternidade. E depois, claro, não consigo voltar a adormecer, por isso penso em Capri, na bonita e distante Capri. Ela tinha uma voz encantadora. Nunca reparara nela até então, mas ali no escuro, enquanto falava, o som da voz dela era tão encantador quanto o som da água para uma tribo do deserto. – Imagino que tenho um barco só meu – sussurrou ela. – Quando o tempo está quente e há brisa, velejo até ao mar alto, durmo ao sol e fico castanha como os pescadores. E, quando há tempestades, vou até ao alto dos penhascos e observo a fúria do mar, pois sei que um mar em fúria me mantém isolada… e mantém-me a salvo. A respiração dele já não estava tão ofegante. Percebeu o que ela estava a fazer. A seguir à morte inesperada e súbita da mãe, ele fizera o mesmo a Freddie, passara-lhe o braço à volta dos ombros e falara-lhe das redes para trutas e de apanhar pirilampos até Freddie adormecer de novo. Mas nunca deixara que ninguém lho fizesse a ele. – Impossível, claro – prosseguiu ela. – Sempre soube que era altamente improvável. Se alguma vez conseguisse escapar ao meu tio, iria precisar de trabalhar para viver e ninguém paga nada que se veja a uma mulher. Teria de poupar para tempos difíceis e considerar-me feliz se alguma vez conseguisse poupar o dinheiro suficiente para comprar um bilhete de comboio para

Brighton. – Os dedos dela percorreram-lhe o contorno da cara. – Mas Capri permitiu-me continuar. Era a minha chama na escuridão, a minha fuga quando não havia fuga possível. Ele apertou o braço em torno dela, nem sequer se apercebera de que tinha o braço à volta dela. – Sei tudo o que há a saber sobre Capri. Ou, pelo menos, tudo o que as pessoas acharam que valia a pena passar a escrito em diários de viagem: a história, a topografia, a etimologia do nome. Sei o que cresce no interior e o que nada nas suas águas. Sei que ventos vêm com cada estação. Enquanto falava, a mão dela massajava-lhe as costas. As suas palavras eram calmas, quase hipnóticas. Poderia, com toda a facilidade, tê-lo feito adormecer de novo, não fora o facto de ter o corpo bem encostado ao seu. – Então, conte-me – pediu ele. Ela deve tê-la sentido, a mudança fisiológica nele. Mas não o afastou. Se alguma coisa mudou, foi ela acomodar-se mais ao corpo dele. – É provável que, nos dias que vão correndo, esteja absolutamente inundada de gente. Um dos livros referia que existe uma colónia de escritores e artistas, idos de Inglaterra, França e Alemanha. Já não foi capaz de se conter. Beijou-lhe o pescoço, os seus dedos desapertaram-lhe a camisa de noite. A pele dela, a sua suavidade, fizeram o seu coração bater descompassadamente. – É claro que – ela continuou, numa voz cada vez mais incerta – ignoro por completo a presença deles para poder preservar a minha ilusão de um paraíso com uma população esparsa, vazio à exceção do mar, o céu e eu. – Claro – respondeu ele. Ele tirou-lhe a camisa de noite, puxou a sua própria pela cabeça e fê-los dar uma volta, ficando ela por cima dele.

– E em que pensa quando acorda dos seus pesadelos? – perguntou ela, numa voz quase inaudível. Ele deu um puxão à fita que lhe prendia a trança e soltou-lhe o cabelo. Este caiu, como uma nuvem, por cima da cara e ombros dele. – Nisto – respondeu ele. – Penso nisto. Não no ato sexual em si, mas na presença de outra pessoa. Uma intimidade que o envolveria e protegeria. Pensara nela na última vez que tivera o pesadelo, em Highgate Court. Tal como ela ignorava a presença dos estranhos que se apinhavam na costa acidentada de Capri, ele esquecera seletivamente o antagonismo dela em relação a ele, e o ressentimento dele para com ela, e apenas recordara os seus sorrisos mais doces. Uma pessoa faz o que for preciso para aguentar a noite. Mas agora ela estava flexível e de bom grado por cima dele. Agora, ela não só permitia, como colaborava, permitindo que ele a penetrasse bem fundo. Agora, ela gemia e suspirava de prazer, com os lábios encostados à orelha dele, a sua respiração invocando vagas de um desejo quase violento. E, quando a explosão chegou, foi ardor, fúria e um poderoso, quase arrebatador olvido. A respiração dela agitava-lhe o cabelo. O coração dela batia contra o peito dele. As mãos dela procuraram as suas no meio da escuridão e os dedos entrelaçaram-se nos dele. Uma intimidade que o envolvia e protegia. Todavia, naquela sonolência calorosa, a paz perfeita fugia-lhe ainda. Qualquer coisa estava errada. Talvez tudo estivesse errado. Não quis pensar. A noite era agora o seu refúgio. Para além da madrugada, reinava o caos.

Mas, no escuro, existia apenas o abraço dela. Murmurou um obrigado e deixou que o sono o invadisse. Amanheceu como qualquer outra manhã no campo: o cantar dos pássaros, o mugir das vacas na pastagem por trás da casa, o estalido das tesouras de podar dos seus jardineiros, já a trabalhar. Até mesmo os sons que produziu eram pacíficos e domésticos. A água a cair e a espadanar numa bacia, gavetas abertas e fechadas com cuidado, cortinas afastadas, portadas abertas para deixar entrar o sol. Ela estava ainda confortavelmente aninhada na cama dele. A respiração mantinha-se calma e regular. O cabelo, da cor do sol nascente, espalhava-se pela almofada. Um dos braços saía de baixo das cobertas, atravessado na cama, como se à procura dele. No seu sono, ela parecia completamente inofensiva, quase angélica, o tipo de mulher que inspirava uma devoção sem entraves. Ele levantou o braço que ela deixara exposto e meteu-o debaixo da roupa. Ela enroscou-se ainda mais nos lençóis, com os lábios recurvando-se de satisfação. Ele virou-lhe as costas. De costas para ela, ajustou os suspensórios no sítio, sobre os ombros, e envergou o colete. Remexeu a bandeja em cima da cómoda e escolheu um par de botões de punho. De repente, teve a consciência de que ela estava acordada e que o olhava. – Bom dia – disse, sem se voltar, com os dedos ocupados a apertar os botões de punho. – ‘dia – tartamudeou ela, com a voz ainda pesada de sono. Durante um bocado, ele não disse nada e continuou a vestir-se. Atrás dele, a cama chiou e estalou: ela devia estar a vestir a camisa de noite, que ele encontrara por baixo de si de manhã, juntamente com a fita do cabelo, uma

pequena recordação em tom pastel do que se passara durante a noite. – Vou dar um passeio – disse, retorcendo-se para vestir um casaco de tweed… sempre sem olhar para ela. – Se assim o desejar, a sua companhia será bem-vinda. Seria melhor dizer-lhe o que queria longe da sua casa. – Sim, claro – respondeu ela. – Ficaria encantada. A excitação mal disfarçada que ouviu na voz dela foi uma chicotada na sua consciência. – Espero por si lá em baixo. – Não demoro – prometeu. – Só preciso de me vestir e dar uma palavra à enfermeira. Junto da porta, ele deteve-se e, por fim, olhou para ela. Depois daquele dia nunca mais a veria assim, feliz e cheia de esperança. – Demore o que for preciso – disse. *** Elissande vestiu-se a uma velocidade recorde, deu uma espreitadela à tia, que ainda dormia, e falou com Mrs. Green, a enfermeira, que, por recomendação de Mrs. Dilwyn, contratara depois de vir para o Devon. Mrs. Green garantiulhe que se encarregaria do pequeno-almoço e do banho de Mrs. Douglas e que, a seguir, a levaria a dar uma volta pelo jardim, para ela fazer exercício e apanhar ar fresco. Mrs. Green era uma mulher muito simpática, mas mais firme do que Elissande. Sob a sua supervisão, a tia Rachel já era capaz de percorrer pequenas distâncias sem necessidade de apoio, um feito nada menos do que miraculoso. E agora, para completar a felicidade de Elissande, o marido fizera amor

com ela. E convidara-a para o acompanhar na sua caminhada. Não falaram. Mas não precisavam. A companhia dele bastava-lhe. Estar ao lado dele era suficiente. Isto era o novo começo deles. Atravessaram o rio Dart na vila de Totnes, e tomaram chá e um pequenoalmoço rápido, após o que continuaram para norte, percorrendo caminhos campestres totalmente novos para ela, ao longo de campos ondulantes e pequenas aldeias. Atravessaram um bosque cerrado e saíram debaixo das árvores entrando depois nos terrenos de um castelo em ruínas. Deviam ter caminhado uns bons oito quilómetros. Ela deveria estar exausta, mas estava apenas exultante. – Nunca conversa? – acabou por perguntar, um pouco ofegante da subida até ao castelo. – Creio ser opinião geral que eu falo, falo e falo. Ela tirou o chapéu e abanou-se. – Quer dizer, quando não está a desempenhar o seu papel. Ele não lhe respondeu e olhou para este, na direção do mar, o castelo ficava situado numa elevação íngreme, que proporcionava uma vista panorâmica. Mais uma vez se perguntou por que razão ele levaria uma vida dupla. Ela tivera as suas razões pelo que partiu do princípio que as razões dele seriam igualmente fortes. – Diga-me uma coisa – pediu ele. Ela sentiu-se muitíssimo lisonjeada. Era tão raro ele perguntar-lhe o que quer que fosse. – O que deseja saber? – Quando conheceu Mistress Canaletto, fez-lhe perguntas acerca de Capri. Tornou a mencionar Capri quando quis que saíssemos de Inglaterra para nos

escondermos. E, do que disse ontem à noite… – enfiou uma mão no bolso –, é óbvio que tem pensado muito em Capri ao longo de toda a sua vida. – É verdade. – Mas não a vejo a fazer planos para visitar Capri, agora que o pode fazer. Porquê? Ela nunca pensara naquilo. Mas a resposta parecia tão óbvia, que ficou surpreendida por ele ter de fazer a pergunta. – Porque o que eu amei sempre não foi a Capri, entidade física: poderia ter sido um qualquer lugar bonito e distante. O importante era a esperança e o consolo que me dava, enquanto estive prisioneira em casa do meu tio. Ele olhou para ela, num olhar muito severo. Talvez não a tivesse compreendido bem. Tentou de novo. – Pense numa jangada, por exemplo. Quando um rio é demasiado largo e a corrente demasiado forte para que possamos atravessá-lo a nado, precisamos da jangada. Mas, uma vez chegados à outra margem, abandonamos a jangada perto da água. – E a senhora chegou à outra margem. Ela passeou os dedos pelas flores de seda que ornamentavam o chapéu. – Atravessei o rio. Gostarei sempre muito da minha jangada, mas já não preciso dela. Ele afastou-se uns passos. – Então, está feliz com a sua vida e já não precisa de apoios? Ela mordeu o interior da bochecha.

– Talvez ainda precise de mais algum apoio. – E o que seria? – perguntou ele, sem a menor inflexão. Pensara que necessitaria de mais coragem para confessar a atração que sentia. Mas depois de, durante a noite, ele a ter beijado e abraçado, depois de ter caminhado oito quilómetros a seu lado, ele tornara-lhe fácil pronunciar as palavras. – O senhor – disse, numa voz sem hesitações nem tremuras. – E como conseguirei eu tão admirável feito? – Fazendo o que já fez: caminhando comigo, fazendo amor comigo. – Corou apenas ligeiramente quando pronunciou as últimas palavras. Ele afastou-se ainda mais. Espantadiço, o seu marido. Foi atrás dele quando entrou na torre de menagem. Em tempos, houvera uma mansão dentro da cerca, mas agora restavam apenas paredes de pedra, arcos e ombreiras de janelas vazias. O sol da manhã passava por entre as frestas das paredes, o interior das ruínas estava frio, mas não era sombrio. Ela pousou a mão no braço dele, sentindo o agradável toque da lã do tweed na palma da mão. Ao ver que ele não lhe afastava a mão, ela tornou-se mais ousada e deu-lhe um beijo na face e depois outro nos lábios. Ali se deixou ficar, até o forçar a entreabrir os lábios. De repente, ele devolveu-lhe o beijo, com força, pondo-lhe a cabeça a andar à roda. De forma igualmente abrupta, empurrou-a. Nunca em toda a sua vida Vere estragara tanto uma coisa como estava a fazer ao que devia ter sido o seu casamento de fachada. Não percebia o que se estava a passar com ele.

Ou talvez soubesse e não quisesse reconhecê-lo. Ela não era a companheira que desejara, não era verdade que se tratava de caso assente, uma vez e outra? O que queria era tão diferente do que ela era como a ilha de Capri era diferente da Austrália. Ele queria leite e mel: nutritivo, doce, saudável. Ela era láudano: potente, viciante, esporadicamente útil para esquecer problemas, mas perigosa em grandes doses. Era também mentirosa e manipuladora, ele ainda tinha consigo o recado que ela enviara a Freddie naquela noite, uma manifestação física da sua intenção de atrair Freddie para as suas garras, de o privar da sua felicidade com Angelica em seu proveito próprio. E, no entanto, aqui, ao ar livre, onde era possível que, a qualquer momento, chegasse uma diligência cheia de turistas, mais uma vez ele quase perdera o controlo. Desta vez sem a desculpa das lágrimas, do álcool ou dos pesadelos. Estava um dia lindo, fresco, ela estava alegre e ele julgara-se implacavelmente determinado em dizer-lhe a feia mas necessária verdade. Deu vários passos para longe dela. Se o não dissesse naquele momento, nunca mais seria capaz de o fazer: dela irradiava tanta alegria que estava à beira de o fazer esquecer que ela era o que havia de mais distante da simplicidade ensolarada de que necessitava para afastar as trevas da sua alma. Forçou-se a pronunciar as palavras. – Assim que o seu tio for condenado, eu quero a anulação. Ela estivera a alisar a manga enquanto o olhava, com uma expressão intrigada mas ainda esperançosa. Ficou rígida e a cor fugiu-lhe das faces. Olhou-o ainda mais de frente. – Dar-lhe-ei uma quantia generosa. Terá o suficiente para viver onde quiser com desafogo e luxo. Na própria Capri, se assim o desejar.

– Mas não é possível pedir a anulação – disse ela. A consciência dele contorceu-se perante a confusão total, quase ingénua que transparecia na voz dela. – Uma vez o casamento consumado, não é possível. – Com dinheiro e advogados suficientes, não só é possível como já foi feito muitas vezes. – Mas… mas teríamos de mentir. A sua desorientação era tão desmedida que, pela primeira vez, ele considerou a hipótese de ela não ser tão mundana como julgara. Que acreditara sinceramente que estavam casados para sempre. – Somos dois brilhantes mentirosos. Não vejo qualquer problema. Ela levantou os olhos para o retângulo de céu azul por cima das cabeças dos dois, emoldurado pelas paredes em ruínas do presbitério. – Foi sempre essa a sua intenção? – Sim. A mão dela mergulhou nas saias. Os ombros retesaram-se-lhe. A dor no coração dele tornou-se violenta. – Quero a minha liberdade – disse, deliberadamente impiedoso. – Devia compreender isso. Pôr em pé de igualdade o casamento deles e a prisão em que ela vivera logrou o efeito desejado. Uma zanga sombria substituiu o dorido espanto nos olhos dela. O olhar dela endureceu. – Portanto, trata-se de uma transação simples – comentou. – Dá-me dinheiro em troca da sua liberdade. – Sim. – E estarei correta ao presumir que, por causa do que aconteceu esta noite, a

sua liberdade seja mais cara hoje do que era ontem? – Talvez. – Assim sendo, sou uma prostituta no meu próprio casamento. As palavras dela foram um murro no seu estômago. – Estou a pagar pela minha falta de controlo. – Oh, céus, Lorde Vere, porque não disse isso mais cedo? – perguntou numa amarga ironia. – Tivera eu percebido que fazê-lo perder o controlo com mais frequência me valeria uma fortuna maior e teria dedicado os meus dias a seduzi-lo. – Agradeça antes eu ter escrúpulos suficientes para a compensar pelo uso do seu corpo. E por manter o silêncio acerca da forma como me apanhou numa armadilha, e como tinha intenção de o fazer ao Freddie. Ela vacilou. A grosseria dele cortou-lhe a própria respiração: estava a usar o único ato de infinito desespero dela para justificar o seu total egoísmo. Inspirou profundamente e, devagar, deixou sair o ar. – Sempre soube que não sou nenhum prémio, mas pensei que o senhor era – disse. – Pensei que o homem que existia por trás do idiota fosse fascinante. Pensei que ele compreenderia o que é ter de representar um papel o tempo todo. E pensei que sentiria alguma simpatia por mim, porque não é uma vida simples. Estava enganada. Era uma pessoa melhor quando fazia de idiota. O idiota era doce, amável e decente. Lamento não o ter apreciado devidamente quando tive oportunidade. Vês, pensou. Era precisamente por isto que ele precisava de uma companheira de leite e mel, que nunca percebesse que ele não era doce, não era amável e que não se podia confiar em que fosse sempre decente, mas que o amasse terna, cega e incondicionalmente.

Era tanto um castelo no ar como a fantasia dela de uma Capri selvagem e deserta. Tal como ela fizera, nos seus dias mais sombrios, ele agarrara-se à sua improvável visão de um paraíso doméstico. Mas, ao contrário dela, ele não estava preparado para abandonar algo que o sustentara durante tantos anos por uma mulher que não queria amar, exceto quando estava bêbado, solitário ou, por qualquer razão, incapaz de se controlar.

18 as pernas, tinha os pés magoados e as mãos ansiavam por lhe dar D oíam-lhe um estalo. Durante algum tempo, no longo caminho de regresso a casa, ela caminhara à frente dele, até se ter enganado numa curva e ele se ter visto forçado a chamá-la. Depois disso, ela caminhou mantendo-o no seu campo de visão periférica e o silêncio dele foi alimentando com regularidade crescente a zanga que fervia dentro dela. Por que razão acreditara que encontraria segurança e felicidade ao lado de alguém que levava uma vida dupla? Ninguém se lançava num caminho desses sem uma forte dose de auto-repressão. Se tivesse pensado nisto, ter-se-ia apercebido de que por trás do idiota tinha de existir um homem tão reservado e tortuoso como ela. Fora tão parva. Mergulhada numa tempestade de fúria, quase não viu o lacaio que corria na sua direção até ele parar e, a seguir, acertar o passo pelo dela. – Milorde, milady, Mistress Douglas foi-se embora! As palavras dele não faziam o menor sentido. Passou a mão pelos olhos. – Repita isso. – Mistress Douglas foi-se embora! – Para onde? – Para a estação de Paignton, minha senhora. Mas que diabo iria a tia Rachel fazer na estação de Paignton? Não tinha de fazer nenhuma visita que implicasse uma viagem de comboio. – Onde está a Mistress Green? – Sem dúvida que a enfermeira lhe diria que o lacaio estava a delirar.

Mrs. Green também se aproximava, a correr, de olhos arregalados, afogueada. – Minha senhora, Mistress Douglas partiu sozinha! Elissande apressou o passo. De certeza que, quando chegasse ao quarto da tia, veria que ela estava lá, sã e salva. – Porque não a acompanhou, Mistress Green? – Esta manhã demos uma volta no jardim. Depois, ela disse que queria descansar. Parecia não estar bem e eu acompanhei-a lá acima e metia-a na cama. Fui vê-la uma hora mais tarde e o quarto estava vazio. – Então, como sabem que ela foi para a estação de Paignton? – Foi o que o Peters disse. Peters, o cocheiro, estava também já ao lado de Elissande. – Mistress Douglas foi à cocheira e pediu-me que a levasse à estação. Eu obedeci, minha senhora. Elissande parou finalmente. Todos os que a rodeavam pararam também. – Ela disse porque queria ir para a estação de Paignton? – Sim, minha senhora. Disse que ia passar o dia a Londres. E, quando regressei, Mistress Green e Mistress Dilwyn e toda a gente estavam em pânico. A história deixou Elissande esmagada. Não conseguia perceber o sentido daquilo e, parte dela, ainda pensava que tudo não passava de uma complicada partida de primeiro de abril, feita na data errada. Quase sem pensar, olhou para o homem que era ainda seu marido.

– Apareceu algum estranho cá em casa hoje? – perguntou, ainda na sua atitude calma e competente. O coração caiu-lhe aos pés quando ouviu a pergunta. Nesta altura, já Mrs. Dilwyn se tinha reunido ao grupo. – Não, senhor, que eu desse por isso, não. O cocheiro e o lacaio abanaram a cabeça. Todavia, Mrs. Green franziu o sobrolho. – Agora que penso nisso, senhor, houve um vagabundo. Andava a vaguear no caminho à frente da casa quando eu e Mistress Douglas estávamos no jardim. Tentei mandá-lo embora, mas Mistress Douglas, que tem um coração demasiado bondoso, mandou-me ir à cozinha arranjar um cesto com comida. E, quando eu o trouxe, o vagabundo caiu de joelhos à frente dela e agradeceulhe. Não gostei que lhe tivesse agarrado nas mãos e dei-lhe um belo empurrão. Depois disso, ele desapareceu. Elissande pensara que o marido havia ferido de morte a sua felicidade. Quão enganada estivera! Isto podia destroçar a própria base da sua nova vida. – Estou farto de dizer que a lei da vagabundagem anda muito branda nos tempos que vão correndo – declarou Lorde Vere, assumindo de novo o seu papel. – E foi nessa altura que Mistress Douglas ficou com um ar doente, Mistress Green? – É verdade, senhor. Foi. – É uma senhora demasiado delicada para andar em companhias tão grosseiras. – Abanou a cabeça e agarrou no cotovelo de Elissande. – Venha, Lady Vere. De regresso, verificaram que o quarto da tia Rachel estava tão vazio quanto um túmulo saqueado. Elissande cambaleou e apoiou-se à ombreira da porta. Vindo do andar de baixo, chegou o ruído de uma grande agitação. Desceu as

escadas a dois e dois. Alguém avistara a tia Rachel e todos gritavam de alívio – tinha de ser. Tinha de ser. Era apenas um telegrama dirigido a Elissande, que alguém descobrira no meio da correspondência do dia, entregue durante a ausência dos senhores da casa. Minha querida Senti um desejo súbito das ostras gratinadas do Savoy e, portanto, decidi ir até Londres e passar lá a noite. Por favor, não te preocupes comigo, Elissande. Não te esqueças de que te amo muito. A tua tia que te adora Lorde Vere tirou-lhe o telegrama das mãos entorpecidas e passou-lhe uma vista de olhos. Depois, leu o telegrama em voz alta para os criados ouvirem. – Está a ver? Não tem de se preocupar – afirmou. – Foi a Londres, como disse ser o seu plano, e amanhã já estará de volta. Regressem todos às vossas funções. Mistress Green, vá tomar uma chávena de chá e tire o resto do dia. – Mas… Lorde Vere deitou um olhar a Elissande. Esta descontraiu a mão e deitou um sorriso confortador a Mrs. Green. – De vez em quando, ela toma umas decisões um tanto erráticas, Mistress Green. Estamos habituados. Se ela assim o diz, amanhã de manhã estará de volta. Mrs. Green fez uma reverência e foi em busca do seu chá. Os outros criados também dispersaram. Apenas Lorde Vere e Elissande permaneceram no vestíbulo. – Acompanhe-me – disse ele.

Conduziu-a ao seu gabinete, fechou a porta e estendeu-lhe outro telegrama. – Este veio para mim. Poderá querer lê-lo. Ela baixou os olhos sobre o telegrama. As palavras oscilaram e dançaram, recusando-se a combinar-se em frases coerentes e estruturadas. Teve de fechar os olhos e tornar a abri-los. Caro senhor Chegou ao nosso conhecimento que Mr. Douglas se encontra desaparecido. Não foram identificados nem o método de fuga nem o seu paradeiro atual. Mas as autoridades gostariam de o alertar para o facto de andar a monte e solicitam a sua ajuda para o devolver à prisão. Cumprimentos, etc. Filbert – O vagabundo era ele – disse, inexorável, Lorde Vere. – Deve ter dado à sua tia instruções para ir ter com ele. Fechou-se um torno sobre o peito de Elissande. Não conseguia respirar. Quatro dias antes do julgamento, o tio perseguira a tia em plena luz do dia. E, entretanto, onde estava Elissande? Num castelo em ruínas, com o coração ao pé da boca, a tentar conquistar o coração do filho da mãe que era o seu insensível marido. O mesmo marido que estava a tentar que ela pegasse num copo de uísque. – Beba. O uísque deixou um rasto de fogo pela sua garganta abaixo. Tornou a virar o copo. Já estava vazio.

– Preciso de mais. – Agora, não. Não tem grande resistência ao álcool. Encostou o copo vazio à testa. – Não percebo, nada disto faz sentido. Ela não estava sozinha. O meu tio não a agarrou pela garganta e raptou sem mais. Porque teve ela de ir ter com ele de livre vontade? – Ele deve ter feito ameaças à sua segurança, à minha, possivelmente à de ambos. – É um fugitivo. Tem a lei atrás dele. Não pode fazer nada contra nós. – Não o conhece tão bem como ela. Ofendeu-se com a afirmação. – Vivi com ele a minha vida toda. Ele olhou para ela durante um longo momento, como se ela fosse uma criatura prestes a ser conduzida ao matadouro. – Não se quer sentar? Tenho uma coisa para lhe dizer. Ele tinha uma coisa para lhe dizer. Acerca do tio dela? De súbito, passaram-lhe à frente dos olhos os acontecimentos das últimas semanas. Centenas de ratos a arranjar maneira de entrar em casa de Lady Kingsley, um homem muito inteligente hospedado em Highgate Court disfarçado de idiota, esquivando-se pelos cantos e, poucos dias depois, a polícia tem na sua posse provas suficientes para prender o tio. Quais eram as hipóteses de tudo não passar de uma série de acasos? Sentou-se. Ou talvez as suas pernas tenham cedido debaixo dela. – Esteve metido em tudo, não esteve? Não veio para minha casa por Lady

Kingsley ter tido um problema com ratos, veio porque andava à procura de provas contra o meu tio. – Vejo que podemos saltar essa parte – disse num tom ligeiro. – Trabalha para a polícia? Ele arqueou uma sobrancelha. – Claro que não, os marqueses não trabalham. Se bem que seja possível que, de vez em quando, preste alguma assistência à polícia. Com os dedos, pressionou a cana do nariz. – O que me queria dizer? – Sabe como foi que se conheceram? – De o ouvir contar, foi um caso de caridade e compaixão da parte dele. Quando regressou da África do Sul, ele vinha muito rico. Ela era uma senhora em má situação porque o pai tinha morrido na pobreza a seguir à falência do seu banco e a irmã tinha fugido de casa para se tornar prostituta. Claro que o meu tio interveio e resgatou-a a uma vida de miséria e desespero. – Alguém os deve ter apresentado um ao outro já depois de ele regressar da África do Sul, mas penso que ele já andava de olho nela muito tempo antes disso. Dentro dela, algo vibrou perigosamente quando escutou esta novidade. Sempre tivera por garantido que sabia tudo o que havia a saber acerca da tia e do tio. – Porque pensa assim? – Por causa dos quadros em Highgate Court. O Freddie identificou um quadro parecido, feito provavelmente no final da década de sessenta. Ontem, fui a Kent vê-lo. Também tem um anjo e um homem: o anjo está todo de branco e o homem está de joelhos, em êxtase. O anjo tinha a cara de Mistress

Douglas. O artista, que penso ter sido o seu tio, vendeu o quadro para financiar a viagem para a África do Sul. – Ele foi para a África do Sul por causa dela? – Talvez não tenha sido por causa dela, mas parece que já andava com ela bastante na cabeça. Um sentimento próximo da obsessão. Ela levantou-se. Já não era capaz de ficar sentada. – E o que aconteceu a seguir? – Ele falhou: o seu tio ou não tem sorte ou faro para os negócios, talvez nenhuma das duas coisas. Mas uma pessoa que ele conhecia encontrou uma jazida e gabou-se disso a toda a gente que se dispusesse a ouvi-lo. O homem ia regressar a Inglaterra para gozar a sua riqueza recém-descoberta. Chamavase Edmund Douglas. A torpitude que se insinuava no que ele estava a contar, não queria ouvir mais nada. No entanto, tinha de saber tudo. – Continue – pediu em voz rouca. – Tenho razões para crer que o seu tio assassinou o verdadeiro Edmund Douglas algures entre a África do Sul e Inglaterra. Quando cá chegou, o seu tio estabeleceu-se como Edmund Douglas, utilizou as letras de crédito do morto e casou fraudulentamente com a sua tia. Pensara que estava preparada para ouvir o pior. Mesmo assim, o copo de uísque caiu-lhe da mão. Tombou no tapete com um baque surdo e rolou para longe. – Foram feitas algumas investigações na África do Sul. As pessoas que conheciam bem Edmund Douglas antes de ele abandonar as minas recordamno como um homem com um sotaque escocês cerrado e uma cicatriz por cima do olho esquerdo, resultado de uma rixa de bar que correra mal antes de abandonar a Inglaterra.

– Porque… porque nunca ninguém suspeitou que o meu tio era um impostor? – Ele é esperto. Instalou-se numa zona remota e tem pouco convívio social; nunca regressou à África do Sul; e é também possível que tenha assassinado o único familiar que Edmund Douglas tinha em Inglaterra. Ela estremeceu. – Mas creio que a sua tia descobriu tudo. Ela agarrou-se com força ao espaldar de uma cadeira. – Tem a certeza de que não posso beber mais um uísque? Ele pegou noutro copo e serviu-lhe mais um pouco. Ela engoliu-o tão depressa que mal sentiu a sua queimadura. – Como descobriu a minha tia? O marido olhou para ela. – Não sei. Numa vida de casadas, as pessoas acabam por descobrir todo o tipo de coisas. – É só essa a explicação que tem? – É a minha explicação para a razão da forma de agir do seu tio. Considerase um herói romântico, capaz de ir ao inferno e voltar por amor. Ela estremeceu de novo. – Disse-me isso da última vez que estivemos em Highgate Court. – Por isso, perpetrou o crime derradeiro, possivelmente mais do que uma vez, pela mulher que considerava ser o seu anjo. Ficou impressionado consigo mesmo. Todavia, quando ela descobriu o que ele fizera, como qualquer pessoa lúcida, não só não ficou impressionada como ficou horrorizada e chocada. E ele viu a atitude dela como a traição do anjo: a mulher não apreciava os

sacrifícios que fizera por ela e, em vez disso, sentia aversão por ele. Foi por isso que a pintou a fugir dele, depois de o ter trespassado com uma espada. – E foi por isso que agiu com tanta crueldade ao longo destes anos todos – murmurou ela. – Nunca teria contado esta história a uma pessoa que não tivesse nervos de aço, mas a senhora aguenta. E precisa de saber a verdade para perceber porque é que a sua tia está tão aterrorizada, mesmo sabendo que ele anda a monte. Para perceber com o que estamos a lidar. Ela tentou alargar a gola do vestido. – E a polícia pode ser útil? – Vamos precisar da polícia, claro, para que o prendam. Mas até lá, tenho as minhas reservas, especialmente em envolver a polícia municipal… não estão preparados para lidar com o resgate de reféns. Além do mais, não dispomos da menor prova do envolvimento dele. Tanto quanto sabemos, Mistress Douglas foi sozinha para Londres, o que é perfeitamente livre de fazer. Ela deixou-se cair em cima de uma cadeira estofada e apertou a cara com as mãos. – Então, limitamo-nos a esperar? – O seu tio vai entrar em contacto consigo. – Parece muito seguro. Ouviu-o sentar-se na cadeira perto da dela. – Diria que o seu tio é uma pessoa vingativa? – perguntou, baixinho. – Sim. – Então, acredite que ele ainda não terminou. Limitar-se a recuperar a mulher está longe de ser vingança que baste. Vai querer fazer qualquer coisa

contra si, também. Ela soltou um gemido. – Quanto tempo vamos ter de esperar? – O meu palpite é que vamos receber notícias no correio da tarde. Feitas as contas, o tempo não o ajuda. Não queria, mas soltou outro gemido de medo. Dobrou-se e escondeu a cara entre os joelhos. Para alívio de Vere, ela não se deixou ficar prostrada, numa atitude de derrota, durante muito tempo. Levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro, percorrendo a sala em todas as direções, ignorou o almoço que Vere pedira que lhe trouxessem, mexeu o chá sem o beber e, a cada minuto, foi deitando olhares pela janela. Ele escrevinhara vários telegramas e enviara-os. Almoçou e bebeu o seu chá. Chegou mesmo a passar uma vista de olhos pelo correio que chegara durante a manhã. E agora também não havia mais nada que pudesse fazer exceto observar a agitação da mulher. – Porque guarda um livro na sua gaveta da roupa interior? – perguntou. O melhor a fazer era manter a sua atenção afastada das piores possibilidades do resto da espera que tinham pela frente. Ela tinha estado a tirar e a pôr objetos ao acaso na pedra da lareira. Voltouse, quando ouviu a pergunta: – Foi mexer nas minhas coisas? – Tive de revistar a casa toda. O seu quarto não foi exceção. Mas, claro, o quarto dela fora uma exceção. Já vasculhara muitas peças de roupa interior de senhora no decurso do seu trabalho, mas nunca demorara tanto tempo como quando se ocupara da roupa dela, macia e impecável. O que

acontecera já depois de perceber que os sorrisos dela não passavam de ferramentas. – Para que saiba, deixe-me dizer-lhe que não encontrei nada de interesse… excetuando, como já disse, nunca ter encontrado um guia de viagens entre a roupa de baixo de uma mulher. Ela sentou-se no assento da janela numa atitude rígida e tensa. – Fico encantada por lhe ter proporcionado um momento de diversão. Só para que saiba, o livro estava só descuidadamente guardado entre a minha roupa de baixo quando o meu tio se ausentava. Quando estava em casa, mantinha-se bem escondido dentro de um volume oco de uma coisa qualquer grega, numa prateleira onde havia trezentos outros livros em grego. Ele dominava cinco línguas para além do inglês e não prestara atenção à escassez de livros em inglês na bibiloteca de Douglas. Mas, para alguém que não fosse versado nos idiomas continentais, uma visita àquela biblioteca devia ser um tormento tão grande como morrer de sede no meio do oceano. Subjacente a cada pormenor da vida dela estava uma história de opressão. Contudo, ela saíra daquilo não só com o seu ânimo intacto, mas com uma capacidade de alegria que só agora começava a perceber. Que agora nunca conheceria totalmente. A ideia foi um punhal no seu coração. – O livro que estava na sua gaveta era um guia do Sul de Itália. Tem um capítulo sobre Capri, calculo? – Nem por isso. Havia um livro melhor, mas perdi-o quando o meu tio fez a purga à biblioteca. Sem o desejar, foi assaltado pelas recordações dessa noite: os braços fechados à volta dele, a sua voz encantadora a falar da sua ilha distante. Ele apercebeu-se de que nunca parara para pensar no que a sua companheira leitee-mel faria uma vez confrontada com os pesadelos dele. Simplesmente, partira

do princípio que já não existiriam quando tivesse o seu modelo ideal, puro e gentil. Ela estivera a olhar pela janela, mas agora virara-se para ele: – Porque me obrigou a ouvi-lo cantar? É um cantor detestável. – Estava um arrombador de cofres a trabalhar no quarto da sua tia. Tinha de a manter afastada. – Devia ter-mo dito. Eu teria segurado a luz para o iluminar. – Não podia dizer-lho. A senhora parecia muito feliz por viver em casa do seu tio. – Mais parvo é. Podia-se ter poupado ao suplício deste casamento. Ele tamborilou com a caneta na escrivaninha. De repente só era capaz de recordar os momentos de surpreendente felicidade. A soneca no comboio; o solilóquio dela, cheio de erros inqualificáveis, sobre compotas, que o fizera sorrir durante metade do dia seguinte enquanto caminhara incessantemente; a noite anterior. – Não diria que este casamento seja um suplício. Tem sido mais um fardo. Com força, ela arremessou um pequeno vaso com uma planta para a outra ponta da sala. O vasinho de barro estilhaçou-se contra a pedra da lareira. A terra e a orquídea espalharam-se pelo chão com um sonoro pum. – Tem toda a minha simpatia – disse ela. – Apresento-lhe as minhas sinceras condolências. A sua companheira ideal não conhecia a zanga. A sua voz nunca soaria carregada de sarcasmo e, claro, uma vez que não era real, era-lhe fácil não sentir emoções fortes, ser só sorrisos e festas e perfeição generalizada. Fixou o olhar na muito real mulher sentada junto do peitoril da janela, desgastada mas indómita. Eram intensas todas as suas emoções: a sua fúria, a

sua desilusão, o seu desespero – e o seu amor. Pegou no prato das sanduíches que estava em cima da escrivaninha e aproximou-se dela. – Não fique com fome. Não a ajuda e, com toda a certeza, não vai ajudar a sua tia. Ela fez uma careta como se o prato estivesse cheio de escorpiões. Mas, no instante em que pensou que ela ia atirar com ele ao chão, ela aceitou. – Obrigada. – Vou pedir outro bule de chá. – Não precisa ser tão simpático comigo. Não vou apreciar a atenção. Quanto a isso, ele sabia mais do que ela. – Errado: nunca conheci nenhuma mulher que ficasse mais grata pelas pequenas gentilezas. Ela deitou-lhe um olhar carrancudo e virou os ombros para a janela com uma determinação ainda mais forte. À tarde, o correio trouxe uma carta da tia Rachel. Querida Elissande A caminho de Londres, no comboio, encontrei uma velha amiga minha dos tempos de escola. Imagina a minha alegria! Decidimos sair em Exeter e dar uma volta para apreciar a zona. Mrs. Halliday gostava de te conhecer. Ela sugere que apanhes o comboio que sai de Paignton às 7 da noite e desças na estação de Queen Street. Vai ter connosco ao Rougemont. A tua tia que te adora

P.S. – Vem sozinha, ela não gosta de desconhecidos. P.P.S. – Põe as tuas melhores joias. Elissande estendeu a carta a Lorde Vere. – Não tenho joias. Era a última das ironias, já que o tio fizera fortuna no negócio de diamantes. As joias eram uma forma fácil de transportar dinheiro, uma riqueza com uma grande liquidez; claro que o tio não queria que ela tivesse joias. – Tenho algumas peças da minha mãe. Vão ter de servir. Esfregou a têmpora. Ainda não se tinha apercebido do facto, mas havia já um bocado que tinha a cabeça a latejar. – Então, apresento-me no Rougemont e calma e resignadamente entrego as joias da sua mãe? – A senhora, não. Nós. Eu vou lá estar. – Leu o que dizia a mensagem. Tenho de ir sozinha. – Ao seu tio, vai parecer-lhe que está sozinha, mas eu vou lá estar. Eu protejo-a. – Mas se viajarmos juntos… – A senhora vai fazer o que lhe disseram e apanhar o comboio das sete da noite. Eu vou apanhar um comboio para Exeter mais cedo e vejo que preparativos posso fazer. Ela não estava à espera que ele fosse à sua frente. Não queria ficar sozinha agora. Queria, precisava, não importava o que ela queria. Se havia alguma coisa que ele pudesse fazer em Exeter para a ajudar a recuperar a tia Rachel sã e salva, então devia ir para Exeter.

– Certo. Ele aflorou-lhe a manga. – Se alguém consegue fazer isto, é a senhora. – Certo – repetiu ela, afastando a memória do que acontecera da última vez que se encontrara a sós com o tio. Deitou-lhe um olhar breve. – Ainda disponho de alguns minutos antes de sair. Deixe-me ajudá-la a arranjar-se.

19 abandonou a estação de Queen Street às oito horas e dois minutos. E lissande Exeter era, provavelmente, uma cidade simpática e vulgar. Naquela noite, contudo, a sua escuridão pouco familiar acolhia um mal que lhe era por de mais familiar. E ela só desejava poder voltar para trás, re-entrar na estação e apanhar o próximo comboio para casa. Olhou à sua volta, na esperança de ver o marido, o seu aliado. Contudo, no fluxo contínuo de gente que entrava e saía da estação, não viu ninguém com a altura e envergadura dele. Nesse momento, o seu coração parou. Ali, encostado ao segundo candeeiro a contar dela, sob a luz alaranjada, estava o tio, de olhos franzidos, a estudar um horário de comboio. O fato de passeio castanho fora feito para alguém com menos cinco centímetros e dez quilos mais. Tingira o cabelo de cinzento, ficando com um ar dez anos mais velho. E tinha bigode, ele que sempre andara de cara rapada. Mas ela reconheceu-o quando sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Se alguém consegue fazer isto, é a senhora. Não conseguia, mas tinha de o fazer. Não tinha escolha. Olhou de novo à sua volta, procurando Lorde Vere, nem o mais pequeno sinal dele. Rezou uma oração muda e avançou na direção do tio. – Peço desculpa, senhor. Sabe indicar-me o caminho para o Rougemont? O homem que toda a vida conhecera como Edmund Douglas enfiou o horário do comboio num bolso. – Boa noite para ti também, minha querida Elissande. Vieste mesmo sozinha? – Gostaria de pensar que tenho mais amigos neste mundo. Mas o senhor

garantiu que não tinha mais ninguém para além da minha tia. – E aquele muito amado marido? – Diverte-o que eu esteja casada com um idiota? O tio riu baixinho. – Não posso negar que há, como dizer, um certo je ne sais quoi em toda a situação… não há dúvida de que ele é o maior cretino desde o próprio Cláudio, e tu vais ter um bando de crianças imbecis. A não ser isso, estou encantado por te ver tão feliz e proveitosamente arrumada. – É bem certo que está com um ar encantado. A vida de fugitivo combina consigo. Pareceu ficar ligeiramente surpreendido com o sarcasmo na voz dela. Depois, a sua expressão endureceu. – Pelo contrário, incomoda-me muitíssimo. Sou demasiado velho para andar a saltar de um lado para o outro e o mesmo se passa com a tua tia… devíamos assentar em paz e conforto. E é aqui que entras no teu papel respeitoso, minha querida sobrinha, de nos proporcionar a dignidade que, na nossa idade, já não podemos dispensar. – Isso depende. – A firmeza da sua voz surpreendeu-a até a ela. Por qualquer razão, pensara que regressaria aos seus sorrisos falsos. – A minha tia está bem? – Claro. E encantada por me rever. – Quanto a isso, tenho grandes dúvidas. Vamos vê-la? O olhar do tio ficou duro; a voz ficou ainda mais suave. – Tanta preocupação. Não precisas de te apoquentar. Quem melhor para cuidar de uma mulher do que o homem que é o seu marido há vinte cinco anos?

Ela não respondeu e os dedos apertaram-se com força à volta da bolsa que levava. – Vamos até um sítio mais simpático conversar – murmurou o tio. O Rougemont era praticamente à frente da estação, do outro lado da rua. Mas Edmund Douglas mandou parar um fiacre. Afastaram-se do centro da cidade, desceram em direção ao rio Exe e viraram para uma ruela com ar miserável. As casas eram velhas, a rua cheirava a bolor e canalizações estragadas. Ele conduziu Elissande para um prédio estreito de três andares, que devia estar vazio havia já algum tempo. A chama de uma única vela revelou espessas camadas de pó nos parapeitos das janelas e nas pedras das lareiras, não obstante o chão parecer ter sido varrido recentemente. Nas suas costas, a porta foi fechada à chave. Agora ninguém ouviria os seus gritos quando ele a esmurrasse com toda a força. Começou a transpirar. Para já, no entanto, a sua voz manteve-se firme: – Onde está a minha tia? – Tens-lhe tanta estima! – O tio atravessou o estreito vestíbulo, arrastando atrás de si a sua sombra, comprida e escura. – É de perguntar o que fez ela alguma vez por ti. Dedicou-se ao teu bem-estar? Instruiu-te nas artes femininas? Procurou-te um bom casamento? Não, não fez nada por ti… a não ser tornar-te escrava da sua invalidez. No entanto, vens a correr assim que ela te abandona por poucas horas. – Eu, por outro lado, proporcionei-te uma bonita casa e uma vida afortunada. Mas tu não te deste ao incómodo de me visitares uma única vez enquanto estive detido. – Estive em lua de mel – disse. – Todavia, teria estado presente no seu julgamento. Ele dirigiu-lhe um sorriso que fez com que os cabelinhos da sua nuca se

espetassem. – Espero que tenhas trazido joias adequadas. – Primeiro, quero ver a minha tia. – Primeiro, eu preciso de um sinal de boa fé. Ela entregou-lhe o colar de diamantes e esmeraldas que o marido lhe dera. Era a coisa mais extravagante que alguma vez vira em toda a sua vida, com esmeraldas maiores do que soberanos e diamantes tão numerosos quanto as estrelas no céu. Douglas, habituado a lidar com pedras preciosas, limitou-se a pegar no colar e a enfiá-lo no bolso. Ela encontrava-se num estado de alerta dilacerante, mas, ainda assim, não reagiu a tempo. O murro do tio fê-la recuar vários passos. Ter-lhe-ia partido a maxila? Não era capaz de o dizer. Toda a metade esquerda da cara dela estava em fogo. – Põe-te de pé, minha cabra traidora. Vacilante, pôs-se de pé. O murro seguinte deixou-a sem ver. Caiu de novo. – Levanta-te, sua canalha inútil. Pensavas que me deixavas a apodrecer na prisão, não pensavas? Pensavas que podias virar-me as costas como agradecimento pela minha bondade. E pensavas que eu não reparava? De pé! Ela deixou-se ficar no chão sujo, mole como uma folha de papel encharcada. O tio inclinou-se e agarrou-a pela parte da frente do vestido. – Tu não aprendes, pois não? Uma vida inteira e ainda não aprendeste o tipo de amor e respeito que me deves. Era a melhor oportunidade de que disporia. Ela fez baloiçar a bolsa de mão, batendo-lhe com ela na cabeça com toda a força de que foi capaz. Ele gritou,

porque se tinham preparado bem, ela e o marido, e a bolsa, de ar aparentemente delicado, escondia nada mais, nada menos do que um disco de ferro com meio quilo, parte do conjunto de halteres do marido. Durante toda a viagem, ela fora reforçando as costuras e tiras da bolsa. Ele cambaleou, escorria-lhe sangue da fronte. Mas ela não parou: voltou a dar impulso à bolsa, batendo-lhe em cheio no outro lado da cara. Ele grunhiu. Conseguiu bloquear o terceiro golpe dela com o braço. Ela ainda teve esperança de lhe ter partido o antebraço, mas ele atirou-se a ela com o rosto distorcido pela fúria. – Como te atreves? Estúpida rapariga! De repente, também ela ficou a ferver de raiva. É claro que se atrevia, será que ele não sabia, o estúpido do homem que se achava tão esperto, que ela se atrevia a quase tudo, quando o que estava em jogo era a liberdade dela e o bem-estar da tia? Ela voltou a bater-lhe com a bolsa, com rapidez e força, desta vez num ângulo oblíquo, atingindo-o no queixo. Ele recuou, cambaleante. Batia-lhe com toda a força, impelida pela repulsa e aversão que ele lhe inspirava. Por tudo o que fizera à tia Rachel e a ela própria, roubando-lhes os melhores anos da vida das duas, mantendo-as presas e sufocadas, banqueteando-se com o medo e a angústia das duas, como um vampiro numa veia aberta. Nunca mais. Nunca mais. Vere aproximou-se da casa, a pé. Numa janela do outro lado da rua, levantouse uma cortina e uma mulher espreitou para fora de uma sala suja e mal iluminada. Ele cambaleou, como se estivesse embriagado, deu um encontrão a um candeeiro, enfiou a cabeça num marco do correio e, finalmente, à frente da casa para onde a mulher e o tio tinham desaparecido, virou-se de costas para a rua e fingiu estar a urinar, a julgar pelo cheiro que pairava por ali, não seria o primeiro a fazê-lo.

Trinta segundos mais tarde, a mulher não só correra a cortina como fechara bem as portadas. Ele foi até à porta da casa e pôs-se à escuta. Elissande e Douglas estavam a conversar, mas o tom de voz era demasiado baixo para que conseguisse perceber as palavras. Sentia o coração bater como nunca lhe acontecera em outras investigações: de medo. Parecia que nada tinha ainda acontecido, o que estava a deixar-lhe os nervos ainda mais à flor da pele. Dentro das suas ásperas mitenes de condução, as palmas das mãos transpiravam-lhe: outra coisa que nunca lhe acontecera. Arrancou as mitenes, limpou as mãos às calças e tirou para fora um molho de gazuas. Douglas não iria pôr a mulher perto de uma porta. Deviam deslocar-se mais para o interior da casa para que Elissande a visse. Quando o fizessem, ele podia atirar-se ao trabalho. Olhou de relance para trás de si. Raios, havia outra pessoa a olhar por aquela janela. O candeeiro da rua deitava uma luz enevoada, quase castanha, mas ainda assim suficiente para que alguém reparasse em atividades à margem da lei, que empreendesse. Deu dois passos, deitou a mão à coluna que suportava o toldo de tecido miserável à frente da casa e começou a esfregar-se nele. A cortina fechou-se com grande rapidez. Quando se aproximava de novo da porta, ouviu um grito de dor. Um grito de dor de um homem. Linda menina: tinha ouvido com absoluta atenção quando ele demonstrara qual era a melhor maneira de atacar com uma bolsa carregada. Douglas guinchou outra vez. Excelente. E foi então que ela gritou. Debateu-se com as gazuas. Foi só quando tentava pela terceira vez inserir uma delas na fechadura que notou que tinha a mão a tremer.

As mãos nunca lhe tremiam. Ela gritou outra vez. Que se lixe! Retirou a gazua e deu um pontapé na porta. Não cedeu logo. Deu outro pontapé. As dobradiças estilhaçaram-se. A dor na canela parecia que esta também se estilhaçara. Não queria saber. Mais um pontapé e a porta abriu-se para trás. O tio caiu quando as tiras da bolsa se partiram. Com um baque, o peso bateu no chão e rebolou, afastando-se um pouco. No sítio onde bateu ficou uma marca. Ela estava ofegante, ainda furiosa, em dificuldades para conseguir inspirar ar suficiente. Nas suas costas, a porta abriu-se com um grande estrondo. Um desconhecido grande e corpulento, com um cabelo revolto e um bigode de pontas reviradas correu na sua direção. Quem era aquele homem? Algum rufia contratado pelo tio? Não, espera. Tratava-se do cocheiro do fiacre que a trouxera até àquela casa. – Elissande, por amor de Deus, está bem? Mal teve tempo de reconhecer a voz do marido antes de ele a envolver num grande e doloroso abraço apertado. Enterrou a cara no casaco de lã áspera que cheirava a cavalo e a uma bebida forte e horrível. Estivera lá, tal como prometera. Não ficara sozinha. Ele afastou-se e tomou o pulso ao tio.

– Está vivo e bem vivo. Eu vigio-o. Há corda e lanternas na caixa do fiacre. Vire à esquerda quando sair da casa. Ela agarrou nas saias e correu. Na rua teve um momento de confusão, já que estavam ali não um mas dois fiacres. Um deles ainda tinha o cocheiro empoleirado no seu lugar, pelo que ela foi até ao que se encontrava vazio, retirou a corda e as lanternas e correu de volta para a casa. Vere pegou na corda que lhe entregou, revistou o tio ainda desmaiado à procura de armas, retirou-lhe uma pistola e o colar, e atou-lhe os pés e as mãos. De seguida, deu-lhe um abraço bastante mais longo. – Deus do céu, assustou-me. Do lado de fora da porta só consegui ouvir uma grande balbúrdia, o seu tio aos berros e a senhora aos gritos. Temi o pior. – Gritei? Não fazia ideia. – Talvez a frase Nunca mais! não estivesse só dentro da sua cabeça. Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos. – Amanhã vai estar com um aspeto horrível. Temos de pôr aí uma compressa de gelo, o mais depressa possível. – A minha tia! – lembrou-se de súbito. – Temos de a encontrar. A casa tinha uma escada de caracol. Vere arrastou o tio até junto dela, de modo a que pudessem vê-lo de qualquer ponto da escada. Procuraram por toda a casa, em grande parte vazia, ao mesmo tempo que iam fazendo um ao outro breves relatos do que se passara desde que tinham chegado a Exeter. Ele fora a um bar de gim e fizera um solitário cocheiro independente muito feliz ao pagar-lhe muito mais do que valiam o cavalo e o fiacre. O homem ficara tão contente que nem sequer lhe pedira mais dinheiro quando Vere lhe pediu também o casaco. Encontraram a tia Rachel no sótão, num minúsculo quartinho de criados, seguindo os sons abafados que ela fez em resposta aos gritos deles. Lorde Vere arrombou a fechadura num ápice. A tia Rachel estava deitada de costas

no chão duro e poeirento, amarrada e amordaçada, mas plenamente consciente. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando viu Elissande correr na sua direção. Foi Vere quem a libertou – numa atitude previdente, trouxera um canivete consigo. Elissande beijou a tia, que chorava baixinho, agarrada a ela, e esfregou-lhe os braços e as pernas para restabelecer a circulação. – Tem fome, Mistress Douglas? Ou sede? – perguntou Vere. Ele tinha arrancado a cabeleira preta e o grande bigode negro, o que, à primeira vista, assustara a tia Rachel. Ela abanou a cabeça. Parecia demasiado envergonhada para falar. Ele percebeu logo do que se tratava. – Vou ver o seu tio, Elissande – disse. Elissande ajudou a tia a usar o bacio. Depois de se ter aliviado, Elissande prendeu-lhe o cabelo o melhor que pôde, alisou-lhe a roupa amarrotada e calçou-lhe os sapatos. A seguir, com o braço da tia passado sobre os ombros de Elissande e o dela em torno da cintura da mulher mais velha, dirigiram-se para fora do quarto e começaram a descer as escadas devagar. Reuniram-se ao marido um andar mais abaixo. – Dá-me licença? – Entregou a lanterna a Elissande e, com todo o cuidado, pegou na tia Rachel ao colo. Esperou que Elissande passasse à sua frente para descer as escadas, iluminando-lhe o caminho. Ela olhou para ele por um instante, olhou para aquele homem impressionante e complicado. No ardor de felicidade que sentira por ter conseguido salvar a tia, esquecera que já o perdera, ou melhor, que ele nunca, nem de perto nem de longe, fora seu. Não era possível ter tudo. Por agora, bastava-lhe ter a tia Rachel de volta. Quando chegaram ao piso térreo, Elissande estava outra vez a olhar para trás,

para o marido e a tia, como fizera várias vezes enquanto desciam as escadas. Por isso, foi Vere quem primeiro viu o inevitável. – Lady Vere, creio que o seu tio recuperou a consciência – disse. Nos seus braços, a tia Rachel estremeceu. Para a acalmar, Elissande pousou-lhe uma mão no ombro. A alegria por saber que a tia estava em segurança esmoreceu: o tio estava ainda vivo, ainda capaz de as magoar e perseguir. Estava realmente com ar disso: à luz bruxuleante das lanternas, o olhar dele era gelado e a cara ensanguentada exibia uma arrogância tão sinistra como sempre. Tinham chegado ao fundo das escadas. – Para onde devo seguir, minha cara? – perguntou Vere. O tom da voz dele serviu de aviso a Elissande: era ela quem tinha de dar instruções. Ela tocou-lhe no cotovelo, indicando que compreendera. – Por favor, gostaria que fosse à esquadra da polícia e trouxesse o inspetorchefe e tantos polícias quantos conseguir convencer a deslocarem-se consigo. Eu fico aqui para vigiar as… coisas. – É para já, milady. – E leve Mistress Douglas consigo. Já passeou demasiado tempo nesta casa. – Com certeza. – Pousou a tia Rachel no chão com o maior cuidado. – E agora, Mistress Douglas, vamos para a porta. – Portanto, vais alegremente entregar-me à polícia depois de me ter dado a tantos trabalhos para vir ver-vos às duas? – perguntou o tio. As palavras saíam-lhe entarameladas, o que não era costume nele. Elissande esperava terlhe causado danos sérios e permanentes ao maxilar, mas, como era hábito, a ameaça lá estava, um veneno que destruía lenta mas inexoravelmente.

– Sim – retorquiu-lhe, com uma satisfação imensa. – Todos estes anos a fazer o papel do pai que nunca tiveste e a gratidão que recebo é esta. Ela sorriu, o primeiro sorriso que quisera fazer ao tio em todos «estes anos». – Receberá rigorosamente todos os agradecimentos que merece. – Misericórdia zero, então? – A maldade gelada e pura nos olhos dele tê-laia aterrorizado, não fora dar-se o caso de estar atado com mais força do que a bolsa de Ebenezer Scrooge15. – E irás também assistir ao meu enforcamento? – Não – respondeu. – Não tenho o menor desejo de voltar a vê-lo. Dirigiu-se a Vere. – Por favor, vá depressa. – Vou – respondeu. Ofereceu o braço à tia Rachel. – Mistress Douglas? A tia Rachel deitou um olhar rápido e apreensivo na direção do marido e colocou a mão no braço de Vere. – Estou a ver que os votos matrimoniais não têm mais significado para ti do que um jogo de charadas, Rachel – disse Douglas. – Mas a verdade é que nunca tiveram, pois não? A tia Rachel hesitou. Elissande decidiu que era inútil continuar a mentir. – Não escute nada do que ele diz, tia. Eu sei que ele casou consigo de maneira fraudulenta; não está em posição de dar lições sobre a solenidade dos votos a quem quer que seja. A tia Rachel encarou-a. – Como… como soubeste?

– Fraudulenta – troçou o tio. – Tu também és responsável pela tua dose de fraudes, não és Rachel? Conheço as tuas mentiras. Sei a verdade acerca do que aconteceu à Christabel. A tia cambaleou. Vere amparou-a. – Sente-se bem, Mistress Douglas? A respiração dela tornou-se rápida e forte. – Se me dão licença… se puder descansar um bocadinho. Vere ajudou-a a sentar-se num dos degraus mais baixos. Elissande sentou-se a seu lado e abraçou-a com força. – Chiu… vai ficar tudo bem. O tio riu-se baixinho. – Achas? E porque vai ela ficar bem quando eu nunca estive, ao longo destes vinte e quatro anos? – Olhou para a tia Rachel. – Tudo o que fiz na vida foi por ti que fiz. Para ser merecedor da tua mão, para te dar uma vida digna de uma princesa. Idolatrava-te. Eu idolatrava-te! A tia Rachel começou a tremer. Elissande mordeu o lábio inferior. A mão estava ansiosa por agarrar na bolsa. Em vez disso, pôs-se de pé. – Podemos amordaçá-lo? – perguntou a Vere. – Já o ouvi hoje que baste. – Trouxe clorofórmio – respondeu. Ela apertou-lhe o braço por um instante. Podia sempre contar com ele numa situação destas. – Não sejas assim, minha querida – disse o tio. – Estou disposto a fazer um

acordo contigo. Se não queres voltar a ter notícias minhas, deixa-me ir e levar o colar. Ela teve um riso de incredulidade. – Mas que propostas faz, senhor. Permita-me que lhe recorde que, quando estiver pendurado na forca, também nunca mais terei notícias suas. E nós ficamos com o colar. Douglas teve um risinho. – Não queres ouvir um conselho da tua tia? Mistress Douglas, não acha que a nossa querida sobrinha, com todo o desprezo e ódio que nutre por mim, pagaria bastante para ter o meu silêncio? A tia Rachel olhava, sem expressão, para os pés, ainda a tremer. – Rachel! – O tio chamou-a, com brusquidão. A tia deu um salto e, relutante, olhou para ele. – Não dirias, Rachel, que há segredos que é melhor deixar… enterrados? A tia Rachel encolheu-se. Elissande estava farta destes jogos do gato e do rato. – Milorde, por favor, dê-me o clorofórmio. – Então, conto tudo agora – retorquiu o tio, sem dúvida ainda a pensar que ainda era o senhor de Highgate Court e que o mais insignificante dos seus olhares fazia tremer o mundo. – Não! – gritou a tia Rachel. – Não, Ellie, ele tem razão. Deixa-o ir. – Nem pensar! – A voz de Elissande tornou-se mais aguda de frustração. Não era possível que a tia se deixasse manipular com tanta facilidade, estando o seu torturador atado e indefeso e ela própria acompanhada e protegida. –

Não podemos confiar nele. Hoje deixamo-lo ir e ele volta daqui a seis meses. E pense em todas as pessoas que ele assassinou: as suas almas não merecem alguma justiça? – O verdadeiro Edmund Douglas fez coisas atrozes aos e com os nativos – disse, melífluo, o tio. – Por isso, não te passe pela cabeça que estás a vingar um inocente puro e sem mácula. – Não me interessa. Vou calá-lo. Vou à esquadra e denuncio-o. E vou contratar guardas privados para que não torne a fugir. O tio suspirou. – Ora ouve, Rachel. Eu devia realmente ter-me interessado mais por ela, não achas? O arrojo, a falta de compaixão, a determinação em calcar aos pés qualquer obstáculo que lhe surja no caminho: lembra-me de como eu era quando tinha a idade dela. – Não se atreva a comparar-se comigo – cortou, ríspida, Elissande. – E porque não? És da minha carne e do meu sangue. Porque não haveria de nos comparar? Uma premonição terrível percorreu-lhe a espinha. Mas ignorou-a. – A sua filha morreu em criança. Não sou da sua família a não ser por afinidade. O tio sorriu, um sorriso que teria transformado o Mediterrâneo num glaciar. – Não, minha menina, a tua prima morreu. A minha filha não. Foi como se Golias lhe tivesse dado uma pancada na cabeça com a sua própria bolsa. – Está a mentir! – gritou por reflexo. – Sabes, a tua mãe desmascarou-me – prosseguiu, com a voz calma. – E eu

chorei e implorei-lhe que não se fosse embora, quanto mais não fosse por causa do nosso filho por nascer. E ela mentiu-me… oh, que doce mentira disse. Jurou-me que, claro, seria sempre minha, até ao dia da sua morte. – Disseste que me matavas se eu me fosse embora – disse a tia Rachel, quase num murmúrio. Douglas virou-se para a mulher. – Estavas à espera que te deixasse partir sem mais? Desistir da minha mulher e da minha filha? Acreditei nas tuas mentiras de amor fiel, até me teres cuspido na cara e me teres dito que tinha sido a minha filha que tinha morrido e não a tua sobrinha. «Preferiste que a minha filha crescesse a pensar que o pai era um perdulário e a mãe uma prostituta. Preferiste que ela pensasse que era uma órfã sem dinheiro. Devia ter-te matado naquela altura, mas amava-te demasiado. Elissande sentia-se fraca, quase a desmaiar, mas curiosamente calma, como se rodeada pelos grossos muros de um castelo, como se o tumulto e confusão que havia no exterior, Gengis Khan e o seu exército saqueador, não tivessem nada que ver com ela. Não estava ali. Estava num sítio completamente diferente. O marido pousou a mão nas costas dela e murmurou palavras de preocupação. Limitou-se a estender a mão para o clorofórmio. Ele entregoulhe o frasco e o lenço. Ela ensopou o lenço, caminhou até junto do tio e pressionou-o contra a cara dele. 15 Avarento, protagonista do «Conto de Natal», de Charles Dickens. (N. da T.)

20 Vere vai conseguir tratar de tudo? – perguntou a tia Rachel, –E Lorde enquanto o comboio se punha em movimento por entre apitos e nuvens de vapor. Vere ficou no cais, a vê-las partir. Ainda disfarçado de cocheiro, conduzira Elissande e a tia Rachel à estação de comboio para deixarem Exeter e as suas provações para trás. É muito melhor que Mistress Douglas vá recuperar para casa e não para uma esquadra de polícia, dissera. Mas a casa dele não era a casa delas, pois não? – Ele fica bem – respondeu Elissande. Ele foi ficando cada vez mais afastado, longe da sua vista, e aquela ausência criava um vazio amargo dentro de si. Por fim, a estação do comboio transformou-se numa simples mancha de luz na escuridão e ela deixou de o ver. – Imagino… calculo que queiras saber tudo – disse a tia. Não, a tia não, a sua mãe. Elissande virou o olhar para aquele rosto familiar, menos cadavérico do que antes, mas ainda prematuramente envelhecido, e foi assaltada por uma terrível vaga de tristeza. – Só se sentires forças para tanto. Não sabia se ela própria teria forças para aquilo. – Acho que consigo – disse a tia Rachel, com um sorriso pálido. – Mas não sei bem por onde começar. Elissande recordou o que o marido lhe contara anteriormente. Foi preciso um grande esforço para não estremecer. – Disseram-me que o meu tio, o meu pai, te pintou como um anjo bom e

amável, muito antes de serem casados. Não sabias quem ele era? – Ele disse que me viu pela primeira vez em Brighton, no Pontão Oeste, e que ficou tão maravilhado comigo que subornou o proprietário do estúdio onde eu fora tirar uma fotografia de família para que ele lhe dissesse o endereço que tinha anotado e para onde devia enviar os nossos retratos, e também para lhe vender uma fotografia minha. Nunca o vi até ele me ter visitado. Afirmou ser das relações do meu falecido pai e não duvidei dele. Estava a passar por dificuldades económicas e a Charlotte tinha fugido de casa… as pessoas mentiam quando me diziam as razões por que não desejavam receber-me; nunca me ocorreu que alguém mentisse para se aproximar. Elissande sentiu um aperto no coração: a sua doce e crédula mãe, só no mundo e absolutamente vulnerável perante um monstro como Douglas. – E quando foi que soubeste a verdade? – Pouco tempo antes de nasceres. Descobri o antigo diário dele quando andava à procura de outra coisa qualquer… não recordo o quê. Se soubesse que o diário era dele, não o teria aberto. Mas tinhas as iniciais G. F. C. gravadas na capa e fiquei curiosa. Mrs. Douglas suspirou. – Era tão ingénua, tão estúpida, e estava tão absolutamente deslumbrada com o meu marido elegante, inteligente e rico… até os seus ciúmes eu achava românticos. Quando percebi que a letra de George Fairborn Carruthers era igual à do meu marido e que alguns dos acontecimentos da vida deste desconhecido eram iguais aos que o meu marido contava acerca da sua, fiz-lhe a pergunta, a ele, de todas as pessoas do mundo. «Deve ter entrado em pânico. Podia ter-me levado à certa com uma história da carochinha qualquer, mas contou-me coisas terríveis. Foi quando vi pela primeira vez a sua verdadeira natureza; quando, pela primeira vez, tive medo dele.

Eis ali a razão por que ficara tão transtornada com a notícia do assassinato de Stephen Delaney, percebeu Elissande: Douglas devia ter-lhe jurado nunca mais tirar a vida a ninguém. – Tinhas um mês quando o Exército de Salvação veio pôr a tua prima à nossa porta. Com os anos eu perdera o contacto com a Charlotte. Não fazia a mínima ideia de que morrera no parto e que o marido também já tinha morrido. O sargento disse-me que ela tentara dar o bebé aos Edgerton, mas que se recusaram terminantemente. Fiquei aterrorizada com a hipótese de receber outra criança em casa, com o meu marido, mas não havia nada que pudesse fazer. «O bebé era adorável. Tinha só mais uma semana que tu e poderiam facilmente ter passado por gémeas. Mas, menos de dez dias depois de ter vindo viver connosco, vocês as duas apanharam uma febre. Ela parecia mais forte, enquanto eu temia pela tua vida. A alegria que senti quando a tua febre cedeu… nem imaginas. Mas, poucas horas mais tarde, a meio da noite, a tua prima morreu nos meus braços. O choque que foi! Eu não conseguia parar de chorar. Pensei que, se tivesse estado com os Edgerton, ela nunca teria morrido. Fiquei petrificada à hipótese de que os Edgerton se apercebessem do erro que tinham feito e viessem reclamá-la na manhã seguinte. Que lhes diria nesse caso? «Foi quando tive a ideia. O teu tio, o teu pai, estava fora em negócios, em Antuérpia, e a ama tinha sido despedida porque a governanta a apanhara com o lacaio. Se eu dissesse que tinhas sido tu a morrer e não a tua prima, ninguém iria saber. Depois, quando os Edgerton aparecessem, podias ir com eles e viver livre do teu pai, de uma maneira que eu não podia. Uma vez tomada a minha decisão, enviei participações de morte a toda a gente que conhecia… foi antes de o teu tio nos mudar para o campo e ainda tinha alguns amigos e conhecidos. Tornou-se oficial. Ninguém duvidou que uma mãe não conhecesse a sua própria filha. Levou o lenço ao canto dos olhos. – Tenho de dizer que os Edgerton foram uma terrível desilusão. Enviei-lhes

cartas. Enviei-lhes fotografias. Nunca sequer responderam. Elissande viu-se forçada a limpar os olhos também. – Está tudo bem, fizeste o que podias. – Não fiz. Fui uma mãe horrível, tenho sido um fardo inútil na tua vida. Elissande abanou a cabeça. – Por favor, não digas isso. Ambas sabemos que tipo de homem é. Ele terte-ia matado, caso tentasses fugir. – Eu devia ter-te feito sair dali. Ele não precisava de nos dominar às duas. Elissande estendeu a mão pelo pequeno espaço que existia entre os assentos das duas e tocou na face da mãe. – Eu não estava totalmente prisioneira. Tinha Capri. Sempre me imaginei na ilha, longe dele. – Eu também – respondeu Mrs. Douglas, enfiando o lenço no punho da manga. Elissande estava atónita. – Também te imaginavas em Capri? – Não, imaginava-te a ti lá. Havia uma passagem que costumavas ler-me e que eu adorava. Ainda me lembro de uns bocados: «Tal como Veneza, Capri é uma ilha sempre presente na experiência do viajante: diferente da personalidade e associações da Itália continental», recitou Mrs. Douglas, com um olhar nostálgico, «uma cena idílica de mar, luminosa e percorrida por brisas, onde ressoa um eco do Passado, cavo e surdo, como o som das ondas nas suas cavernas.» «Imaginava-te a explorares aquelas cavernas: li a notícia da descoberta da Gruta Azul quando era ainda rapariga; parecia encantadora. Depois de

terminares as tuas visitas às grutas, jantarias numa quinta onde comerias a boa comida caseira, cheia de ervas aromáticas e azeitonas. E, quando caísse a noite, regressarias à tua villa, no alto das falésias, e verias o pôr do Sol sobre o Mediterrâneo. De novo os olhos de Elissande se encheram de lágrimas. – Acho que nunca pensei no que comeria ou onde viveria em Capri. – O que está muito bem. Mas eu sou tua mãe. Quando te imagino longe, gosto de pensar que estás bem alimentada e vives numa casa segura. Mas eu sou tua mãe. As palavras eram tão bonitas e desconcertantes como as primeiras estrelas que se veem. – E imaginava um caminho de acesso fácil entre a tua villa lá no alto e a hospedaria onde se reuniam todos os visitantes ingleses. Por isso, sempre que te sentisses aborrecida ou só, podias ir até lá tomar um chá ou jantar. E talvez recebesses a visita de um jovem simpático. Mrs. Douglas sorriu, hesitante. – Imaginei toda uma vida para ti num local que nunca vi. Elissande sempre soubera que a mulher que estava à sua frente a amava, mas nunca percebera o quanto. – Parece uma vida encantadora – respondeu com um nó na garganta. – Quase tão encantadora como a vida que tens com Lorde Vere. – Mrs. Douglas tomou-lhe as mãos. – És uma mulher afortunada, Ellie. O casamento dela era uma fachada e o marido estava disposto a pagar-lhe uma grande maquia para nunca mais a ver. Descobrira que o homem que mais desprezava no mundo era seu pai e ainda estava demasiado atordoada para apreender a totalidade das ramificações. Mas Mrs. Douglas não estava enganada. Elissande era afortunada: tinha a mãe, sã e salva.

Inclinou-se e beijou a mãe na testa. – Pois sou, e estou bem consciente disso. Vere ficou a ver o comboio que levava a mulher desaparecer na noite. Pensara que sabia tudo o que havia a saber acerca das voltas e reviravoltas do caso Douglas. Mas as revelações daquela noite tinham-no abalado até ao mais fundo do seu ser. Estaria atordoada? Estaria em negação? Teria entendido completamente tudo o que fora dito? Em vez de se deixar hipnotizar pelos segredos que iam sendo revelados, ele devia ter pressentido a iminência da catástrofe. Devia ter sido mais rápido com o clorofórmio. Tivesse ele agido um minuto mais cedo e teria preservado o estado de abençoada ignorância em que ela vivia. Houvera tanta alegria nela, aos seus olhos, este mundo feio e gasto era fresco e bonito. Uma vez, ao jantar, ela descrevera o espanto da tia durante a visita que tinham feito a Dartmouth. E ele quase fizera um comentário sobre a alegria que via espelhada no rosto dela todos os dias, o prazer incrédulo que retirava das mais ínfimas coisas. Acabara por não dizer nada. A alegria dela perturbara-o: era uma chama, uma chama perigosa que, receava, o queimaria se ele fizesse a tolice de se deixar apanhar. Nunca, até ao momento presente, ele soubera como a achava bonita. Como gostava dela. Não se atrevia a pensar nessa felicidade para si próprio, não a merecia, mas queria que ela a tivesse. A inocência dela fora ganha a duras lutas. Dentro de si, a sua estilhaçava-se em cacos de dor que sentia a cada respiração. Quando regressou à casa que Douglas escolhera para o seu plano, Holbrook, também disfarçado de cocheiro, estava de guarda sob a débil luz do candeeiro da rua.

– O nosso homem já acordou – disse à laia de saudação. Vere fez um gesto com a cabeça. – Vou mudar de roupa e vestir a minha. Depois, levamo-lo. Trocou de roupa dentro de casa. Depois ele e Holbrook levaram Douglas, ainda bem amarrado, para o fiacre de Holbrook. Este subiu para o lugar do cocheiro; Vere trepou para dentro do fiacre e sentou-se ao lado de Douglas. – Com que então, é meu genro – começou Douglas. Enquanto o homem falava, Vere sentiu qualquer coisa rastejar pela sua pele. – Quê? – disse. – Não, não, casei com a sobrinha da sua mulher. – Não percebeu nada do que foi dito esta noite? Ela não é sobrinha da minha mulher, é minha filha. Vere olhou para Douglas, sem a menor expressão no rosto. – Passado da cabeça, não é? Douglas riu-se. – Tenho de dizer que, em parte, estou mais do que encantado por ela ter casado com um idiota. – Não sou idiota – disse Vere, baixo, sentindo uma pena terrível por não ter espancado o homem com mais eficácia quando se lhe deparara a oportunidade. – Não? Então, escute. Ela é minha filha. Eu conheço-a. Sei que lhe estendeu uma armadilha. Esperta como o diabo, ah, pois é, e tão implacável como ele. Ela vai usá-lo até você não ter mais nada para lhe dar e, quem sabe, talvez arranje maneira de se ver livre de si. A maldade do homem era uma constante fonte de surpresas para Vere. A mão fechou-se-lhe num punho.

– Como pode dizer essas coisas acerca da sua própria filha, como insiste em chamá-la? – Porque são verdade. Aprendeu muito comigo, é uma oportunista como há poucas. Porque é que pensa… peço desculpa, não pensa; esqueci-me. Bem, tenho pena de si, seu palerma cretino. – Desculpe? – disse Vere. – Seu estúpido imbecil. Vere esmurrou-lhe a cara, quase partindo a sua própria mão, tal foi a força do murro. Douglas soltou um grito de dor e o corpo estremeceu-lhe dos pés à cabeça. – Peço desculpa – disse Vere, sorrindo por ver Douglas encolher-se ao som da sua voz. – É o que eu faço quando me chamam estúpido. Estava a dizer? – Deixe-me ver se o percebi bem, Lorde Vere. O senhor estava num pub em Dartmouth. O cavalheiro sentou-se e ofereceu-lhe uma bebida. Após essa bebida, o senhor sentiu-se animado e palerma e concordou em acompanhá-lo numa visita a uma bonita propriedade em Exeter. Acordou no chão de uma casa vazia, percebeu que tinha sido raptado, dominou o seu raptor quando ele lhe veio trazer pão e água e depois trouxe-o sob prisão? – perguntou o detetive Nevinson, que, por causa de um dos telegramas que Vere enviara da estação de Paignton, estava na esquadra. Este maldito e interminável papel. Vere estava ansioso por chegar a casa, a mulher não devia ficar sozinha nessa noite. – Sim – respondeu. – Eu sou aquilo a que se chamaria, hum, não uma herdeira, sei que é uma mulher, mas o que se chama a um homem-herdeira? – O senhor é um homem rico – completou Nevinson, revirando os olhos. – Isso mesmo. E, enquanto tal, sei quando fui apanhado por causa do meu dinheiro. E ali o canalha, desculpem-me a linguagem, cavalheiros, o sacana

teve a audácia de me dizer que me ia manter preso para que a minha mulher lhe fosse pagando sucessivamente milhares de libras. Nem sequer conhece a etiqueta para um rapto decente, não é? Ah, muito obrigado, senhor – disse ao inspetor-chefe da polícia de Exeter, que lhe oferecera uma chávena de chá escuro e demasiado forte. – Isto é do melhor, chefe. Quase não sinto o sabor daquele Ceilão fino de que a minha mulher gosta. Nevinson abanou a cabeça. – E sabe quem foi que nos trouxe, senhor? – Claro que não. Já lhe disse que nunca lhe tinha posto a vista em cima. – O nome é Edmund Douglas. Soa-lhe familiar? – Deus do céu! Fui enganado pelo meu alfaiate! – Não! – gritou Nevinson. Respirou profundamente e engoliu uma boa porção do seu próprio chá. – Aquele homem é tio da sua mulher. – Não é possível. O tio da minha mulher está em Holloway. – Informaram-nos da fuga dele de Holloway. – A sério? – Foi por isso que o quis apanhar. Não por o senhor ser uma pessoa muito rica, mas porque é sobrinho por afinidade dele. – Então, porque não se apresentou ele? Nevinson trincou um biscoito com toda a força. – Bom, seja como for – disse o inspetor-chefe –, o senhor trouxe-o, milorde, e poupou a toda a gente uma comprida caça ao homem. Pela parte que me toca, acho que isto pede uma coisa mais forte do que um chá. Talvez um uísque, detetive?

– Por favor – respondeu Nevinson, com fervor. Um sargento entrou a correr no gabinete do inspetor-chefe. – Desculpe incomodar, senhor, mas o homem que Sua Senhoria acabou de trazer está morto. Nevinson teve um sobressalto. Vere levantou-se de um salto, derrubando a cadeira. – Eu não o matei. – Claro que não o matou – disse, impaciente, Nevinson. – O que aconteceu, sargento? – Não temos a certeza, senhor. Ele estava perfeitamente bem. Depois, pediu água. O agente Brown deu-lhe a água. Cinco minutos mais tarde, quando o agente Brown regressou para ir buscar a caneca, ele estava estendido na tarimba, morto. Correram para a cela de Douglas. Estava deitado de lado, aparentemente a dormir, mas sem o mais pequeno vestígio de pulso. – Como foi que isto aconteceu? – gritou Vere. – Caiu para o lado sem mais nem menos? – Parece ter sido cianeto ou estricnina. – Nevinson deu umas palmadinhas no corpo de Douglas. – Não tem nada com ele a não ser algum dinheiro e um relógio. – Acha que ele tinha os comprimidos de cianeto escondidos no relógio? – perguntou Vere, de olhos arregalados. – Mas que disp… – Nevinson interrompeu-se. Remexeu no relógio; a tampa deslizou, revelando um pequeno compartimento. – Tem razão: há aqui mais comprimidos. O suficiente para matar três pessoas: se forem comprimidos de cianeto.

A espinha de Vere foi percorrida por um calafrio. Talvez Douglas tivesse planeado envenenar-se e envenenar a mulher. Ou talvez os comprimidos se destinassem todos a Mrs. Douglas, numa última há muito planeada vingança. Talvez houvesse o suficiente para matar também Elissande. O sangue de Vere gelou-se, mesmo estando o perigo já afastado. – Talvez ele tenha percebido que, desta vez, não haveria fuga possível – disse Nevinson. – Temos provas suficientes; estava destinado à forca. Para um homem que se esforçava por controlar a sua sorte por todos os meios ao seu alcance, a ideia de enfrentar uma condenação à morte devia serlhe insuportável. Pelo menos, nunca mais poderia fazer mal a Elissande ou à mãe. Pensamento que, nem de perto nem de longe, trouxe a Vere o alívio que esperara. Só pelos estragos que causara naquele dia, e ao longo de toda a sua imprestável vida, ele deveria ter sofrido todas as agonias que o corpo humano fosse capaz de sentir antes de morrer por entre a ignomínia pública. – Vejam. – Nevinson pousou o relógio no chão e exibiu uma bolsinha. – Ainda há aqui dois diamantes. Deve ter sido assim que subornou os guardas da prisão para conseguir fugir. Enquanto o detetive e o inspetor-chefe examinavam os diamantes, Vere agarrou no relógio e, discretamente, andou um pouco mais às voltas com ele. Ali estava, um segundo compartimento secreto e, lá dentro, outra chave minúscula. Enfiou a chave no bolso e devolveu o relógio a Nevinson. – Na realidade, ele não precisava de se ter suicidado. Eu teria dado uma palavrinha ao juiz a pedir clemência. Os homens ricos são alvos tentadores e, no fim de contas, ele era meu tio. De repente, Elissande ficou incapaz de respirar.

Inspirara e exalara toleravelmente durante toda a viagem até casa. Não lhe faltara o ar enquanto ajudara a mãe a deitar-se. Até mesmo quando, por fim, ficou sozinha, reclinada numa espreguiçadeira na sala de estar, com uma compressa na cara e outra aguardando numa bacia cheia de água gelada por um bloco de gelo que viera da cave, os seus pulmões tinham-se expandido e contraído como seria de esperar. Mas, agora, sentou-se de um salto e atirou com a compressa ao chão. Agora puxou pela gola. Agora tinha outra vez as mãos do tio à volta da garganta, fechadas com força, impiedosas, inexoravelmente a impedir a passagem do ar. Arquejou e ofegou. Abriu a boca e tentou engolir o pouco oxigénio que ainda restava na sala. Mesmo assim, não era ar suficiente. Tinha a cabeça a girar, os dedos estavam entorpecidos, sentia um estranho formigueiro nos lábios. Respirou cada vez mais depressa, mais profundamente. Doía-lhe o peito. À frente dos seus olhos flutuavam pontos de luz. Ouviu sons vindos do exterior. Seria uma carruagem? Estaria alguém a abrir a porta da frente? Nada lhe fazia sentido. Apenas conseguiu dobrar-se para a frente e pôr a cabeça entre os joelhos, lutando para não perder a consciência. Passos, já não estava sozinha. – Respire devagar, Elissande – aconselhou-a, sentando-se ao seu lado. – Tem de controlar a sua respiração. Acariciou-lhe o cabelo e o calor da mão dele era tão suave quanto o toque de um lenço de caxemira. Mas as suas palavras não faziam sentido, ela precisava de ar. – Inspire devagar, e não muito. O mesmo quando soltar o ar. – A mão dele estava agora nas costas dela, numa pressão subtil que a acalmava. Fez o que lhe disse. Depressa se tornou óbvio que ele tinha razão. O facto de controlar o ar que inspirava, ato que ia completamente contra os seus

instintos, acalmou-lhe os nervos. O entorpecimento e o formigueiro desapareceram; a opressão no peito dissipou-se, tal como as tonturas que sentia na cabeça. Ele ajudou-a a sentar-se direita. Ela ainda sentia alguma dor no canto dos olhos, mas à sua frente já não havia pontos de luz a dançar, só ele. Estava com um ar cansado, tinha a testa ligeiramente franzida, mas o olhar era firme e amável. – Melhor? – perguntou. – Sim, obrigada. Mal lhe aflorando a cara com os dedos, virou-a para si, para a examinar. – As feridas vão ficar feias. Devia já estar na cama, foi um dia muito comprido. Teria sido apenas naquela manhã que acordara cheia de um irreprimível otimismo em relação ao futuro, certa de que, por fim, todas as peças da sua vida se tinham encaixado no sítio certo? Como era possível que tanto tivesse sido destruído em tão pouco tempo? – Estou bem – murmurou, mecanicamente. – Está? Não suportou o olhar dele. Deixou cair os olhos sobre as suas mãos. – Já está outra vez preso? – Esteve. O queixo dela levantou-se. – Esteve? Ele hesitou.

A mão dela fincou-se no braço da espreguiçadeira. – Fugiu outra vez? Por favor, diga-me que ele não fugiu outra vez! O marido desviou o olhar por um breve instante. Quando tornou a olhar para ela, havia um certo vazio no seu olhar. – Está morto, Elissande. Suicidou-se na esquadra. Uns comprimidos de um veneno qualquer, cianeto é o mais provável. Teremos de esperar pelo relatório da autópsia para saber com rigor. O queixo caiu-lhe. A respiração dela tornou a ficar descontrolada e irregular. – Devagar – teve de lhe dizer, pousando a mão no braço dela. – Ou vai voltar a ficar tonta. Enquanto respirava, ela ia contando. Podia forçar o diafragma a obedecerlhe, mas dentro da caixa torácica, o coração saltava-lhe de choque. – Tem… tem a certeza de que não foi um ardil? – Eu estava lá. Está tão morto quanto as suas vítimas de homicídio. Ela pôs-se de pé; já não conseguia ficar sentada. – Com que então, ele não foi capaz de enfrentar as consequências das suas próprias ações – disse, numa voz que, aos seus próprios ouvidos, soou com uma amargura infinita. – Não, não foi. Era um cobarde em todos os aspetos. Carregou com dois dedos no ponto entre as sobrancelhas com força. Doeu. Mas nada doía tanto como a verdade. – E era meu pai.

Tudo aquilo que pensara saber sobre si própria fora virado de pernas para o ar. Sentiu porem-lhe uma coisa dura nas mãos, um copo com uma generosa dose de uísque. Quis rir: Vere ter-se-ia esquecido da sua baixa resistência ao álcool? Em vez disso, viu-se forçada a morder o lábio com força para reter as lágrimas. – Sempre que teve oportunidade, ele insultou Andrew e Charlotte Edgerton à minha frente. Concluí que, mesmo que julgados com simpatia, a maior parte das pessoas consideraria Charlotte como uma devassa e o marido como um palerma. Todavia… Piscou os olhos com força. – Todavia, eu amava-os… achava que eram fascinantes, das arábias. Imaginei-os a soltar o último suspiro, lamentando profundamente não poderem ver-me crescer e tornar-me mulher. Em vez disso, quando o pai dela soltara o seu último suspiro, a única coisa que devia ter lamentado era a impossibilidade de continuar a atormentar Elissande e a mãe a seu bel-prazer. A ideia feriu-a. Em vez do generoso e afetuoso, ainda que muito impulsivo, Andrew Edgerton, o seu pai era um homem que ria de prazer à ideia de que ela viesse a ter de criar um rancho de filhos idiotas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho de parede. O marido não tinha razão. As suas feridas não iriam ficar feias, já estavam feias: vergões vermelhos a ficarem roxos, um golpe no lábio, um dos olhos tão inchado que mal abria. O seu próprio pai a pusera naquele estado, claramente satisfeito com a dor e as feridas dela. Ela acreditara que a liberdade se resumia a fugir fisicamente de Highgate Court. Mas como fugiria disto? Enquanto vivesse, o sangue de Edmund

Douglas correr-lhe-ia nas veias, recordando-lhe todos os dias os inquebráveis laços de família que agora a ligavam para sempre a ele. Desviou o olhar do espelho, devolveu o copo de uísque à mão do marido e dirigiu-se para a porta. Subiu as escadas, percorreu o corredor, entrou no quarto. Abriu o seu cofre e tirou para fora todas as lembranças que, ao longo dos anos, tanto acarinhara. – Elissande, não se precipite – advertiu o marido. Nem sequer o ouvira, mas ele estava ali no quarto com ela. – Não vou destruí-los. – Mesmo que os objetos já não tivessem o mesmo significado aos seus olhos, olhar para eles e recordar a vida que pensara poder ter, caso Andrew e Charlotte não tivessem morrido, era como ter um punhal espetado no coração, a mãe ainda gostaria de ter algumas lembranças que lhe recordassem a irmã. – Só quero queimar este cofre. – Porquê? – Há um compartimento secreto na tampa. Quando era pequena, ele mostroume as ranhuras da chave e disse-me que, um dia, eu iria encontrar as chaves. Agora sei o que está lá dentro. – Teve de cerrar os dentes com força para reter uma vaga de repugnância. Sentia-se absolutamente impura. – Deve ser o diário dele. E o quadro que estivera pendurado no quarto dela em Highgate Court, com uma rosa vermelha, cheia de espinhos, a nascer de uma poça de sangue dele, fora sempre a insinuação que ele lhe fazia, não fora? – Esse cofre vai fazer imenso fumo na lareira – disse o marido. – Tenho as chaves do compartimento. Porque é que, em vez disso, não o abrimos? Olhou para o marido: esquecera-se da especialidade dele. – Quando e onde encontrou as chaves?

– Uma estava no cofre de Highgate Court e tirei-a no dia em que lá fomos, depois do casamento; a outra, encontrei-a hoje, na pessoa de Douglas. Saiu por um instante para ir buscar a outra chave ao quarto. Ela pousou o cofre em cima da cómoda. Ele enfiou as chaves e fez as duas girar ao mesmo tempo. A parte de baixo da tampa soltou-se um centímetro, mais ou menos. Com cuidado, ele puxou por ela até um pequeno pacote, embrulhado em tecido, lhe cair na mão. Afastou o tecido azul, revelando um livro encadernado a couro, com as iniciais G. F. C. gravadas num canto. – Está aqui uma nota para si. – O que diz? – Não queria tocar em nada que tivesse passado pelas mãos de Douglas. – «Minha querida Elissande, Christabel Douglas nunca morreu. Pede a Mistress Douglas que te conte o que lhe aconteceu. E – o marido interrompeuse e olhou para ela. – E possa eu viver para sempre na tua memória. O teu pai, George Fairborn Carruthers.» Foi como se Douglas a tivesse esmurrado outra vez. Pelo menos, ele já não tinha de lamentar não o ter calado mais cedo com o clorofórmio. Ele sempre tivera intenções de ser o último a rir, já mesmo do túmulo. Ela arrancou o diário das mãos de Vere e atirou com ele para o outro lado da sala. – Maldito seja! As lágrimas, que tanto se esforçara por reter, corriam-lhe pela cara abaixo. Ardiam nos sítios onde Douglas a atingira. – Elissande… – Nem sequer é esse o meu nome.

Sempre gostara do seu nome, que combinava Eleanor e Cassandra, os nomes das mães de Charlotte e Andrew Edgerton. Encantara-a o cuidado e consideração que os tinham levado a criá-lo, as sílabas exóticas e musicais, os sonhos que Charlotte e Andrew Edgerton deviam ter tido para a filha e que os fizera darem-lhe aquele nome grandioso, um nome que nem todas as raparigas conseguiriam fazer valer. Passara grande parte da sua vida na impotência. Mas nunca se sentira tão impotente como naquele momento, desprovida de tudo o que tivera algum significado para ela. Por trás dela, o marido colocou as mãos sobre os seus braços. Depois, com muito cuidado, passou-lhe as mãos pela cintura e puxou-a para si. Ela chorou por todos os seus sonhos desfeitos. Quando já esgotara as lágrimas, ele despiu-a e vestiu-lhe a camisa de dormir. A seguir, pegou nela ao colo, levou-a para a cama e aconchegou-lhe a roupa. Apagou a luz e saiu do quarto. Ela ficou deitada de olhos abertos, a fitar a escuridão, desejando não ter sido demasiado orgulhosa para lhe pedir que ficasse com ela durante mais um bocado. No entanto, para seu alívio, e um momento de felicidade amarga e doce, ele regressou quase de imediato. – Tem sede? – perguntou. Tinha. Ele pôs-lhe um copo de água na mão, devia ter ido buscá-lo, razão por que saíra do quarto. Ela bebeu quase tudo e agradeceu-lhe. Ele puxou uma cadeira para junto da cama e sentou-se. Talvez ele tivesse razão. Talvez ela ficasse grata por todas as pequenas gentilezas que lhe faziam. Mas não era pequena, a gentileza dele em ficar com ela durante a noite mais negra da sua vida. Ele pegou-lhe na mão. – Elissande.

Estava demasiado esvaída para lhe lembrar que aquele nome não era o seu. Como se tivesse escutado os pensamentos dela, ele continuou: – É belo, este nome com que a sua mãe a rebatizou. O coração dela deu um salto. Não tinha visto as coisas assim. – É belo por toda a esperança com que o dotou, o momento de maior coragem numa vida toda ela feita de timidez. Que ela tenha ousado esconder a filha à frente dos olhos de toda a gente prova bem o amor dela por si. Ela pensara que já não tinha mais lágrimas. No entanto, os olhos ardiam-lhe de novo, à lembrança da desesperada bravura da mãe. – Não o esqueça, Elissande. As lágrimas caíram-lhe dos cantos dos olhos e escorreram-lhe pelas têmporas até ao cabelo. – Não esqueço – murmurou. Ele entregou-lhe um lenço. Agarrou-se a ele com força e com a outra mão agarrou-se com força ao marido. Ele passou o polegar pelas costas da mão dela. – Quando andei a fazer as minhas leituras acerca da síntese artificial de diamantes, todos os artigos que encontrei referiam o facto de o diamante ser apenas carbono, o que o aproxima da grafite e do carvão. Douglas é seu pai, não discuto isso. Mas, enquanto ele não passa de um bloco de carvão, a senhora é um diamante de primeira água. Longe disso. Ela era uma mentirosa e uma manipuladora. – A sua mãe não teria vivido até ao dia de hoje, se não fosse a filha, que não lhe restem dúvidas a este respeito. Quando ela esteve indefesa, a senhora defendeu-a.

– Como poderia não o fazer? Ela precisava de mim. – Nem toda a gente cuida dos indefesos. Teria ganho muito mais se tivesse lisonjeado Douglas; ou podia ter fugido de lá sozinha. É precisa mais fibra moral para fazer o que está certo. Ela mordeu o interior do lábio. – Continue a falar e, não tarda, acho que sou um modelo de virtudes. Ele riu-se. – O que não é e, provavelmente, nunca será. Mas é uma pessoa forte e compassiva, duas virtudes que Douglas não percebia e nem de perto, nem de longe, tinha. Limpou o que restava das lágrimas nas têmporas dela, num toque tão leve e cuidadoso como as pinceladas de um miniaturista. – Observei-a durante estes dias. Uma vida sob o jugo de Douglas facilmente teria feito de si uma pessoa frágil, ansiosa e rancorosa. Mas é uma pessoa incandescente. Não deixe que ele lhe roube isso. Em vez disso, ria-se dele. Arranje amigos, leia livros, divirta-se com a sua mãe. Deixe que ele veja os seus dias inundados de prazer. Deixe-o ver que, não obstante ele ter dedicado toda a vida dele a arruinar a sua, falhou. Mais lágrimas escorreram para dentro do cabelo dela. Mrs. Douglas tinha razão: Elissande era uma mulher afortunada. O homem que ela mais enganara revelava-se um verdadeiro amigo. Pensou na mãe, sã e salva no seu quarto, que nunca mais seria maltratada. Pensou em si: ainda senhora do seu destino – isso não mudaria. Pensou na manhã que se avizinhava – até mesmo a noite mais escura não durava para sempre – e ficou surpreendida com o desejo que sentiu de ver o nascer do Sol. – Tem razão – disse. – Não vou deixá-lo inferiorizar-me agora que está no

túmulo, como nunca deixei que me roubasse um pedaço da alma enquanto viveu. *** Vere tinha dezasseis anos quando os foram buscar a Eton, a ele e a Freddie, para virem até junto do leito de morte do pai. Estar moribundo não tornara o marquês menos cáustico do que era habitual. Com Freddie no quarto, dera instruções a Vere para se casar depressa e reproduzir rapidamente, para que não houvesse hipótese de o título e as propriedades passarem para Freddie ou para a sua descendência. Vere dobrara a língua devido à presença de um médico e de uma enfermeira. No entanto, à medida que a noite avançara, fora ficando cada vez mais zangado. Por fim, já altas horas da noite, não fora capaz de suportar mais aquilo. O pai podia estar às portas da morte mas alguém tinha de lhe dizer que era um homem desprezível e um pai inqualificável. Dirigira-se ao quarto do marquês. A enfermeira dormitava no quarto ao lado mas a porta do quarto do marquês estava aberta, deixando passar vozes e luz para o corredor. Espreitou e reconheceu o pastor pelas vestes que envergava. – Mas… mas… mas, milorde, isso foi um assassínio – gaguejava o pastor. – É claro que eu sabia que era assassínio quando a empurrei pelas escadas abaixo, raios – disse o marquês. – Se tivesse sido um acidente, não precisava de si aqui para nada. Vere viu tudo negro. Agarrou-se a um aplique da parede para se apoiar. Oito anos antes, a mãe tinha morrido do que todos pensavam ter sido uma queda infeliz na enorme escadaria da casa de Londres do marquês. Ficara na rua até muito tarde, bebera mais do que devia, os saltos dos sapatos de dança tinham ficado presos e ela viera por ali abaixo. A sua morte deixara Vere e Freddie arrasados.

O sangue dela não tinha nenhuma da pureza normanda de que o pai tanto se gabava e o pai dela, não obstante a sua riqueza superlativa, não passava de um vendedor ambulante, aos olhos do marquês. Mas ela não fora uma flor de estufa. Filha única de um homem extraordinariamente rico, sabia perfeitamente que o seu dote pagara as dívidas do marquês e mantinha as propriedades à tona. E protegera os filhos, em especial Freddie, do temperamento imprevisível e muitas vezes virulento do marquês. O ódio mútuo entre o marquês e a marquesa eram do conhecimento público. O esbanjador marquês esgotara já o considerável dote que a mulher trouxera para o casamento e estava de novo endividado. O avô materno de Vere, Mr. Woodbridge, que não era parvo, pagava diretamente as despesas da filha: os vestidos, as joias, as viagens ao estrangeiro para que ela e os filhos pudessem fugir do marido. No entanto, e apesar das tensões domésticas, ninguém suspeitara de mão criminosa na sua morte. Ou, pelo menos, ninguém se atrevera a acusar o marquês. Seis meses depois o marquês casara de novo, desta vez com uma herdeira menos importante, mas que já tinha recebido a herança que lhe cabia, nada de sogros metediços desta vez. E ficou registado que a morte da primeira marquesa se devera a um acidente, puro e simples. Pelo menos, era o que Vere crera, até àquele momento odioso. Quis esconder-se. Quis fugir. Quis dar um pontapé na porta e parar com aquilo. Mas ficou paralisado no sítio onde estava, incapaz de mover um único músculo. – Depreendo que se arrependeu, milorde? – perguntou o pastor, numa voz aguda. – Não, fá-lo-ia outra vez, se tivesse de ser… já não podia aguentá-la nem mais um minuto – respondeu o marquês. Riu, um riso asmático, horroroso. – Mas imagino que devamos proceder às formalidades, não é? Eu digo-lhe que estou arrependido e o senhor diz-me que tudo está bem no paraíso de Deus. – Não posso! – gritou o pastor. – Não posso perdoar nem o seu ato nem a

sua atitude impenitente. – Mas vai perdoar – declarou o marquês, num desprezo inexorável. – Ou o mundo vai finalmente saber a razão por que é o solteirão que é. Que vergonha, reverendo Somerville, andar com um homem casado, condenando ao inferno a alma imortal dele ao mesmo tempo que condena a sua. Vere virou-se e saiu dali. Não era capaz de ficar a ouvir o marquês a levar a sua avante uma última vez, não depois de se ter escapado à acusação de homicídio. O funeral do marquês foi uma ocasião tremenda a que compareceu muita gente que levou às alturas a sua autoridade moral e as suas boas ações, elogios feitos por gente que ou não o conhecia ou não queria saber o que ele realmente fora: um demónio. Na noite a seguir ao funeral, Vere tivera o seu pesadelo pela primeira vez. Não importava que nunca tivesse visto a cena da morte da mãe; encontrava-a agora, fria e com a espinha fraturada, ao fundo das escadas, uma vez atrás de outra. Três meses mais tarde, Vere fora-se abaixo e confiara o seu segredo a Lady Jane, sua tia-avó. Lady Jane escutara-o com compaixão e sensibilidade. E no fim disse: – Tenho tanta pena. Fiquei arrasada quando o Freddie me contou. E não me custa menos ouvi-lo outra vez da tua boca. A revelação espantou Vere quase tanto como a verdade por trás da morte da mãe. – O Freddie sabia? Sabia e nunca me disse? Lady Jane apercebeu-se do erro que fizera, mas era demasiado tarde. Vere recusou-se a deixá-la desdizer-se. Ela acabou por ceder.

– O Freddie estava preocupado com a tua reação. Teve medo que, se soubesses, matasses o teu pai… uma preocupação com a sua razão de ser pelo que vi até agora – disse Lady Jane. – Além do mais, ele achava que o teu pai já tinha tido o castigo devido. Rezava a história que uma noite, quando tinha treze anos, Freddie fora ao quarto do pai, depois de o marquês ter confiscado um dos seus desenhos favoritos, na esperança de o recuperar. Aparentemente o marquês, pensando que os barulhos que Freddie fazia eram resultado da presença do fantasma da primeira mulher, ficara aterrorizado. Vere estava fora de si. Quão estúpido podia ser Freddie para pensar que o pai sentia qualquer remorso, quanto mais medo? O homem que ameaçara expor a homossexualidade do pastor não se arrependera e não merecia o perdão de ninguém. Freddie soubera durante dois anos, dois anos durante os quais Vere podia ter transformado a vida do pai num inferno. Aos seus olhos, isso teria sido justiça. Pelo menos, em certa medida. Ter-lhe sido negado… ter-lhe sido negado aquilo, e logo por Freddie, de entre todas as pessoas… Talvez Lady Jane visse algum verdadeiro potencial em Vere. Talvez só quisesse fazê-lo parar com aquelas suas arengas acerca de verdade e justiça. Fosse como fosse, devolveu a confidência com outra: era agente da Coroa e dedicara a sua vida à missão de desenterrar a verdade e restaurar a justiça. Era demasiado tarde para a mãe de Vere, mas ele não poderia achar consolo na ajuda a outras pessoas? Disse imediatamente que sim. Lady Jane avisou-o de que, para se transformar numa pessoa que ninguém levasse a sério, uma enorme vantagem para um agente secreto, deveria adotar uma pose. Sugeriu que assumisse o disfarce de um hedonista. Vere mostrou-se relutante. Nunca fora pessoa de se entregar demasiado aos prazeres da vida. Mais importante ainda, não obstante o seu isolamento, não queria ter de se ver entre multidões mais do que o estritamente necessário. E quem é que já ouvira falar de um hedonista solitário?

– Prefiro ser idiota – declarou. Mal ele sabia que, enquanto hedonista, pelo menos teria oportunidade de exprimir as suas opiniões acerca de uma grande variedade de assuntos. O papel de idiota não autorizava tal alívio. E, quanto mais hábil se tornava no seu papel de idiota, mais isolado ia ficando. Lady Jane recomendou-lhe que não tomasse logo a decisão. Precisamente dois dias mais tarde, no entanto, fora cuspido do cavalo. De imediato, resolveu explorar aquele acidente realmente sério e aproveitar a presença de Needham, que era hóspede de Lady Jane. Assim que o médico apôs o selo da sua considerável experiência médica no estado de Vere, ninguém poderia vir a dizer que ele não sofrera uma concussão grave, capaz de lhe virar a vida do avesso. Uma vez estabelecidas as condições para a sua súbita passagem para a idiotia, havia que fazer uma escolha: que dizer a Freddie? Não fora a distração de Lady Jane e a decisão poderia ter sido muito diferente. Ele e Freddie tinham sido sempre muito chegados. Freddie não era capaz de mentir e, neste caso, não teria de o fazer: as ações do próprio Vere iriam encarregar-se de espalhar a notícia. Se perguntassem a Freddie, ele podia limitar-se a reproduzir o diagnóstico de Needham, palavra por palavra. E a lealdade de Freddie para com Vere era tão conhecida que, mesmo que ele continuasse a falar da inteligência multifacetada do irmão, quem o ouvisse limitar-se-ia a concluir que tinha dificuldade em aceitar o novo estado das coisas. Mas, como Freddie achara por bem roubar a Vere a oportunidade de vingar a mãe, Vere devolveu o favor e guardou o seu novo segredo consigo. Vere odiara total e incondicionalmente a mulher porque, com o seu talento dramático e mentiras fáceis, ela se parecia demasiado consigo. Todavia, as semelhanças eram meramente superficiais. Por baixo da máscara, havia um homem que fora destruído aos dezasseis anos e que nunca mais se refizera, enquanto ela, apesar de ter imperfeições, era senhora de uma

resiliência que o deixava sem fôlego. A mão dela permaneceu na dele, com os dedos pesados de sono. A sua intenção fora permanecer junto da mulher até ela adormecer, mas de madrugada ainda ali estava, defendendo-a dos pesadelos. Desejava ser a fortaleza permanente contra os pesadelos dela. O pensamento não o surpreendeu tanto como imaginara, agora que parara de negar que a amava. Contudo, não era digno dela, pelo menos como era agora, com toda a falsidade e cobardia que ainda manchavam a sua personalidade. Sabia o que tinha de fazer. Mas teria a coragem e a humildade necessárias? O desejo de caminhar ao seu lado e protegê-la seria mais forte do que a sua atitude instintiva de fugir das repercussões da verdade fazendo-o manter a fraude que era a sua vida? Sentiu-se como se estivesse no topo de um alto penhasco. Se recuasse um passo, estaria em terreno seguro e familiar. Dar um passo em frente implicava um salto de fé único, e ele era um homem de pouca fé, particularmente no que lhe dizia respeito. Mas queria que ela voltasse a olhar para ele como se ele estivesse cheio de possibilidades. Como se eles estivessem cheios de possibilidades. E por isso ele faria o que estava certo, fossem quais fossem os inconvenientes.

21 morte na família, em particular uma morte ocorrida em circunstâncias U ma tão tensas, exigia muito trabalho a seguir. Foi preciso reclamar e enterrar o corpo de Edmund Douglas, consultar os solicitadores quanto às disposições do testamento e à herança. Se as coisas tivessem corrido de maneira diferente, Elissande ter-se-ia encarregado de tudo. Mas dada a sua face maltratada, as pisaduras tinham adquirido uma embaraçosa mescla de tonalidades de roxo, verde e amarelo-escuro, Mrs. Douglas insistiu que ela permanecesse em casa até recuperar. Iria ela no lugar de Elissande. Era tempo de ganhar interesse pelos assuntos da sua própria vida, declarou Mrs. Douglas. Vere que, de qualquer forma, já tinha necessidade de se deslocar a Londres, ofereceu-se para a acompanhar. Levaram ainda Mrs. Green, que trataria de garantir que Mrs. Douglas fosse instalada com conforto e tratada com o maior cuidado. Agora Mrs. Douglas dormitava no compartimento do comboio e o peso do seu corpo encostado ao braço de Vere era quase tão insubstancial como o de um cobertor. A situação fê-lo recordar a imagem da filha, a dormir a seu lado, no comboio. Recordou o seu próprio espanto ressentido por ter sido possível sentir-se atraído por uma pessoa dotada de uma personalidade tão questionável. O seu eu intelectual tinha ainda de reconhecer o que uma parte mais profunda e primitiva de si pressentira à primeira vista: a integridade dela. Não se tratava de integridade no sentido de uma prática moralista inatacável, mas de uma coerência pessoal. As provações que passara às mãos de Douglas tinham-lhe deixado marcas, mas não a haviam diminuído. Ao passo que ele estava marcado e diminuído.

Utilizara sempre a linguagem da justiça para se referir ao seu trabalho. A verdadeira justiça era impulsionada por um desejo imparcial de equidade. Subjacentes a toda a sua carreira haviam estado a ira e a dor: ira por não poder castigar o pai, dor por não poder ter a mãe de volta. Era a razão por que retirava tão pouca satisfação de todos os seus sucessos, mesmo os mais importantes: recordavam-lhe a impotência da sua própria vida, o que nunca iria conseguir fazer. Residia aí a razão da sua fúria contra Freddie: em parte, fora por inveja. Na altura em que falara com Lady Jane, já o pai tinha morrido havia três meses. Contudo, a obsessão de Vere não tinha senão aumentado. Não compreendia como Freddie era capaz de se libertar e deixar passar, enquanto ele se mantinha prisioneiro entre a noite da morte da mãe e a noite da morte do pai. Treze anos. Treze anos a tentar apanhar o que, desde o início, nunca poderia ser alcançado, enquanto a sua juventude fugia, as suas ambições tombavam no esquecimento e a sua vida se tornava cada vez mais solitária. O som de um único ressono no compartimento trouxe a atenção dele de volta para a sua companheira de viagem. Mrs. Douglas agitou-se e continuou a dormir. Quando iam a caminho da estação, ela confidenciara-lhe, tímida, que antes de o conhecer já o tinha visto num sonho provocado pelo láudano, ele já se tinha perguntado como teria ela interpretado a sua presença no quarto. Um dia, quando tivesse já a sua vida em ordem, contar-lhe-ia a verdade e pedirlhe-ia desculpa por a ter assustado. Ela agitou-se de novo. Vere olhou-a com atenção: as suas faces ainda estavam pálidas, mas tinham agora uma ténue nota de cor; o pescoço, ainda magro, já não parecia um espeto. Quando a vira pela primeira vez, assumira que o estado dela era permanente. Em vez disso, ela provara ser uma semente adormecida que apenas necessitava de um ambiente menos hostil para desabrochar. Tornou a olhar pela janela. Talvez ele também não estivesse tão definitivamente destruído como pensara.

Naquele dia, em vez de usar a chave, Vere tocou à campainha de Freddie. Fizeram-no entrar para o estúdio de Freddie, onde o irmão estava a analisar um livro de horários de comboio, com o dedo a percorrer uma coluna, à procura do que queria. Freddie levantou os olhos e deixou cair o livro. – Penny! Ia visitar-te! – correu para Vere e abraçou-o, ansioso. – Se tivesses chegado quinze minutos mais tarde, eu já teria partido para a estação de Paddington. Hoje de manhã, ouvi o mais bizarro dos rumores: o tio de Lady Vere fugiu da prisão e raptou-te… e tiveste de lutar pela vida. O que aconteceu? Vere tinha as palavras na ponta da língua – Oh, bolas, já ninguém sabe arranjar um boato decente? Não tive de lutar pela vida. Dominei aquele lingrinhas com um só dedo… e na sua cara espalhava-se já uma expressão de alegria imbecil. A tentação de voltar a cair no papel de idiota que desempenhava com tanta perícia foi enorme. Freddie não esperava outra coisa dele. Há muito tempo que se habituara ao idiota. Ainda eram irmãos, irmãos que gostavam um do outro. Para quê mudar o que fosse? Atravessou o estúdio, serviu-se de uma dose do conhaque de Freddie e engoliu-o de uma só vez. – O que ouviste é mentira que eu espalhei – disse. – A verdade é que Mister Douglas tinha raptado Mistress Douglas. Mas assim que recuperámos Mistress Douglas, achámos que era melhor para ela ir para casa recuperar em vez de ir falar com a polícia. Portanto, eu levei Mister Douglas para a esquadra e inventei uma história da carochinha. Freddie pestanejou. E tornou a pestanejar várias vezes: – Ah… então, estão todos bem? – Lady Vere tem algumas pisaduras: durante alguns dias não poderá receber visitas. Mistress Douglas apanhou um susto e tanto, mas acompanhou-me hoje

e está no Hotel Savoy. Mister Douglas, bem, está morto. Decidiu que era melhor engolir cianeto do que tentar a sua sorte em tribunal. Freddie escutou-o com a máxima atenção. Quando Vere acabou de falar, olhou para ele ainda durante algum tempo, após o que abanou ligeiramente a cabeça. – E tu estás bem, Penny? – Estou perfeitamente bem, como podes ver, Freddie. – Bem, sim, estás inteiro. Mas não pareces tu. Vere respirou profundamente. – Sou a pessoa que sempre fui. Mas é verdade que, por vezes… para dizer a verdade, durante a maior parte destes últimos treze anos, eu não agi como eu. Freddie esfregou os olhos. – Estás a dizer o que eu penso que estás a dizer? – E o que pensas que estou a dizer? – indagou Vere. Pensara ter sido claro, mas Freddie não reagira como estava à espera. – Um momento. – Freddie estendeu a mão, pegou numa pequena enciclopédia e abriu-a numa página ao calhas. – Em que ano foi a primeira revolta plebeia? – Quatrocentos e noventa e quatro antes de Cristo. – Valha-me Deus – murmurou Freddie. Virou as páginas até uma nova secção e levantou o olhar com uma tal expressão de esperança que o estômago de Vere se apertou. – Quem foram as seis mulheres de Henrique VIII? – Catarina de Aragão, Ana Bolena, Jane Seymour, Ana de Clèves, Catarina Howard e Catarina Parr – recitou Vere devagar. Podia ter recitado aquela lista muito mais depressa, mas estava com medo de terminar a resposta.

Freddie pousou o livro. – Apoias o voto das mulheres, Penny? – A Nova Zelândia concedeu o voto sem limites às mulheres em noventa e três. A Austrália do Sul concedeu o voto às mulheres e permitiu-lhes concorrer ao Parlamento em noventa e cinco. Da última vez que vi, o céu não tinha desabado em nenhum dos sítios. – Recuperaste – sussurrou Freddie, com as lágrimas a escorrerem-lhe já pela cara abaixo. – Deus do céu, Penny, recuperaste. De repente, Vere foi esmagado pelo abraço de Freddie. – Oh, Penny, não fazes ideia. Tenho tido tantas saudades de ti! As lágrimas caíam pela cara de Vere: a alegria de Freddie, a sua própria vergonha, pena por todo o tempo que tinham perdido. Afastou-se. Freddie não reparou no seu ar transtornado. – Temos de contar já a toda a gente. É pena a temporada já ter terminado. Santo Deus, toda a gente vai ter cá um choque no ano que vem. Mas ainda podemos ir até aos nossos clubes e contar a novidade. Não vais sair da cidade já, pois não? A Angelica está no Derbyshire, de visita à prima, mas deve estar de volta amanhã. Vai ficar encantada. Encantada, digo-te. – Falava com tal pressa que as palavras se atropelavam umas às outras. – Deixa-me chamar Mistress Charles. Acho que deve haver por aí uma ou duas garrafas de champanhe. Temos de celebrar. Temos de celebrar como deve ser. Freddie estendeu a mão para o cordão da campainha. Vere agarrou-lhe no braço. Mas o que tinha de dizer ao irmão estava-lhe preso na garganta como cimento húmido. Tinha-se preparado para enfrentar a fúria de Freddie, não aquela alegria irreprimível. Dizer mais qualquer coisa acerca do assunto iria aniquilar a alegria que resplandecia no rosto e cintilava nos olhos de Freddie.

Contudo, Vere não tinha opção. Se ficasse por ali, haveria outra Grande Mentira entre os dois, onde já havia uma pilha de mentiras demasiado grande. Soltou o braço de Freddie e cerrou a mão num punho. – Percebeste mal, Freddie. Não recuperei de nada porque nunca houve nada de que recuperar. Nunca sofri concussão nenhuma. Foi por escolha minha que me fiz passar por idiota. Freddie olhou para o irmão de olhos arregalados. – Que estás tu a dizer? Fizeram-te o diagnóstico. Eu próprio falei com o Needham. Ele disse que tu tinhas sofrido uma ferida traumática na cabeça, que te tinha alterado a personalidade. – Torna-me a fazer a pergunta do sufrágio das mulheres. Parte da cor fugiu das faces de Freddie. – Tu… tu apoias o voto das mulheres? Por qualquer razão, Vere não foi capaz de assumir de imediato o papel, como um ator que já tivesse saído de cena, despido o fato, limpo a maquilhagem e estivesse semiadormecido, e alguém o acordasse de súbito pedindo-lhe que regressasse a cena e repetisse o papel. Teve de respirar profundamente várias vezes e imaginar uma máscara amarrada à cara. – O voto feminino? Mas para que o querem? As mulheres votam no que o marido disser que votam e vamos acabar por ter no Parlamento os mesmos palermas de sempre! Agora se os cães pudessem votar, isso sim faria diferença. São inteligentes, são leais à Coroa e, com toda a certeza, merecem ter uma palavra a dizer quanto ao governo deste país. O queixo de Freddie caiu. Enrubesceu de embaraço. Depois, enquanto Vere o observava, a sua expressão endureceu e transformou-se em zanga.

– Então, durante este tempo todo, todos estes anos, foi tudo uma farsa? Vere engoliu em seco. – Lamento dizer que sim. Freddie olhou para ele durante mais um minuto. Recuou o punho. Este chocou com o plexo solar de Vere com um baque audível. Vere recuou um passo, cambaleante. Mas, antes de conseguir recuperar, já outro soco o atingia. E outro. E outro. E outro. Até ficar espalmado contra a parede. Não fazia a mínima ideia de que Freddie era capaz de violência. – Meu sacana! – As palavras explodiram num rugido. – Patife! Maldito aldrabão! Também não fazia ideia de que Freddie fosse capaz de praguejar. Freddie deteve-se, respirando pesadamente. – Peço desculpa, Freddie – Vere não conseguia olhá-lo olhos nos olhos. Fitou a secretária por trás do irmão. – Lamento muito. – Tu lamentas? Eu costumava chorar que nem uma fonte sempre que pensava em ti. Alguma vez pensaste nisso? Alguma vez te importaste com as pessoas que gostam de ti? As palavras do irmão eram pedaços de vidro cravados no coração de Vere. Depois do acidente, esforçara-se por passar o mais tempo possível longe dele, mas o desgosto de Freddie era inequívoco e a tímida esperança no início de cada encontro desfazia-se em estilhaços de desespero. Agora, chegara o momento da verdade. Agora, Freddie via-o como ele era realmente. – E eu nunca deixei que alguém te chamasse idiota – rosnou Freddie. – Quase andei ao murro com o Wessex por causa disso. Mas, por Deus, tu és.

Saíste-me cá um idiota tão grande! Era. Oh, céus, se era. Um grande idiota e um canalha egoísta. – Foi como se tivesses morrido. A pessoa que eras desapareceu. E eu fiquei com esta imensa dor de que nem sequer podia falar, exceto talvez a Lady Jane ou à Angelica, porque todos não paravam de insistir que devia sentir-me agradecido por estares vivo. Eu estava grato, sim, mas depois olhava para aquele estranho que tinha a tua cara e a tua voz e sentia desesperadamente a falta do meu irmão. Novas lágrimas rolaram pela cara de Vere. – Tenho muita pena. Estava tão obcecado com o assassínio da mãe e a culpa do pai e fiquei furioso por não me teres dito nada… A mão de Freddie fincou-se-lhe no braço. – E como soubeste isso? – Ouvi o pai, quando estava a morrer, a ameaçar o pastor para que o absolvesse. A expressão de Freddie mudou. Afastou-se do irmão, serviu-se de um copo de conhaque bem cheio e emborcou metade de uma só vez. – Por instantes, pensei que Lady Jane ou a Angelica te tivessem dito. – A Angelica também sabe? – Eu só teria contado à Angelica, mas ela estava fora, de férias com a família. – Freddie levantou a mão ao ar. – Há uma coisa que não percebo. O que é que o facto de teres sabido da mãe tem a ver com o que fizeste? – Tenho trabalhado como agente de investigação para a Coroa, tal como, no tempo dela, Lady Jane fez. Pensei que seria a maneira de alcançar alguma paz. E a figura do idiota era um disfarce para que ninguém me levasse a sério.

Freddie girou sobre os calcanhares. – Cristo! Então, quando viste Mister Hudson injetar o cloral a Lady Haysleigh não foste apanhado de surpresa. – Não. – E Mister Douglas? Também andavas a investigá-lo? – Sim. Freddie esvaziou o resto do conhaque. – Devias ter-me contado. Teria levado o teu segredo comigo para o túmulo. E estaria muito orgulhoso de ti. – Pois devia. Mas ainda estava furioso contigo por não me contares… por me teres tirado qualquer hipótese de punir o pai. – Vere encolheu-se face à clamorosa imaturidade que as suas palavras revelavam… e à estreiteza da sua visão. A fúria e a obsessão tinham constituído as únicas reações aceitáveis à verdade. – Andei a ferver durante semanas. Meses, talvez. E quando, por fim, acalmei um bocado, parecia que já estavas em paz com o meu novo eu. A maior parte do vermelho da fúria de Freddie desaparecera já das suas faces. Abanou a cabeça devagar. – Nunca estive completamente em paz com o teu não-eu. Quem me dera que tivesses vindo ter comigo, poderia ter-te dito que já não era preciso castigar o pai: ele já estava a viver um inferno. Devias tê-lo ouvido naquela noite. Implorou durante três horas, escondido debaixo das cobertas o tempo todo. Acabei por ter de me sentar, porque já estava tão cansado. – Mas ele nunca mostrou o mais pequeno remorso. – Foi a tragédia dele: viver com tanto medo sem perceber minimamente que podia e devia arrepender-se. O facto de ter chamado o pastor para falar nisso mostra como estava aterrorizado com a condenação eterna. Tenho pena dele.

Vere apoiou a mão à ilharga de uma estante de livros. – Sabes que tive inveja de ti, Freddie? Conseguiste seguir em frente, ao passo que eu não quis nem fui capaz de o fazer. Sempre me orgulhei da minha inteligência: mas é uma inteligência vã. Em vez disso, quem me dera ter alguma da tua sabedoria. Freddie suspirou. Quando voltou a erguer os olhos para Vere, havia uma profunda simpatia no seu olhar. Vere quase se viu forçado a desviar o olhar: não merecia a compaixão de Freddie. – Como foi ao longo de todos estes anos? Vere pestanejou para afastar as lágrimas. – Foi mais ou menos e foi horrível. Freddie hesitou, ia a dizer qualquer coisa, mas lembrou-se: – Meu Deus! E Lady Vere? Sabe? – Agora, sim. – E ainda gosta de ti? A ansiedade que transparecia na voz de Freddie fez crescer de novo o nó na garganta de Vere. Também não era merecedor da preocupação de Freddie. – Resta-me ter esperança que sim. – Penso que ainda gostará – disse Freddie, com os olhos a brilhar de novo com aquela convicção límpida que Vere conhecia tão bem. Vere envolveu o irmão num abraço. – Muito obrigado, Freddie. Naquele dia ainda não merecia o perdão de Freddie, esperava vir a merecê-

lo no futuro. Um dia estaria à altura dele. Mrs. Douglas enviou alguns telegramas a Elissande. A cada novo destino a que chegava, enviava um novo, a tranquilizar Elissande quanto ao seu bem-estar. Um parágrafo entusiasmado chegou depois de Vere a ter levado ao Teatro Savoy para assistir a uma ópera cómica intitulada The Yeomen of the Guard16, que adorara apesar de não estar suficientemente forte para assistir a mais do que a metade da primeira parte. E um outro, muito breve, rezava apenas Mrs. Green deixou-me comer uma colher de gelado. Tinha-me esquecido de como era divino. Os telegramas dela também traziam notícias. A primeira informação relevante chegou depois de ela e Vere se terem encontrado com os solicitadores de Douglas. Num testamento datado do início da década, Douglas não deixara nada nem à mulher nem à sobrinha, tendo legado tudo à Igreja. Elissande rira-se. Em boa verdade, ele era absolutamente coerente no seu rancor. Chegou um outro telegrama, de Vere, explicando que o facto de não receber a herança de Douglas podia ser uma bênção disfarçada – Douglas pedira pesados empréstimos oferecendo a mina de diamantes como garantia e podia vir a verificar-se que só tinha a legar dívidas. Os advogados da Igreja iriam passar por tempos difíceis com este cavalo dado em particular. O telegrama que chegou no dia seguinte era muito mais jubiloso: Vere localizara as joias que Charlotte Edgerton legara a Mrs. Douglas e que Douglas confiscara de imediato. Joias no valor de mil libras. Elissande releu o telegrama várias vezes. Mil libras. Na manhã depois de Exeter, quando acordara, tanto o diário de Douglas como o seu cofre tinham desaparecido do quarto. No sítio onde estivera o cofre havia agora uma elegante caixa de ébano, contendo as recordações de Charlotte e Andrew Edgerton, arrumadas com esmero. Ainda em camisa de noite, Elissande ficara de pé, à frente da caixa, percorrendo as suas arestas com a ponta do dedo na esperança de que a caixa significasse o que ela tanto

desejava. Mas o marido saíra pouco tempo depois, despedindo-se com um solene aviso para que cuidasse de si. Não conseguira fazer grande coisa nos dois dias que se seguiram à partida dele, exceto tentar lidar com o facto de ele não ter mudado de ideias. Na última vez, ela ficara furiosa; desta vez, ficou apenas angustiada. Não queria perder o homem que lhe segurara na mão quando mais precisara. Ela tinha argumentos para justificar uma permanência mais longa em Pierce House: precisava de recuperar; depois, seria necessário dar a notícia à mãe com o maior cuidado. E, por fim, precisavam de tempo para escolher o sítio onde iriam viver. Todavia, ela já começava a reagir contra essas razões. Se tinha de partir, e tinha, aquele era um momento tão bom como qualquer outro com «é um diamante de primeira água» ainda a retinir-lhe levemente dentro da cabeça, em vez de protelar até ela e a mãe já não serem bem-vindas. Agora, com mil libras à sua disposição, podiam ponderar no seu destino onde quer que quisessem, uma estalagem, uma casa para alugar, o próprio Hotel Savoy, se tal lhes aprouvesse. E não havia maneira fácil de dar a notícia à mãe, pois não? Por mais que ela encanasse a perna à rã, a verdade não iria tornar-se menos desagradável para Mrs. Douglas. Ordenou às criadas que emalassem as coisas das duas, era menos doloroso delegar a tarefa, enquanto tentava animar-se. Um novo local, novas pessoas, uma vida nova em folha, tudo coisas que a teriam entusiasmado durante os dias que passara em Highgate Court. Contudo, bastava-lhe um olhar para fora da janela para o jardim murcho, mas ainda bonito, e apertava-se-lhe o coração de pensar no quanto amava aquele sítio, esta vida e este homem que levara a sua mãe a ver The Yeomen of the Guard ao Teatro Savoy. Quase sem pensar no que fazia, saiu de casa e caminhou até ao local sobre o rio Dart onde se encontrara com o marido durante a longa caminhada dele. Imaginava que, muito tempo depois de se terem ido embora, ele ainda caminharia por aqueles quilómetros de paisagem campestre ininterrupta, ainda se deteria de vez em quando numa encosta para admirar o rio, com o chapéu à

banda e aplicações de cabedal no seu casaco de tweed. E ela sofreu pelos longos quilómetros de solidão dele. Quando regressou a casa, dirigiu-se ao gabinete do marido. Poucos dias após ter chegado ao Devon, vira ali um livro intitulado Como Podem as Mulheres Ganhar a Vida. Na altura parecera-lhe bizarro encontrar um livro daqueles por entre a coleção de um homem que nunca precisara de ganhar a vida; agora, habituara-se à vasta, profunda e eclética compilação de saber que ele tinha à sua disposição. Enquanto procurava nas prateleiras, os olhos pousaram no canto de um postal que ficara preso entre dois livros. Puxou o postal para fora e teve um sobressalto. A imagem em tons de sépia mostrava um oceano revolto e penhascos altos. Capri, decidiu imediatamente, antes de ver as palavras impressas no canto inferior esquerdo do postal: Costa de Exmoor. Chamou Mrs. Dilwyn para a ajudar a descobrir a Costa de Exmoor no mapa de Inglaterra detalhado que estava pendurado numa parede do gabinete. Não era longe, ficava a cerca de setenta e cinco quilómetros de distância, na costa norte do Devon. Mostrou o postal a Mrs. Dilwyn. – Acha que vou conseguir encontrar este sítio em particular, se estiver na Costa de Exmoor? – Oh, sim, minha senhora – respondeu Mrs. Dilwyn depois de um breve olhar ao postal. – Já aí estive. São os Rochedos do Carrasco. Um local encantador, esse. – E sabe como posso lá chegar? – Com certeza, minha senhora. Apanha o comboio de Paignton até Barnstaple, depois apanha o comboio regional e vai até Ilfracombe. Os rochedos ficam a poucos quilómetros para leste. Agradeceu a Mrs. Dilwyn e deixou-se ficar mais algum tempo a olhar para o

postal numa vaga melancolia. Um sítio assim, como os Rochedos do Carrasco, era difícil de visitar: a mãe não seria capaz de percorrer os caminhos íngremes que conduziam ao cume. A ideia ocorreu-lhe inesperadamente: podia ir sozinha. Não estava à espera da mãe antes de daí a dois dias. Se saísse logo de manhã, conseguiria estar de volta nessa mesma noite, a tempo de receber a mãe, e teria vivido a experiência com que sonhara durante tantos anos: estar de pé, no alto de um precipício, por cima de um oceano temperamental. Se tinha de começar uma nova vida pela qual sentia pouco entusiasmo, bem podia terminar esta de uma forma extraordinariamente agradável. – Ainda a pensar no Penny? – perguntou Angelica. – Sim... e não – respondeu Freddie. Freddie estava à espera dela, à frente da sua casa, quando ela regressara do Derbyshire. Ao longo da última hora e meia só tinham falado das revelações de Penny, recordando dúzias de ocasiões em que algumas das palavras e atos de Penny poderiam ser reinterpretados à luz do seu serviço à Coroa. No início, ela ficara escandalizada. Ela sempre fora mais próxima de Freddie, mas Penny fora a imagem do irmão mais velho, quase um deus, da sua infância. Houvera ocasiões em que ela e Freddie tinham chorado juntos, sofrendo pelo jovem que ambos amavam, que não desaparecera, mas que, não obstante, haviam perdido. Porque Freddie já lhe tinha perdoado, ela estava disposta a, ao fim de algum tempo, perdoar-lhe também. Tocou a pedir um novo bule de chá. Toda aquela conversa tinha-lhe feito sede. – Como é possível que estejas e não estejas a pensar nele ao mesmo tempo? Freddie olhou-a longamente.

– Fiquei contente quando o Penny contou tudo. Conversámos durante uma boa hora, antes de ele ter de sair para levar Mrs. Douglas ao encontro com os solicitadores do marido. Depois de ele sair, ainda me sentia bastante perturbado e quis falar contigo – interrompeu-se por um instante – e só contigo. Foram as vinte e quatro horas mais compridas da minha vida, as que passei à tua espera. Foi muito agradável ouvir aquilo. Ao fim de todo o tempo e esforços que despendera na tentativa de os transformar de amigos em amantes, agora, e por ironia, por vezes preocupava-se que a sua relação carnal, por muito deliciosa que fosse, se tivesse sobreposto a tudo o resto. Palermice sua, é claro que ainda continuavam a ser melhores amigos. Sorriu-lhe: – Se soubesse, teria regressado mais cedo. Ele não lhe devolveu o sorriso e, em vez disso, estendeu a mão para o bule do chá. – Esse já não tem chá – recordou-lhe. Ele corou ligeiramente. – Bem, claro que não. Ainda agora tocaste a pedir um novo, não foi? Chegou mais chá. Ela serviu os dois. Ele levantou a chávena. – Não queres natas e açúcar? – Ele nunca bebia o chá simples. Ele corou ainda mais, pousou a chávena e esfregou os dedos na testa. – Ainda não respondi à tua pergunta, pois não? Ela já esquecera a pergunta que lhe fizera. Por uma qualquer razão, o nervosismo súbito dele também a tornava tensa. Mas ele parecia ter tomado uma decisão, fosse ela qual fosse. Encarou-a e,

numa voz firme, disse: – Durante algum tempo lutei para definir o que sinto por ti, que é algo muito mais forte do que a amizade, se bem que não seja nada parecido com a experiência de amor que já tive. Ela tinha estendido a mão para ir buscar um biscoito. O gesto imobilizou-se no ar. Teve de forçar os dedos a fecharem-se em torno do biscoito. Ainda lhes faltava trazer a palavra amor à conversa, pelo menos aplicada a eles os dois. – Com Lady Tremaine, fui sempre o humilde adorador. Quando entrava na salinha dela, sentia-me como um acólito que se abeira do altar de uma deusa. Era ao mesmo tempo eletrizante e perturbador. Mas a tua sala tem sido mais ou menos como uma extensão da minha própria casa. E eu não sabia como interpretar isto. Os olhos encontraram-se. Ela tomou consciência de que não fazia ideia, a mínima ideia, do que ele iria dizer a seguir. O seu coração debatia-se para conter o medo que sentia e um crescente sentimento de esperança. – Depois, foi esta espera pelo teu regresso. Enquanto andava de um lado para o outro na rua, lá fora, a certa altura percebi que nunca ia ter com Lady Tremaine a menos que sentisse que tinha algo para oferecer. Quando a visitava só porque queria visitá-la, ficava sempre com receio de estar a desperdiçar o tempo dela. «Pelo contrário, a ti, quero ver-te com todas as disposições. Quando estou particularmente feliz, quando me limito a tratar da minha vida, quando estou absolutamente consternado como estive ontem e hoje. E sinto sempre que é uma honra, quando venho ter contigo e fico com a sensação de que trazer-me a mim é suficiente. A mão dela descontraiu-se, depois de esmagar o biscoito em vários bocados, que lhe ficaram na palma. Deixou-os cair em cima da toalha de mesa e tornou a respirar. – Ao fazer o que fez, o Penny deu-me por certo. Mas não foi o único a

cometer esse erro. Eu também o tomei por certo, antes do «acidente» dele. – Teve um ligeiro sorriso, acompanhado por um olhar profundo e caloroso. – Tal como o Penny, também tu tens sido um dos pilares da minha vida, que teria tido muito menos sentido se tu não existisses. Todavia, eu também te tomei por certa. Abandonou o lugar onde estava sentado. Pareceu-lhe natural também se pôr de pé – ele tomou as mãos dela nas suas. – Nunca mais te quero dar por certa, Angelica. Casas comigo? Ela retirou uma mão e tapou a boca. – Estás um homem cheio de surpresas, Freddie! – Ao passo que tu tens sido a melhor surpresa da minha vida. Foi assaltada por uma vaga de felicidade pura que quase a derrubou. Claro que ele estava a falar absolutamente a sério, nunca dizia nada que não viesse do fundo do coração. – Sou incapaz de imaginar melhor maneira de percorrer a vida que não seja contigo ao meu lado – prosseguiu ele. – A lembrar-te a toda a hora para não me dares por certa? – brincou. De outro modo começaria a chorar desabaladamente. Ele riu-se. – Bem, talvez não a toda a hora. Uma vez por trimestre estará bem. – Pousou-lhe as mãos nos braços e olhou-a de frente, olhos nos olhos. – Quer isso dizer que aceitas? – Sim – limitou-se a responder. Ele beijou-a e deu-lhe um longo abraço. – Amo-te.

As palavras foram mais doces do que julgara possível, e ela tinha expectativas exorbitantes, uma vez que há tantos anos as desejava ouvir. – Também te amo – disse. Recuou um pouco e piscou-lhe o olho. – Um segundo nu para celebrarmos o noivado? Ele riu-se e esmagou-a contra o peito para a beijar de novo. Ilfracombe revelou-se uma enorme desilusão. Um nevoeiro tão denso como papas de aveia viera dar um beijo frio e molhado à costa. A visibilidade era tão reduzida que os candeeiros da rua tinham de se manter acesos o dia todo, ténues anéis de luz cor de mostarda refletidos nos vapores cinzentos que escondiam tudo o que estava a mais de um metro e meio de Elissande. Ela retirou algum prazer do facto de estar na costa: o cheiro do mar, revigorante e salgado; a rebentação batendo com força e estrondo em penhascos invisíveis, nada parecida com a ondulação suave de Torquay; as graves e firmes vozes das buzinas de nevoeiro dos navios atravessando o canal de Bristol, desoladamente românticas. Decidiu passar lá a noite. Se o nevoeiro levantasse, teria tempo suficiente na manhã seguinte para ver os penhascos e regressar a Pierce House, estava a treinar para deixar de pensar nela como o seu lar, antes da mãe e do marido. Então, teria de dar a notícia à mãe e dizer adeus ao seu casamento. A visão das malas no quarto da mulher foi um punho que se apertou em torno do coração de Vere. Ele e Mrs. Douglas tinham chegado a Londres a meio da tarde. Para a mulher mais velha, viajar mais naquele dia estava fora de causa. Vere instaloua, juntamente com Mrs. Green, no Hotel Savoy e apressou-se a regressar a casa sozinho. Agora que falara com Freddie, havia tanto que precisava de contar à mulher: como fora estúpido, a falta imensa que ela lhe fazia e como estava ansioso por fazer com que o casamento tivesse um novo começo.

Abriu as gavetas – vazias. Abriu as portas do armário com brusquidão – vazias. Olhou para o toucador, vazio à exceção de um único pente. E, depois, viu algo que lhe provocou um salto no estômago: em cima da mesinha de cabeceira dela estava um livro: Como Podem as Mulheres Ganhar a Vida. Ela ia-se embora. Correu pelas escadas abaixo e agarrou Mrs. Dilwyn: – Onde está Lady Vere? Foi incapaz de esconder a sua aflição, a voz soou alta e brusca. Mrs. Dilwyn ficou desconcertada com a sua brusquidão: – Lady Vere foi aos Rochedos do Carrasco, senhor. Tentou digerir esta informação, mas não conseguiu. – Porquê? – Ontem, a senhora viu um postal no seu gabinete e achou a paisagem maravilhosa. Uma vez que não estávamos à espera que milorde e a senhora regressassem antes de amanhã, ela decidiu ir até lá, hoje, logo de manhãzinha. Eram quase horas de jantar. – Não devia ter já voltado? – Recebemos um telegrama há cerca de uma hora, senhor. A senhora decidiu passar lá a noite. Estava nevoeiro na costa, hoje, e ela não conseguiu ver nada. Espera que, amanhã, o tempo esteja melhor. – Os Rochedos do Carrasco… teria de ir até Ilfracombe – disse tanto para si como para Mrs. Dilwyn. – Sim, senhor.

Ela ainda não tinha acabado a frase, já ele estava fora de casa. *** O sol fez-lhe arder os olhos, o céu tinha um brilho tão intenso que estava quase branco. Soprava um vento gelado vindo da montanha. Ela estava desidratada, tinha a pele tão frágil como o papel e a garganta seca da sede. Tentou mexer-se. Mas já tinha os pulsos em sangue dos esforços para se libertar das correntes, correntes enterradas nas profundezas do Cáucaso. O grito penetrante de uma águia fê-la renovar os esforços, num frenesim de dor e futilidade. A águia de asas escuras deslizou e aproximou-se, lançando uma sombra sobre ela. Quando mergulhou sobre ela, com o bico afiado como uma faca a brilhar, ela atirou a cabeça para trás e debateu-se em agonia. – Acorde, Elissande – sussurrou um homem. Havia qualquer coisa a um tempo autoritária e calmante naquela voz. – Acorde. Acordou. Sentou-se, ofegante. Alguém pousou uma mão no seu ombro. Ela fechou os dedos sobre a mão, mais calma devido ao seu calor e força. – Quer água? – perguntou o marido. – Sim, obrigada. Como por magia, um copo surgiu na sua mão. Depois de ter acalmado a sede, ele retirou-lho de novo. De súbito, recordou-se de onde estava: não era no seu quarto em casa, em Pierce House, mas num hotel em Ilfracombe, um hotel virado para o porto, mas de cujas janelas tivera dificuldade em avistar até mesmo a rua. – Como foi que me encontrou? – perguntou, espantada e confusa, ao mesmo tempo que um entusiasmo, tão intenso que lhe queimava a pele, começou a pulsar-lhe nas veias. – Foi fácil: há apenas oito hotéis em Ilfracombe referidos no guia de viagem

que comprei no caminho. Claro que nenhum hotel decente daria o número do quarto de uma senhora, tive de usar uns argumentos um tanto ilícitos para conseguir tal informação depois de descobrir onde estava. E depois foi só chegar à sua fechadura e tratar da lingueta. Ela abanou a cabeça. – Podia simplesmente ter batido à porta. – Tenho um mau costume. Depois da meia-noite, não bato. Ela ouviu o sorriso na voz dele. O coração saltou-lhe no peito. Deixou cair a mão que mantivera apertada na dele. – O que está aqui a fazer? Ele não lhe respondeu, limitou-se a abrir os dedos sobre o ombro dela. – Foi o mesmo pesadelo que me contou… o pesadelo em que está acorrentada como Prometeu? Assentiu. Ele teria sentido o movimento dela, porque fizera deslizar a mão, que estava agora mesmo por baixo da sua orelha. – Quer que lhe fale de Capri, para a ajudar a esquecer-se disso? Ele devia ter-se aproximado mais dela; tomou consciência do odor do nevoeiro, ainda preso ao casaco dele. Assentiu, de novo. – «Olhando para o mar, de Nápoles, a ilha de Capri fica situada do outro lado do estreito da baía, como um grande quebra-mar natural, grandiosa nas suas proporções e com um recorte de um pitoresco maravilhoso» – disse, baixo, a sua voz clara e feiticeira. Teve um sobressalto. Reconheceu aquelas palavras. Eram do seu livro favorito sobre Capri, que perdera quando o tio fizera a purga à biblioteca. – «Há muito tempo, um viajante inglês comparou-a a um leão couchant»17 –

prosseguiu. – «Por causa da força de uma imagem que vira, Jean Paul declarou que era uma esfinge; ao passo que Gregorovius, o mais imaginativo de todos, revela que se trata de um sarcófago antigo, com baixos-relevos que contam a história de Euménides, com a sua cabeleira de serpentes, e a figura de Tibério pousada em cima dela.» Ele fê-la descansar as costas na cama. – Quer ouvir mais? – Sim – murmurou. Ele despiu-se, deixando cair uma peça atrás de outra, tombando com baques suaves, que lhe deixaram a garganta apertada e o coração aos saltos. – «Rigorosamente falando, Capri não é um desvio turístico.» – Despiu-lhe a camisa de noite e fez deslizar os dedos ao longo do corpo dela. – «A maior parte dos turistas apanha o pequeno barco a vapor que sai de Nápoles, visitam a Gruta Azul, passam uma hora na marina e regressam nessa mesma noite, via Sorrento.» Beijou a dobra do cotovelo dela, o pulso e, suavemente, mordiscou-lhe a palma da mão. Ela teve um arrepio de prazer. – «Mas isso é o mesmo que ler a página de rosto e ignorar o livro que está por trás.» A mão dele subiu-lhe pelo braço e massajou-lhe o ombro. Encostou a outra mão à cara dela. Leve, muito levemente para não tocar nas pisaduras que já quase tinham perdido as suas cores rebeldes, mas que ainda se mostravam sensíveis à pressão, delineou o contorno do seu rosto. – «Os poucos que trepam aos rochedos e se sentam com calma para observar a vida e a paisagem da ilha, descobrem todo um poema a que não falta nenhum elemento de beleza ou interesse, aberto à sua leitura» – recitou, enquanto o seu polegar pressionava o lábio inferior dela.

Ela soltou um gemido de desejo. Ele reteve a respiração. – «Mas tu és mais bela do que Capri» – afirmou, numa voz a um tempo ardente e carregada de desejo. Ela puxou-o contra si e beijou-o com ardor. A partir dali, Capri foi esquecida e só tiveram lábios, mãos e mentes um para o outro. – Em que pensas? – perguntou Vere, deitado de lado, com a cabeça apoiada na mão. Não conseguia vê-la. Ela era apenas o ritmo da respiração e o calor da pele. A mão dela percorreu as cicatrizes no tronco dele. – Estava a pensar que, um, em todos os anos durante os quais li diários de viagens, nunca, mas nunca, percebi que também podiam ser instrumentos de sedução. E dois, que deve ser a primeira vez em que ficamos os dois acordados no fim. Ele imitou o som do ressonar. Ela riu-se. – Se não estás com muito sono, queria contar-te uma história – disse ele. Chegara a altura. – Não tenho sono nenhum. Quis avisá-la. – A minha história nem sempre é uma história feliz. – Nenhuma é. Ou não seria uma história, seria uma apologia. Bem verdade. Portanto, contou-lhe os acontecimentos que tinham levado à criação da sua vida dupla, começando pela noite da morte do pai. Não

obstante o aviso, o corpo dela enrijeceu de consternação. A mão dela agarrou o braço dele com força, mas escutou em silêncio, atenta, se bem que com uma respiração em sobressaltos. – E talvez a minha vida tivesse continuado indefinidamente neste curso… um caminho já muito usado, bem vistas as coisas... se não te tivesse conhecido. Mas tu apareceste e mudaste tudo. Quanto melhor te conhecia, mais me via forçado a perguntar-me se as coisas que pensava serem imutáveis o seriam assim tanto, ou se era apenas eu que tinha medo da mudança. À medida que a história dele se ia afastando da devastação inicial, o corpo dela também se descontraíra. Agora, a mão que tinha pousada no ombro dela já não detetava tanta tensão. – Há dois dias confessei tudo ao Freddie. Foi terrível começar a conversa, mas no fim senti-me aliviado e livre, como há muito tempo não sentia. E é a ti que tenho de o agradecer. – Fico muito, muito contente que tenham tido essa conversa, tu e Lorde Frederick, mas não vejo o que possa ter tido que ver com ela – retorquiu, num espanto genuíno. – Lembras-te do que disseste acerca de Douglas, aqui há umas noites? «Não vou deixá-lo inferiorizar-me agora que está no túmulo, como nunca deixei que me roubasse um pedaço da alma enquanto viveu.» As tuas palavras abalaramme. Até àquele momento eu não percebera que deixara que me roubassem um pedaço da alma. E até reconhecer que já não estava inteiro, não fui capaz de começar a recompor-me. Transbordava de gratidão pela mulher. Todavia, ela não fazia ideia das mudanças que provocara nele, o que era ainda mais um sinal do quão reservado se tornara. – É maravilhoso saber que pude ser útil – disse ela, com uma nota de agrado e embaraço. – Mas tenho de insistir que não mereço nem metade do crédito que me atribuis. Tu viste: ainda agora tive outro pesadelo. Não sou um exemplo brilhante para ninguém.

– Para mim, és – declarou, com firmeza. – Além do mais, eu vim equipado para o pesadelo, não vim? – Ia agora mesmo fazer a pergunta! Como sabes de cor um dos meus livros favoritos? – Perguntei à tua mãe se se lembrava de algum livro sobre Capri de que gostasses especialmente. Ela citou-me uma passagem, mas não foi capaz de se recordar do título, só me disse que o adoravas. Por isso, deitei mãos à obra. Pedira a sete livreiros que fizessem entregar no seu hotel todos os guias que tivessem nas suas lojas e que sequer mencionassem a Itália. Depois de ter regressado do Teatro Savoy com Mrs. Douglas, gastara a maior parte da noite a passar os olhos por todas as páginas que referiam Capri até se deparar com o excerto que Mrs. Douglas citara. – Procurei o livro na intenção de to ler até voltares a adormecer, caso voltasses a ter o teu pesadelo. Depois, apercebi-me de que precisaria de uma luz. Era melhor memorizá-lo, que foi o que fiz no comboio, quando vinha de regresso ao Devon. – Isso foi… incrivelmente amoroso. – A cama estalou. Ela soergueu-se ligeiramente e deu-lhe um beijo nos lábios. – Já só tenho mais dois parágrafos na cabeça. Mas se tivesse sabido que os diários de viagem tinham tantas propriedades eróticas, teria memorizado o livro de uma ponta à outra. Ela riu-se. – Ai tinhas, não tinhas? Ele passou os dedos pelo cabelo frio dela. – Se quiseres, eu decoro… mesmo que me proíbas de te seduzir outra vez com diários de viagem sobre Capri.

Ela encostou a sua face à dele, um gesto simples que quase fez com que a sua gratidão entrasse numa espiral de descontrolo. – Seria agora uma boa altura para te pedir desculpa por ter sido um cretino tão grande quando estivemos nas ruínas do castelo? O comportamento dele naquele dia tinha sido um espinho cravado na sua consciência desde então. Ela afastou-se um pouco, como se quisesse mergulhar o seu olhar no dele. – Só se for também boa altura para te pedir desculpa por te ter forçado a casar comigo. – Então, estou perdoado? – Claro – respondeu. Sempre acreditara que perdoar era permitir que uma ofensa não tivesse castigo. Agora, por fim, percebia que o perdão não se referia ao passado, mas ao futuro. – E eu, estou perdoada? – perguntou ela, com uma nota de ansiedade na voz. – Sim, estás – respondeu, numa convicção profunda. Ela soltou o ar, de forma audível, num som de alívio. – Agora, podemos seguir em frente. Agora, podiam encarar o futuro. 16 The Yeomen of the Guard; or, The Merryman and His Maid, foi uma ópera com música de Arthur Sullivan e libreto de W. S. Gilbert. Estreou no Teatro Savoy, em 3 outubro de 1888. Fez 423 espetáculos. A ação decorre na Torre de Londres. (N. da T.)

17 Termo de heráldica: um «leão couchant» fica na posição deitada, mas de cabeça levantada. (N. da T.)

22 significa Pedicabo ego vos et irrumabo? – perguntou Elissande, –O que enquanto caminhavam pelo íngreme carreiro que conduzia ao topo dos Rochedos do Carrasco. O dia nascera soalheiro e limpo. E a costa revelara-se uma visão com um promontório selvagem e um mar bravio. Fora imediatamente cativada. A seguir ao pequeno-almoço, tinham alugado uma carruagem e ido até Combe Martin, a aldeia mais próxima dos Rochedos do Carrasco, e daí partiram a pé, caminhando pelos prados verdes, num caminho pontilhado de cabras de um branco surpreendente. O marido estava a beber água do cantil que trouxera consigo. À pergunta dela, engasgou-se, quase tanto como acontecera ao irmão na noite em que ele referira a frase como sendo o lema da família Edgerton de Abingdon. Elissande teve de lhe dar umas fortes palmadas nas costas para o ajudar a limpar a garganta. Ele arquejou e riu ao mesmo tempo. – Deus do céu! Ainda te lembras disso? – Claro que sim. Não é lema nenhum, pois não? – Não! – dobrou-se de riso. – Ou, pelo menos, espero que não. Adorou o riso dele. Sobretudo depois do longo e solitário caminho que ele percorrera até àquele dia em que podiam apreciar a Costa Ocidental de braço dado. Ela apanhou o chapéu dele, que caíra no chão. – Então, o que é? – alisou o cabelo dele com os dedos e tornou a pôr-lhe o chapéu na cabeça, ajeitando a inclinação para que assentasse melhor, não tinha grande familiaridade com a toalete de um homem. – É um verso de um poema de Catulo, provavelmente o poema mais obsceno

que alguma vez alguém lerá – explicou, baixando o tom de voz, numa atitude brincalhona –, tão obsceno que penso que nunca se publicou uma tradução em inglês. – Oh? – Tinha de ouvir aquilo. – Por favor, conta lá. – Uma jovem e simpática senhora como tu não devia pedir isso – brincou. – Um jovem e simpático cavalheiro como tu não devia negar-se… ou a jovem e simpática senhora pode ver-se forçada a perguntar ao irmão. – Oh, chantagem. Gosto. Bem, se queres mesmo saber, o primeiro verso refere a sodomia. – Rebentou outra vez a rir, desta feita por causa da expressão na cara dela. – Não fiques com um ar tão chocado; já te tinha dito que é obsceno. – Obviamente, levei uma vida resguardada. A minha ideia de obscenidade consiste em chamar feio ou estúpido a alguém. Há um segundo termo? – Na realidade, sim. Também se refere a um ato sexual, menos infame, mas ainda ficarias com uma sala cheia de senhoras a pedir os seus sais, caso fosse mencionado. Ele reteve a respiração. – Acho que sei o que é. Ele recuou, atónito. – Não, com toda a certeza que não sabes o que é. – Sim, sei – repetiu, matreira. – Na noite em que estavas bêbado que nem um cacho, referiste Onan. E disseste que, se estivesses mesmo muito maldisposto, me farias engolir a tua semente. O queixo dele caiu. – Retiro o que disse. Então sabes o que é. Deus do céu, que mais te disse eu

naquela noite? No caminho, surgiu um jovem pastor, caminhando na direção deles com o seu rebanho. – Pensando melhor – continuou o marido –, esperemos até à noite. Estou com um pressentimento de que uma conversa sobre as minhas palavras e ações dessa noite nos podem levar a atividades que nos meteriam na cadeia. Ela teve uma risadinha. Na brincadeira, ele deitou-lhe um ar sério. – Tem juízo. Estou preocupado com a tua reputação. Ela aclarou a garganta e pôs um ar fingidamente sério: – Era esse tipo de poesia latina de que andavas à procura para adormecer quando estiveste em Highgate Court? – Não, claro que não. Como ficou óbvio, é o tipo de poesia latina que leio quando me quero engasgar com água. Ela riu-se. – E já que falamos em procurar poesia latina, o que estavas a fazer no escritório do meu tio, naquela noite? Ficou com um ar tímido. – Era mesmo ao lado da sala verde. Estava à espera para entrar depois de Lady Avery te ter apanhado sozinha. Pensei que iria ser divertido. – Suspirou. – Vês, foi esta atitude vingativa que conduziu à minha queda. Ela fez-lhe uma festinha no braço. – Não deixas de ser um bom homem. – Achas?

Provavelmente, tinha querido que a pergunta saísse num tom descontraído, mas saíra-lhe carregada de esperança e dúvida. Ela percebeu-o perfeitamente. Nunca pensara em si própria como sendo uma pessoa particularmente boa – como é que alguém tão habituado a mentiras e enganos podia ser boa pessoa? Mas não duvidava da bondade dele: bastavalhe ver como tratara a mãe dela. E ele tinha muito pouca autoestima. Reconhecer a mudança de que precisava exigia perspicácia, e confessar tudo a Freddie, ao fim de tantos anos, exigia verdadeira coragem. – Sei que sim – respondeu. Ficou calado. O caminho fazia uma curva. Estendeu-lhe a mão para a ajudar a passar por cima de uma rocha que emergia do solo. Olhou para ele, o seu homem robusto, atraente, dourado e pensativo, e foi assaltada por um feroz instinto de proteção. Caminharam durante mais quase cinco minutos até que ele lhe tocou no ombro e disse: – Obrigado, estarei à altura. Ela não tinha a menor dúvida. Do alto dos Rochedos do Carrasco desfrutava-se uma vista magnífica: extensos promontórios verdejantes, com centenas de metros de altura, um mar azul-escuro em que o sol brilhava como uma rede de prata cintilante e, à distância, um iate, de velas desfraldadas, cortava as águas com a graça indolente de um cisne. Ela não conseguia desviar os olhos daquele panorama. E ele não conseguia tirar os olhos dela. Estava afogueada, ainda ligeiramente ofegante do esforço da difícil subida e o sorriso, ah, o sorriso dela, teria rastejado por cima de estilhaços de vidro para ver aquele sorriso.

– É ainda mais bonito no tempo da floração da urze – informou-a. – As encostas ganham um tom arroxeado magnífico. – Então, teremos de cá voltar quando a urze florir. As suas saias ondulavam com a brisa fresca e salgada. Uma rajada de vento particularmente forte quase fez voar o chapéu dela. Ela riu-se, ao mesmo tempo que punha uma mão com força sobre a copa do chapéu. A sua outra mão escorregou para dentro da dele, num aperto quente e leve. O coração dele deu um salto: era ela. Fora sempre ela a mulher por quem esperara tantos anos. – Eu tinha uma ideia da companheira perfeita – disse. Ela olhou para ele, com um toque de malícia: – Aposto que não era nada parecida comigo. – Na realidade, não era nada parecida comigo. Fiz dela o meu oposto em tudo. Era simples, feliz, sem falsidade… sem sombras e sem história. Virou-se mais para ele e a sua expressão adquiriu uma curiosidade solene: – Era a tua Capri? É claro que ela o compreenderia, mas mesmo assim, o coração dele inchou de gratidão. – Sim, ela era a minha Capri. Mas ao passo que a tua Capri era um desejo, a minha tinha-se tornado uma muleta. Já mesmo depois de me ter apaixonado por ti, eu tentei agarrar-me a ela. A bem dizer, optei por te afastar e perder qualquer possibilidade de um futuro a dois em vez de reconhecer que talvez a minha Capri tivesse um tempo de vida limitado e que esse tempo chegara ao fim. A mão dela apertou a dele.

– Tens a certeza de que estás preparado para a deixar ir? – Sim. – Ao fim de tanto tempo. – E acho que estou preparado para deixar ir outra coisa. Penso que é tempo de eu ter outro «acidente». Ela abriu a boca de espanto. – Vais deixar a tua atividade como agente da Coroa? – Sempre quis ocupar um lugar na Câmara dos Comuns, até ao dia em que tive de assumir o lugar do meu pai na Câmara dos Lordes. Depois, soube a verdade acerca da morte da minha mãe. Os meus planos tornaram-se irrelevantes. Em vez disso, dediquei-me a uma vingança que nunca poderia ser minha. Mas com outro «acidente» posso afirmar que recuperei e começar a partir daí. Ela limitou-se a ficar a olhar para ele, de olhos arregalados. De repente, foi assaltado pela dúvida. – Não achas que a minha ideia de assumir o lugar na Câmara dos Lordes é demasiado extravagante? – Não, de todo. Só estou espantada com as mudanças que já houve na tua vida e com as que ainda virão. – Levou a mão ao sobrolho dele. – E serás feliz na Câmara dos Lordes? – Não. Aquilo está cheio de reacionários presumidos: fiquei furioso quando chumbaram a Lei da Autonomia Irlandesa, em noventa e três. – Sorriu-lhe. – Mas devia haver lá alguém para lhes dizer que não passam de uma gentinha reacionária e presumida. – Nesse caso, ao princípio, agirei de forma adequadamente incrédula, quando o meu marido se transformar abruptamente do meu estimado idiota num homem cujo intelecto e saber estão para lá do meu entendimento. E depois, sob a sua tutela paciente e dedicada, descobrirei a minha própria excelência intelectual. – Assentiu. – Sim, acho que é exequível. E quando é que vai ser

esse teu «acidente»? Sentia-se dividido entre a hilaridade e a admiração perante a forma como ela planeava os pormenores deste seu último, grande papel. – Decidimos a tática e a oportunidade mais tarde. Agora, há uma coisa que temos de tratar com muito mais urgência. Já, para ser correto. Ela levantou o olhar. – O que é? As pisaduras, se bem que ténues, ainda se notavam, mas não diminuíam a beleza dela: a sua coragem fazia-o amá-la ainda mais. – Por muito que tenha tentado negá-lo posteriormente, a verdade é que te amo desde que te vi pela primeira vez. Lady Vere, dá-me a imensa honra de continuar casada comigo? Ela arquejou suavemente e riu-se. – Está a propor-me casamento, Lorde Vere? – Estou. – Não estava à espera daquilo, mas o seu coração batia com maior rapidez. – Por favor, diz que sim. – Sim – respondeu. – Sim, dou. Nada me faria mais feliz. Ele tirou-lhe o chapéu, depois tirou o seu, e beijou-a, beijou a mulher que amava acima de tudo, no local de que mais gostava no mundo. Regressados a casa, depararam-se não só com Mrs. Douglas, vinda de Londres – impante, ofereceu a Elissande as joias da irmã como dote – como também Freddie e Angelica, que tinham vindo pessoalmente anunciar o seu noivado. Angelica, com um ar radiante, deu um murro simbólico no peito de Vere como castigo de lhe ter mentido ao longo de tantos anos.

– Bate-me mais – convidou ele. Percebendo que o irmão sentiria necessidade disso, dissera a Freddie que podia contar tudo a Angelica. – E devia – respondeu ela –, mas decidi perdoar-te. Comovido, abraçou-a. – Obrigado. Nunca se cansava de admirar a generosidade daqueles que mais o amavam, e que ele mais amava. Deixaram-se ficar na conversa com Mrs. Douglas. Depois de a senhora ter saído para ir dormir a sua sesta, os quatro reuniram-se no gabinete e troçaram amavelmente de Vere enquanto planeavam o seu regresso à normalidade. – Podemos dizer que deste com um urso, no meio do bosque – sugeriu Angelica – e que o urso te deu uma pancada na cabeça, como eu devia ter feito. – Em Inglaterra, os ursos selvagens estão extintos desde o século décimo – sublinhou Vere. – Vamos ter problemas com essa história. – E que tal um acidente durante um jogo de críquete? – perguntou Freddie. – Posso bater-te com muito jeitinho. – Depois de ter sido passado a ferro por ti, Freddie, acho que subestimas a tua própria força. Uma pancada com jeitinho tua e eu posso ficar sem cabeça. – Posso dar-te com uma frigideira na cabeça – sugeriu a mulher, entrando na brincadeira. – Toda a gente acredita numa rixa doméstica. – Que ideia excelente! – exclamou Angelica. – Mas tu és uma marquesa e não a mulher de um camponês. – Vere abanou a cabeça. – Que dama da tua condição sai a correr da sala de estar durante cinco minutos para ir à cozinha à procura de uma caçarola? É muito mais credível se

se usar um jarrão Ming. – Ou a bengala dele – sugeriu Freddie, piscando o olho a Elissande. Desmancharam-se a rir. Freddie e Angelica ficaram para o jantar ao longo do qual se fizeram muitos brindes: à felicidade futura do jovem casal de noivos, à saúde de Mrs. Douglas, à próxima recuperação «miraculosa» de Vere e à paciência de santa de que a mulher necessitaria para aturar o pedante insuportável em que Vere se transformaria, agora que era de novo livre de explorar o seu intelecto. Vere propôs ao irmão e à futura cunhada que ficassem para passar a noite, mas eles declinaram o convite. Não insistiu muito, sabendo que os jovens amantes estavam ansiosos por voltarem à sua privacidade. Os quatro fizeram planos para se encontrarem de novo, dentro de pouco tempo e, mais tarde, Vere e Elissande, de pé à frente de casa, ficaram a acenar, despedindo-se de Freddie e Angelica quando estes partiram para a estação de comboio. Quando a carruagem desapareceu de vista, Vere passou o braço sobre o ombro da mulher. Ela encostou-se a ele. – Amo-te – disse, beijando o cabelo dela. – Também te amo. – Ela pegou na mão pousada no seu ombro e depôs-lhe um beijo na palma. – E quero fazer longos passeios contigo, muitos, muitos passeios. Ele sorriu. – Os seus desejos são ordens, milady. – Ótimo – disse ela. – Agora vamos subir, recolher-nos e falar longamente, se é que sabes a que me refiro, acerca da poesia latina. Ainda riam quando fecharam a porta do quarto.

Nota da autora A lanterna de mão elétrica foi inventada nos finais do século xix. Há patentes de vários modelos, destinados a uma utilização comercial, datadas de 1896 a 1898. Apesar de, provavelmente não serem tão portáteis e discretas como a que Vere usou neste livro, sinto-me bastante confiante de que, dada a tecnologia existente, um engenheiro talentoso e dedicado que trabalhasse para a Coroa poderia facilmente ter engendrado uma engenhoca tão à James Bond. As passagens sobre Capri foram retiradas de A Handbook for Travellers in Southern Italy and Sicily e de By-ways of Europe. Ambas as obras se encontram agora em domínio público.

Agradecimentos A Caitlin Alexander pela sua incansável dedicação e absoluto brilhantismo e por saber sempre o que é preciso fazer. A Kristin Nelson e Sara Megibow, pelo seu apoio e sabedoria. A Janine, por ter ficado a pé comigo durante toda a noite, e por sábios conselhos quando mais precisei deles. A Tracy Wolff pela comida, conversa e risos. A Courtney Milan por evitar que eu enveredasse por um caminho totalmente incorreto. A Jo por me ajudar com a legislação criminal inglesa. Aos meus leitores pelos seus e-mails e cartas. À minha família, a minha fortaleza na vida. E, como sempre, se está a ler isto, do fundo do coração, aqui fica o meu muito obrigada.
Sherry Thomas - Trilogia Londres 03 - Promessas de Amor

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